Sofística
(uma biografia do conhecimento)
45.2 – Duplos discursos, de Protágoras.
Outra das suas frases célebres deixa claro que, com as palavras citadas, Protágoras quis aludir à relatividade do conhecimento: "Todo argumento permite sempre a discussão de duas teses contrárias." Estas palavras não só revelam o espírito dos sofistas, como também contêm os conceitos de tese e antítese. De acordo com Protágoras, no entanto, não se estabelece qualquer dialética que conduza à síntese, como Hegel viria a afirmar dois milênios depois, mas chega-se à conclusão de que não existe nenhuma verdade definitiva e que, por isso, há que aceitar cada indivíduo e o seu ponto de vista. Para a convivência dos seres humanos, isso implica cultivar e proteger a pluralidade de opiniões e de formas de vida. Protágoras é considerado, por isso, o filósofo da democracia. É perfeitamente consequente que Karl Raimund Popper, o filósofo que mais refletiu sobre o Estado no século XX e o principal defensor de uma sociedade aberta, tivesse em Protágoras o seu ideal.
(Fonte: HELGE HESSE, A História do Mundo em 50 frases, traduzido por Maria Irene Bigotte de Carvalho, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012, p. 23/26).
Kerferd acrescenta:
“Assim, segundo um relato, Protágoras teria sido o primeiro a dividir o discurso (logos) em desejo, questão, resposta e ordem; segundo outro, em narração, questão, resposta, ordem, narrativa indireta, desejo e apelos; ao passo que o sofista Alcidamas propunha uma classificação diferente, em quatro divisões: asserção, negação, questão e discurso (DK 80A1, parágrafos 53-54). Além disso, Protágoras distinguia os três gêneros dos nomes como masculino, feminino e os que se referem a objetos inanimados (DK80A27).
Ao esboçar essas distinções, Protágoras não estava meramente tentando analisar e descrever o uso corrente do grego; seu objetivo era corrigir esse uso e, para isso, ele estava pronto a recomendar medidas drásticas. Assim, os gêneros gramaticais deveriam ser revistos como parte de um processo de correção da linguagem. As palavras gregas para "cólera", Mênis, e "elmo", Péléx, que são, de fato, femininas, deveriam ser corrigidas para o gênero masculino. Supõem, alguns, que o motivo disso é porque "cólera" e "elmo" não são palavras de caráter naturalmente "feminino", estando especialmente associadas ao sexo masculino, enquanto outros supõem que Protágoras estava simplesmente tentando racio- [120] nalizar o uso com base na morfologia — nesse caso, o final das palavras. Ambos os critérios, o de consistência morfológica e o de consistência com o gênero natural, encontram-se na passagem satírica de As nuvens, de Aristófanes, que tem uma clara referência à doutrina da "correção dos nomes" (DK 80C3), e parece provável que ambas as considerações foram usadas pelo próprio Protágoras. A favor da opinião de que foram principalmente as considerações formais que influenciaram Protágoras, pode-se citar a afirmação de Diógenes Laércio (IX, 52 = DK 80A1) que Protágoras, ao argumentar, deixava de lado a Dianoia (no sentido do significado de uma palavra) a fim de se concentrar só no nome. Mas, infelizmente, a interpretação dessa afirmação é muito duvidosa. Uma segunda prova seria de caráter mais definido, se ao menos pudéssemos aceitá-la como bem fundada. Infelizmente, creio que não se pode aceitá-la como tal, mas cedo à tentação de incluí-la porque é interessante. Refiro-me, aqui, à fascinante teoria de Italo Lana.
De acordo com essa teoria, poderíamos realmente ter um exemplo da aplicação que faz Protágoras de sua própria teoria ao encontrarmos a única forma dynamia em lugar da normal dynamis ("força") em dois dos manuscritos com o texto do Proêmio das Leis de Charondas. Numa hipótese audaciosa, Lana sugere, primeiro, que essas leis foram revistas por Protágoras, quando foi convocado por Péricles para providenciar uma constituição para a nova colônia de Turói, por volta de 443 a.C.; e, segundo, que Protágoras aproveitou a oportu- [121] nidade para alterar dynamis, forma que, a seu ver, devia ser tratada como masculina, para a forma, que não ocorre em nenhum outro lugar na Grécia, a saber, dynamia, com a apropriada terminação feminina em -a. A progressão de hipótese para hipótese infelizmente torna essa especulação difícil de aceitar. Mas se a especulação é moderna apenas, pode ser aceita como bene trovata!”. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. ____)
Já Gilbert Romeyer-Dherbey diz:
Diógenes Laércio afirma, a propósito de Protágoras, que “é o primeiro a dizer que a respeito de tudo há dois discursos que se contradizem um ao outro”. O tema do duplo discurso era o tema principal das Antilogias, e com ele Protágoras exprime um sentimento profundamente enraizado no helenismo. Este sentimento está relacionado com a natureza da religião grega, que é um politeísmo; ora, o primeiro princípio do politeísmo é o da dispersão do divino, de uma pluralidade de deuses que frequentemente se defrontam e equilibram os seus poderes. A clara individualização de cada um dos deuses revela uma diferenciação das forças do universo; o espírito que pensa um mundo plural e policêntrico ditará, portanto, facilmente a clivagem, a rotura. Assim, o tempo será experimentado como um meio homogêneo, uniformemente fragmentado; ainda não existe o relógio mecânico, que expressará a duração em fragmentos iguais e mensuráveis; o tempo é, pelo contrário, o da ocasião propícia (kaipós), que aparece e desaparece (p. 17) arritmicamente, dado ora a um ora a outro, nunca sendo, por conseguinte, bom para toda a gente. O desequilíbrio do tempo que fere o que vem a tempo e a contratempo agrava-se com uma dispersão dos lugares. O espaço homogêneo não existe como o tempo homogêneo; o mundo político grego é constituído por inúmeras Cidades-Estados, átomos do poder dispersos e que perpetuamente se entrechocam e confrontam. O sofista nómade, ao ir de uma para outra, experimenta uma contínua sensação de descentração; como ser o rapsodo dos seus discursos tão desconexos? Untersteiner, por outro lado, sublinhou profundamente a relação que existe entre o conceito protagórico de antilogia e o clima da tragédia esquiliana. A ação trágica desenvolve-se no interior de uma situação onde o herói se encontra entrincheirado, em que a unilateralidade é impossível porque só as ações que pode escolher são simultaneamente prescritas e proibidas. Assim, nas Coéforas, Orestes, para satisfazer o querer divino, deve ao mesmo tempo cumprir e não cumprir o matricídio; sentindo subir a tensão trágica, grita então: “Que Ares se agarre a Ares, Diké a Diké!”. O sentimento da contradição de que todo o discurso é suscetível ainda pôde ser confortado em Protágoras pela prática da democracia ateniense. Com efeito, a decisão política perante a Assembléia do povo é sempre discutida; assim, reconhece-se sempre como discutível, isto é, reversível e modificável; esta versatilidade será até uma das principais críticas que Aristófanes dirige ao démos. Uma assembléia numerosa raramente é unânime; geralmente, as opiniões dividem-se e o que caracteriza um regime democrático é tolerar uma oposição, isto é, aceitar a legitimidade possível de um discurso contrário ao do poder constituído. O próprio debate político, em que o povo ouve os discursos opostos dos dois partidos que se defrontam, prova que “a respeito de tudo há dois discursos que se contradizem um ao outro.” A origem polêmica e conflitual desta divisão revela-se no fato de Protágoras falar de dois discursos, e não de uma pluralidade de discursos possíveis. Com efeito, toda a guerra não opõe mais que dois campos: bellum = duellum. Este caráter polêmico, aliás, encontra-se na instituição judicial grega, em que todo o processo toma a forma de combate: o espaço judicial é menos um espaço de participação que de luta em (p. 18) que se defrontam as defesas contrárias dos dois partidos; o próprio termo que designa o processo (aywv) significa também batalha. [Osório diz: de onde Protágoras pode ter intuído os duplos discursos!]
O pensamento protagórico da antilogia também se explica pelo fato de se desenvolver em terreno heraclitiano. Da mesma maneira que Heráclito, Protágoras é um Jônio; ora, a visão de um real contraditório e afirmação da imanência recíproca dos contrários constituem o centro do pensamento de Heráclito muito mais seguramente que o da mobilidade, que frequentemente é reduzido. É por isso que, para ele, o próprio âmago do universo é conflito. “O combate é o pai de todas as coisas, de todas é rei.” A relação das doutrinas de Heráclito e de Protágoras foi sublinhada tanto por Platão, no Teeteto, como por Aristóteles, no livro IV da Metafísica. Mas subsiste uma diferença entre eles ao nível do modo de expressão: quando Heráclito, pela supressão do verbo ser, mostra na própria enunciação a contradição interna de toda a realidade, a retórica de Protágoras, renunciando a fornecer a imediatez da contradição, divide-a numa antilogia [Osório diz: conceito de antilogia], isto é, em dois discursos, cada qual coerente em si mesmo, mas incompatíveis entre si. Todo o real, quando se diz corta necessariamente em dois todo o discurso e atinge a própria linguagem com uma insuperável oposição de teses contrárias. Esta cisão da linguagem não cobre por completo a cisão parmenidiana entre a linguagem da oposição e a linguagem da verdade; uma semelhante distinção, dando à verdade a passagem para a opinião, suprime efetivamente toda a cisão da palavra pensante. Protágoras não se pode contentar com a ontologia parmenidiana porque esta, sacrificando o múltiplo, cai na infelicidade da generalidade; o discurso da ontologia torna-se discurso vazio, também Protágoras recusa toda a distinção entre a opinião e a verdade; reabilita a doxa, cujos perpétuos desmentidos constituem a própria lei da vida, e as formas de uma realidade resplandecente. Platão refere-se a esta demonstração de Protágoras a propósito do problema do Bem e fá-lo declarar que “o Bem é qualquer coisa de variegado” [Osório diz: Que apresenta cores ou matizes variados ou diversos.]. Protágoras introduziu, pois, a contradição no (p. 19) Ser de Parménides e, por este motivo, mereceu a admiração de Hegel.
O plano das Antilogias é-nos proporcionado muito verossilmente por uma passagem do Sofista de Platão, em que este define o sofista como sendo essencialmente o malabarista da contradição. (p. 20)
Ontologia (examinava o devir e o ser). (p. 20)
[Osório diz: neste parágrafo dá para questionarmos o seguinte: Se Sócrates, segundo seu criador (Platão), não estudava astronomia, como a discutia com tamanha desenvoltura?]
I - O INVISÍVEL - As Antilogias começavam...
O agnosticismo de Protágoras é talvez disto resultante, o ponto neutro entre os dois discursos opostos que, a propósito dos deuses, se confrontam, o da crença e o da descrença. Se os dois discursos aqui se anulam em vez de deixar um sobrepor-se ao outro, é porque se trata do domínio do invisível e do escondido; o sofista guarda a sua resposta, ou adia-a, na impossibilidade de poder levar a cabo uma fenomenologia do divino, ou de querer elaborar uma teologia do obscuro. Em todo o caso, este agnosticismo prepara e permite o momento seguinte do pensamento de Protágoras, a afirmação do homem-medida: se os deuses não se deixam afirmar, então fica o homem. A prova está em que Platão, nas Leis, substituirá a fórmula protagórica de ánthropos métron por esta: “o deus é a medida de todas as coisas.” (p. 20) [Osório diz: Platão joga a toalha!]
Protágoras prepara, assim, pela negação de todo o recurso ao absoluto, um humanismo radical. (p. 20/21)
Protágoras, sem negar radicalmente toda a possibilidade de uma imortalidade da alma, devia sublinhar a nossa total impotência para conhecer, com certeza, o que acontece ao homem no além. A presença tutelar do deus desaprece, portanto, no horizonte do homem, antes do nascimento deste como depois da morte. O homem encontrar-se-á num mundo errado. (p. 21) [Osório diz: que religião prestigiará um homem desses?].
II - O VISÍVEL – A) As ...
Esta refutação da ontologia eleática era, evidentemente, a condição sine qua non da visão antilógica do mundo, para a qual o real é bilateral e a palavra reversível. A própria ontologia não deixa de cair em contradição que quer evitar, uma vez que, ao lado do discurso da verdade, é obrigada a tolerar a existência do discurso da opinião e a dar-lhe lugar, como se pode ver no poema de Parménides; não pode chegar ao monismo completo da verdade. (p. 21) [Osório diz: Verdade – sua impossibilidade]
C) A política e o direito constituem um campo privilegiado para a visão antilógica das coisas. A ambiguidade reina no domínio antropológico e é nesta seção das Antilogias que devia ter lugar a discussão sobre a morte de Epitímio de Farsália evocada por Plutarco: “Com efeito, em virtude de alguém, no pentatlo, ter atingido, sem querer, com um dardo, Epitímio de Farsália e o ter morto, Péricles consagrou um dia inteiro a interrogar-se se era, de acordo com a argumentação mais correta, o dardo, ou antes aquele que o lançara, ou os organismos dos Jogos, que haveria que considerar como causas do drama.” (p. 21) [Osório diz: A antilogia no Direito e na Política]
Esta discussão não visava instaurar uma hierarquia nos níveis da responsabilidade (fez-se saber que, para o direito arcaico, um objeto pode ser declarado culpável), mas segundo interpretação de G. Rensi, devia mostrar a impossibilidade em que se estava para a determinar, a não ser arbitrariamente. Três causas da morte de Epitímio podem ser invocadas, e igualmente legítimas segundo o ponto de vista adotado: para o médico, foi o dardo que causou a morte; para o juiz, foi quem o lançou; para a autoridade política, foi o organizador dos Jogos. A lição deste fragmento é, portanto, a de um perspectivismo que tende a provar que não existe um perfeito absoluto e em si, permitindo discernir ao vivo e certeiramente, nos casos jurídicos concretos. (p. 22) [Osório diz: por que Péricles passou um dia discutindo com Protágoras]
D) Se há uma disciplina que não se adapta ao perspectivismo é a matemática, que, aos olhos de Protágoras, é uma arte (techné). Também procura demonstrar que é igualmente antilógica e, como as outras artes, se contradiz. Com efeito, a geometria ensina-nos que a reta tangente ao círculo toca este círculo em um ponto, mas se traçamos o círculo e a reta perceptíveis, apercebemo-nos de que a reta toca sempre o círculo em vários pontos e que nunca poderemos obter uma figura conforme com as definições matemáticas. Ora, a geometria não pode, para raciocinar, dispensar a consideração das figuras, cujo traçado desmente o discurso que o matemático elabora a seu respeito: “Com efeito, o círculo toca a tangente não apenas num ponto, mas como disse Protágoras na sua refutação dos geómetras.” Se a matemática é antilógica, a fortiori também o serão as outras artes. No final das Antilogias põe-se, portanto, de maneira premente, o problema da verdade. (p. 22) [Osório diz: os matemáticos serem mais uns “inimigos” do Sofista). (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. ).
Diz Guthrie:
Protágoras começou com o axioma de que “há dois argumentos sobre cada assunto”.
Como Protágoras disse, “Sobre cada tópico há dois argumentos contrários entre si”. Ele visava a treinar seus alunos para elogiar e censurar as mesmas coisas, e em particular escorar o argumento mais fraco para que aparecesse mais forte. O ensino retórico não se restringia à forma e ao estilo, mas lidava também com a substância do que se dizia [Osório diz: este é o meu pensamento! Como falar de um assunto sem conhecê-lo? Falar falsamente sobre um tema é impossível!]. Como se podia deixar de inculcar a crença de que toda verdade era relativa e ninguém conhecia alguma coisa como certa? A verdade era individual e temporária, e não universal e permanente, pois a verdade para o homem era simplesmente aquela de que podia ser persuadido, e era possível persuadir qualquer de que preto era branco. Pode haver crença, mas nunca conhecimento. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. xxxx).
Diz Fausto dos Santos:
Reale afirma que este tratado não foi proposto como um exercício de retórica, como o foram o Elogio a Helena e a Defesa de Palamedes, tendo antes “[...] o preciso objetivo de excluir radicalmente a possibilidade da existência ou de se alcançar ou, pelo menos, exprimir uma verdade objetiva” (1993, p. 211). (70/71) [Osório diz: objetivo de Górgias com o Tratado do não-ser. Esse tratado somente não o insere dentre os filósofos porque ele faz justamente o contrário: destrói o objeto da filosofia. O homem não estava brincando, como alguns idiotas querem supor para desacreditá-lo, diante da fortaleza de seus argumentos]. (Fonte: Filosofia Aristotélica da Linguagem, Fausto dos Santos, Ed. Universitária Argos. Capecó-SC, 2002, p. ).
Doutrina Guthrie:
Os “Duplos argumentos” … (p. 290)
Como tal é de interesse para o tipo de ensino corrente na segunda geração de sofistas e também como amostra de como o argumento sobre a possibilidade de se ensinar a virtude degenerou em lugar-comum de escola. A data felizmente está fixada em cerca de 400 a.C. por uma referência à vitória dos espartanos contra os atenienses e seus aliados como "muito recente".
O escritor se põe do lado dos que dizem que a mesma coisa é boa e má, sendo boa para uns e má para outros, e para o mesmo homem em algumas circunstâncias boa e em outras má. Depois de aduzir o exemplo protagórico do efeito diferente do alimento e da bebida na saúde e na doença, ele continua dizendo coisas como estas: uma vida de dissolução e extravagância pode ser má para o doente, mas boa para os médicos, a morte má para o homem que morre, mas boa para os empresários fúnebres, e assim por diante. A identidade de honroso e infame argumenta-se apelando aos diferentes costumes e crenças dos atenienses e espartanos, gregos e bárbaros, como exemplos tirados de Heródoto.
Truques sofísticos [Osório diz: Parece que Platão, Xenofontes e Aristóteles utilizaram o termo sofista como, modernamente, se usa o termo corrupto. Se diz que alguém é corrupto mas não se o nomeia. São condenados abstratamente! Somente os sofistas usavam truques? Por que, contra eles, os truques são pejorativos? E os truques de Platão?]. (p. 291)
[No Teet. a idéia de que a mesma coisa é tanto pesada como leve é aduzida como "doutrina secreta" de Protágoras, isto é, como conseqüência necessária de seu ensino mesmo que ele próprio não estivesse consciente dela (Cf. Rep. 479ss, Teet. 152d, 155b-c, e Eutid. 283c-d e passim.). [Osório diz: Platão falou, tá falado. Sua palavra, como a de um deus, é uma ordem!].
[Osório diz: muito bons os parágrafos a seguir]
[Osório diz: ensino da virtude/sabedoria]
O capítulo 6 se intitula: “Com respeito a sabedoria e virtude, se se podem ensinar”, e começa: “Existe um argumento, nem verdadeiro nem novo, de que sabedoria e virtude não se podem ensinar nem aprender”. Enumera depois cinco argumentos usados por defensores deste modo de ver e passa a refutá-los.
1. Se passas algo a outrem, não podes possuí-lo tu mesmo. [Osório diz: caralho! O cara confunde algo material (uma banana) com palavras, algo imaterial (ensinamentos) onde não há algo a ser desgastado/consumido ou em que haja a perda da posse com a transferência! É um grande fdp!].
2. Se se pudesse ensinar, haveria mestres reconhecidos dela, como de música. (Isto aparece no Meno). [Osório diz: e os professores? Para quê e para quem Platão escrevia?]
3. Os sábios da Grécia teriam ensinado sua habilidade aos que lhes eram próximos e queridos. (Assim Sócrates argumenta em Protágoras 319 que Péricles não podia ensinar sua sabedoria a seus próprios filhos e em Meno 90 que nenhum grande estadista a ensinou). [Osório diz: aqui o autor não diz quem eram tais estadistas! Parece um lugar comum! Todos sabiam! Mas o mais grave: isso vai contra a oligarquia em cujo seio a criança aprende com os seus! Suprema contradição de Platão]
4. Alguns foram aos sofistas e nada conseguiram de bom pelo fato. (Em Meno 92, Anito afirma que os sofistas fazem mais mal do que bem a seus alunos) [Osório diz: Anito aqui é queridinho! Outra suprema contradição: se os caras não serviam para nada, por que se preocupar com eles? Volto à pregunta: apenas o oposto da virtude, a “desvirtude”pode ser ensinada?].
5. Muitos ficaram sem freqüentar sofistas.
Estes argumentos consistem uma série de objeções em estoque à profissão de sofista. O escritor passa a responder a elas uma a uma.
1. Este argumento, pensa ele, é “muito tolo” (karta euethe), pois ele sabe que os mestres que ensinam a escrever ou tocar conservam o conhecimento que comunicam.
2. Em respeito ao argumento de que não há nenhum mestre reconhecido de virtude, ele pergunta: O que ensinam os sofistas, senão sabedoria e virtude? (No Meno Sócrates sugere que os sofistas são os homens certos para ensinar a virtude. Anito fica furioso com a idéia, e Meno admira Górgias porque, diferindo de outros sofistas, não tem nenhuma pretensão de ensiná-la). E o que, continua ele, eram os seguidores de Anaxágoras e Pitágoras? (Significando presumivelmente que eram alunos que aprendiam sabedoria e virtude de Anaxágoras e Pitágoras).
3. Contra o terceiro argumento, diz simplesmente que Policlito ensinou os filhos a fazerem estátuas (com isso lhes comunicou sua sophia e arete particulares). (Policlito foi citado como exemplo no fim do discurso de Protágoras, Prot. 328c, com a sugestão de que, se os filhos de um homem não ficam iguais a ele na própria arete, isto não era necessariamente por falta de ensino) [Osório diz: como fica o caso dos filhos que superam o próprio pai depois de aprenderem com eles?. De mais a mais, se alguém deixou de ensinar, não é (p. 292) nenhum argumento, pois, se apenas um a ensinou, é prova que ela pode ser ensinada.
4. Se é verdade que alguns não aprenderam sabedoria de sofistas, é também verdade que muitos aos quais se ensinou a ler e escrever não aprenderam estas artes.
5. Contra o quinto argumento ele diz que afinal o talento natural (physis) vale alguma coisa. Alguém que não aprendeu dos sofistas pode fazer muito bem, se tiver o dom de pintar facilmente as coisas, depois de aprender um pouco daqueles que ensinaram a linguagem – ou seja, nossos pais. Um pode aprender do pai, outro da mãe, um mais, e outro menos. Se alguém crê que não aprendemos linguagem, mas nascemos com o conhecimento dela, que leve em conta que, se um recém-nascido fosse logo mandado para a Pérsia e crescesse lá, falaria persa e não grego. Aprendemos a linguagem sem saber quais sejam nossos professores.
Do mesmo modo Protágoras em Prot. 327 introduz a noção de tendência natural (eyphya, cf. euphyes em Dissoi Logoi), sugerindo que alguns tem maior talento para a virtude assim como para tocar flauta, e passa a introduzir a analogia da linguagem, que aprendemos sem saber quais sejam nossos mestres. A educação de uma criança começa no nascimento com seus pais e ama e é continuada pela escola e mais tarde pela própria cidade por meio de suas leis (325c ss). O sofista não pretende ser o único mestre de virtude, mas apenas levar esta educação mais adiante do que outros. [Osório diz: fantástica esta afirmação!]
Uma vez que podemos supor que este documento possa ter sido escrito antes do Protágoras de Platão, mostra que as objeções à tese de que se pode ensinar a virtude, que Sócrates levanta no diálogo para afastar Protágoras, estão baseadas em material bem conhecido de controvérsia corrente e anterior. Quando acrescentamos os pontos em comum entre a resposta do escrito e Protágoras de Platão, temos apoio para ao que se pensaria em todo caso provável, que o longo discurso que Plutão atribui a Protágoras reproduz substancialmente as idéias do próprio sofista. [Osório diz: por que devemos acreditar em Platão quando fala sobre Protágoras].
O capítulo 7 argumenta que o uso da sorte antes que a eleição na designação para o ofício público não é eficiente nem verdadeiramente democrático [Osório diz: Péricles, quando escolheu o legislador para Túrio, não o fez por sorteio!], o capítulo 8 é uma tentativa de sustentar que o bom locutor sabe tudo de tudo [Não posso concordar com Taylor que o objetivo deste capítulo seja estabelecer a tese socrática de que o dialético é também o filósofo que é idêntico com o "verdadeiro" estadista e orador. Sua afirmação é muito mais semelhante à de Hípias (que Taylor menciona numa nota de rodapé, VS, 127, n. 1) de que o sofista-orador é onisciente. [Osório diz: e Hípias aprendeu com quem?], [Osório diz: daí que precisa ter estudado sobre o assunto! Daí que não se discursa o “vazio”! Daí que Sócrates, como bom sofista, debe ter estuda física!] e o final, secção imcompleta, trata do valor da boa [p. 293] memória.
O argumento de que magistrados não devem ser indicados pela sorte porque o conhecimento técnico é tão necessário para o governo como para qualquer outra ocupação é argumento usado por Sócrates. O que segue, porém, – que a sorte não é democrática porque deixa ao acaso que se indique um amigo da democracia ou um oligarca – não se teria recomendado a Sócrates, que tinha pesadas duvidas sobre a sabedoria do governo democrático. [Osório diz: e quando o sorteio for procedido apenas entre técnicos?] (p. 294). (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. xxxx).
Kerferd ensina:
Antilógica, usada por Platão em sentido técnico, difere de erística em dois aspectos importantes. Primeiro, seu significado é diferente e, segundo, a atitude de Platão a seu respeito difere da sua atitude em relação à erística. Antilógica consiste em opor um logos a outro logos, ou em descobrir ou chamar atenção para a presença de uma oposição em um argumento, ou em uma coisa ou situação. A característica essencial é a oposição de um logos a outro, por contrariedade ou por contradição. Segue-se daí que, ao contrário da erística, a palavra, quando usada numa argumentação, constitui uma técnica específica e bem definida, a saber, a de partir de um dado logos, digamos, a posição adotada pelo oponente, e passar a estabelecer um logos contrário, ou contraditório, de maneira tal que o oponente terá de aceitar ambos os logoi, ou pelo menos abandonar a sua primeira posição. Um exemplo já foi considerado, a saber, a aplicação do termo ao método usado por Zenão de Eléia. Um segundo exemplo se encontra no Fédon, numa passagem a ser discutida em breve, e um terceiro no Lísis (216a). Chega-se a um ponto, na argumentação, em que se sugere que é o oposto que é mais propício ao seu oposto. Sócrates então diz que, a essa altura, os antilogikoi nos dirão, corretamente, que a inimizade é o mais oposto à amizade. E, portanto, o resultado (platonicamente inaceitável) é que o inimigo é que é mais propício ao amigo, e é o amigo que é mais propício ao inimigo. [Osório diz: Platão e o uso da antilógica. Será que Platão usava os ensinamentos sofístico repudiando-os. “É pecado, mas faço”.]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. ____).
Prossegue Kerferd:
O Dissoi Logoi é um texto anônimo encontrado no fim dos manuscritos de Sexto Empírico. Escrito num tipo de dialeto dórico, começa com as palavras: "duplos argumentos são enunciados na Grécia por aqueles que filosofam, concernentes ao bom e ao mau" [Osório diz: “por aqueles que filosofam”! Engraçado isso!!!], e o título moderno é simplesmente tirado das primeiras palavras iniciais. Foi composto no final da Guerra do Peloponeso. A inferência de que deve ter sido escrito logo depois do seu término baseia-se meramente na incompreensão do que é dito em I, 8, onde as palavras "os acontecimentos recentes primeiro" simplesmente significam que ele se inicia com a Guerra do Peloponeso, indo de volta ao passado para as primeiras guerras. A natureza da obra é curiosa, e há quem pense que represente as anotações de um prelecionador ou, possivelmente, notas tomadas por um ouvinte. Sua estrutura básica consiste claramente em colocar [94] lado a lado argumentos opostos a respeito da identidade, ou não-identidade, de termos morais ou filosóficos aparentemente opostos, como bom e mau, verdadeiro e falso. Como isso é uma aplicação do método de Protágoras, leva a pensar que esteja baseado no Antilogiai daquele sofista. Mas essa conclusão não é válida, porque — como será argumentado neste livro — o método de Sócrates era de fato o método do movimento sofista todo [Osório diz: nossa! Que confissão!]. Nem se pode atribuir o texto a qualquer determinada fonte de inspiração. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. ____).
Diz Martin Burckherdt:
“Vista historicamente, a lógica é precedida pela antilógica, aquela disciplina que os sofistas estabeleceram como a arte da contradição (antilogike technè) e que, acima de tudo, era empregada em contendas judiciais. Não havia nada que Aristóteles desprezasse tanto quanto essa antilógica, pois a sabedoria sofista é apenas aparente, irreal, e o sofista ganhava dinheiro com uma sabedoria de aparências, não com a verdadeira”. (Pequena história das grandes ideias, Martin Burckhardt, tradução de Petê Rissatti, Tinta Negra: 2011, p. 44).
Diz mais Martin Burckherdt:
“Da mesma forma pela qual Aristóteles cuidou dos sofistas, também desenvolveu com sucesso o livro de receitas do pensamento lógico. Com isso, Kant pôde dizer mais tarde que a lógica desde Aristóteles "não conseguiu avançar nenhum passo, parecendo, dessa forma, finalizada e perfeita em todos os sentidos". E, todavia, se quiséssemos falar das leis da razão, precisaríamos trazer à tona uma objeção importante. Todas essas belas frases remontam o alfabeto como condição de possibilidade para poder efetivamente conduzir à lógica. Se Aristóteles atribuiu ao princípio da identidade que A é igual a A, se a casualidade é atribuída ao fato de que quem diz A, também pode dizer B, se a assim chamada conclusão silogística (se A = B e A = C, então B = C) por fim completa o ABC da lógica, vemos assim que nela existem algumas suposições básicas que o lógico não considera. Se retirássemos o alfabeto do lógico, tiraríamos dele o fundamento de seu negócio – não haveria mais nada que lhe pudesse garantir identidade ou casualidade.
Aprox. 340 a.C. Credita-se a Euclides (365 a 300 a.C.) a "matematização" da lógica aristotélica. Em seu livro Elementos (grego stoichea — ou seja: as letras) ele demonstra que os conjuntos comuns se originam de axiomas. Não se fez mais nada. com a lógica, que se torna um problema novamente apenas nos séculos XIX e XX. (Pequena história das grandes ideias, Martin Burckhardt, tradução de Petê Rissatti, Tinta Negra: 2011, p. 45/46).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
45 – Protágoras e 45.1 – O homem medida, de Protágoras.
A famosa frase de Protágoras diz:
“De todas as coisas o homem é a medida das que são que são, das que não são que não são”.
Mario Untersteiner traduz o fragmento acima assim:
"O homem é o dominador de toda a experiência, seja em relação à fenomenalidade de tudo quanto é real, seja em relação a nenhuma fenomenalidade de tudo aquilo que é privado de realidade".
Está pequena frase é um dos maiores tormentos dos pensadores desde, praticamente, o seu pronunciamento acerca de 2.500! Desde então rios de tinta têm sido gostos para explicá-la, difamá-la, entendê-la, condená-la, aplaudi-la!
Ao cunhar sua famosa frase “o homem é a medida de todas as coisas”, Protágoras pode e deve ser considerado o primeiro dos humanistas. (Enciclopédia, p. 261)
A frase famosa de Protágoras, cujo contexto não dispomos, e que já recebeu inúmeras interpretações, especialmente aquelas que buscam desqualificar o autor, é perfeita.
Nada mais apropriado que dizer que “o homem é a mediada de todas as coisas”, isso por uma simples e fundamental razão: o homem é o único animal que valora!
Se ele é o único animal a atribuir valor às coisas, nada mais certo que apontá-lo (e isso é uma simples constatação) como sendo ele a medida de todas as coisas.
O seria o ouro se o homem não o valorasse?
E o ar que respirarmos? Até este bem tão fundamental passa a receber um valor inferior aos efluentes poluentes, pois o homem prefere poluir o ar, estragando-o, que preservá-lo, dando, assim, maior valor a outro bem que ao próprio ar que o mantêm vivo.
“Olhamos todas as coisas com a cabeça humana,
e é impossível cortar essa cabeça;
mas permanece a questão de saber
o que ainda existiria do mundo
se ela fosse mesmo cortada”. (Nietzsche, Friedrich. Humano, Demasiado Humano - um livro para espíritos livres. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras. São Paulo).
Antecedentes do HOMEM MEDIDA de Protágoras.
Nos diz Guthrie:
“Além de sua distância, os pré-socráticos eram desacreditados por suas mútuas contradições. [Osório diz: Protágoras viu isso!]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 20).
Eis algumas interpretações que parecem sintetizar todas as demais:
“O principal centro da vida pública na antiga Atenas era a ágora, o lugar do mercado e das reuniões, situado aos pés da Acrópole. Nos confins do enorme triângulo formado por esta praça, elevavam-se os templos e os edifícios administrativos e da assembleia da cidade-estado. Aqueles que não participavam da vida política passeavam talvez por entre os postos de venda que se distribuíam pela praça e encaminhavam-se, por fim, para o monumento aos heróis de Atenas, em cuja base eram expostos fragmentos de papiro com os últimos comunicados públicos.
Se alguém entrava na tenda ao lado, a do sapateiro Simón, para buscar os sapatos que este havia remendado, encontrava frequentemente o filósofo Sócrates, que, assim como o chefe de estado Péricles, era cliente de Simón. Assim, qualquer pessoa podia ali iniciar uma conversa com Sócrates, que terminaria à sombra de um pórtico. Também era possível encontrar Protágoras, a quem se poderia perguntar se as aulas de oratória continuavam sendo tão produtivas.
Naquele tempo, Protágoras gozava de fama. Era amigo de Eurípedes, o autor das tragédias, e do chefe de estado, Péricles. Protágoras provinha de uma família pobre oriunda de Abdera, na Trácia, perto da atual fronteira entre a Grécia e a Turquia. As ridicularias de que eram acusados os seus habitantes deram lugar à palavra "abderita", sinônimo de simplório ou ignorante. Como que por despeito, Abdera viu nascer alguns dos homens mais célebres, como o filósofo naturalista Demócrito e o já mencionado Protágoras.
Aos 25 anos, Demócrito podia honrar-se de ter "descoberto" o jovem Protágoras, que por aquela altura ganhava o sustento da família transportando mercadorias para Abdera. Um dia, Demócrito testemunhou que Protágoras carregava uma grande quantidade de madeira em cima do seu burro. A habilidade que Protágoras evidenciara foi, para Demócrito, um indício de que o jovem também podia ser dotado para a filosofia. Decidiu ocupar-se dele, e Protágoras não decepcionou seu célebre mecenas. Demonstrou possuir grandes dotes, sobretudo como orador. Depois de uma grande temporada trabalhando como leitor público em Abdera, mudou-se finalmente para a Atenas de Péricles, que acabara de ordenar que na Acrópole, o monte de rocha branca que dominava a cidade, fossem erigidos novos edifícios suntuosos como o Parténon.
O governo de Péricles não só foi testemunha do florescimento da arquitetura, do artesanato e de todas as artes, como também teve a experiência do apogeu da democracia como forma de organização social. Segundo Péricles, vários atenienses de condição modesta deveriam participar também no governo e cobrar um pagamento pela sua atividade política. Naqueles dias, talvez os melhores que a cidade viveu, emigrou para Atenas um considerável fluxo de pessoas, sobretudo intelectuais, provenientes de outras zonas da Grécia.
Em Atenas, Protágoras converteu-se rapidamente num professor de oratória rico e famoso. Como era possível? A resposta pode ser encontrada na forma radical de democracia que se praticava na cidade no tempo de Péricles. As assembleias populares, nas quais se tomavam as decisões políticas mais importantes, não eram um lugar reservado a um grupo de eleitos, mas estavam abertas a todos os habitantes da cidade. Como todos eram considerados politicamente capazes, os funcionários políticos, como os membros do senado e dos tribunais, eram eleitos ao acaso, de entre as filas da assembleia popular. Só os estrategistas como Péricles e os responsáveis pelas finanças eram eleitos por votação. Por isso, qualquer um que desejasse conquistar poder e influência na cidade não deveria confiar no fato de pertencer à nobreza ou deter grande riqueza, mas ser capaz de argumentar e convencer. O fato de os discursos públicos se converterem cada vez mais em questões de rivalidade retórica era muito próprio do caráter grego; não foi por acaso que eles foram os inventores dos jogos Olímpicos e celebraram com entusiasmo competições artísticas e teatrais. Esse ambiente era um terreno propício para os sofistas, aqueles eruditos que davam aulas de oratória e ensinavam as técnicas retóricas que facilitavam a defesa de qualquer opinião. Protágoras foi o precursor e a figura principal da profissão, e é possível que tenha sido também o primeiro a adotar a designação de sofista.
Embora o adjetivo "sofista" se tenha aplicado mais tarde a pessoas cujo espírito de contradição se quer realçar, nos tempos de Protágoras a palavra tinha uma conotação positiva, pois correspondia ainda à sua etimologia grega: "mestre da sabedoria." No entanto, os críticos dos sofistas, e sobretudo Sócrates e Platão, acabaram por ser muito mais célebres e influentes, e, também neste caso, a história foi escrita pelos "vencedores". Sócrates e Platão consideravam os sofistas uns melindrosos, e achavam que eles não eram, de modo algum, "soldados" do pensamento ao serviço da verdade e da moral. Sócrates, sobretudo, apesar do muito que tinha em comum com eles, esforçou-se por se distanciar claramente dos sofistas.
Para fazer justiça aos sofistas, e sobretudo a Protágoras, vem a calhar a frase que este proferiu e à qual já nos referimos: "O homem é a medida do universo" ou, em grego: Anthropos metron hapanton. Acredita-se que Protágoras a teria escrito num dos seus textos, intitulado Verdade. A frase, que mais tarde viria a conhecer-se na sua forma latina abreviada (homo mensura), já na Antiguidade era frequentemente citada. Aristóteles mencionou as palavras na sua Metafísica, e Platão incluiu-as no seu diálogo Theaitetos. Nele, Platão aborda a questão do conhecimento e se refere a Protágoras: "Disse em algum lugar que 'o homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto são, e das que não são, enquanto não são."
Com esta frase, Protágoras referia-se à capacidade de compreensão do ser humano. A filosofia discute, constantemente, se ele se refere aos homens como conceito genérico ou como indivíduos. Dizer que a humanidade é a medida do universo ou dizer que a medida do universo é cada um dos homens individualmente levará seguramente a conclusões totalmente distintas. Se consideramos a humanidade no seu conjunto como a medida do universo, então é porque aspiramos a encontrar conceitos válidos no geral. Deste modo, em honra ao conhecimento, perde-se a individualidade e suprimem-se as exceções. Pelo contrário, se interpretarmos na frase de Protágoras o homem como indivíduo e o considerarmos a medida do universo, estaremos pondo em relevo quão diferentes podem ser as visões do mundo e, com ele, a natureza poliédrica do conhecimento humano.
Muitas coisas nos levam a suspeitar de que Protágoras se referia a este último, e que aludia à capacidade de conhecimento do ser humano enquanto indivíduo. Neste sentido, a frase "O homem é a medida do universo" poderia significar também: "Todo humano, todo conhecimento sobre o universo, sobre o mundo, é subjetivo". Posto que só o ser humano mede e avalia os fenômenos do mundo, as suas conclusões baseiam-se necessariamente na sua visão limitada e subjetiva. Assim, pois, onde o ser humano entra em ação, não existe objetividade. O que o ser humano conhece não é absoluto, mas relativo. Com isso, pode-se refutar outra interpretação que costuma fazer-se da referida frase: que Protágoras pretendia elevar o homem acima da natureza. Se existe algo que Protágoras não propôs foi precisamente isso.
(Fonte: HELGE HESSE, A História do Mundo em 50 frases, traduzido por Maria Irene Bigotte de Carvalho, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012, p. 23-26).
Ainda:
“Em verdade, seja o homem (e entenda-se aqui este termo como se referindo a ser humano) no sentido individual ou no sentido universal, a medida de todas as coisas como o queria Protágoras (O homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto são, das que não são, enquanto não são), não seria esta a reflexão final sobre nosso ser e existência social? Até que ponto a universalidade de conhecimentos e ideias presente nas universidades, nas suas divisões em faculdades e mesmo dentro de cada micro região disciplinar não representa a presença onipotente do relativismo de todos os saberes? O aluno recém ingresso em uma instituição de ensino é exposto a uma gama desenfreada de razões e contrarrazões, todas certas segundo uns e erradas segundo outros, onde, pela sua ignorância institucionalmente aprovada pode trocar a prova dos fatos e da razão pela prova mais saborosa da escolha pelos seus belos sentimentos de empatia para com esta teoria ou aquela outra, para com este modelo teórico ou aquele outro, para este grupamento do saber ou aquele outro. Incentivado por professores, todos, sem o perceber, viajam nas águas perigosas do total relativismo, esquecendo-se, talvez, que se o homem é a medida de todas as coisas no sentido universal e não individual, acabamos por nos afastar de um relativismo absoluto e nos aproximar de uma visão kantiana (fenômeno e numeno) ou piagetiana (ação sobre o objeto). Se esta relação entre algo próprio do sujeito conhecedor e algo próprio do objeto conhecido é característica universal de nossa espécie, ou melhor ainda, de todos os seres cognoscentes que possam existir, então estamos diante de conceitos tais como universalidade e necessidade”. (Fonte: Silvério da Costa Oliveira, www.doutorsilverio42.blogspot.com).
Tendo Protágoras abolido o critério da verdade (tudo é verdadeiro. O que leva, ao mesmo tempo, ao seu contrário: tudo é falso.), com sua famosa frase do “homem medida”, e não tendo ele respondido a Aristóteles, e nem poderia, pois já estava morto quando este nasceu, que busca provar o contrário (que a verdade existe, mas isso não significa que tudo seja verdade, pois uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo) com o seu “princípio de não-contradição”, quem o socorre é uma das famosas três teses de Górgias, que exporemos em capítulo próprio mais abaixo (nº xyz).
Desiludido, Platão se auto destrói no combate à Protágoras ao dizer:
“A divindade poderia ser muito boa para nós, mais que tudo, medida de todas as coisas” (As leis, 716 c).
Kerferd conclui:
“As consequências dessa maneira de ver as palavras são, contudo, paradoxais, e os paradoxos assim gerados fornecem matéria para uma considerável parte da história da filosofia grega em ambos os períodos, arcaico e clássico. Primeiro, priva de sentido toda declaração manifestamente negativa, visto que o que não é não pode ser nomeado, e isso leva à doutrina que não se pode contradizer — ouk estin antilegein — discutida abaixo (pp. 151ss) [Osório diz: em algum canto eu, Osório, disse que Parmênides leva a Protágoras quanto a tal doutrina]. Segundo, há uma dificuldade mais ou menos crucial que tem de ser enfrentada no caso de todas as expressões que envolvem qualquer grau de negação. Sentimo-nos obrigados a dizer que muitas declarações incluindo vários tipos de negação são, de fato, verdadeiras. Mas, nesse caso, o que é que eles querem dizer com a sua concepção do significado resumida acima? Heráclito estava pronto a rejeitar muito do que as pessoas sem conhecimento ordinariamente declaram ser fato. Mas ele mantinha que seu próprio logos, ou explicação, também era uma explicação correta da estrutura da realidade. Mas essa explicação correta era, para ele, uma explicação de estados de coisas que são contraditórias — o mundo aparente ao qual se refere a linguagem se acha cheio de contradições objetivas. [Osório diz: por que é impossível a contradição! A melhor explicação que encontrei!].
As consequências dessa maneira de ver as palavras são, contudo, paradoxais, e os paradoxos assim gerados fornecem matéria para uma considerável parte da história da filosofia grega em ambos os períodos, arcaico e clássico. Primeiro, priva de sentido toda declaração manifestamente negativa, visto que o que não é não pode ser nomeado, e isso leva à doutrina que não se pode contradizer — ouk estin antilegein — discutida abaixo (pp. 151ss) [Osório diz: em algum canto eu, Osório, disse que Parmênides leva a Protágoras quanto a tal doutrina]. Segundo, há uma dificuldade mais ou menos crucial que tem de ser enfrentada no caso de todas as expressões que envolvem qualquer grau de negação. Sentimo-nos obrigados a dizer que muitas declarações incluindo vários tipos de negação são, de fato, verdadeiras. Mas, nesse caso, o que é que eles querem dizer com a sua concepção do significado resumida acima? Heráclito estava pronto a rejeitar muito do que as pessoas sem conhecimento ordinariamente declaram ser fato. Mas ele mantinha que seu próprio logos, ou explicação, também era uma explicação correta da estrutura da realidade. Mas essa explicação correta era, para ele, uma explicação de estados de coisas que são contraditórias — o mundo aparente ao qual se refere a linguagem se acha cheio de contradições objetivas. [Osório diz: por que é impossível a contradição! A melhor explicação que encontrei!].
Para Parmênides, contudo, essa visão não era aceitável. Pois um mundo que está cheio de contradições objetivas está cheio de negações e, portanto, de não-mundos. Semelhante concepção não pode ser nem pensada nem falada. Por conseguinte, um mundo assim descrito não pode, absolutamente, ser real. Foi isso que levou Parmênides a separar o mundo das aparências do mundo do ser, ao tratar o primeiro dos dois como nada mais do que uma peça de ficção. "Pois nada é ou será, além daquilo que é, visto que o Destino o restringiu a ser inteiro e isento de mudança. Por isso, tudo o que os mortais postularam na crença de que era verdadeiro será nome apenas, vindo a ser e perecendo, ser e não ser, mudança de lugar e intercâmbio de luminosa cor" (DK28B8.36-41). [Osório diz: as razões de Parmênides!]
O contraste entre a posição de Heráclito e a de Parmênides foi claramente estabelecido por volta da metade do século V a.C. e forneceu o ponto de partida para discussões sofistas da teoria linguística. O próprio Parmênides, contudo, não teve seguidores, entre os sofistas, quando quis negar a realidade do mundo fenomenal. Para eles, o ponto de partida era o próprio mundo fenomenal, regularmente visto como constituindo a realidade toda e, conseqüentemente, como sendo o único objeto possível de cognição. Às vezes era considerado sujeito a contínua mudança. Esse era sabidamente ocaso do Crátilo Heracliteano (cf. DK 65.3). Segundo Sexto Empírico (DK 80A14), Protágoras tinha realmente descrito o mundo físico como em estado de fluxo, com emissões continuamente substituídas por acréscimos que recuperavam o que era perdido. Platão equiparava Protágoras a Eutidemo e considerava que ambos defendiam teorias que excluem a possibilidade de que as coisas tenham algum ser fixo próprio; em vez disso, pretendem que as coisas sejam arrastadas "para cima e para baixo" ao aparecer para nós (Crat. 386c-e, não em DK) [Osório diz: isso não é o fenômeno de Kant e Hurssel?]. Em Teeteto ele atribui a Protágoras uma doutrina "secreta" de percepção com implicações semelhantes. Embora o atributo "secreto" provavelmente signifique que essa doutrina nunca foi expressa por escrito pelo Protágoras histórico, a doutrina pode, contudo, representar bem o que Platão considerava a implicação natural das conhecidas concepções de Protágoras. Górgias andou um pouco na mesma direção, explicando a percepção dos objetos físicos da mesma maneira que Empédocles, a saber, postulando contínuas emanações de objetos que entram ou deixam de entrar nos vários poros do corpo (DK82B4). Platão, no Fédon, como já vimos, atribuiu aos antilogikoi e aos sofistas em geral a concepção de que todas as coisas que existem movem-se para cirna e para baixo, como se estivessem no Euripos, e nunca permanecem em repouso, em lugar nenhum, por qualquer período de tempo [90c4-6). [Osório diz: por que os sofistas não viam possibilidade de fazer ciência].
Mais importantes, contudo, eram as consequências do relativismo sofista (discutido abaixo, no capítulo 9), que era, na maioria das vezes, associado a uma forma de fenomenismo segundo a qual todas as aparências são igualmente verdadeiras (ou pelo menos igualmente válidas como cognições). Vendo desse modo o mundo real, embora permanecendo, ao mesmo tempo, totalmente comprometidos com a concepção de que as palavras devem nomear exatamente as coisas às quais se referem, senão não têm significação, os sofistas adotaram dois expedientes. A linguagem, como um todo, deve prover fórmulas para exibir a realidade, e a estrutura da linguagem deve exibir a estrutura das coisas. Mas o mundo da experiência é caracterizado pelo fato de que todas as coisas nele, ou a maioria delas, ao mesmo tempo são e não são. Portanto, a linguagem também deve exibir a mesma estrutura. Isso ela deve fazer dando expressão a dois logoi opostos concernentes a todas as coisas. Mas isso, por si mesmo, não é suficiente. Ficamos com o problema da negação que corre o grave perigo de se tornar algo totalmente sem sentido, a menos que se encontre algum objeto que lhe possa servir de referência [Osório diz: por que da necessidade dos duplos discursos].
Esse problema foi atacado de duas maneiras diferentes, vistas como alternativas mutuamente excludentes, ou usadas para suplementar uma à outra. A primeira era corrigir a linguagem renunciando às sentenças negativas. Daí as famosas afirmações vinculadas: que não é possível contradizer, e que é impossível dizer o que é o falso. Isso restringiria a linguagem a afirmações positivas verdadeiras a respeito do mundo fenomenal. Mas sustentar que todas as afirmações são de igual valor não seria muito satisfatório, no mínimo porque privaria o sofista de sua reivindicação de maior sabedoria. De modo que se considerou um segundo artifício segundo o qual, entre logoi opostos, um logos na estrutura das coisas era superior, mais correto do que o outro, e esse constituía o orthos logos. Essa situação havia de ser repetida no discurso e na argumentação em que, de novo, um logos ou era, ou teria de se fazer ver como mais correto e mais forte do que o outro. [Osório diz: explicação da necessidade do argumento forte e argumento fraco!].
A arte de fazer um logos superior a outro estava especialmente associada a Protágoras, ao passo que a busca do onomatôn orthotôs, ou correção dos nomes, estava acima de tudo associada a Pródicos. Constituía uma segunda maneira pela qual a linguagem haveria de ser corrigida para ser posta de acordo com a estrutura da realidade percebida. A importância dessa tentativa na história da filosofia é considerável — representa o primeiro passo na busca daquilo que, nos tempos modernos, tende a se denominar linguagem única, a chamada linguagem filosófica, a linguagem primordial ou atômica, a linguagem "corrigida" do lógico, o ideal que inspirou, entre outros, o primeiro Wittgenstein nas suas tentativas de restringir e delimitar o uso da linguagem significativa à que descreve o mundo, e a qual, na sua própria estrutura, refletirá a estrutura da realidade. Mas as tentativas modernas visam principalmente a reformar a estrutura da linguagem em relação à suposta estrutura (lógica) da realidade. O pensamento, no século V a.C., não estava interessado, em primeiro lugar, na estrutura lógica, mas em buscar uma relação uma-a-uma entre coisas e nomes, tendo por base que o sentido de qualquer nome deve ser sempre a coisa ou coisas a que se refere. [Osório diz: cada coisa um nome? Vide parágrafo seguinte].
Contudo, mesmo assim a correção envolvida poderia ser extremamente radical e o Crátilo, de Platão, se abre com a notável afirmação atribuída a Crátilo, segundo a qual (383a-b) "Cada coisa tem um nome correto próprio seu, que vem por natureza; e um nome não é o que quer que as pessoas chamem uma coisa por convenção, meramente algo de sua própria voz aplicada à coisa, mas há, nos nomes, uma espécie de correção estabelecida, que é igual para todos os homens, tanto gregos como bárbaros". Isso nos introduz ao ideal de uma única língua natural e, acima de tudo, universal que, idealmente, poderia substituir todas as línguas existentes.
O método de procedimento de Pródicos não estava limitado a ele — segundo Platão (DK 84A17), ele o obteve de Damon e dele partilhavam também outros sofistas. O método consistia em Diaeresis ou Divisão dos nomes e assim é regularmente rotulado por Platão e, depois dele, por Aristóteles. Podemos dizer que seu método normal consistia, como argumentou Classen, em pôr dois nomes um contra o outro a fim de abstrair deles o sentido básico que partilham e descobrir as sutilezas de sentido em que diferem. Mas as palavras não são definidas individualmente — ele não está perguntando "o que é x?", mas "em que aspecto x é diferente de y?" Isso serve para distinguir a sua abordagem da de Sócrates, do qual, no entanto, ele continua sendo o precursor em todos os pontos essenciais. Sócrates pergunta simplesmente “o que é x?”. Mas não há por que tentar descobrir uma outra diferença, sugerindo que Pródicos está interessado no sentido próprio das palavras, ao passo que Sócrates está interessado na coisa real. Como vimos, para ambos, o significado de uma palavra consiste naquilo a que ela se refere, e a visão correta foi expressa por Classen, quando diz que ao descrever qualquer objeto, ou uma dada situação, Pródicos observará: essa palavra é apropriada, ao passo que aquela, embora quase equivalente e idêntica quanto ao sentido, não é. Sócrates vai pelo mesmo caminho, exceto que, quando indaga o que é x, o onoma ou nome que está investigando não é usualmente uma única palavra, mas antes uma fórmula consistindo em uma série de palavras, um logos ou uma definição”. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 124-130).
Já Gilbert Romeyer-Dherbey, diz:
“As Antilogias mostraram-nos uma natureza instável, indecisa, desempenhando sempre um duplo papel; ora, uma medida surgiu que vai travar este movimento da balança, decidir um sentido e anunciar a cor. Esta medida é o homem. É por isso que o escrito sobre A Verdade começava pela célebre fórmula:
“O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são”. [Osório diz: frase de Protágoras]
Notemos, antes de mais, que Protágoras não utiliza, para designar a coisa de que o homem é medida, o termo pragma, mas chrema, que significa mais particularmente uma coisa de que nos servimos, uma coisa útil.
Falta o problema da extensão a dar à palavra homem (ánthropos), problema posto, pela primeira vez – parece-nos – por Hegel. Os Antigos, na esteira de Platão, entenderam a palavra homem na fórmula de Protágoras como designando o homem singular, o indivíduo com as suas particularidades específicas. Mas pode alargar-se a extensão da palavra homem e compreender que significa não a singularidade contingente, mas o universal, a humanidade, cuja essência pertence a todo homem. Homem significa então a natureza humana; tal é a interpretação que se dá no séc. XIX. Mas, depois de ter distinguido estes dois sentidos possíveis da fórmula protagórica, Hegel pensa que esta distinção de sentidos ainda não tinha sido feita por Protágoras, que mistura os dois significados sem separar um do outro. Com efeito, escreve Hegel: “Para eles (os Sofistas), o interesse do sujeito na sua particularidade não se distingue ainda do interesse do sujeito na sua racionalidade substancial”.
Encontramo-nos, portanto, perante três interpretações possíveis. A primeira leva-nos diretamente, como reconheceu Platão, ao relativismo cético, doutrina que se destrói a si própria reduzindo todos os seus testemunhos ao mesmo plano: com efeito, Protágoras deveria confessar que não é superior em juízo “não digo apenas a qualquer outro homem, mas mesmo até a um peixe-cabeçudo” [Osório diz: idiotice platônica, já que peixe não emite juízo! O mau dele de misturar as coisas!]. O ensino torna-se inútil “se verdadeira é a Verdade de Protágoras” [Osório diz: não é “verdade”, é que a afirmação é apenas uma parte do ensino. O mito de Prometeu dá a outra parte!], porque a opinião do mestre não tem nenhuma precedência sobre a do aluno. Segundo esta primeira interpretação, Protágoras teria, portanto, afirmado de alguma maneira muito antes de Pirandello: “A cada um a sua verdade.” – A sorte desta leitura, que não conta sequer com as retificações de Platão na continuação do Teeteto, explica-se, sem dúvida, pela coincidência com a imagem desfavorável que se fizera dos Sofistas, que tradicionalmente só existem para servir de alavanca fácil.
A segunda interpretação é preferível e permite deixar continuar, no seio do fenomenismo, uma objetividade científica; uma convergência dos juízos é possível na aparência e, por conseguinte, na separação entre a verdade e o erro. Assim se fez mergulhar o pensamento de Protágoras no individualismo e no ceticismo quando, precisamente, o que pretende é sair deles; passados séculos ainda se interpretam em sentido contrário as intenções do seu autor. [Osório diz: Protágoras e o ceticismo. Ver Barbara Cassin, também]
A terceira leitura – O homem individual e o homem universal são, escreve Untersteiner, “dois momentos de um processo diatético”; a verdade está precisamente na passagem do primeiro ao segundo sentido: a opinião pessoal verifica-se pelo seu acordo com as opiniões dos outros. A opinião singular fortalece-se com o contributo de outras opiniões que lhe são adequadas; o seu encontro forma a verdade. Se a opinião singular não é reforçada por qualquer outra, ou por demasiado poucas, desaparece e não pode aspirar ao verdadeiro, pelo menos enquanto permanecer marginal [Osório diz: como se forma a verdade/O Professor Tercio usa isso quando fala de Hermenêutica]. O conceito de homem, uma vez que é, se se pode dizer, de extensão variável, entra em tensão consigo próprio: opõe-se a si quando as opiniões particulares divergem, e readquire a sua unidade quando as particularidades se conciliam. O momento da particularidade, ainda que real, permanece um momento negativo, que tende a mergulhar de novo, no terreno das antilogias; o momento da universalidade é o positivo e constitui o fundamento daquilo que Protágoras chama o discurso forte. Somos assim levados à análise da terceira tese de Protágoras. (p.
IV - O discurso forte
Cada indivíduo é, certamente, a medida de todas as coisas, mas é uma medida muito fraca se permanece só com a sua opinião. O discurso não partilhado constitui o discurso fraco (hettón logos); aliás, mal chega a ser um discurso porque dizer é comunicar, e toda a comunicação supõe algo de comum. Quando um discurso pessoal, pelo contrário, encontra a adesão de outros discursos pessoais, este discurso, reforçando-se com todos os outros, torna-se discurso forte (kreitón logos) e constitui a verdade. [Osório diz: como se produz a verdade].
(...)
Portanto, a teoria do discurso fraco e do discurso forte não constitui, de modo nenhum, o ato de nascimento da erística, como afirma Aristóteles; não consiste em fazer viajar a evidência ao gosto da eloquência de um hábil advogado, de acordo com as necessidades da causa e o interesse da sua parte, como fez crer uma tradição obstinada. Na realidade, esta teoria parece estar em estreita relação com uma certa prática política, precisamente a da democracia ateniense. Certos indícios podem, antes de mais, encaminhar-nos para semelhante interpretação. Vimos Platão sublinhar que, aos olhos de Protágoras, o Bem não pode existir só e único como deve existir o Bem em si; Protágoras só pode pensar um Bem com facetas, disperso, multicolor, em síntese, um “Bem variegado”. Ora, esta palavra poikilon é retomada por Platão em A República para caracterizar a democracia: a constituição democrática é “como um manto multicolor”. Outro indício. (p. 26) No Protágoras de Platão, Protágoras mostra que a lei da cidade se aplica a todos, “obriga os que mandam e os que obedecem a conformar-se-lhe”. Ora, esta expressão é utilizada por Aristóteles para caracterizar a democracia. Este regime pensa assegurar a liberdade dos cidadãos pela alternância do poder: o cidadão é, com efeito, “alternadamente governado e governante”. É pela alternância do poder, característica da democracia, que a lei da cidade pode efetivamente aplicar-se indistintamente a todos, e tanto aos governantes como aos governados. Evocamos agora o terceiro argumento, que é mais um indício. No mito de Epitemeu e de Prometeu, Protágoras estabelece uma clara diferença entre a arte política e as restantes; uma vez que estas últimas são da alçada de especialistas, Hermes, pelo conselho de Zeus, distribuiu entre todos os homens a virtude política, cujas duas componentes são a justiça e o respeito. “Que todos dela partilhem, diz Zeus; com efeito, as Cidades não poderiam crescer se apenas uns tantos delas partilhassem, como é o caso das outras artes.”. É por isso, conclui Protágoras, que os atenienses e as outras cidades democráticas estabelecem uma diferença entre os problemas técnicos e problemas políticos: para os primeiros, só admitem a opinião dos especialistas; para os segundos, pensam que todo o homem se pode pronunciar validamente. Sem a posse unânime da virtude política, as cidades não poderiam existir. A afirmação da competência política partilhada por todos caracteriza o regime democrático; será – não nos esqueçamos – recusada por Platão que, precisamente por isso, estabelecerá a arte política acima das outras e dela fará um assunto de especialistas. (p. 27) [Osório diz: muito boa esta explicação em especial por mostrar o espírito antidemocrático de Platão e Aristóteles!].
Ora, se cada um é capaz de possuir a virtude política, isso significa que na cidade se pode constituir um discurso unânime ou, pelo menos, maioritário, que constitui o discurso forte, representando então o discurso isolado e marginal o discurso fraco. A concepção do discurso forte tem pois, como fundamento, uma experiência política, e esta experiência, longe de ser a do despotismo ou da ditadura, é a da democracia; o que dá ao discurso a sua força é o consensus que provoca. A verdade da pessoa privada é então o cidadão, e na igualdade democrática não se pesam as vozes, contam-se. É por isso que, num primeiro tempo pelo menos, a constituição do discurso forte é uma tarefa essencialmente coletiva; cada qual privilegia dele o que há de comum com outrem, o que é universalizável. A educação é, então, coeducação; se a virtude política é, de fato, a tarefa de todos, é porque vem de todos, e Protágoras, para convencer Sócrates, lança mão de uma comparação esclarecedora:
“Toda a gente ensina a virtude o melhor que pode, e não te parece que haja alguém para a ensinar; é como se procurasses o mestre que nos ensinou a falar grego: não o encontrarias.”
Portanto, a virtude política é, na cidade, a coisa mais bem distribuída: o discurso tirânico é um discurso violento, mas não um discurso forte; também a dimensão propriamente “política” desaparece com a submissão.
Vendo no homem essencialmente um cidadão que, em relação ao Poder, é parte beneficiada, não há dúvida que Protágoras é, realmente, o criador da cultura geral [Osório diz: afirmativa poderosa e desconsertante!]. A divisão do trabalho não permite a constituição do discurso forte porque destrói todo o espaço de troca [Osório diz: o trabalho como impeditivo do discurso]; compreende-se então, a razão da desconfiança de Protágoras perante as diversas técnicas (téchnai) que opõe à política. A condição de possibilidade da virtude política será um conjunto de conhecimentos possuídos por todos os cidadãos, permitindo-lhes encontrar-se numa plataforma comum, ou antes, na praça-forte do discurso partilhado. Compreende-se também que Protágoras tenha dedicado a sua existência à educação do cidadão, e que a seus olhos toda a educação seja educação política [Osório diz: que governo o adotaria?]. É que a paideia tem como efeito substituir os desvios particulares por um modelo cultural consistente, que engloba os indivíduos não apenas no espaço, geograficamente, mas também no tempo, historicamente. A cultura é um discurso forte porque a História a reforça com toda a unanimidade das gerações passadas. Nesta época, é normal que Protágoras tenha tido – como Aristóteles nos explica – grande (p. 28) preocupação pela gramática. Com efeito, a gramático regula a língua para a fazer linguagem de todos; as suas regras universalizam o emprego dos signos. Portanto, é por ela que a palavra ganha força, ao passo que o grito é o discurso fraco, sendo radicalmente individual.
Apesar disso, se o discurso forte extrai, de fato, a sua força da massa dos sufrágios que granjeia, isto não significa que Protágoras professe uma igualdade radical de todas as opiniões e uma identidade de sabedoria em todos os indivíduos. Com efeito, os homens melhores sabem propor aos outros os discursos capazes de captar a sua adesão; o discurso de um só torna-se então discurso forte a par da sua capacidade intrínseca de universalização. A sabedoria consiste em saber substituir, pela persuasão e argumentação, um discurso inconsistente, porque local, por um discurso mais pleno, porque global. O espírito superior sabe, pois, substituir uma aparência pobre, cujo impacto é limitado, por uma aparência rica, isto é, capaz de estreitar os consentimentos e de construir uma república dos espíritos. A educação é, portanto, possível e legítima, já que é o resultado deste espírito superior que sabe fazer a separação entre a opinião que vale menos e a que vale mais, e sabe levar a partilhar a segunda e deixar de lado a primeira, tal como o médico, com os seus remédios, substitui os sintomas da doença pelos sintomas da saúde. Assim também, há em política governos mais ou menos sábios; o mais sábio é o que, por meio do seu discurso, leva a adotar pelos seus concidadãos – isto é, universaliza – as disposições mais úteis à comunidade. O líder politico, polarizando os votos à volta do seu nome, cria o discurso forte da cidade e dá-lhe, com isso, a verdade e a justiça, já que o seu discurso livremente partilhado se torna o discurso comum. O discurso em questão pode, por outro lado, ser tanto mais eloquente porque mudo, e consistir numa simples atitude significativa, um comportamento cujo exemplo é contagioso; tal parece ser o sentido de um fragmento, referido por Plutarco, em que Protágoras faz referência à atitude de Péricles depois da morte dos seus dois filhos Paralos e Xantipos, mortos havia oito dias, não deixando o pai transparecer a sua dor:
“Com efeito, todos os que o viam suportar com coragem os seus lutos pessoais julgavam que era magnânimo e corajoso e mais forte que eles, conhecendo apesar de tudo o desapontamento que era o seu em tais provas.”
Assim, se para medir o discurso forte se contam mais as vozes que o seu peso, não é menos verdade que certas vozes pesam mais que outras na medida em que são capazes de juntar as outras à sua volta, isto é, ao fim e ao cabo, de conter afirmações e decisões generalizáveis. A teoria do discurso forte em Protágoras parece-nos, por conseguinte, apresentar uma inspiração política correta, e esta inspiração não é a do maquiavelismo, é a da democracia, tal como Atenas a conheceu na brilhante época de Péricles. [Osório diz: a melhor explicação que li sobre o discurso forte e o fraco!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 23-29).
Ensina Kerferd:
“Usamos os termos logos e logoi que não foram traduzidos, ou o foram diversamente por "afirmações", "argumentos" e (no singular) por "fala" ou "discurso" e, pelo menos em uma ocasião, pareceu apropriado falar de um logos como ocorrendo "na estrutura das coisas". Na verdade, uma pesquisa nos dicionários revela imediatamente que a faixa de significados ou aplicações da palavra grega logos é ainda mais larga do que poderia sugerir a variedade de traduções dadas acima. Não é, estritamente falando, com uma palavra com diferentes sentidos que estamos lidando aqui mas, antes, com uma palavra com uma série de aplicações relacionadas, todas, com um único ponto de partida. Esse é um fenômeno que, de acordo com G. E. L. Owen, veio a ser rotulado de "significação focal", embora talvez "referência focal" fosse uma expressão melhor, visto que o que está envolvido é uma referência extra linguística a alguma coisa que se supõe ser fato no mundo à nossa volta. No caso da palavra logos, há três áreas principais de aplicação ou uso, todas relacionadas por uma unidade conceitual subjacente. São elas, em primeiro lugar, a área da linguagem e da formulação linguística, portanto fala, discurso, descrição, declaração, afirmação, prova (quando expressa em palavras) e assim por diante; em segundo lugar, a área do pensamento e dos processos mentais, portanto reflexão, raciocínio, justificação, explicação (cf. orthos logos) etc.; em terceiro lugar, a área do mundo, aquilo sobre o que somos capazes de falar e pensar, portanto princípios estruturais, fórmulas, leis naturais e assim por diante, desde que, em cada caso, sejam considerados realmente presentes e exibidos no processo do mundo.
Embora em qualquer determinado contexto a palavra logos pareça apontar principalmente, ou mesmo exclusivamente, para apenas uma dessas áreas, a significação fundamental, usualmente, talvez sempre, envolve algum grau de referência às duas outras áreas também, e isso, acredito, é verdade tanto para os sofistas como para Heráclito, para Platão e para Aristóteles. Por isso, no que se segue, onde por conveniência o termo "argumento" é usado como tradução, deve-se lembrar que isso será enganoso a menos que seja entendido como normalmente referindo-se, em certo grau, a todas as três áreas mencionadas acima.
Diógenes Laércio inicia o seu breve sumário das doutrinas de Protágoras (DK 80A1) com a afirmação: "Ele foi o primeiro a dizer que há dois logoi [argumentos] concernentes a todas as coisas, sendo opostos um ao outro. Foi por meio desses logoi que passou a propor argumentos envolvendo uma série de estágios, e foi o primeiro a fazer isso". Essa doutrina é firmemente associada a Protágoras em outras fontes também (DK 80A20) e, segundo Sêneca (Ep. 89.43), ele queria dizer, com isso, que se pode tomar qualquer lado de uma questão e debatê-la com igual sucesso — até mesmo a questão se todo assunto pode ser debatido a partir de qualquer um dos pontos de vista. É claro que sempre houve argumentos opostos desde que a raça humana se entreteve em argumentar. Mas o aspecto essencial não era simplesmente a ocorrência de argumentos opostos, mas o fato de que ambos os argumentos opostos pudessem ser expressos por um único orador, como se fosse dentro de um único argumento complexo. [Osório diz: frase de Protágoras]
Essa doutrina, de fato, era bem conhecida na segunda metade do século V a.C., e não estava confinada em Protágoras. Um fragmento da peça Antíope, de Eurípedes, que não pode ser anterior a 411 a.C., diz: "Em todos os casos, se a pessoa for inteligente no falar, poderia estabelecer um debate de argumentos duplos" (fr. 189N) [Osório diz: Eurípides pode dizer isso sem sofrer as mesmas condenações dirigidas contra Protágoras?]; é interessante notar que, aparentemente, segundo Aristides, era um ator, na peça, que expressava ambos os argumentos. Em As nuvens, de Aristófanes, produzida pela primeira vez em 423 a.C., há um famoso debate entre dois logoi ou argumentos personificados — o Argumento Justo e o Argumento Injusto [Osório diz: aqui começa a inversão! Forte é trocado por justo / fraco é trocado por injusto]. Como já vimos, existe de fato um tratado conhecido como o Dissoi Logoi, ou "Argumentos Duplos" (DK 90), a ser datado provavelmente do início do século IV a.C. Começa declarando "Argumentos duplos concernentes a bons e maus são apresentados, na Grécia, por aqueles que se dedicam à filosofia", e os três parágrafos seguintes começam da mesma forma, mas discutem respectivamente o belo e o feio, o justo e o injusto, o verdadeiro e o falso. Sob cada título são apresentados argumentos opostos ou antitéticos.
O autor do tratado é desconhecido. É, sem dúvida, de caráter sofista, e alguns quiseram atribuí-lo à escola de Protágoras, se é que havia uma. Mas há, aqui, o perigo de circularidade no argumento. A técnica de argumentos opostos é certamente atribuída a Protágoras. Mas, enquanto não ficar estabelecido que estava confinada nele, não se deve concluir que todos os outros exemplos procedam exclusivamente dele. De fato, há testemunhos de que essa maneira de ver as coisas era bem uma característica da época. Além das referências já dadas, eu citaria a passagem em Vida de Péricles 4.3, de Plutarco, segundo a qual
Péricles era também aluno de Zenão, o Eleático, que discursava sobre física, como Parmênides, e que aperfeiçoou um tipo de habilidade para questionar adversários, num argumento, que os levava a um estado de aporia através de argumentos opostos [di’antilogias]; assim se expressou Timon de Flius, quando falou do grande poder, cujo efeito jamais falhou, do homem de língua de dois gumes, Zenão, que tinha o domínio de todas as coisas.
Aqui, Timon está identificando, corretamente, o procedimento com o método pelo qual Zenão reduzia seus adversários ao silêncio, mostrando-lhes que suas posições preferidas eram contraditórias pelo fato de implicarem também a negação de si mesmas. Como já vimos, esse é o método da antilógica, e talvez seja o aspecto mais característico do pensamento de todo o período sofista.
Depois de mencionar a doutrina dos dois logoi opostos, Diógenes de Laércio prossegue citando a famosa declaração, manifestamente do início de um dos escritos de Protágoras: "O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, quanto a como são, e das coisas que não são, quanto a como não são". O título da obra é dado por Platão (Teeteto 161 c) como sendo Sobre a verdade, ao passo que Sexto Empírico (DK 80A1) diz que ela está no início de Escritos demolidores, possivelmente um outro nome para a mesma obra. A interpretação dessa famosa sentença tem sido tema de discussão desde o tempo de Platão até os nossos dias. Na realidade, não seria exagerado dizer que a compreensão correta de seu sentido nos levará diretamente ao coração de todo o movimento sofista do século V. Alguns pontos que foram temas controvertidos no passado podem agora ser considerados razoavelmente resolvidos [Osório diz: frases de Protágoras]. Proponho simplesmente fazer uma lista deles a fim de guardar lugar para outros temas de controvérsia. O homem que é a medida é cada homem individualmente, como você e eu, e certamente não a raça humana, ou a humanidade tomada como uma entidade em si [Osório diz: o homem individualmente ou toda a humanidade?]. Em segundo lugar, o que é medido nas coisas não é a sua existência e não-existência, mas o modo como são e o modo como não são, ou, em termos mais modernos, quais são os predicados que devem lhes ser atribuídos como sujeitos em sentenças sujeito-predicado [Osório diz: o que o homem mede?]. Diz Platão, no Teeteto, 152a6-9), imediatamente após citar a afirmação, que isso significa que "cada grupo de coisas é para mim tal como me aparece, e é, para você, tal como lhe aparece". O exemplo típico, mais tarde, na Antiguidade é este: se o mel parece doce para alguns e amargo para outros, então ele é doce para aqueles aos quais parece doce e amargo para aqueles aos quais parece amargo.
Mas se isso seria, hoje, provavelmente aceito pela maior parte dos estudiosos, só até aí se pode chegar com segurança — o resto é assunto de debate e de alguma dificuldade. A questão mais controvertida concerne à natureza e à situação das coisas das quais o homem é a medida. Será conveniente resumir a discussão de Platão no Teeteto, onde se dá um exemplo. Protágoras tinha dito que o homem é a medida de todas as coisas, querendo dizer que cada grupo de coisas é para mim tal como me aparece e é para você tal como lhe aparece. Assim, no caso do vento, às vezes quando o mesmo vento está soprando ele é frio para uma pessoa e, para outra, não. Nesse caso, portanto, Protágoras diria que o vento é frio para aquela que sente frio, e não é frio para a outra. Ora, é claro que essa teoria implica a rejeição da percepção cotidiana de que o vento em si mesmo ou é frio, ou não é frio, e uma das pessoas que o sente se engana supondo que o vento é tal como lhe parece e a outra está certa. Mas restam pelo menos três possibilidades: (1) não há um único vento, mas dois ventos particulares, o meu vento que é frio, e o seu vento que não é. (2) Há um vento (público), mas não é nem frio nem quente. A frieza do vento só existe particularmente para mim quando tenho a sensação de frio. O vento mesmo existe independentemente da minha percepção dele, mas a sua frialdade, não. (3) O vento em si mesmo é ao mesmo tempo frio e quente — quente e frio são duas qualidades que podem coexistir no mesmo objeto físico. Eu percebo uma, você percebe a outra.
Todas essas três visões têm seus defensores modernos, embora a divisão maior seja entre os que defendem (2) e os que defendem (3)[Mas Gregory Vlastos sustenta que Platão não estava interessado em se pronunciar sobre a situação do vento não percebido, de modo que sua opinião liga (1) e (2);]. Chamarei a (2) de opinião subjetivista (embora o termo subjetivista pudesse claramente ser aplicado também, em sentido ainda mais forte, a (1)), e de opinião objetivista a (3). Mas é preciso compreender que (2) incluirá a opinião de que a percepção baseia-se, de modo causal, nos aspectos de fato presentes no mundo objetivo. Esses fatores causativos podem bem, numa opinião comumente sustentada, ser a fonte dos conteúdos das percepções de um indivíduo. Mas o que ele percebe são os resultados dessas causas, não os próprios fatores causativos; como esses resultados são determinados pelo impacto dos fatores causativos em si mesmo enquanto sujeito, e vão variar de pessoa a pessoa, de acordo com as diferenças no sujeito, será conveniente e, espero, não muito ilusório continuar a incluir essa teoria sob o título de teorias subjetivistas.
Depois de explicar que com a doutrina do homem-medida Protágoras queria dizer que o vento era frio para o homem a quem ele parecia frio e não era frio para o homem a quem não parecia ser frio, Platão continua dizendo, no Teeteto (152b9), que parecer é o mesmo que ser percebido, e conclui que Percepção, então, é sempre daquilo que é, e é infalível, sendo o mesmo que conhecimento. Agora, como a expressão "aquilo que é" é quase regularmente usada em Platão para se referir à realidade objetiva, permanente, enquanto distinta dos padrões mutáveis do mundo das aparências, isso parece favorecer mais a interpretação (3) do que a interpretação (2). Mas essa inferência dificilmente se justifica, no presente caso, visto que a doutrina do homem-medida não é um critério para a existência mas, sim, para determinar como as coisas são, no sentido de quais predicados devem lhes ser aplicados. Em outras palavras, ao dizer que a percepção é sempre daquilo que é, poderíamos entender que isso significa que, para Protágoras, percepção de um objeto branco é sempre a percepção de que ele é branco.
Mais importante para nosso propósito aqui é a afirmação de que percepções como tais são infalíveis. Isso significa que cada percepção individual, em cada pessoa individual e em cada ocasião individual é, estritamente falando, incorrigível — não pode nunca ser corrigida mediante comparação com a percepção de outra pessoa que difere da minha, nem por outro ato de percepção por mim mesmo em outra ocasião, mesmo que seja apenas um instante depois de minha primeira percepção. Se alguma coisa me parece doce, então é doce para mim, e isso não pode ser refutado pela experiência de outra pessoa que a percebe não como doce, mas como amarga, e assim por diante. Essa asserção é de considerável importância filosófica e o fato de ter sido proposta por Protágoras é certamente prova bastante clara de que, ao propô-la, Protágoras estava filosofando. Pois constitui a doutrina de que todas as percepções são verdadeiras. [Osório diz: sendo que a isso pode somar-se as 3 teses de Górgias, fechando a questão!].
Mas as consequências dessa posição filosófica não são insignificantes. Se todas as percepções são verdadeiras, segue-se que não há percepções falsas. Se todas as percepções são incorrigíveis, então não devem ser corrigidas, nem devem ser refutadas mediante a contraposição de outros atos de percepção, seja pela mesma pessoa, seja por outra. Que essas consequências foram de fato tiradas no período sofista, creio que pode agora ser estabelecido da seguinte forma. O ponto de partida deve ser o argumento no Eutidemo 283e-286d, de Platão. Aí se afirma que "não é possível contradizer", querendo dizer, com isso, que não é possível a uma pessoa contradizer a outra (ouk estin antilegein). Essa doutrina paradoxal está baseada numa segunda asserção paradoxal, a saber, que não é possível dizer o que é falso. Este segundo paradoxo é defendido da seguinte maneira.
Quem diz a verdade está falando qual é o caso daquilo que é o caso. A pessoa que fala de maneira inverídica está falando o que não é o caso daquilo que não é o caso. Mas aquilo que não é o caso simplesmente não existe. De modo que uma pessoa que diz o que não é caso não está falando de coisa alguma. Está usando palavras mas elas não se referem a nada porque aquilo ao que elas parecem estar se referindo simplesmente não existe [Osório diz: aqui, a própria atitude do Crático, de apenas mover o dedo, de que tanto fala Barbara Cassin para combater Aristóteles, vem ao caso. Ou seja, crático nem precisava balançar o dedo, mas, se desejasse, simplesmente falar, mas não precisa falar aquilo que Airstóteles quer que ele fale!]. Daí se segue, argumenta-se, que se duas pessoas fazem uma afirmação, ou (1) dizem a mesma coisa, e nesse caso não há contradição, ou (2) uma pessoa está dizendo qual é o caso, isto é, o que é verdadeiro porque a coisa a respeito da qual está falando é tal como ela diz que é, e a outra pessoa está dizendo alguma coisa diferente do que diz a primeira pessoa. Isto também é o caso e, portanto, é verdadeiro, mas, porque é verdadeiro, será sobre alguma coisa diferente daquilo sobre o qual a primeira pessoa estava falando. Portanto as duas pessoas estão falando de coisas diferentes. Suas afirmações aparentemente conflitantes não constituem uma contradição porque não estão falando da mesma coisa, ou (3) uma pessoa está dizendo qual é o caso, isto é, o que é verdadeiro porque a coisa da qual está falando é como ela diz que é. A outra pessoa está dizendo alguma coisa verbalmente diferente, do tipo que geralmente se diz que é inverídico. Mas porque é inverídico não é, absolutamente, sobre alguma coisa e, portanto, não é sobre aquilo a que se referia a afirmação feita pela primeira pessoa. Ela está usando meras palavras que não se referem a nada e, portanto, não está contradizendo a afirmação verdadeira feita pela primeira pessoa.
Este, ou algo parecido com isso, é o argumento desenvolvido no Eutidemo. Ambas as asserções, que não é possível contradizer e que não é possível dizer o que é falso, têm uma longa história subsequente. Aristóteles (Met. 1024b32, Top. 104b21) atribuiu ambas a Antístenes, embora não diga que tiveram sua origem nele. Antístenes aparentemente ainda estava vivo em 366 a.C. e, com base nisso, tem sido comum negar que qualquer uma das doutrinas tivesse alguma coisa a ver com o movimento sofista. Os testemunhos contra essa opinião, entretanto, sempre foram consideráveis. Imediatamente após o relato no Eutidemo, resumido acima, Platão faz Sócrates dizer (286cl) que "tem ouvido esse argumento de várias pessoas em várias ocasiões — pois Protágoras e os que lhe estão associados costumavam fazer grande uso dele, como o fizeram outros ainda antes dele". Se não bastasse isso, temos também uma afirmação, no Crátilo (429c9-d3), de que há muitos, tanto agora como no passado, que dizem que é completamente impossível dizer coisas que são falsas. Certamente baseado em testemunhos como esse, Filopono, no século VI d.C., não tinha dúvida de que a doutrina pertencia de fato a Protágoras (in Cat. 81.6-8).
Mesmo assim, a posição poderia ter parecido a alguns ainda duvidosa, na falta de novos testemunhos. Inesperadamente, surgiu um. Em 1941, descobriu-se parte de um papiro com um comentário sobre o Eclesiastes, provavelmente de autoria de Dídimo o Cego (século IV d.C.). Uma passagem dele, de grande interesse e importância, se tornou acessível em 1966, ao ser publicada por dois especialistas, G. Binder e L. Lisenborghs. O que aí é dito é o seguinte:
Uma afirmação paradoxal de Pródicos nos é transmitida no sentido de que não é possível contradizer (ouk estin antilegein)... isto é contrário à ideia e à opinião de todos os homens. Pois todos os homens contradizem tanto nas suas transações cotidianas como em questões de pensamento. Mas ele diz dogmaticamente que não é possível contradizer. Pois, se duas pessoas se contradizem, ambas falam. Mas é impossível que ambas estejam falando com referência à mesma coisa. Pois ele diz que só a que está dizendo a verdade e que proclama as coisas tais como são realmente é que está falando delas. A outra, que está se opondo a ela, não fala da coisa, não fala a verdade. [Osório diz: falar da coisa (dizer a verdade) não contradiz quem não fala da coisa (não diz a verdade), pois ambos os emissores estão a falar de coisas diferentes, um da coisa o outro da “não coisa”! Logo, impossível a contradição]
Na tradição doxográfica, Pródicos é mencionado como aluno de Protágoras (DK84A1), e a passagem justifica completamente a atribuição da doutrina segundo a qual não se pode contradizer o período sofista em geral e, em particular, Protágoras e seus discípulos.
Podemos agora voltar à doutrina do homem-medida e ao exemplo dado no Teeteto. No caso de discordâncias de percepção entre duas ou mais pessoas, não é possível que qualquer das afirmações feitas envolva falsas descrições do que está sendo descrito. Para o homem a quem o vento parece frio, ele é frio; e para o homem a quem ele parece quente, ele é quente. Ambas as afirmações são verdadeiras e não há, aqui, possibilidade de falsidade. Mas, da mesma forma, não há contradição — as duas afirmações não são sobre a mesma coisa, visto que cada homem está falando apenas de sua própria experiência, ou daquilo a que se refere a sua própria experiência. Ele não tem acesso à experiência do outro homem ou àquilo a que se está referindo na experiência do outro homem, e não pode fazer sobre isso nenhuma afirmação significativa. [Osório diz: e aí entram as 3 teses de Górgias em apoio a Protágoras].
No caso, então, em que algo assim estivesse envolvido na doutrina da percepção de Protágoras, tal como expresso na sua doutrina do homem-medida, como relacionar isso com a sua afirmação "concernentes a todas as coisas há dois logoi, um oposto ao outro"? Surgem duas dificuldades. Primeiro, se as percepções de cada um deles são verdadeiras, e elas constituem logoi, poderia parecer que concernentes a todas as coisas não haveria dois logoi, mas um número muito maior, a saber, tantos quantos as diferentes percepções de diferentes pessoas, seja agora, ou no passado ou no futuro. A resposta poderia ser que a grande variedade de experiências de percepção se reduzirá sempre a apenas duas, quando se toma uma como ponto de partida. Todas as cores diferentes de vermelho são sempre, necessariamente, não-vermelhas; todos os sabores diferentes do doce serão sempre, necessariamente, não-doces. Portanto, os dois logoi opostos seriam compreendidos, respectivamente, como A e não-A. Mas isso leva a uma objeção mais grave. A e não-A são claramente contraditórios. Se, para Protágoras, há sempre, de fato, dois logoi opostos concernentes a todas as coisas, e todos os logoi são verdadeiros, o que aconteceu com a doutrina segundo a qual é impossível contradizer? Este é um problema que não se colocou tão nitidamente na interpretação mais antiga de Protágoras, porque, na visão mais antiga, ele não sustentava que é impossível contradizer. Mas era um problema que sempre esteve lá, visto que a doutrina do homem-medida parece exigir que não haja nunca logoi opostos sobre a mesma coisa; eles são sempre sobre coisas diferentes; por exemplo, minha experiência e sua experiência são coisas diferentes, não uma e a mesma coisa. Se, como agora vimos razão para supor, há forte indício de que, de fato, Protágoras sustentava que a contradição é impossível, parece que temos um conflito direto com a doutrina dos dois logoi opostos [Osório diz: penso que ele harmoniza isso com o mito de Prometeu! Embora as contradições sejam impossíveis, as opiniões dos homens são sempre verdadeiras, mas para cada um, daí a necessidade de buscarem a harmonia para saber qual debe prevalecer recebendo a aquiescência do outro].
Mas há uma resposta possível. O que é preciso é reconhecer que há dois diferentes níveis envolvidos. Como afirma a passagem de Dídimo, as pessoas de fato se contradizem uma à outra, no sentido de que opõem negativamente uma afirmação à outra, tanto na vida cotidiana como no argumento filosófico. Não há, provavelmente, situação alguma na qual isto seja, pelo menos psicologicamente, impossível, e isso foi reconhecido na citação da Antíope de Eurípides. O que é necessário que se diga é que no nível verbal é possível a contradição, mas que isso não se aplica ao nível das coisas sobre as quais estamos falando. Pois quando estabelecemos aparentes contradições, no nível das palavras, elas são só aparentes, e se ambas as afirmações têm sentido será porque são sobre coisas diferentes, não são sobre a mesma coisa. [Osório diz: Salvando a doutrina de Protágoras].
Esta explicação tem a vantagem de nos permitir entender uma afirmação histórica que, infelizmente, não tem sido regularmente incluída nas coleções de passagens relativas aos sofistas. No início de sua composição sobre Helena, escrita talvez por volta de 370 a.C., Isócrates fala de "homens que envelheceram afirmando que é impossível dizer coisas que são falsas, ou contradizer, ou opor dois argumentos (logoi) concernentes às mesmas coisas", e opõe esses homens, como grupo, a outros (que parecem ser platônicos) que mantêm a unidade das virtudes. E prossegue dizendo que, infelizmente, essa evolução não é apenas recente — todo mundo sabe que Protágoras e os sofistas de seu tempo nos deixaram escritos exibindo coisas desse tipo —, e então menciona Górgias, Zenão e Melissos. Em primeiro lugar, deve-se notar que essa passagem reúne três princípios — a doutrina dos dois logoi, a impossibilidade de falsidade e a impossibilidade de contradição, em relação a um único grupo de homens. Mas fala da impossibilidade da doutrina dos dois logoi, quando a Protágoras se atribuía a sua asserção positiva. Isso significaria que, afinal de contas, não é a Protágoras que se faz referência?
Não é isso. A formulação tradicional da doutrina dos dois logoi dizia que há dois logoi concernentes a todas as coisas. O que Isócrates diz é que "eles" sustentam que é impossível haver dois logoi concernentes às mesmas coisas (no plural). Em outras palavras, quando há dois logoi, eles concernem não a uma mesma coisa, mas a coisas diferentes. Não poderia ser que Isócrates esteja correto por estar preservando a resposta dada, no círculo de Protágoras, exatamente à dificuldade que estávamos discutindo? Nós sabemos que, em certo sentido, Protágoras tinha atacado a doutrina segundo a qual a realidade era Uma (DK 80B2).
Mas, se há dois logoi concernentes a todas as coisas, como é possível manter, ao mesmo tempo, que quando há dois logoi estes não se referem à mesma coisa mas a coisas diferentes? De fato, no Teeteto, não disse Sócrates (152b2) "quando o mesmo vento está soprando, uma pessoa o sente frio e outra não" — sugerindo, assim, que o vento é uma coisa, não duas coisas? A isso a resposta deve ser, obviamente, sim. Mas, nesse caso, o que aconteceu com a sugestão de que há duas coisas envolvidas, em vez de uma? A resposta só pode ser que uma coisa é a que funciona como sujeito, e os dois logoi são o que é expresso por termos predicados aplicados, por exemplo, ao vento, enquanto sujeito. Isso explicaria por que Aristóteles trata habitualmente a doutrina do homem-medida de Protágoras como implicando uma negação da lei da não-contradição. Para Protágoras, o mesmo vento é quente e não-quente (= frio). Isto envolve duas afirmações contraditórias, a saber, "o vento é quente", e "o vento não é quente", e até esse ponto os que fazem essas duas afirmações estão falando da mesma e única coisa. Todavia, na medida em que se considera o vento como contendo, ao mesmo tempo, duas qualidades, ou substâncias, a saber, quente e frio, também é verdade que as afirmações "o vento é quente" e "o vento é frio" se referem a duas coisas diferentes, a saber, o quente no vento e o frio no vento. Ambas as afirmações podem ser verdadeiras, sem contradição, visto que as duas afirmações são afirmações sobre coisas diferentes. Convém, aqui, mencionar a casual sobrevivência de uma passagem do livro de Protágoras, Sobre aquilo que é, citada por Porfírio (DK 80B2), na qual Protágoras argumentava longamente, usando uma série de demonstrações, contra os que apresentavam o ser como um. Podemos inferir que Protágoras insistia em que aquilo que é não é um, mas uma pluralidade em todas as ocasiões. [Osório diz: frase de Protágoras].
Evidentemente algumas das minuciosas interpretações sugeridas aqui estão abertas a contestação. O que quero sugerir é que há dados convincentes em favor da tentativa de interpretar a doutrina de Protágoras como uma contribuição intencional, séria, para um problema filosófico sério. Volto-me, em seguida, para a questão de saber até que ponto isso era algo a ser associado somente com Protágoras, e até que ponto representa uma abordagem partilhada também por outros sofistas, ou até pelo movimento sofista como um todo. Já tivemos ocasião de considerar o surpreendente novo testemunho que deixa claro que Pródicos estava ligado exatamente a esses problemas. Mas e os outros? Aqui, o testemunho disponível não é novo. Mas clama realmente, creio eu, por uma nova abordagem, não obnubilada pelas pressuposições tradicionais como acontece frequentemente no estudo dos sofistas.
O testemunho mais importante se encontra no tratado de Górgias intitulado, segundo Sexto Empírico, Sobre aquilo que não é ou sobre a natureza. Temos dois sumários distintos dessa obra, um preservado por Sexto (ver DK 82B3) e o outro, na terceira seção de um fragmento de texto em estilo doxográfico, erroneamente atribuído a Aristóteles e, por isso, incluído no Corpus de seus escritos sob o título "Sobre Melissos, Xenófanes e Górgias" — ou, abreviadamente, De MXG. Nesse tratado Górgias apresentou o seu argumento em três estágios: (1) nada é, (2) se é, não pode ser conhecido pelos seres humanos, (3) e se é, e é cognoscível, não pode ser indicado e tornado significativo para outra pessoa.
A interpretação do que Górgias está dizendo é difícil, e o certo é que ainda não está à vista uma compreensão unânime do seu sentido geral, sem falar dos seus argumentos detalhados. Contudo, sua importância dificilmente poderá ser superestimada. Afinal de contas, é o que mais próximo temos, ou jamais teremos, de uma apresentação técnica completa de um argumento sofista articulado do século V a.C. É um texto mais técnico e mais organizado do que o Dissoi Logoi, com o qual, sob outros aspectos, pode ser comparado. O seu tratamento pelos estudiosos sintetiza, de várias maneiras, o problema da abordagem erudita do movimento sofista como um todo. Houve basicamente três estágios. Durante muito tempo pensou-se que não tinha intenção séria, mas fora composto simplesmente como uma paródia ou uma pilhéria sobre filósofos, ou, na melhor das hipóteses, um exercício puramente retórico de argumentação [Osório diz: se é destruidor não sendo sério {se fosse o fosse!} é opinião de quem não consegue enfrentá-lo]. [160] De modo geral, é provável que essa visão não mais impere, embora ainda tenha defensores. Por isso Guthrie pôde escrever, a respeito do argumento apresentado na primeira das três seções da obra: "É tudo, claro, uma bobagem interessante" [Osório diz: como diria qualquer bobo sem resposta]. Um segundo estágio é alcançado por aqueles que estão preparados a levá-la a sério e a tomaram como um ataque geral e cuidadosamente orquestrado contra as doutrinas filosóficas dos eleáticos e, por extensão, contra as doutrinas de certos filósofos físicos entre os pré-socráticos. Esse tipo de interpretação toma o verbo "ser", no tratado de Górgias, no sentido de "existir". A primeira parte, então, argumenta que Nada existe, e passa a demonstrar isso argumentando que Não-ser não existe, tampouco Ser existe. Isso é dirigido contra a asserção de Parmênides de que somente o Ser existe e Górgias, com os seus argumentos, chega a uma posição de niilismo filosófico. Parmênides tinha destruído o mundo multiforme das aparências, mas reteve o mundo unitário do Ser Verdadeiro; Górgias apagou a lousa inteira, e ficou com simplesmente — Nada. [Osório diz: Górgias versus Parmênides].
(…)
Mas é tempo de voltar para as doutrinas de Protágoras, visto que ele, de várias maneiras, não só estava expressando [177] suas próprias opiniões, como também agindo como líder para o movimento sofista como um todo. Voltando ao Teeteto, descobrimos que sua doutrina do homem-medida tem de enfrentar uma objeção extremamente interessante. Como observa Sócrates (161d3-e3):
Se seja o que for que qualquer homem suponha, baseado na percepção, deve ser, de fato, verdadeiro para ele; se assim como ninguém há de ser melhor juiz da experiência do outro, também ninguém tem mais autoridade para investigar se a opinião do outro é certa ou falsa mas, como temos dito mais de uma vez, cada homem terá suas próprias crenças só para si mesmo, e todas elas são certas e verdadeiras, então, meu amigo, onde está a sabedoria de Protágoras, que o faz pensar que está habilitado para ser mestre de outros e ser regiamente pago por isso, e onde está nossa comparativa tamanha ignorância que precisamos ir a ele para instrução, quando cada um de nós é a medida de sua própria sabedoria?
A esse ataque Protágoras responde, no devido tempo, pela boca de Sócrates (166dl-8):
Mantenho que a verdade é como escrevi. Cada um de nós é a medida das coisas que são e das coisas que não são; mas há um mundo de diferença entre um homem e outro exatamente nisto, que o que é e aparece para um é diferente do que é e aparece para o outro. Quanto à sabedoria e o sábio, longe de mim dizer que não há tal coisa. Por sábio designo precisamente o homem que opera uma mudança e onde coisas más são e aparecem para qualquer pessoa faz coisas boas aparecerem e serem para si. [178]
[Osório diz: HIPÓTESE: Platão, para não condenar o sofista Sócrates diretamente (seu ódio era a traição amorosa) condena os outros sofistas, tentando, contudo, do rol deles excluir Sócrates]
A isso se segue um exemplo: para o doente, a comida parece e é amarga, para o homem saudável ela é e parece o oposto. Ambas as condições são igualmente verdadeiras, mas a segunda condição é melhor do que a primeira, e o médico muda a primeira condição para a segunda, de modo que a comida que anteriormente parecia e era amarga agora parece e é doce. Na educação, o sofista faz com palavras o que o médico faz com remédios, e substitui não o falso pelo verdadeiro, más opiniões piores por melhores. Aqui, o exemplo dado são coisas más que parecem e, portanto, são justas, que precisam ser substituídas por coisas boas que, então, parecerão e serão realmente boas. Isso se aplica não só ao indivíduo mas também a comunidades inteiras — para elas também a função educativa do sofista pode ser extremamente útil e benéfica (l 67c4-7). Uma pilhéria feita por Sócrates deixa claro que Platão estava bem consciente de que a substituição de uma experiência por outra era considerada, por Protágoras, uma substituição de um logos por outro: de fato o logos que tinha sido mais fraco tornou-se, agora, mais forte (172b8-9).
Essa maneira de olhar as coisas tem, contudo, implicações consideráveis para a doutrina do homem-medida. Na sua forma irrestrita, a doutrina do homem-medida parecia implicar que, se alguma coisa parecesse F para alguém, então é F para ele e o caso é o mesmo para todos os valores de F. É-nos dito agora, contudo, que algumas pessoas são mais sábias do que outras na questão de saber o que é melhor ou pior, e isso, por sua vez, leva a uma outra inevitável proposição: a de que pelo menos alguns julgamentos são falsos, a saber, os [179] julgamentos a respeito do que é vantajoso e não vantajoso. A necessidade dessa modificação da generalidade da posição original atribuída a Protágoras é plenamente reconhecida por Sócrates (172a5-b2) e é apresentada, por ele, como o tipo de coisa que o próprio Protágoras poderia ter dito se fosse capaz de voltar da região dos mortos, esticar de repente a cabeça para fora da terra até o pescoço e falar antes de afundar e desaparecer outra vez. Não tenho nenhuma dúvida de que essa defesa deve ser levada a sério — até onde ela era justificada pelo que Protágoras tinha de fato escrito pode permanecer questionável, mas acredito que seja uma indicação clara de que isso era o que Platão considerava ser a interpretação historicamente correta da doutrina de Protágoras.
Seja como for, a doutrina modificada é de considerável interesse. A famosa história contada por Heródoto (III.38) mostra que algo parecido com o que chamaríamos de um tipo de sociologia do conhecimento estava já começando a ser aplicado a valores morais: se fosse perguntado a todos os homens quais as melhores leis e os melhores costumes, cada um escolheria os seus próprios. Eurípides (fr. 19) fez um seu personagem dizer que nenhum comportamento é vergonhoso se não parece vergonhoso para aqueles que o praticam. Para muitos, nos nossos dias, opiniões sobre valores não são questões de fato objetivo como as opiniões sobre o mundo físico, e o que a doutrina (na forma modificada) de Protágoras provê é um modo de comparar julgamentos sobre questões de valor, não [180] em termos de sua própria verdade ou falsidade, mas em termos de suas conseqüências sociais. Que essa opinião não estava confinada em Protágoras, mas era muito mais amplamente sustentada, presumivelmente dentro do movimento sofista, torna-se evidente pela afirmação de Platão de que era também sustentada por aqueles que não estavam completamente de acordo com a doutrina de Protágoras (Teeteto 172b6-7).
Mas a aceitação da opinião modificada suscita outras questões. Até aqui, poderíamos dizer que a fórmula "se alguma coisa parece F para alguém, então é F para essa pessoa" aplica-se em casos em que F é interpretado como significando "quente", "doce", "justo", "bonito" etc.; mas não se aplica quando F é interpretado como significando "bom", "saudável" ou "vantajoso". E os outros casos? Se Protágoras diz que o que quer que pareça a uma pessoa é isso mesmo para essa pessoa, isso pode bem ser entendido como significando que qualquer julgamento é verdade para a pessoa que o faz, não só os juízos sobre qualidades morais e de percepção. Exatamente essa irrestrita interpretação da doutrina do homem-medida era atribuída a Protágoras por aqueles que, entre os seus críticos, a usavam como base para o contra-ataque, conhecido depois como peritropê, a virada-da-mesa. Isso já era bem conhecido quando Platão escreveu o Teeteto, pois nos é dito que fora usado contra Protágoras também por Demócrito (DK 68A114).
A objeção é mais ou menos assim (171a6-9): Protágoras, ao admitir que a opinião de cada um é verdadeira, deve reconhecer a verdade da crença de seus adversários a respeito de sua própria crença, quando eles pensam que ele está [181] errado. É imediatamente em resposta a esse argumento, de fato, que Sócrates sugere que Protágoras haveria de esticar sua cabeça para fora do chão, se pudesse. Mas Platão, na realidade, não dá essa resposta, infelizmente. Pois a aplicação do peritropê implica a declaração de que há uma contradição interna na posição de Protágoras, e a natureza dessa suposta contradição interna é importante para a interpretação da doutrina do homem-medida. Conforme uma formulação dessa doutrina, Protágoras tinha mantido, por exemplo, que quando o vento parece frio para Protágoras é frio para ele. Quando o (mesmo) vento parece quente para o seu adversário, então é quente para esse adversário. Mas, desde que as frases qualificativas em itálico sejam retidas em cada caso, não há, de fato, nenhuma contradição entre as duas afirmações — a declaração de que alguma coisa parece ser o caso para uma pessoa claramente não é contraditada pela declaração de que a mesma coisa parece não ser o caso para uma outra pessoa. Se "parece" for substituído por "é", ainda não há contradição, desde que forem mantidas as frases qualificativas "é para a" e "não é para b”. Se Protágoras sustentava a opinião de que o vento, em si mesmo, existe independentemente de minha percepção dele, mas que sua frialdade só existe privadamente para mim quando tenho a sensação de frio, e seu calor só existe privadamente para o outro quando esse outro tem a sensação de calor, não há nenhuma contradição, e a peritropê fracassa.
Essa pode ter sido a resposta que Sócrates supõe que Protágoras teria dado se tivesse podido esticar sua cabeça para fora do chão. Mas há inúmeras objeções a essa opinião. Pri- [182] meiro, a resposta é tão óbvia que seria de esperar que ela impedisse a formulação mesma da objeção peritropê logo de início. A objeção peritropê só seria plausível, ao que parece, se as frases qualificadoras fossem removidas ou desconsideradas e a posição de Protágoras fosse entendida como envolvendo a afirmação de que o vento em si mesmo é e não é frio, e isso objetivamente, e não apenas como uma questão de como ele é sentido por diferentes observadores. Segundo, virtualmente, toda a tradição posterior, concernente ao sentido da doutrina do homem-medida de Protágoras, de fato a interpreta objetivamente, isto é, como envolvendo a opinião de que o vento em si mesmo é ao mesmo tempo frio e quente — quente e frio são duas qualidades que podem co-existir no mesmo objeto físico. Eu percebo uma, você percebe a outra. Isso torna a objeção peritropê totalmente compreensível. Terceiro, nessa tradição mais tardia, a objeção peritropê, na sua forma objetivista, é atribuída a ambos, Demócrito e Platão. Assim escreve Sexto Empírico (DK68A114): "Não se pode dizer que toda representação seja verdadeira, porque isso se refuta a si mesmo, como ensinaram Demócrito e Platão ao se oporem a Protágoras; pois, se toda representação é verdadeira, o juízo segundo o qual nem toda representação é verdadeira, sendo baseado numa representação, será também ver- [183] dadeiro e, portanto, o juízo de que toda representação é verdadeira se tornará falso" (da trad. ingl. de Bury). Isso se enquadra exatamente na opinião objetivista da doutrina de Protágoras, que se encontra, em outro lugar, em Sexto Empírico (DK80A14):
Ele diz que os logoi de todas as aparências subsistem na matéria, de modo que a matéria, na medida em que depende de si mesma, é capaz de ser todas essas coisas que aparecem a todos. E os homens, diz ele, apreendem coisas diferentes em tempos diferentes devido às suas diferentes disposições; pois aquele que está num estado natural apreende aquelas coisas subsistentes na matéria [itálicos meus] que são aptas a aparecer àqueles em estado natural, e os que estão em um estado não-natural apreendem as coisas que podem aparecer àqueles em um estado não-natural. Além disso, precisamente a mesma explicação se aplica às variações devidas à idade, e ao estado de sono ou de acordado, e a cada um dos diversos tipos de situação. Portanto, segundo ele, o Homem se torna o critério das coisas que são; pois todas as coisas que aparecem aos homens também são, e coisas que aparecem a homem nenhum também são sem ser.
Se a interpretação objetivista nos possibilita entender o sentido da objeção peritropê, como devemos supor que Protágoras teria respondido a ela, se tivesse podido esticar a cabeça para fora do chão? Lamentavelmente, não nos disseram. Mas podemos presumir que sua resposta poderia ter consistido de duas partes. Primeiro, no caso de qualidades percebidas, tomadas aqui como incluindo qualidades estéticas e [184] morais, bem como as qualidades normais percebidas pelos vários sentidos. Aqui sua resposta seria admitir que está colocando situações contraditórias. O mesmo vento é ambos, quente e frio, e isso porque é capaz de possuir qualidades contraditórias simultaneamente. É exatamente assim que as coisas são. Platão estava preparado para aceitar isso como uma descrição correta dos fenômenos, mas supunha que essa situação só é possível se, para além e acima dos fenômenos, houver também outras entidades, as Formas, que estão isentas da penosa situação contraditória que ocorre com os fenômenos. Protágoras, por outro lado, não estava preparado para supor quaisquer outras entidades além das fenomenais. Segundo, no caso de características tais como bom, mau, vantajoso e não-vantajoso, prudente e não-prudente, Protágoras simplesmente mantinha que essas características não estavam sujeitas à doutrina do homem-medida. Aqui há apenas uma verdade, não os dois logoi que se aplicam no caso anterior. De fato, há um sentido no qual Protágoras mantinha que a segunda classe de características, bom, mau, vantajoso etc., se aplica à primeira classe de características onde a doutrina dos dois logoi funciona plenamente. Pois enquanto duas pessoas podem ter sensações opostas, uma percebendo o vento como quente, a outra como frio, e essas duas qualidades estão em pé de igualdade quanto à sua verdade, contudo não estão em pé de igualdade quanto ao seu valor. Como deixa claro a citação de Sexto, uma percepção será a de um homem num estado natural ou saudável, e o uso do termo "estado natural" implica que essa percepção será, por conseguinte, preferível à outra percepção ocorrida, por exem- [185] plo, em caso de uma doença ou de um estado não-natural de quem percebe.
Que Protágoras reduz a realidade à realidade perceptível pelos sentidos, vê-se não só na última sentença do relato de Sexto Empírico que acaba de ser citada, mas também na interessante afirmação preservada por Aristóteles na Metafísica B (DK 80B7) onde ele diz:
Não é verdade que a medida da terra trata com magnitudes perceptíveis e perecíveis; porque, então, ela teria perecido quando elas pereceram. E da mesma forma não se dirá que a astronomia trata com magnitudes perceptíveis, nem com este céu acima de nós. Porque linhas perceptíveis não são o tipo de linhas de que fala o geômetra, pois nenhuma coisa perceptível é reta ou redonda da maneira como ele fala do reto e do redondo. Pois um círculo perceptível não toca a reta em um ponto, mas a toca da forma como Protágoras costumava dizer que toca, na sua refutação dos geômetras.
Em outras palavras, segundo Protágoras, a tangente toca um círculo não em um ponto geométrico, mas da forma como o faz no mundo visível, que é sobre um segmento de uma certa dimensão. Simplício (DK 29A29) preserva o que parece ser uma passagem de um diálogo entre Zenão e Protágoras. Não importa, para a nossa finalidade, saber se o diálogo é inteiramente fictício, como é provável que seja, visto que certamente apresenta uma correta aplicação da doutrina de Protágoras. Zenão pergunta a Protágoras se um único grão de painço ou a décima milésima parte de um grão de painço produz algum som ao cair. Protágoras responde que não, mas admite [184] que um alqueire (medimnos) de sementes de painço produz som. Zenão então conclui que um único grão deve produzir uma fração adequada do som produzido pelo alqueire. O ponto importante, aqui, no que concerne a Zenão, pode bem estar relacionado com o problema dos infinitesimais. Mas para Protágoras o importante é muito mais provável que tenha sido simplesmente a negação de sons não ouvidos, isto é, a negação de qualquer outra coisa que não sejam sons que são fenômenos reais porque são audíveis. Pelo menos neste ponto ele teve Aristóteles do seu lado, o qual argumentou que não havia razão pela qual essa parte do alqueire não devesse, não importa por que lapso de tempo, simplesmente deixar de mover o ar que o alqueire todo move ao cair.
A doutrina segundo a qual não há outras entidades além das entidades perceptíveis pelos sentidos envolve a negação de que haja quaisquer objetos não-fenomenais para o entendimento. Assim, nos é dito, por Diógenes Laércio, no seu sumário das doutrinas de Protágoras, que Protágoras deixou de lado a dianoia ("entendimento", aqui presumivelmente no sentido da significação ou sentido da palavra) e só deu atenção à enunciação, ou nome, o onoma (IX, 52 = DK80A1). Mas, se não há nenhum objeto para o entendimento, então, poder-se-ia argumentar, o entendimento não tem nenhuma função distinta na alma. E é esta presumivelmente a explicação para a notável afirmação feita por Diógenes Laércio, no parágrafo imediatamente precedente ao que acabamos de citar, de que a alma não era nada separada de suas sensações. Sabemos que Protágoras tinha uma doutrina física da alma e que a situava no peito (DK80A18), de modo que é improvável [187] que ele quisesse dizer que a alma não tinha existência à parte do conteúdo de suas sensações. Antes, é provável que ele quisesse dizer que ela não tinha função a desempenhar à parte dessa de perceber, uma doutrina que aparentemente se encontra também em Demócrito (DK 68A112) e, subsequentemente, em Estrato e Enesídemo, embora eles identificassem entendimento com percepção e não negassem a existência da inteligência (Sexto Empírico, Adv. Mathematicos VII,350). (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 143-187).
Doutrina Untersteiner:
"O homem é dominador de todas as experiências, em relação à fenomenalidade do que é real e a nenhuma fenomenalidade do que está privado de realidade". (Fonte: A obra dos sofistas: uma interpretação filosófica, Mario Untersteiner, tradução: Renato Ambrósio, Paulus, São Paulo, 2012, p. 78).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
44 – A ficção e o fim-ruptura com a Filosofia.
É Barbara Cassin quem diz:
“Compreendamos a que ponto todas essas teses estão ligadas. A ficção da palavra assinala a ruptura com a filosofia ("Como vos tirar dá cabeça o emprego filosófico de meus termos, quer dizer, o emprego sujo?" Roma, 544), portanto a nova situação do discurso (nos sons) e do pensamento ("nos músculos cuticulares da fronte", como no ouriço, Roma, 544). Desaparece o objeto subsistente e substancial, em benefício do efeito e da eficácia desse efeito:
O objeto a ... é o objeto sobre o qual exatamente não há nenhuma ideia (é o que justifica minhas reservas acerca do pré-socratismo de Platão) ... O simbólico, o imaginário e o real são o enunciado daquilo que opera efetivamente na fala de vocês quando vocês se situam no discurso analítico, quando analistas vocês são. Mas esses termos só emergem verdadeiramente por e para esse discurso (Roma, 546-7),
Foi assim que Górgias, pensando como sofista com seus gestos, seus achados e suas aliterações, fez com que Helena fosse inocente e a natureza, o que brota e o que cresce, fosse não-ente.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 307-308).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
43.2 – Discurso como guia de tudo.
Disserta Fausto dos Santos:
“[...] nenhuma capacidade humana se atualiza, nem chega a ser eficaz, se o discurso não lhe empresta sua força” (Albenque, 1987, p. 97) [Osório diz: o discurso como guia de tudo]. (Fonte: Filosofia Aristotélica da Linguagem, Fausto dos Santos, Ed. Universitária Argos. Capecó-SC, 2002, p. 60).
A autora portuguesa Maria José Vaz Pinto nos informa que:
“Guthrie, faz estudo destacando onze sentidos principais, cada um susceptível de cambiantes e contextualizamos suas aplicações. Deste relevamos os seguintes:
1) Algo dito ou escrito; uma história ou narrativa, fictícia ou verdadeira; a descrição de uma situação ou circunstâncias; notícias; discurso, conversa em geral.
3) Pensamento, ponderando os prós e os contras; opinião.
4) Causa, razão, argumento.
6) Medida.
7) Correspondência, relação, proporção.
8) Princípio geral ou regra; lei natural.
9) A faculdade da razão.
10) Definição ou fórmula expressando a natureza essencial de algo (significado corrente no séc. IV, se bem que difícil de situar estritamente antes).
Segundo aquele autor, esta resenha visa acentuar que a palavra e o pensamento se associam a noções que os gregos expressavam num mesmo vocábulo, pelo que essas diferentes noções estavam mais intimamente interligadas nos seus espíritos do que de outros, desprovidos de um termo com a mesma amplitude de sentidos.
Rodolfo Mondolfo sublinha que no séc. V a. C. o termo se aplica tando à esfera da realidade como à da linguagem e à da própria verdade, pelo que na sua pregnância arcaica releva de valores ontológicos e linguísticos (ibid., 67).
H. Fourier, diz que: No plano filosófico, logos designa a "razão" (e antes do mais, a razão humana) e os instrumentos da razão (o raciocínio, a razão, o motivo, o argumento), e, para lá da razão humana, a Razão na natureza: logos representa a essência de um objecto, a sua razão de ser, as suas leis (ibid., 219), o que nos leva "à importante noção de ordem do mundo, razão universal" (ibid.). Em sentido corrente, logos tem valor enunciativo, racional e literário, como exposição oratória ou didáctica, quer se trate de persuadir ou de demonstrar (ibid., 222). Logos serve à terminologia retórica para designar os géneros oratórios (ibid.) e na medida em que designa a narração ordenada e coerente e se aplica de modo especial à história, primeira prosa literária grega, passa a significar "prosa" por oposição a "poesia" (7r011,7o-ts) (ibid., 223). Teria recebido de àyopeúEiv a noção de "discurso público, amplo e elaborado" (ibid., 224). Segundo Fourier, "Logos teve um grande sucesso e destronou os seus predecessores (É'7rOs e gv6os) quando Xé,yEtv passou a significar "dizer" em vez de (Pngí e quando a eloquência passou a ter na vida social e política o papel que se sabe" (ibid.).
Já Capizzi distingue quatro vertentes de sentido: relação, argumento, razão e dictum (oral ou escrito), fazendo ver a relação íntima dos diferentes significados: estes movem-se no âmbito psicológico do terceiro (razão/ faculdade racional), acentuando os dois primeiros a validade universal (razão de ser do dito, da coisa, do número, da figura, etc.), enquanto os dois últimos marcam a existência de facto (razão como faculdade psíquica, dictum como produto desta) [...] Assim, segundo Capizzi, no termo logos coexistem um valor implicando validade (razão) e outro implicando algo de facto (o dito).
Por sua vez Kerferd releva que existem três áreas principais em que a palavra grega logos é aplicada e usada: "Estas são, em primeiro lugar, a área da linguagem e da formulação linguística, ou seja fala, discurso, descrição, enunciado, argumentos (enquanto expressos em palavras), etc.; em segundo lugar, a área do pensamento e dos processos mentais, ou seja pensar, raciocinar, dar conta de, explicar, (...) etc.; em terceiro lugar, a área do mundo, aquilo sobre que somos capazes de falar e de pensar, ou seja os princípios estruturais, as fórmulas, as leis naturais, etc. (...) considerados como actualmente presentes na realidade e manifestados no devir das coisas.” (Fonte: A doutrina do Logos na Sofística, Maria José Vaz Pinto, Colibri, Lisboa: 2000, p. 344).
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(uma biografia do conhecimento)
43 – As doutrinas dos sofistas e 43.1 – Logos (discurso) – significado, segundo a Sofística.
Kerferd ensina:
“Usamos os termos logos e logoi que não foram traduzidos, ou o foram diversamente por "afirmações", "argumentos" e (no singular) por "fala" ou "discurso" e, pelo menos em uma ocasião, pareceu apropriado falar de um logos como ocorrendo "na estrutura das coisas". Na verdade, uma pesquisa nos dicionários revela imediatamente que a faixa de significados ou aplicações da palavra grega logos é ainda mais larga do que poderia sugerir a variedade de traduções dadas acima. Não é, estritamente falando, com uma palavra com diferentes sentidos que estamos lidando aqui mas, antes, com uma palavra com uma série de aplicações relacionadas, todas, com um único ponto de partida. Esse é um fenômeno que, de acordo com G. E. L. Owen, veio a ser rotulado de "significação focal", embora talvez "referência focal" fosse uma expressão melhor, visto que o que está envolvido é uma referência extra linguística a alguma coisa que se supõe ser fato no mundo à nossa volta. No caso da palavra logos, há três áreas principais de aplicação ou uso, todas relacionadas por uma unidade conceitual subjacente. São elas, em primeiro lugar, a área da linguagem e da formulação linguística, portanto fala, discurso, descrição, declaração, afirmação, prova (quando expressa em palavras) e assim por diante; em segundo lugar, a área do pensamento e dos processos mentais, portanto reflexão, raciocínio, justificação, explicação (cf. orthos logos) etc.; em terceiro lugar, a área do mundo, aquilo sobre o que somos capazes de falar e pensar, portanto princípios estruturais, fórmulas, leis naturais e assim por diante, desde que, em cada caso, sejam considerados realmente presentes e exibidos no processo do mundo.
Embora em qualquer determinado contexto a palavra logos pareça apontar principalmente, ou mesmo exclusivamente, para apenas uma dessas áreas, a significação fundamental, usualmente, talvez sempre, envolve algum grau de referência às duas outras áreas também, e isso, acredito, é verdade tanto para os sofistas como para Heráclito, para Platão e para Aristóteles. Por isso, no que se segue, onde por conveniência o termo "argumento" é usado como tradução, deve-se lembrar que isso será enganoso a menos que seja entendido como normalmente referindo-se, em certo grau, a todas as três áreas mencionadas acima.
(…)
Mas não é só isso. Uma vez separadas essas três coisas [Osório diz: palavras, pensamentos e coisas] umas das outras, embora insistindo ainda que deve haver algum tipo de correspondência entre todas as três como requisito para verdade e conhecimento, nos defrontamos com o problema da melhor maneira de entender logos em relação justamente a essas três coisas. Pois, como foi dito no início deste capítulo, logos parece ter, de fato deve ter, uma espécie de pé plantado em cada uma dessas três áreas. O logos de uma coisa é: (1) o princípio, ou a natureza, ou a marca distintiva, ou elementos constituintes da própria coisa; (2) o que nós entendemos que ela é; e, finalmente, (3) a descrição (verbal), relato, ou definição correta da coisa. Todas as três levantam a questão do ser. Pois o logos da coisa sob o título (1) é o que a coisa é; sob (2) é o que nós entendemos que ela é; e sob (3) é o que dizemos que ela é. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 143-14 e 171).
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42 - Questões postas pelos sofistas - importância.
“Com a mudança que ocorreu na filosofia no séc. V, mergulha numa discussão de problemas que são tão relevantes hoje como o foram quando levantados pela primeira vez pelos sofistas. O que quer que pensemos do movimento sofista, devemos todos estar de acordo (como Alban Lesky estabelece. nenhum movimento intelectual pode-se comparar com ele na permanência de seus resultados, e que as questões propostas pelos sofistas nunca permitiram repousar na história do pensamento ocidental até os nossos dias [Muitos com certeza fizeram a mesma observação. Pode-se tomar por acaso um alemão (W. Schmid, Gesch. 1.3.1,216): “As questões e controvérsias daquele tempo não perderam nada de sua atualidade” ou um italiano (Gigante, Nom. Bas., 15): “O fundamento teórico da doutrina geral da lei no séc. XX recapitula a especulação da sofística grega do séc. VII. Seu efeito sobre o Iluminismo do séc. XVIII é descrito vividamente na Filosofia do Iluminismo de Ernst Cassirer, especialmente o cap. 6, onde justifica a sua afirmação (p.285) de que “depois de mais de dois milênios, o séc. XVIII estabelece contato direto com o pensamento da antiguidade... As duas teses fundamentais representadas na República de Platão por Sócrates e Trasímaco opõem-se mutuamente de novo “. E ainda continuam opostas hoje.]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 9).
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41.76 - Da Filosofia à Literatura.
É Barbara Cassin quem diz:
“III.1. “Fala, se tu és homem”, ou a exclusão transcendental (*)
Aqueles que se colocam a questão de saber se é preciso ou não honrar os deuses e amar seus pais só têm necessidade de uma boa correção, e aqueles que se perguntam se a neve é branca ou não têm apenas que olhar. Aristóteles, Tópicos, I, 105a 5-7.
Como a ética chega à linguagem? A resposta, desde Aristóteles hoje seria: com a exigência de sentido. A mesma estrutura: sentido, consenso, exclusão, só faria se repetir, desde a cena originária erguida por Aristóteles no livro Gama da sua Metafísica, como máquina de guerra contra os sofistas, semelhantes a plantas, esses pseudo-homens que pretendem falar por (prazer de) falar; até as filosofias do consenso, as éticas da comunicação, as pragmáticas da conversação: Apel, Habermas, Rorty, cujas exigências decrescentes tropeçam entretanto no mesmo tipo de maus outros, os que devem ser excluídos, que devem ser levados a se excluírem da humanidade. Assim o sentido, compreendido como exigência transcendental, quer dizer, como condição de possibilidade da linguagem humana, se sustenta, e só se sustenta, por uma exclusão não menos transcendental do que a própria exigência. Ou, simplesmente, o senso comum, para ser tanto senso quanto comum, produz não-sentido, insensatos, e não-comum, inumano.
A cena originária
Aristóteles acaba de enunciar o primeiro princípio da ciência do ser enquanto ser [Osório diz: o princípio de não-contradição], que passou à posteridade com o nome de princípio de não-contradição. Um tal princípio, "o mais firme de todos", é ao mesmo tempo "o mais conhecido" e, como o Bem de Platão, "não depende de mais nada" (Metafísica, Gama, 3, 1005b 13-14). Há, entretanto, aqueles que o recusam, afirmando, e afirmando defender, "que é possível que o mesmo seja e não seja" (4, 1005b 35 — 1006a I): esses mal-educados obrigam Aristóteles a demonstrar um princípio que é entretanto duas vezes não demonstrável, porque formalmente primeiro e porque contém a possibilidade mesma de todas as demonstrações.
(…)
Toda essa refutação consiste em uma série de equivalências (|iic faz passar de "dizer alguma coisa" (1006a 13, 22) a "signi-flnir alguma coisa para si mesmo e para outrem" (1006a 21). Mediante isso, a intimação a falar (diga: "Bom dia") pode servir Ur arma absoluta: ou bem o adversário se cala, renuncia com isso n satisfazer o caráter específico do homem que é o de ser dotado de fala, e não conta nem como adversário nem mesmo como alter ego; ou bem ele fala, logo significa, e renuncia, com isso, à possibilidade de negar o princípio, pois o princípio de não-contradição se prova e se instaura pelo único fato de que é impossível que o mesmo (vocábulo) simultaneamente tenha e não tenha o mesmo (sentido). O sentido é então a primeira entidade encontrada e encontrável que não pode tolerar a contradição. A refutação que serve de demonstração ao princípio de não-contradição implica, se não que o mundo é estruturado como uma linguagem, ao menos que o ente é feito como um sentido.
Na explicitação dessa única resposta encontram-se reunidos dois traços. Primeiramente, "do essencial concernente ao ente enquanto tal: a saber, que qualquer ausência permanece estranha à presença" (p. 467), ou, em outros termos, que "a essência do ente consiste na constante ausência de qualquer contradição" (p. 468). Mas também do essencial concernente ao homem, pois não falta ao homem que se contradiz apenas o ente, ele se falta a si mesmo: "Ao sabor de afirmações contraditórias que o homem é capaz de produzir à vontade acerca de uma só e mesma coisa, ele mesmo sai da sua própria essência para entrar na não-essência: rompe toda relação com o ente enquanto tal" (p. 468).
Acrescentemos que o próprio paradigma da "tagarelice" como primeira modalidade da queda própria ao Dasein", é o colóquio, “Onde se crê que do acúmulo das más compreensões resultará uma compreensão"2. A litania dos Ver- (Verdeckung, “recobrimento”; Verstellen, "desfiguração"; Verkehrung, "perversão” Verfallen, "decadência"), evoca inevitavelmente o pseûdos sofístico: "A sofística antiga não era em sua estrutura essencial outra coisa, mesmo se fosse talvez sobre muitos pontos mais sagaz” (Prolegomena, p. 377).
Mesmo diagnóstico então, e mesma condenação, se Heidegger não fosse mais cristão do que Aristóteles: fracasso, queda, inautenticdade, não fazem do homem que pretende sustentar a contradição uma planta, mas ainda e sempre um homem, cuja essência é, por essência, igualmente não-essência. Essa inteligência da diferença faz assim da diferença uma autodiferença própria a cada homem enquanto homem, antes que uma diferença entre os homens. As filosofias do consenso não poderiam ter essa prudência ao menos teórica.
A reiteração da estrutura em K.O. Apel
Apel, Habermas, e sem dúvida finalmente Rorty, têm em comum o fato de querer salvar a ética do irracionalismo, quando a autonomia kantiana parece não ser mais aí suficiente;
1) A problematização da noção de fundação última:
O double-bind da fundação última é o que se deve ao mesmo tempo fundar e cessar de fundar. O trilema de Münchausen nos deixa a escolha entre uma regressão ao infinito, um círculo lógico, ou uma interrupção não fundada do processo de fundação. Apel reconhece de bom grado que Aristóteles estava consciente da aporia: na medida mesma em que o princípio de não-contradição não pode ser nem contestado sem autocontradição nem fundado, sem petição de princípio, "a fundação do princípio de não-contradição por Aristóteles pôde servir de ilustração ao problema clássico da fundação última".
Aristóteles deve passar mesmos pelo iniciador do “sofisma de abstração”.
Ora a nossos olhos de leitores menos tradicionais de Gama, trata-se aí, precisamente, do procedimento aristotélico. Vimos Aristóteles substituir a demonstração impossível por uma refutação, cuja única condição, necessária e suficiente, é que o adversário fale/diga alguma coisa/signifique alguma coisa para ele mesmo e para outrem. É na univocidade constitutiva do sentido, o “alguma coisa”, que reside a petição do princípio, inevitável desse ver no sentido de que nenhum homem pode evitá-la. O golpe de Aristóteles consiste então, por um passo atrás, que podemos muito adequadamente designar como busca transcendental das condições de possibilidade do lógos humano, em fazer do próprio elemento da controvérsia um terreno que lhe é antecipadamente ganho: sinnvollen Reden ou Argumentieren é légeln ti, nidinein ti hautôi kaï allôi.
3) A administração da prova:
Os adversários, tanto para Apel quanto para Aristóteles, não se contradizem em um plano somente lógico-formal, nem somente pragmático-empírico. Quando Apel argumenta contra o decisionismo de Popper, para quem "o irracionalismo pode ser sustentado sem contradição porque podemos recusar aceitar argumentos", reencontra a refutação aristotélica em seu mecanismo específico: as regras do jogo de linguagem transcendental são “regras cuja validade já foi sempre implicitamente reconhecida” (Crítica, p. 926s.), ou, como diz Aristóteles: "Para destruir o lógos é absolutamente necessário que se tenha um lógos" (Gama, 4, 1006 a 26).
4) Relação à universalidade e estatuto da exceção:
Ao meu lado, e de todos os outros eus que são os animais dotados de lógos, discernem-se tanto em Apel quanto em Aristóteles duas categorias de maus outros: o mau outro assimilável e o mau outro radical. Assimilável é aquele que, dizendo bem o que quer, se conforma entretanto à obrigação de "sustentar seu discurso" (hypéchein lógon, Gama, 6, 1011 a 22), pois, de facto, pertence à comunidade daqueles que significam e que argumentam. É o "diabo" da Ética na era da ciência, que, contrariamente ao que se crê, não constitui uma exceção ao universal; com efeito, pode-se bem objetar contra a universalidade do fundamento a ético que
Dito de outra forma, a vontade má de dizer o falso e de enganar, o egoísmo do diabo ou do sofista, já estão, para que funcionem, sempre presos à universalidade do sentido.
Recurso ao sentido como condição transcendental do lógos, oração do sentido em consenso ("para si e para um outro"), passagem ao universal por redução das exceções a esse nada positivo que é a inumanidade: a estrutura do consenso filosófico, aristotélico-apeliano, prende-se inteiramente à problemática do sentido. "O sentido e o não-sentido têm uma relação que não pode ser decalcada sobre a relação do verdadeiro e do falso" 6: não existe contrário do sentido; o sentido é feito de tal forma que alguma coisa ou bem tem sentido ou bem não é que alguém ou bem é um agente sensato ou bem não é um homem.
A questão do cotidiano para Habermas
Habermas, em seguida Rorty, acabam por aceitar, cada um à sua maneira, a exigência do transcendental na origem do consenso. O passo atrás que realiza muito explicitamente Habermas em sua crítica de Apel consiste em recusar-se a ver, nas regras do jogo de linguagem transcendental, um fundamento 7: se o sentido e o consenso tornam-se uma exigência, é simplesmente porque não existe regra de substituição; eles só podem ser reconhecidos, obtidos, pela e na discussão.
O fato de que a "clareza" da metáfora esteja ligada ao suplemento de conhecimento que ela produz, torna-se ainda mais manifesto, considerando o que o livro III, capítulo 10, da Retórica nomeia tá asteia, "os ditos engenhosos" — formado a partir de hástu, "a cidade" —, quer dizer, ao mesmo tempo, o que corre as ruas e o que, como a dóxa, constitui o mundo comum. A seu propósito se efetua, primeiramente, uma das retomadas mais marcantes das primeiras linhas da Metafísica: "Todos os homens desejam naturalmente saber. Um sinal disso é o prazer tido com as sensações. Elas agradam por elas mesmas, independente da necessidade, e sobretudo as que nos vêm dos olhos". "Aprender facilmente dá naturalmente prazer a todos os homens; ora, as palavras significam alguma coisa, de forma que todas as palavras que produzem um ensinamento para nós são as mais agradáveis" (1410b 10-12). O eco se confirma quando se compreende por que o dito engenhoso é, por assim dizer, o nec plus ultra da metáfora: é uma metáfora por analogia, que tem além disso a virtude de "colocar diante dos olhos". Ora, prossegue a Retórica, "é a metáfora que melhor produz esse ensinamento; pois, quando se diz que a velhice é uma haste de colmo, isso produz um ensinamento e um conhecimento através do gênero; pois um e outro são desflorescidos" (14-16). E em todo o corpus, para nós tão pouco natural, dessas metáforas por analogia que são os ditos engenhosos retidos por Aristóteles; volta como um leit-motiv que elas são também prò ommáton, ou seja como se traduz às vezes, que "criam um quadro".
Aristóteles precisa, no capítulo seguinte, o sentido dessa expressão: "Digo que as palavras colocam diante dos olhos as coisas a cada vez que elas as significam em ato" (hósa energoünta semaínei, 1411b24s.). Os exemplos mais extremos são tirados de Homero, que diz em ato não somente os seres animados, mas chega a animar o próprio inanimado: "'as vagas abauladas, galeadas de espuma, umas à frente, outras atrás' — essas palavras transformam tudo em movimento e em vida, e o movimento é o ato" (141a9s.). Já que a enérgeia, o "ato", é, como nos ensinam a Metafísica e a Física, o que há de mais ente para Aristóteles, ao mesmo tempo ser do ente e ente por excelência, deus mesmo, é preciso convir que a metáfora, em sua melhor forma, faz ver as coisas em seu máximo de ser, faz com que se assemelhem ao que são.
(…)
O sofista e a má metáfora
Bem antes de Aristóteles, é a sofística que elabora a primeira retórica: "Górgias foi o primeiro a dar ao gênero retórico sua força educativa e sua técnica de expressão, utilizou tropos, metáforas, alegorias, hipálages, catacreses, hipérbatos, repetições, retomadas, reviravoltas e correspondências sonoras" (Suidas = I) K., II, p. 272, 28-31). Mesmo se o testemunho é tardio, é certo que essa retórica siciliana, que utiliza não somente as figuras de sentido mas joga com os próprios significantes, é uma trópica generalizada, para a qual a metáfora só representa um tropo dentre muitos outros.
Assim, é preciso não interpretar erroneamente a estranha objeção que Aristóteles, nesse mesmo livro III da Retórica, faz ao estilo de Górgias. É com efeito na "frieza" das metáforas que reside seu principal defeito; "frio", psychrós, se diz dos cadáveres: o estilo de Górgias é um estilo sem vida, a morte do estilo. Mas isso significa, muito precisamente, que Górgias prejudica a "clareza" das metáforas: "falta-lhes clareza quando elas vêm de muito longe" (asapheïs dê, àn pórrothen, 1496b8s., cl 140a35); "coisas frescas e sangrentas" ou "semeastes na vergonha, colherás na infelicidade", eis o que é dito poeticamente demais”. Esse excesso metafórico equivale ao acúmulo de metáforas que a Poética designa sob o nome de "enigma": compor exclusivamente com metáforas permite dizer "coisas reais através de associações impossíveis", por exemplo, "vi um homem aderir bronze sobre um homem com fogo" para falar da colocação de uma ventosa (Poética, 22, 1058a 25-30 e Retórica, III, 2, 140a i-l I405b5). Assim, Górgias o estrangeiro vai procurar longe demais o que deveria se contentar em pegar muito perto e, praticando a metáfora pela metáfora, os tropos pelos tropos, como ele fala pelo prazer de falar, faz desaparecer, com a clareza, a percepção do próprio e do comum. Poder-se-ia retomar aqui a análise de Jacques Derrida em A mitologia branca: a metáfora corre o risco de interromper a plenitude semântica à qual devia pertencer. Mediante o momento da virada ou do desvio, durante o qual o sentido pode parecer se aventurar sozinho, desligado da própria coisa que entretanto ele visa, da verdade que o prende a seu referente, a metáfora abre também a errância do semântico" 11, mas para marcar que é a sofística que constitui e que realiza, aos olhos da própria filosofia, esse risco da filosofia.
• A ékphrasis: da palavra à palavra
A clareza do estilo fenomenológico, que deixa ser dito aquilo que se vê, acresce-se da clareza da metáfora, que torna visível o invisível. A isso se opõe o estilo logológico, onde não se cessa de fazer isso por demais. O acúmulo dos tropos, que o caracteriza, parece-me dever se cristalizar ulteriormente em uma figura mais vasta, tão mal conhecida pelos filósofos: a ékphrasis. Como a epídeixis, o próprio termo de ékphrasis conota uma exaustão, a insolência do "até o extremo": é um ato de dispor em frases que esgota seu objeto e designa terminologicamente as descrições, minuciosas e completas, que são dadas das obras de arte.
A primeira,e sem dúvida a mais célebre, ékphrasis conhecida é a que Homero dá, no final do canto XVIII da Ilíada, do escudo de Aquiles forjado por Hefesto. A arma foi fabricada a pedido de Tétis, não para permitir a seu filho de resistir à morte, mas para que "todos fiquem maravilhados" (466s.) quando o destino o alcançar. Lembramo-nos de que é uma obra cosmo-política, onde são representados, não apenas Terra, Céu, Mar, bordejados pelo rio Oceano, mas duas cidades nas minúcias de suas vidas, uma em paz e a outra em guerra. O poeta cego não omite nada do que o deus aí coloca, não omite absolutamente nada, e produz a primeira síntese do mundo dos mortais, provando assim, pela primeira vez, que a poesia é mais filosófica do que a história. [Osório diz: Escudo de Aquiles / Destino]
Não somente essa ékphrasis primeira é a descrição de um objeto fictício, como também é seguida no tempo por uma segunda ékphrasis, cujo modelo é dessa vez, como para um remake, a primeira ékphrasis ela mesma: trata-se do escudo de Héracles atribuído a Hesíodo. Esse palimpsesto não se conforma então a um fenômeno, um escudo real, por outro lado, à própria natureza e às cidades, mas somente a um lógos. Nesse objeto transido de cultura, perde-se, com a referência natural, o que Aristóteles teria nomeado vida da narrativa. Como observa Paul Mazon, com os julgamentos de valor esperados: "Em tudo isso, nenhum gesto então que seja verdadeiramente 'visto', que dê a sensação da vida. Tampouco nenhuma palavra na boca dos personagens que torne um som franco e claro: todos falam uma linguagem de pura convenção" 12. Inclusive as próprias metáforas que são mortas, já que, ao invés de as vagas se perseguirem como guerreiros, são dessa vez os guerreiros que rolam como pedras (374-379). O ut pictura poesis da metáfora "como um quadro” toma assim um sentido completamente diferente: não se trata mais de imitar a pintura na medida em que ela procura colocar o objeto diante dos olhos — pintar o objeto —, mas de a pintura enquanto arte mimética — pintar a pintura. Imitar a imitação, produzir um conhecimento, não do objeto, mas da ficção do objeto, da objetivação: a ékphrasis logológica é literutura.
De fato, o destino da ékphrasis está ligado ao do romance. Não retornarei as análises através das quais tentei mostrar como a segunda sofística, mais de seis séculos após a primeira, desenvolve, com a ficção, esse pseûdos por meio do qual a filosofia de Platão e de Aristóteles caracterizou para sempre a primeira sofística 13. O que me interessa aqui é somente a maneira pela qual o estilo da ficção é obnubilado pela ékphrasis, exatamente como o estilo da fenomenologia o é pela metáfora.
(…)
Assim em As aventuras de Leucipo e Clitofonte de Aquiles Tácio.
Na ilha de Lesbos, caçando em um bosque consagrado às Ninfas, vi a mais bela coisa que já vi em minha vida: uma imagem pintada, uma história de amor. Também era belo esse bosque com árvores frondosas, com flores e riachos; uma única fonte alimentava tudo, flores e árvores. Mas a pintura tinha mais charme, plena de uma arte extraordinária e de uma aventura de amor. Assim muitas pessoas, mesmo estrangeiros, vinham, atraídos pelos rumores, adorar as ninfas, contemplar a imagem. Nesta, mulheres dando à luz, outras que enfaixam recém-nascidos, crianças expostas, animais que alimentam, pastores que recolhem, jovens que trocam juramentos, um ataque de piratas, uma invasão de inimigos. Vendo muitas outras coisas, todas plenas de amor, e me maravilhando com elas, tomou-me o desejo de replicar ao quadro. Tendo acabado por encontrar um exegeta da imagem, compus quatro livros, uma oferenda para o Amor, as Ninfas e Pan, um bem para encantar todos os homens, que curará o doente, consolará o aflito, fará recordar-se aquele que amou e preparar-se aquele que não amou. Pois ninguém jamais escapou ou escapará ao amor, enquanto a beleza existir e os olhos enxergarem. Permita-nos o deus, mesmos sensatos, escrever os amores dos outros (1-4).
A natureza nessa narrativa é menos bela do que a pintura (“a mais bela coisa"/"belo também"). Somente a pintura, em seguida a narrativa que é sua exegese, têm o poder de "encantar" (terpnotéra, terpnón), de enlevar como a música de Orfeu. Da mesma forma, é apenas a imagem que é "contemplada".
(L'Ekphrasis[1] (o anche ècfrasi, ecphrasis o ècfrasis) è un termine di derivazione greca (ἔκϕρασις: derivato di ἐκϕράζω «descrivere con eleganza», da ἐκ «fuori» e ϕράζω «parlare; designare un oggetto inanimato con un nome») e indica la descrizione verbale di un'opera d'arte visiva, come ad esempio un quadro, una scultura o un'opera architettonica.///////////////////////////
A écfrase consiste no processo descritivo detalhado por meio do qual se pode produzir um “quadro” do objeto da descrição. A enargia pode ser considerada uma figura de pensamento cuja finalidade é conferir vivacidade à imagem verbal. A écfrase não é o único procedimento capaz de gerar essa enargia, conforme será exposto; contudo, nos desperta o interesse em razão de seu histórico, frequentemente associado à construção de imagens que, por sua vez, representam objetos inexistentes de maneira absolutamente crível.
A enargia ou evidência como figura de pensamento está estruturada retoricamente na elocução. Sabe-se que a elocução é uma etapa importante da composição, pois nela se modela o texto de acordo com o público a que se pretende atingir e está, portanto, relacionada à persuasão desse público. Logo, a elocução serve a outras etapas da composição retórica – a invenção e a disposição. Ou seja, da mesma maneira que a poesia deve estruturar suas partes para resultarem um todo coerente, o discurso retórico também deve fazê-lo. Assim, as diferentes fases do discurso não são estanques.
Compreende-se que a écfrase ou enargia, ainda que ornamentos da elocução, servem também aos propósitos da invenção e da disposição – etapas que, logicamente, faziam parte do trabalho da composição poética. Portanto, supõe-se que a evidência não esteja inserida como mero ornamento, mas tenha uma finalidade própria dentro do conjunto.
Por ora, pode-se dizer que ambas se relacionam ao gênero epidítico (ou demonstrativo) – gênero voltado para o elogio ou o vitupério de um indivíduo e que requer meios de amplificação para reforçar as características (qualidades ou defeitos) atribuídas a ele. A evidência consiste também na prática do retrato, pois permite ao leitor/ouvinte visualizar um retrato do objeto detalhado.
A écfrase também se insere no discurso epidítico, pois é um método da amplificação. No entanto o discurso ganha dimensão pois combina a descrição com a narração. Embora possam se apresentar como digressões dentro da estrutura do texto, são fundamentais para corroborar com o propósito do autor, pois ambas operam a amplificação, que, por sua vez, constitui um recurso patético da argumentação, comovendo e deleitando o público de modo a tornar o discurso mais verossímil.)
Ora, esse quadro que a ékphrasis descreve já é uma narrativa "uma imagem pintada, uma história de amor, plena de uma arte extraordinária e de uma aventura de amor". A violência da parataxe inverte o ut pictura poesis: não é a poesia que coloca diante dos olhos, é a pintura que faz ouvir. Contemplar é dar ouvidos.
Além disso, essa narrativa que é a pintura é estritamente anti ou a-fenomenológica, no sentido heideggeriano-aristotélico do termo. Ela não faz nada "ver-como" e desafia toda sintaxe, nenhuma semelhança, nem epistemológica nem metafórica, pode ser elaborada aí. Tudo que se vê é o que o discurso diz em uma pnrataxe arrebatada: sujeitos agindo e cada sujeito, sem modi¬ficação e sem predicado, comprometido com seu ato. E as mu¬lheres dando à luz, os pastores recolhendo, as jovens prometendo, " inimigos invadindo. . .
(…)
Nesse prólogo, nesse romance, com a ékphrasis, não se trata mais de ter olhos para ver e viver o fenômeno, mas olhos para fazer frases, olhos para escrever e para ler: olhos para enganar.
Plutarco, em seu Se os atenienses foram mais excelentes nas armas do que nas letras (V, 384c = 82 B 23D.K., II, p. 305s.), relembra uma frase célebre de Górgias:
A tragédia era florescente e celebrada: era para os homens de então o que se podia ver e o que se podia ouvir de mais espantoso e conferia aos mitos e às paixões a ilusão segundo a qual, como diz Górgias, "aquele que ilude é mais justo do que aquele que não ilude, e aquele que é iludido mais sábio do que aquele que não é iludido. Com efeito, aquele que ilude é mais justo porque realiza o que prometeu, e aquele que é iludido mais sábio, pois ser facilmente enleado pelo prazer dos discursos é não ser privado de sensibilidade".
Com a sofística, é a apáte, a "ilusão", simultaneamente engano e sedução, que se encontra ligada, não somente à justiça e à sabedoria, porém, mais radicalmente ainda, à aísthesis, a essa sensibilidade" mesma que caracteriza a abertura fenomenológica. É no lugar da sensibilidade ao fenômeno que se trata de instalar a sensibilidade ao prazer de falar. René Char exigia "a honra cruel de enganar": é com a lucidez literária e política desse engano discursivo que gostaria de concluir.
III.3. Do falso e da mentira à ficção: de pseûdos a plasma
(…)
A primeira sofística perdeu a guerra filosófica. É, sabemos, em nome da verdade que a sofística foi de início e sempre condenada: a acusação principal lançada por Platão bem como por Aristóteles se deixa consignar no termo pseúdos. Pseúdos objetivo, o "falso": o sofista diz o que não é, o não-ser, e o que não é verdadeiramente ente, os fenômenos, as aparências. Pseúdos subjetivo, a "mentira": ele diz o falso com a intenção enganar, utilizando, para obter um êxito rentável, todos os recursos do lógos — ao mesmo tempo lingüístico (homonímia dos termos), lógico (raciocínio falso, sofisma) e racional propriamente dito (inaptidão para o cálculo e para a estratégia, tolice do outro). Logo de saída então, no Sofista como em Metafísica Gama 2, a sofística é uma pseudofilosofia: filosofia das aparências e aparência da filosofia. [Osório dia: como Platão e Aristóteles veem a Sofistica].
Mas, de Platão a Aristóteles, a acusação provê sua eficácia de modo bem diferente. Em Platão, a desqualificação depende do parricídio de Parmênides, desse momento em que o Estrangeiro mostra - fazendo voltar à cena e, com isso, desfazendo-o, O Tratado do não-ser de Górgias — que na verdade a posição parmenideana é insustentável. O pai contradiz a si mesmo pelo único fato de enunciar a lei ontológica "o não-ser não é" (uma primeira vez, pela enunciação do termo, sua posição em uma frase; uma segunda vez, pelo plural, me ónta no verso escolhido, que faz participar da quantidade; logo, do ser). Tomar o pai ao pé da letra, quer dizer, tornar essa contradição manifesta, isso é matá-lo. É preciso escolher o espírito contra a letra e aceitar que o não-ser seja de algum modo, entre outros justamente, entre outros gêneros, para fundar a possibilidade de que se possa dizê-lo e pensá-lo, mentir e se enganar. Somente assim se pode refutar esse filho amoroso demais ou irônico demais que lhe jogava a letra contra a letra sem querer sair disso: o sofista. O sofista é assim encontrado, capturado em sua semelhança/diferença, cão/lobo, com o filósofo, mas ainda não excluído da cena.
A exclusão propriamente dita é feita com Aristóteles, com o "golpe de Aristóteles". Esse golpe consiste em tornar equivalente "dizer" ou "falar" e "significar alguma coisa" (légein e semaínein ti), por ocasião do estabelecimento do que será o princípio de não-contradição. Ele permite isolar e marginalizar uma posição irredutível: aqueles que não são acessíveis à persuasão, mas somente à coação, à violência. Os sofistas não são mais apenas esses pseudofilósofos que, sob o golpe de uma aporia, se deixam prender e prendem os outros na rede das aparências sensíveis e discursivas, os físicos e os poetas, de Parmênides e Heráclito a Homero e a Empédocles; são esses pseudo-homens (plantas, deuses?) que falam sem significar alguma coisa que tenha um sentido para eles mesmos e para outrem, que falam então sem nada dizer e mesmo com a intenção de dizer nada, para nada dizer ou "pelo prazer de falar": lógou chárin.
É, creio, fundamental, para tentar responder à questão "O que é a sofística?", apreender toda a dimensão da exclusão aristotélica: sob o regime do "falar de" maciçamente semântico, que é normalmente o nosso, sob o qual falamos e escrevemos aqui como em toda parte, é evidente que falar de nada equivale a não falar. Para Aristóteles, o sofista faz verdadeiramente muito ruído com sua boca, muito ruído para nada, e os sofismas que o procedimento de distinção das significações empregado nas Refutações sofísticas não chega a reduzir, aqueles que abusam desse refúgio inexpugnável que não é dessa vez como em Platão o não-ser, mas a materialidade significante da linguagem, podem interessar à embriaguez dos finais de banquete, não à filosofia.
Para se refazer um ouvido e, se não para reabilitar, ao menos para ouvir novamente a sofística, não pode então ser suficiente permanecer na problemática platônica e valorizar positivamente a preocupação com a racionalidade que opera na descrição das irracionalidades aparentes, sensíveis ou lógicas, caras aos sofistas. A esse respeito, é fundamental notar com G. B. Kerferd que toda as reabilitações filosóficas propostas, até Heidegger inclusive, são essencialmente platônicas: consistem em valorizar, em atribuir um valor positivo ao que Platão desvaloriza. A virada é rapidamente feita. No plano teórico os sofistas tratam do não-ser e dos fenômenos ou dos acidentes, o que os entrega ao sensualismo e à subjetividade; Hegel, em suas Lições sobre a história da filosofia, mostra como Górgias tem logicamente razão em insistir sobre o não-ser do ser e como Protágoras inaugura a reflexão na consciência. No plano prático, os sofistas platônicos são imorais, preferindo o poder e o dinheiro; Nietzsche, invertendo os valores, faz o elogio de Cálicles e Hegel os nomeia "os mestres da Grécia", no plano não apenas da pedagogia e da cultura, mas também, como Grote, no plano político da democracia.
A arte e a maneira de não ser platônico, ao menos para o filósofo, o crítico ou o historiador que reflete sobre a sofística, seria a de não permanecer nas desvalorizações propostas por Platão, tampouco nas valorizações dessas desvalorizações — um contratorpedeiro sendo, como dizia Jean Beaufret, de início e antes de tudo um torpedeiro. É preciso, creio, levar em conta agora aquilo que, na posição aristotélica a respeito dos sofistas não é uma simples retomada, a repetição em um outro glossário da posição platônica; ler, sob a censura aristotélica do lógou Charin, a possibilidade de uma positividade diferentemente específica da sofística e se perguntar que tipo de discurso se instaura, e qual é seu interesse, quando se fala para nada dizer.
Vou tentar propor uma resposta a essa questão, a partir de alguns textos da primeira e da segunda sofística. Mas, de início, uma observação preliminar: necessita-se infinitamente de prudência, de tato, no manuseio desses textos. As objeções de Platão e de Aristóteles que são às vezes as únicas fontes que temos para a primeira sofística, dispõem os textos e as problemáticas originais em função dos seus próprios: como diz Élio Aristides, por que deixaríamos Platão sozinho escolher os argumentos que se opõem a Platão? Se deixamos Platão refutar Platão, como Platão não refutaria aqueles que refutam Platão? Por sua vez, os textos da segunda sofística conhecem as refutações de Platão e de Aristóteles e dispõem sua própria problemática, e sua retomada das problemáticas da primeira sofística, para refutar essas refutações. Trata-se verdadeiramente, como em todo objeto cultural — e a sofística o é em seu mais alto grau — de um palimpsesto e de um palimpsesto de palimpsesto. [Osório diz: luta-se com as armas que o adversário fornece].
A resposta que irei propor tem um duplo encaminhamento. O primeiro momento nos faz mover, como previsto, no campo retórico como médium comum às duas sofísticas; ele nos fará talvez reconsiderar o sentido, o valor ou a localização desse conceito entre sofística e filosofia, mas em todo caso legitima maciçamente a assimilação sofísticas-retórica (sofísticas com um "s") que funciona como contragolpe eficaz à apreciação filosófica desde Platão até Gomperz e Bowersock. O segundo momento quereria levar mais adiante as particularidades da retórica sofística, as implicações filosóficas propriamente ditas do estatuto sofístico da linguagem, para medir a força e a pertinência da resistência da sofística à filosofia — a arte e a maneira de não ser nem platônico nem aristotélico — e sua potência criadora: como escrever fora da filosofia sem ser nem poeta nem historiador? A sofística ter-nos-á assim transportado da acusação de pseúdos lançada contra ela pela filosofia, e de onde partimos, à reivindicação de plásma, a força ficcional própria à literatura. [Osório diz: plásma = dar forma. Vide p. 267].
Como se pode então falar para nada dizer?
Primeira resposta: basta não falar de, mas falar para. Não se ocupar daquilo de que se fala, da physis, do kósmos, do ente, mas se ocupar daquele para quem se fala, do efeito ad hominem. De um lado então, conhecer tendo como fim o verdadeiro; do outro, persuadir tendo como fim o útil e o eficaz. À direita o filósofo, à esquerda o orador.
Não tenho nem tempo nem os meios de utilizar o termo retórica com todas as precauções que sua história requer. Marcarei simplesmente as modalidades da relação entre retórica e primeira sofística como ponto de partida, retórica e segunda sofística como ponto de chegada, especificando a cada vez a posição da filosofia.
Ponto de partida então, o que os sofistas do século V dizem ou o que se diz que eles dizem do discurso, e do discurso tal como o praticam.
O discurso está para a alma assim como o phármakon, a droga, remédio/veneno, está para o corpo: ele induz uma mudança de estado, para o melhor ou para pior. Elogio de Helena, 14:
Existe a mesma relação (lógos) entre a força do lógos em relação à ordenação da alma e a ordenação das drogas em relação à natureza dos corpos; pois assim como certas drogas eliminam do corpo certos humores e dão fim, algumas à doença, outras à vida, também, entre os discursos, uns acalmam, outros encantam, aterrorizam, excitam a coragem dos ouvintes, ou ainda, por uma persuasão nefasta, drogam a alma e a enfeitiçam.
O sofista, como o médico, sabe utilizar o phármakon e pode transmitir esse saber; sabe e ensina como fazer passar, não, segundo a bivalência do princípio de contradição, do erro à verdade ou da ignorância à sabedoria, mas, segundo a pluralidade inerente ao comparativo, de um estado menos bom a um estado melhor. Protágoras o afirma pela boca de Sócrates, que o defende: "É de uma disposição à disposição que vale mais que deve se fazer a passagem, mas o médico produz essa passagem' pelas drogas, o sofista pelos discursos" (Teeteto, 167a).
Vê-se bem como tais textos autorizam a fazer da sofística, por mais belos e positivos que sejam, uma prática ao mesmo tempo utilitarista e behaviorista da linguagem, mais próxima da retórica do que da filosofia. Uma vez determinado o melhor pelo cálculo do útil e a difícil ponderação das utilidades privadas e públicas, trata-se de saber que palavras reunir e em que ordem para que a alma do outro ou dos outros sofra, graças a esses stimuli, a emoção exigida.
Mas a filosofia recusa à sofística não somente ser filosofia, mas mesmo ser inteiramente retórica, arrogando-se ela mesma a retórica. [Osório diz: a-retórica? Não-retórica?]
Os textos sofísticos ou pró-sofísticos que acabo de citar contêm, com efeito, em germe, as duas críticas que a filosofia dirige à sofística como retórica. O problema da intenção: o que garante que o sofista se utilize seriamente de seu phármakon, como remédio e não como veneno, que ela seja um médico que queira curar seu doente? E o problema da téchne: o que garante que o sofista seja um médico e não curandeiro, como um savoir-faire científico (téchne ou episteme) e não simplesmente empírico?
Esses dois critérios se reúnem na acusação de "adulação" do Górgias. Levando em consideração a famosa analogia (465c), o sofista valeria finalmente mais do que o orador, já que a retórica é da ordem de justiça ou da medicina, quer dizer, do corretivo acidental, enquanto a sofística é o análogo da legislação ou da ginástica, quer dizer, do normativo estruturante — mas certamente tanto uma quanto a outra devem ser levadas para o lado da adulação, da empiria chamativa, cozinha e cosmética. No Fedro, a retórica pode dar em coisa ruim, para o lado da sofística, ou em coisa boa, para o lado da filosofia: a primeira é apenas uma redução falaciosa, a aparência da boa psicagogia propedêutica à filosofia. Sofistas, ainda um esforço, não somente para serem filósofos, mas mesmo para serem oradores.[Osório diz: “o” filósofo e orador era Sócrates, para Platão, e todos sabemos como ele se acabou! Não foi capaz de convencer o tribunal de que era tudo aquilo que Platão e Xenofonte dizem que ele era! Ele era, para o tribunal, aquilo que Aristófanes diz que ele era].
E é isso exatamente o que diz Aristóteles. A intenção faz dos sofistas pseudo-oradores, como faz deles pseudofilósofos: "Pois a sofística não está na faculdade (dynamis) mas na intenção (proaíresis)". Suspeita ética então. Mas também desqualificação científica: quando Aristóteles admite certos sofistas entre os oradores e então os declara tecnicamente insuficientes. Aos primeiros dentre eles, Córax, Tísias, falta o método; seu ensinamento, que deve ser considerado do lado sintagmático, negligencia o essencial, o corpo da prova, o entimema, para se ocupar dos acessórios. O maior entre eles, Górgias, só o é para os incultos: precursor do paradigmático, só fez misturar os estilos, sem compreender que o estilo da prosa onde ele introduzia, com as figuras e seu trabalho sobre as sonoridades ("gorgianizar"), o equivalente, ou antes, o sucedâneo, do metro deveria permanecer diferente do estilo da poesia. O fato de não ter compreendido nada quanto à especificidade da prosa retórica faz dele um orador irresistivelmente enfático (assim quando evoca "as coisas frescas e sangrentas", ou quando recebendo um excremento de andorinha, aproveita para exclamar: "Que vergonha, oh Filomela*!”. Da mesma forma, a invenção que é lançada em seu ativo do gênero epidídico, ao lado dos dois gêneros imediatamente úteis que são o judiciário e o deliberativo, faz com que se confunda mais ainda a preocupação retórica de persuadir e o desejo poético de representar. Voltarei a essa acusação freqüentemente lançada, por Aristóteles contra Górgias de ser por demais poeta, pois, colocada em ressonância com Lógou chárin, ela faz a sofística saltar da retórica em direção à literatura e descortina a segunda parte da minha resposta.
É sobre esse fundo crítico que se pode compreender o ponto de chegada. A segunda sofística procede efetivamente, como Protágoras preconiza, à inversão dos estados. Torna-se preferível ser orador ou sofista, e todo mundo pode se convencer disso. Pois é a filosofia que se torna uma sofística e uma retórica insuficientes.
Élio Aristides consagra uma parte de sua vida a refutar Platão, de dentro, Platão contra Platão, fazendo funcionar uma crítica interna, mas também de fora, propondo suas próprias concepções. Assim, em Contra Platão, sobre a retórica, contenta-se, para mostrar o arbitrário da acusação platônica no Górgias — e não é um contragolpe tão anódino ou estúpido como Boulanger quer acreditar — em propor a substituição da retórica pela filosofia no interior da analogia de proporção. Responde ao mesmo tempo à acusação de adulação: a retórica é um phármakon universal (cura a morte, o exílio, o medo que eles inspiram, a cólera dos juízes, a philonikía do povo) exatamente porque o orador não diz o que o ouvinte quer ouvir — pois então isso não mudaria nada. Mas conjectura a partir da ordenação dos fatos (táxis ton pragmáton) assim como o médico a partir da natureza dos corpos (physis ton somáton), não para adular os desejos, mas para que o tratamento que preconiza possa - ser ouvido da melhor maneira, suportado da melhor maneira pelo paciente que é o ouvinte". O ideal, que se superpõe à analogia e se apropria da metáfora, seria não um filósofo-rei, mas um orador-médico, que poderia protheraúein, prevenir os sintomas - pode-se dizer, psicossomáticos — "utilizando a mais sábia das drogas": unicamente falando. Assim todo o trabalho de Élio Aristides consiste em creditar à sofística essa boa retórica que o Fedro queria para a filosofia e fazê-la simultaneamente passar do estatuto de propedêutica (em potência) ao estatuto de paideía (em atos).
Os próprios termos "retórica filosofante" de que Filóstrato se serve, no livro I de Vidas dos sofistas, para definir a primeira sofística são ainda uma refutação do Fedro. Esse registro de nascimento um pouco desconhecido" da segunda sofística mereceria ser estudado palavra por palavra. Quero simplesmente assinalar com qual soberania se marca a inversão do julgamento platônico e aristotélico. Dessa vez, com efeito, é dos filósofos que é necessário ainda um esforço. Filóstrato diz o mesmo que Aristóteles, sofística antiga e filosofia têm o mesmo objeto; mas, acrescenta, sobre esse objeto a sofística "dialetiza" enquanto a filosofia usa de astúcias ("os que filosofam mantêm-se em emboscada com suas questões, atraem para si pequenas partes de sua investigação", 480); em suma, ela faz fita para finalmente "dizer que não sabe ainda". A sofística - é, em ato, o que a filosofia é somente em potência, e apenas os melhores filósofos (toús xún euroíai herméneúontas, "aqueles que têm a hermenêutica fácil", 484) podem aceder ao nome e ao estatuto de sofistas. Lembremo-nos de Gama 2 (1004b 27ss.): tanto os sofistas quanto os dialéticos se movem" no mesmo gênero" que a filosofia (tratam do ente que é comum a todos), mas "a sofística é uma filosofia somente aparente, não real", "ela parece mas não é" (phainoméné, oúsa d'oú). Aqui (484) Filóstrato nos diz que falará de início dos filósofos, que os despachará em suma, porque ouk óntes sophistaí, dokoûntes dé, "eles não são sofistas, mas apenas o parecem", e ganham assim a eponímia.
A sofística, pseudofilosofia e mesmo pseudo-retórica, tornou-se assim, nas respostas palimpsêsticas da segunda sofística a Platão e Aristóteles, retórica filosofante, modelo e gênero epônimo da filosofia. Essa inversão sofística/filosofia, e a vitória sofística, operou-se no terreno da retórica e não da filosofia, por uma insistência sobre o "falar para" em detrimento do "falar de", pela ênfase dada, desde a origem, ao papel farmacêutico da linguagem.
O texto que serve manifestamente de ancestral ou de palimpsesto ao uso que faz a primeira sofística, depois Platão, e depois, via Eurípides e Isócrates, a própria segunda sofística do termo phármakon se encontra no livro IV da Odisséia. Helena aplica a Telêmaco em lágrimas um phármakon, certamente egípcio, para que ele cesse de chorar e se deixe levar "pelo prazer dos discursos" (v. 239). Helena é, em que pese o que diz Aristóteles, a heroína sofística por excelência, porque está transida de discurso. Na Odisséia, ela é não somente a farmacêutica, que dá o remédio, mas encarna também a própria droga, como se vê na curta narrativa que imediatamente propõe Menelau (v. 271-289). Quando o cavalo cheio de reis gregos foi para Tróia, Menelau conta que ela fez seu percurso chamando cada um dos guerreiros por seu nome e imitando a voz de suas esposas, suas sonoridades, suas inflexões. Todos então teriam pulado para fora se Ulisses não os tivesse retido, explicando-lhes que ele bem reconhecia aí Helena.
A ênfase é dada ao papel proteiforme, o papel de equivalente geral do lógos-phármakon. Como uma moeda sonora, ele faz as vezes de todas as coisas (como Helena faz as vezes de todas as mulheres). Não designa o que está lá, na adequação filosófica, mas liberta do presente para fazer existir em seu lugar o objeto do desejo. É verdadeiramente e de forma não fortuita, como o phármakon de Theuth, como a escrita, um pecado contra o presente.
Górgias, na seqüência do Elogio (§ 11), insiste bastante nisso: é do tempo, na medida em que ele não é jamais presente, que o discurso tira sua potência. [Osório diz: tempo]
Se todos acerca de tudo possuíssem a memória das coisas passadas e (?) presentes, e a antecipação das futuras, o discurso não seria como tal; mas já que em realidade (?) não se tem em memória o passado, não se perscruta o presente (sképsasthai), não se adivinha o porvir, o discurso é pleno de recursos. [Osório diz: discurso e tempo]
Libertar do presente,
Da noção de phármakon surge também outra coisa além de uma retórica behaviorista e uma estratégia discursiva. A oposição não se situa mais somente entre "falar para" e "falar de", mas é o "falar de" que se encontra ele mesmo fissurado, desdobrado. Em termos selvagemente anacrônicos, é aqui, creio, e não somente na descrição desse ou daquele sofisma ou paralogismo, que é vantajoso evocar a distinção entre sentido e referência.
No "significar alguma coisa" aristotélico, que torna equivalente discurso sobre nada e nenhum discurso, o sentido — é todo o trabalho do livro Gama da Metafísica — está ancorado na essência. Para retomar uma expressão de Pierre Aubenque, "é porque as coisas têm uma essência que as palavras têm um sentido". Aristóteles esmaga o sentido na referência que o rege. As coisas comandam as palavras, daí a necessidade de dissipar a homonímia, e é por isso que a palavra pode servir de órganon. No phármakon, ao contrário, a relação de sutura é inversa, é o sentido que comanda a referência, a palavra produz a coisa. De forma paradigmática, o Tratado do não-ser parece-me inteiramente fabricado para ao mesmo tempo demonstrar e fazer com que o ser não seja nada senão um efeito de dizer. Para não retomar a análise, lembrarei uma única frase, emblemática da “logologia” por diferença com a ontologia; aquele que fala não diz o que é (o verdadeiro), tampouco aliás o que não é (o falso): "ele diz um dizer". Falar lógou chárin é, no nível da análise a que chegamos agora, compreender que o lógos não significa a phýsis — não é a referência que dá o sentido ou ainda os sofistas não são meteorologistas, fisiólogos, ontólogos, a sofistica não é uma ciência da natureza. É compreender, por outro lado, que as palavras não exprimem tampouco o mundo interior do sujeito falante, os pathemata tês psyches, suas idéias ou suas sensações que se estabilizariam por isso mesmo e se tornariam comunicáveis — o sentido não é a impressão sensorial ou a imagem verbal, a sofística não é uma psicologia. E entretanto o sofista, que não faz nem uma ciência da natureza nem uma ciência da alma, não se contenta, como o exemplar Crátilo, em agitar o dedo.
A melhor forma de caracterizar mais adiante a relação que se instaura entre discurso sofístico e mundo é lida através dessa frase do Tratado, na versão dada por Sextus Empiricus (Adversus mathematicos, VII, 85), que extraio brutalmente demais de seu contexto: "Se é assim, não é o discurso que indica o exterior, mas o exterior que revela o discurso" (ouch ho logos toú ektós parastatikós estin, allà tó ektós toú lógou menytikàn gínetai).
Tudo aí deveria ser comentado, mas insistirei no momento sobre gínetai: a significação do lógos só pode ser apreendida em seguida, posteriormente, gínetai e não mais estin, pelo efeito — mundo que produziu performance discursiva. Compreende-se que um desses efeitos-mundo possa ser o efeito retórico sobre o comportamento do ouvinte, mas esse é apenas um dos seus efeitos possíveis. A menos, como diz Jean-François Lyotard, que não se amplie a idéia de sedução: "Não é o destinatário que é seduzido pelo destinador. Este, o referente, o sentido não sofrem menos do que o destinatário a sedução exercida". O discurso sofístico não é somente uma performance no sentido epidêitico do termo, é de parte a parte um performativo no sentido austiniano do termo: "How to do things with words". O discurso sofístico é demiúrgico, fabrica o mundo, faz com que ele aconteça. [Tradução: Como fazer coisas com palavras.].
A segunda palavra sobre a qual gostaria de insistir é menytikón, e aí não explico, gloso e extrapolo. O termo nos introduz, sem dúvida, segundo uma das etimologias mais verossímeis, no domínio da mântica. O exterior faz-se o "revelador" do discurso, no sentido em que o que acontece realiza, preenche a predição. O que acontece, o que quer que aconteça, pois o que quer que aconteça, uma coisa ou seu contrário, o oráculo e o sonho terão sempre razão. Não é uma questão de destino, é simplesmente uma questão de lógos: que o filho mate seu pai, isso acontece quer ele o mate ou não. Freud nos ensinou isso através da história de Édipo, mas Heródoto também, com o sonho do rei Astíage.
A inclinação da segunda sofística pelos oráculos e os sonhos, os interesses nevróticos de Élio Aristides e a profusão dos escritos sobre a interpretação dos sonhos (lembremo-nos da tão bela etimologia que dá Artemidoro: ter um sonho, óneiros, é ón eireîn, predizer o ser), não indica simplesmente o refúgio na superstição do sincretismo ou do politeísmo ultrapassado por um deus único. É também a sensibilidade ao performativo. A comparação que faz Filóstrato no início do livro I (480-491) entre filosofia e "mântica humana" de um lado, antiga sofística e a arte profética (thespioidós) e oracular (chresteriodes) é a esse respeito fundamento da paideía, no vínculo de ambas com a tragédia. Intricação entre literatura, pedagogia e política, eis aonde o plásma nos conduz. O efeito-mundo se produz em dois níveis: o da fabricação do mundo humano, do consenso que constitui a cidade, cultura em oposição à natureza, o da ficção literária, do patrimônio que constitui a identidade de um povo, cultura em oposição à incultura, certamente, para servir de ponte entre os dois, com a paideía, criação do filhote humano e educação do pequeno grego. É assim que a demiurgia do lógos esboça o espaço das duas sofísticas ao mesmo tempo.
De início, a literatura. Gostaria de voltar à censura que Aristóteles não cessa de fazer a Górgias, de ser por demais poeta para ser bom orador. Não se trata somente da mistura dos estilos (por demais xenikón, por demais "estrangeiro" para ser claro), mas da mistura das potências do lógos: efeito sobre o outro e efeito-mundo, ficção. Pois o caráter demiúrgico do lógos sofístico poderia também ser chamado de "poesia" no sentido etimológico do termo — como Platão o define: operação que faz passar do não-ser ao ser. Exceto que a poesia, tal como é escrita pelos poetas, é apenas parcialmente sofística: seria antes constituída por uma tensão entre filosofia e sofística. Seu lado filosófico é seu liame com a verdade; verdade não científica certamente, mas inspirada e garantida pelas Musas: esse entusiasmo não tem nada de demiúrgico, ele é como em íon, obediente e limitado. O poeta que, segundo Aristóteles, representa as ações deve dar a essência ou o universal das coisas de que fala e fazê-las passar à memória "tais como nelas mesmas a eternidade as transforma" (sem Píndaro, não há Jogos olímpicos). A poesia é assim, diz Aristóteles, "mais filosófica do que a história". E se citei Mallarmé, é porque a relação poética com a verdade não me parece ter sido apaixonante. Os filósofos fazem como os egípcios, os caldeus e os indianos, eles fazem hipóteses a partir das estrelas (myríois astéron stochazómenoi): tomam a natureza como ponto de partida e tiram delas toda sua ciência de futurólogos. Os sofistas, ao contrário, fazem como a Pítia, falam de início, dizem palavras plenas de nobreza e de confiança, e são assim não humanos mas demiúrgicos; a "clara apreensão do ente" à qual eles chegam é sempre, e muito explicitamente, somente um efeito de estilo. [Osório diz: poesia]. [Filóstrato acaba de citar os inícios habituais dos discursos sofísticos: "Eu sei, "Estou consciente de...". Acrescenta: "É um estilo (idéa) desse gênero, próprio a seus exórdios, que faz ressoar antecipadamente numa nobreza dos discursos, um pensamento, e uma clara apreensão do ser". É por isso que mantenho minha interpretação de ênfase “logológica”, face à que propõe A. Brancacci (Seconde sophistique, historiognaj e e philosop te, infra p. 91, 96 e nota 11), embora esteja evidentemente disposta a retomar, por minha conta, as frases que se seguem em seu artigo, em particular: "Se então lhe perguntássemos o que distingue a sofística da filosofia, Filóstrato só poderia ter uma resposta: a maneira diferente de tratar os discursos".]
É a essa demiurgia discursiva que se aplica o termo de plásma. Uma das primeiras aparições de plásso com esse sentido deve ser encontrada ainda no Elogio de Helena. Exatamente antes da passagem sobre o tempo, Górgias evoca as duas artes, as artes gêmeas da feitiçaria e da magia (goetheía kai mageía), sendo uma "enganos da alma" (psyches hamartemata), a outra "ilusões da opinião" (dóxés apatemata), e que geralmente foram identificadas, uma como poesia, a outra como a retórica. Ele evoca então todos os que persuadiram e persuadem, "modelando", "forjando" "fabricando", plásantes, como Prometeu modela as criaturas, um pseudê lógon.
Um fragmento de Górgias pode ajudar a medir a distância que separa o pseûdos completamente negativo que a filosofia imputa à sofística e esse pseûdos que é o produto da atividade plástica, a ficção. Jogar esse "jogo" tão demiúrgico quanto o da criança heracliteana (o paígnion que é o Elogio para seu autor, § 21), não é insolência ou ingenuidade, tagarelice ou imaturidade, mas sabedoria e justiça: "Aquele que ilude é mais justo do que aquele que não ilude, e aquele que é iludido mais sábio do que aquele que não é iludido" (B 23). "Aquele que ilude é mais justo, acrescenta, porque realiza o que prometeu, e aquele que é iludido mais sábio, porque aquele que não é insensível é fácil de ser afetado pelo prazer dos discursos". Esse fragmento nos foi transmitido por Plutarco como se aplicando à tragédia. Justiça, fundamento da cidade, sabedoria, realmente modificada pela modernidade, sob nenhuma forma, nem romântica, nem surrealista. Mallarmé é filosoficamente poeta quando opõe em Crise de vers à reportagem universal (o órganon degradado), uma ontologia reencontrada por detrás das aparências fenomenais: dizer "idéia mesma e suave, a ausente de qualquer buquê" é ser, loucamente, platônico. "Poesia e verdade sendo, como sabemos, sinónimos”.
Mas a poesia é também sofística. O pastor hesiódico o disse desde o início, no prólogo da Teogonia, fazendo falar as Musas: "Sabemos dizer muitas mentiras bem semelhantes às realidades" (pseúdea... etymoisin homoîa, v. 27), mesmo se elas sabem também, "quando o querem", "entoar verdades" (alethéa gerysasthai, v. 28). É o problema mesmo que coloca o "verossímil aristotélico. Homero, diz Aristóteles (Ret., 111, 24), acima de tudo "ensinou aos outros a dizer mentiras como se deve (pseúde légein hos dei). Não as mentiras necessárias para que aqueles que as ouçam se tornem melhores, purgados. Mas as mentiras como é necessário para que se acredite nelas. Homero é o mestre do "paralogismo": sabe apresentar um fato ou um acontecimento que sabemos ser verdadeiro, para que se conclua daí a existência de um primeiro que seria causa e que entretanto nunca aconteceu, ajudado nisso por um estilo que desvia a atenção para suas próprias belezas, e apaga o absurdo por sua clareza e sua simplicidade. É a maneira, fantástica, que preconizam e praticam Lewis Carrol ou Borges: incluir pequenos fatos verdadeiros e ter um estilo limpidamente mimético para descrever o impossível. [Osório diz: seria a realidade fantástica?]
Homero sofista, muitos textos deveriam ser relidos nessa perspectiva. Em todo caso, um nos obriga a isso, o Discurso XI de Díon Crisóstomo: De Tróia, que ela não foi tomada, onde ele remonta, paralogicamente, de fato em fato, até essa certeza que lhe vem aliás de fonte certa, — o próprio Menelau, — de que era Páris o esposo legítimo. Homero é o maior mentiroso do mundo, diz Díon, simplesmente porque não sabe sustentar suas mentiras até o fim. Basta lê-lo e sabe-se quando ele conta e quando inventa. Por conseqüência, é muito voluntariamente que os gregos se deixavam enganar pelo Ilíada e pela Odisséia porque a história os adulava e lhes era útil. Bem entendido, a verdade histórica restabelecida por Díon é a mais desenfreada das ficções. Assim como sua conversão à filosofia, esse é provavelmente um truque de sofista, mas que tem o extremo interesse de mostrar que poesia e sofística são indiscerníveis quando se mantém a posição aristotélica, que consente ao verossímil ad majorem veritatis gloriam. [Osório pergunta: quem é?]
Gostaria de fazer uma segunda observação, sempre a propósito da censura aristotélica, e que consiste em uma citação de Roland Barthes. Em seu artigo sobre a antiga retórica, ele insiste no fato de que a retórica de Aristóteles se define por oposição à poética e que todos os autores que reconheçam essa oposição poderão ser classificados na retórica aristotélica: "Esta cessará quando essa oposição for neutralizada, quando retórica e poética se fundirem, quando a retórica se tornar uma téchne poética (de criação)". E, acrescenta, "essa fusão é capital, pois está na origem da idéia mesma de literatura". Podemos subscrever a essa definição da literatura como fusão da retórica e da poética, mas, bem entendido, só pode "fundir-se" aquilo que me foi distinguido. Retórica e poética não se fundiram na primeira sofística, estão em fusão no lógos demiúrgico (seria necessário aqui colocar o problema do lógos pré-socrático em geral e do estatuto do sofistico no pré-socrático). Por outro lado, essa fusão em literatura se opera certamente com a segunda sofística. Esta é constantemente caracterizada por sua mímesis rhetoriké, que Bompaire e Reardon propõem traduzir por "cultura literária". Ao mímesis rhetorike é a apropriação, por uma imitação que se desenvolve ao longo do curso escolar, de todas as obras da antiguidade clássica: a poesia, a filosofia, a história, a retórica propriamente dita e, com ela, a deliberação política, são assim absorvidas como espécies desse gênero universal que constitui a retórica geral.
Mas o que caracteriza essa retórica mimética é que ela produz o novo, é inventiva, criadora. É preciso ler Reardon para medir a importância, ao lado de um florescimento dos gêneros antigos, da autonomização progressiva de gêneros novos. O mais violentamente novo dentre eles é certamente aquele que se tornará literatura por excelência, o romance. Não entrarei nas polêmicas que, através de Rhode, Perry, Reardon, Hagg visam a atribuir ao romance uma origem cronológica e origens tema-[p. 265] ticas e estilísticas: epopéia; diálogo platônico, dizia Nietzsche; elegias eróticas alexandrinas; narrativas populares egípcias. Como diz Perry a propósito da tese dos outros.
By the some method and logic by which romance is derived from school exercises, one may derive the word "smile" from the word "mile"; the former contains all the elements of the latter, plus "s", witch may be explained as due to "development". (Tradução: Pelo algum método e lógica pela qual o romance é derivado de exercícios escolares , pode-se derivar a palavra " sorriso" da palavra " milha" ; O primeiro contém todos os elementos deste último , além de "s" , bruxa pode ser explicado como devido ao "desenvolvimento").
Gostaria simplesmente de enfatizar os grandes traços encontrados, por Perry e Reardon do parentesco entre segunda sofística e romance. Eles hesitam, tanto um quanto o outro, em tomar as coisas de fora, como se se tratasse de dois conjuntos heterogêneos entrando às vezes em superposição; ou de dentro, como se se tratasse do desdobramento de um mesmo movimento, de uma mesma força. Os indícios principais de uma proximidade são a contemporaneidade, a identidade das pessoas (Élio Aristides, Filóstrato, Luciano, escrevem usando todos os gêneros); a interpretação dos próprios gêneros: como observa Reardon, "a acreditar em Filóstrato, Apolônio, foi um sofista consumado"; o próprio romance é um pot-pourri de exercícios retóricos, dialéxeis, melétai, synkríseis e certamente as famosas ekphráseis, essas "descrições", de quadros por exemplo, onde se fazem ler em espelho em um objeto sensível a intriga e a estrutura do próprio romance. Último traço: o fato de que os melétai e o romance parecem conhecer a mesma voga, junto ao mesmo público, em uma coexistência intrigante do cultivado e do povo (Reardon evoca os drugstore paperbacks, que caracteriza pelo termo de sofisticação).
Mas creio que se pode ir muito mais longe no parentesco. Desde que se tome como ponto de partida não mais a diferença aristotélica entre retórica e poética, não mais a diferenciação — ela também aristotélica e subseqüente — em gêneros, mas o lógos sofístico em sua eficácia sobre o outro e sobre o mundo, parece-me que se compreendem bem mais facilmente, e justamente, a força do liame entre sofística e romance.
De uma certa forma, Perry e Reardon o dizem, mas, parece-me, sem saber muito bem que o dizem. Assim, quando Perry tenta definir o indefinível romance, ele antecipa, em uma definição por demais sincrética para não ser contraditória, esse elemento, para ele (um) entre outros, mas a meus olhos, essencial: o romance é feito, diz, “for its own sake as a story”. Proponho traduzir essa observação por lógon chárin. E Reardon, exortando a si mesmo a propósito de Élio Aristides, a não adormecer cedo demais, adianta por seu lado que “é difícil mas não vão, desembaraçar-se da noção de que a literatura deve dizer alguma coisa - semaínein ti. (Traduzir: para seu próprio bem como uma história).
Um pseûdos que se sabe pseûdos e se dá como tal em uma apáte livremente consentida, um discurso que renuncia a toda adequação ontológica para seguir sua demiurgia própria, lógou chárin e não semaínei ti, é bem a "ficção" (plásma) romanesca.
Alem disso, é evidente nessa perspectiva que a popularidade do romance tenha a ver com o aprendizado da eficácia do lógos através da paideía, nas escolas em que, como lembra Marrou, o diretor era sofista. Poder-se-ia mesmo adiantar que a popularidade do romance é um avatar literário do consenso político. É aqui, sem dúvida, que é maciçamente necessário reintroduzir as condições históricas propriamente ditas; de um lado, a Atenas do século V, a construção das cidades e o jogo das forças democráticas; de outro, o mundo romano de Adriano no final dos Severo, a sujeição política das cidades gregas, livres essencialmente para se entregar ao novo pecado grego, a corrida às titularidades, mas, simultaneamente, sua dominação cultural sob os imperadores filelenos, a de sua língua, de toda sua civilização. Dois mundos pois que descreve P. Vidal-Naquet no Posfácio a Arriano "entre dois mundos", a cultura se estendendo ainda mais longe do que a paz, ainda mais longe do que a própria natureza (Todo mundo não vê o mesmo céu — diz Díon - mas mesmo os indianos conhecem Homero).
Mediante isso, a primeira sofística produz pelo lógos “a força do fraco” (para retomar a expressão de J. F. Lyotard): a cidade democrática que só existe pela criação contínua da homónoia cara a Ântifon. É a lição do mito de Protágoras, com a condição de acrescentar ao lógos que faz parte das artes prometeicas, a sabedoria e a justiça que são um dom suplementar de Zeus. E a segunda produz, como testemunha a retomada do mito por Élio Aristides e a série de decalagens muito sutis que ele aí introduz (Ret., II, 394-402), não a partilha do lógos e o nivelamento, graças a ele, do forte e do fraco, mas uma mestria de professor, que se apresenta como o modelo e a condição da dominação política. Pois dessa vez o lógos por si só constitui o dom direto de Zeus, que Prometeu o filantropo pede que Hermes não reparta entre todos, como as bases do teórico, ou os olhos as mãos e os pés, os "órgãos" pois. É antes necessário selecionar "os melhores, os mais bem nascidos, aqueles que têm a mais forte natureza" para lhes confiar o dom retórico, a fim de que eles tenham como salvar os outros. O lógos assim repartido torna-se para a comunidade não um phármakon, mas um phylakterion um amuleto, um escudo, ou, segundo a etimologia, “o guardião que não dorme jamais". Os melhores retores são assim, hierarquicamente, os melhores professores e os verdadeiros chefes políticos, em um amálgama que mascara, não sem ideologia, a privação de toda eficácia política direta, concreta: é assim que na escola, com as melétai, faz-se, segundo as palavras de Vidal Naquet, "ficção-política". [O que é phylakterion?]
A segunda sofística, ela também, exige explicitamente ser colocada em relação com a história. Volto pela última vez ao texto fundador de Filóstrato. Ele nos dizia que a antiga sofística é uma filosofia em ato, realizada, que trata minuciosamente da ética, da religião ou do kósmos. A segunda sofística "faz a hipotipose", quer dizer, descreve em linhas gerais, produz a generalidade de tudo aquilo de que a história se ocupa, os pobres, os ricos, os nobres, os tiranos, e mais geralmente todos os temas que podem assim se inserir sob um nome (tàs es ónoma hypothéseis, 481). Da mesma forma, para Filóstrato, que a antiga sofística realizava a filosofia, também a segunda sofística realiza a história fazendo passar, se se quer, da investigação empírica ao tipo ideal. Chega-se a uma verdadeira analogia de proporção: primeira sofísfica/filosofia = segunda sofística/história, ou: historia est quae philosophia fuit. Se a história devia ser inclinada para o lado da primeira sofística face à filosofia, é agora a filosofia — sobre a qual Reardon nos diz que "ela figura no pequeno equipamento do retor" — que deve ser colocada do lado da segunda sofística face à história. É agora o olhar historiador que lança sobre a sofística e sobre seu parentesco filosófico e literário a acusação de pseûdos. Perry o enfatiza vigorosamente, para responder à tese de Ludvidovsky segundo a qual "o romance foi na origem somente uma doença da historiografia": "o romance só é pseûdos visto da historiografia; visto do romance, ele é plásma" .
Desse novo conflito, é testemunho o texto de Luciano, a única obra antiga "que se deseja ensaio sistemático sobre a história", Como escrever a história. Luciano diz, sem rodeios: "A história não admite a mentira (pseûdos), mesmo a mais leve, mais do que o conduto chamado traquéia-artéria pelos discípulos dos médicos pode receber a bebida que aí se induz" (27). E assim como a filosofia devia visar à essência, a história deve ir ao essencial, escolher os fatos, "ver a rosa ao invés de considerar atentamente os espinhos colocados próximos da haste" (28). Narrador do que foi, imitador tão perfeito que se faz esquecer, o historiador — cujo julgamento deve ser "espelho brilhante sem mancha e bem centralizado" (50) — se opõe ponto a ponto ao poeta que, à diferença de Tucídides "tem o direito de derrubar com um traço de pena a fortaleza dos Epípolas". "O historiador não é poeta, é narrador, e quando os atenienses são vencidos em um combate naval, não é ele quem afunda as naus". Dito de outra forma, o historiador não é romancista. Como escrever a história deve ser lido tendo na outra mão A história verdadeira, Verae historiae, cujo título, que joga com a palavra história, por si só já nos faz compreender que Luciano é efetivamente "a sophist's sophist", segundo as palavras de Graham Anderson, e que sua ironia põe em abismo a sofística. "Decidi mentir, porém com mais honestidade do que os outros, pois há um ponto sobre o qual direi a verdade, é que conto mentiras": com os mesmos meios paradoxais e jocosos do humor judeu ("Você diz que vai à Cracóvia para que eu creia que vá a Lemberg. Mas sei bem que você vai verdadeiramente à Cracóvia. Por que então mentir?") a história verdadeira é um pseûdos que se dá como pseûdos: puro plásma. "Vou contar aventuras que não me aconteceram e que não extraí de ninguém; acrescento a elas coisas que não existem de forma alguma e que não podem ser: é preciso então que os leitores não acreditem absolutamente nelas"; e eis-nos transportados, já que "cada detalhe dessa história faz alusão, não sem paródia, a um ou outro dos antigos poetas, historiadores, filósofos", assim como alusão, se ouso dizer, aos romancistas do futuro, como Ulisses "que abriu o caminho para esses timos de charlatanice", mas também como Cirrano na lua e como Pinóquio na baleia, em uma navegação historikós kaì erotikós, romanesca.
Meu intuito foi o de mostrar como, desde que nos colocamos no ponto de vista do lógos sofístico considerado como lógos lógou chárin, produtor retórico de um efeito sobre o outro e produtor poético de um efeito-mundo, a relação entre primeira e segunda sofística não é apenas tolamente mimética, é também filosoficamente instrutiva. A primeira sofística face à filosofia opunha ao discurso conforme ao ente, ou ao ser do ente, um discurso criador de consenso cultural. É finalmente esse próprio deslocamento, da adequação à homónoia, que se lê em seguida no deslocamento da oposição: a história em lugar da filosofia face à segunda sofística. Pois o pólo do verdadeiro não é mais representado pelos entes (ónta), mas, e é bem esse o efeito óbvio da antiga sofística, por aquilo que acontece, na medida em que se faz, em que se age, em que se produz, em que se utiliza: os gignómena, os prattómena, as práxeis, os prágmata, os chrémata. Podemos nos arriscar a designar de outra forma esse deslocamento: teríamos passado, ao mesmo tempo, da ontologia às ciências humanas e da sofística à literatura?” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 209, 211, 214, 215, 216, 217, 242-243, 244, 245, 246, 247, 249, 251, 252, 253, 254, 255, 256, 257, 258, 259, 260-270).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.75 – Como a Sofística vê a Filosofia.
É Barbara Cassin quem diz:
“Se a filosofia quer reduzir a sofística ao silêncio, é sem dúvida porque, inversamente, a sofística produz a filosofia como um fato de linguagem.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 10).
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(uma biografia do conhecimento)
41.74 - Fenomenologia e o falso.
É Barbara Cassin quem diz:
“Mesmo se o termo "fenomenologia", como acentua Heidegger, só tenha surgido historicamente nos século dezoito, em Lambert, ele é historialmente grego. Phainômenon, particípio médio de plaíno, "o que se mostra, por si, a partir de si", e lógos, "dizer". No parágrafo 7 de Sein und Zeir Heidegger lembra que phaíno vem de phos, "a luz". Mas, na verdade, existe já aí um nó etimológico ainda mais apertado, Chantraine nota, com efeito, que phainô é formado do radical sânscrito bha, dotado "de ambivalência semântica", pois significa ao mesmo tempo "esclarecer, brilhar" (phainoi, (phami)), e "explicar, falar" (phemí, fari, em latim): dito de outra forma, já existe co-pertencimento do dizível e do brilhante, já existe fenomenologia só em fenômeno.
Para Aristóteles, como enfatiza Heidegger um pouco mais acima (p. 50 fr. = 32 a 11.), remetendo em particular aos capítulos 1 a 6 do De Interpretatione, — “'dizer', légein, é apophaínesthai, 'fazer ver' (phaínesthai) a partir daquilo mesmo sobre o que ele discorreu (apó)”: "No discurso (apóphansis), na medida em que ele é autêntico, o que é dito resulta daquilo de que se fala". É por isso que "fenomenologia quer... dizer apophaínesthai tà phainómena: fazer ver de si mesmo o que se manifesta, tal como, de si mesmo, isso se manifesta" (p. 52 = 34).
Ora, essa compreensão do lógos implica que se esteja, simultaneamente, em posse de um conceito completo de fenômeno. O "tal como" implica, com efeito, que se compreenda o fenômeno como "o que (a) parece como", aparição, e aparência fundada nessa aparição.
Tudo depende, para a compreensão do conceito de fenômeno, de ver bem como as duas significações do que se designa como phainómenon (o "fenômeno" como o que se mostra e o "fenômeno" como aparência) estão unidos pela própria estrutura do conceito. Pois é apenas na medida em que alguma coisa pretende, quanto a seu sentido, se mostrar, quer dizer, ser um fenômeno, que essa alguma coisa pode se mostrar como o que ela não é, pode somente "parecer como" (p. 46 = 29).
É assim que Aristóteles coteja: "De um lado a sensação dos próprios é sempre verdadeira e pertence a todos os animais; mas de outro, é possível também percorrer pelo pensamento (dianoeîsthai), enganando-se (kaì pseûdos), e isso não pertence a ninguém que não tenha também o lógos" (427b 14).
É então efetivamente o mesmo "como" que compartilham a aparência-aparição, a sintaxe lógica e o percurso da alma: dito de outra forma, a fenomenologia só começa com a possibilidade do pseûdos.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 227-228, 229).
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(uma biografia do conhecimento)
41.73 - Fenomenologia - clareza do seu discurso - contradição.
É Barbara Cassin quem diz:
“De fato, o estilo, o modo de-expressão, ou, segundo a bela definição da léxis proposta pela Poética, "a manifestação do sentido por meio da colocação em palavras" (16, 1450b13-15), que convém à apódeixis, é sempre caracterizada por sua "clareza" (tà saphés). Isso é manifesto no caso da demonstração científica. Assim, as Segundas Analíticas apresentam as definições claras e os raciocínios concludentes: "Da mesma forma que, nas demonstrações, é preciso que haja clareza" (13, 97b31s.). Ora, chega-se à clareza partindo dos singulares, reagrupando-os em espécies e depois em gêneros, encontrando pois o comum, para alcançar um universal que não seja nem homônimo nem metafórico, mas, como indicam por sua vez os Tópicos (IV, 3, 123a33s., ou VI, 2, 139b 32ss.), kyríos, "propriamente dito"; assim acontece por exemplo com a "temperança", sophrosyne, a virtude por excelência, que, contrariamente ao que pode dizer Platão, não e uma harmonia", já que a harmonia "propriamente dita" só tem lugar entre os sons. Nomes próprios, definições claras, silogismos concludentes: o discurso que ajuda o fenômeno a se desvelar deve ser transparente", a clareza é o estilo do lógos enquanto fenomenológico: enquanto ele desaparece diante desse fenômeno que ele faz ver.
A apódeixis cai também, lembramo-nos, sob a jurisdição da retórica, já que é prova maior e parte essencial de qualquer exposição. O ponto de partida é ainda o mesmo: "(...) a excelência do estilo, é a clareza. Eis aqui um índice: o discurso, se não mostrar, não fará seu trabalho" (Retórica, III, 2, 1404b1-3, remetendo ao início do capítulo 22 da Poética). Só que, na Retórica como na Poética, há um "e": o estilo deve ser claro "e não banal", "não trivial" (me tapeine). Ora, o que salva um estilo da trivialidade, são os tropos e certamente o primeiro de todos, a metáfora. O estilista é assim tomado em um double-bind: é necessário que seja claro — sem metáfora —, mas sem trivialidade — com metáfora. Como se a demonstração se dilacerasse entre a clareza pura mas trivial do conhecimento científico e a clareza enfeitada mas contraditória da poesia e da retórica.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 240).