Anônimo de Jâmblico.
O texto foi descoberto por Friedrich Blass em 1889, incluído no Protréptico de Jâmblico, neoplatônico do século III d. C., obra que reunia materiais heterogêneos de múltiplas origens, entre os quais passos importantes do Protréptico de Aristóteles. Blass demonstrou que cerca de dez páginas do texto de Jâmblico provinham de uma fonte não identificada, datada do final do século V, começo do século IV a. C, focando a problemática oposição entre o que existe por natureza e o que existe por convenção e veiculando pontos de vista moderados, próximos das concepções sofísticas em voga. Na dita controvérsia, o Anônimo defende a relevância da ordem do nomos, em moldes complementares com o que advém da physis, insistindo no fato de que os dons naturais cabem aos indivíduos por sorte ou acaso (tyche), enquanto tudo o que está relacionado com a instrução e as diversas competências depende do esforço próprio de cada um. A natureza tem de ser completada pela educação, e o denominado Anônimo de Jâmblico constitui uma espécie de manual de sabedoria prática, contendo uma pequena súmula acerca da arte de ter sucesso na vida.
(…) O Anônimo alerta para a diferença entre a posse de bens e de competências e os princípios que devem orientar o respectivo uso, pois os meios disponíveis são em si mesmos indiferentes, tornando-se bons ou maus, consoante a instrumentalização que deles se faça, com vista a determinados fins.
À partida, o desejo de segurança comanda a existência individual e coletiva, e os homens são obrigados a viver em sociedade para ultrapassarem as suas fragilidades e limitações. O autor tece considerações sobre o apego à vida e ao dinheiro, salientando que a abastança econômica proporciona uma margem de garantia, em relação às ameaças exteriores das vicissitudes da doença, da velhice e de outras eventuais adversidades. A maioria dos seres humanos não consegue controlar-se em relação à avidez de riqueza e à preocupação de salvaguardar a própria vida. No entanto, no plano pessoal, importa acima de tudo ser capaz de autodomínio. No plano intersubjetivo, observar as leis estabelecidas constitui o mais valioso esteio da vida comum, assegurando a estabilidade e a paz sociais.
Anônimo de Jâmbiclo
(1) Quem quiser levar a um fim perfeito uma qualidade, seja ela sabedoria, virilidade, fluência oratória ou virtude, quer na totalidade quer numa das partes, ser-lhe-á possível empreendê-lo a partir do seguinte. (2) Em primeiro lugar, é preciso que tenha uma determinada disposição natural, o que é concedido pela sorte. As seguintes exigências, porém, já dependem do próprio homem: ser apaixonado pelo belo e pelo bom e amar o trabalho, tanto começando a aprender o mais cedo possível como sendo perseverante na aprendizagem durante muito tempo. (3) Mas, se lhe falta uma única destas condições, não lhe é possível levar nada à excelência; se possuir todas elas, aquilo que puser em prática torna-se inexcedível.
(1) Por conseguinte, quem quiser granjear renome entre os homens e aparecer tal qual é deve iniciar-se de imediato, enquanto é novo, e praticar essa qualidade de maneira constante e não de forma diferente consoante as ocasiões. (2) Cada uma destas qualidades, com a sua longa duração, começada cedo e desenvolvida à perfeição, alcança um sólido renome e fama pelos seguintes motivos: já inspira uma confiança incontestável da qual está longe a inveja humana. É por causa da inveja que os homens não valorizam algumas das suas ações nem falam delas como seria razoável e mentem sobre outras, com censuras que vão contra o que é justo. (3) Não é grato aos homens prestarem honras a outrem (pensam que estão a ser privados de algo), mas, se forem submetidos pela própria necessidade e tiverem sido quebrados pouco a pouco, passado muito tempo, acabam por se entregar aos panegíricos, embora contra a sua vontade. (4) Ao mesmo tempo, também não duvidam de que, se um homem é tal como aparece, arma emboscadas e caça o renome com o objetivo de defraudar e que se glorifica de tudo aquilo que faz, procurando atrair os homens. A virtude praticada daquela maneira que eu referi gera confiança nela própria e boa reputação. (5) Uma vez subjugados pela força da evidência, os homens já não conseguem manifestar inveja nem pensam sequer que estão a ser enganados. (6) E ainda há a questão do tempo, que, quando está presente nos trabalhos e atividades públicas, consolida o que está a pôr em prática; um curto período de tempo não pode conseguir isto. (7) Quando uma pessoa aprende e estuda uma arte que se exprime por palavras, em pouco tempo não será inferior àquele que a ensina. Mas para quem começou tarde não é possível levar à perfeição a virtude que provém de muitas ações; precisa essa pessoa, pelo contrário, de ser alimentada e crescer com a virtude, afastando-se do mal quer em palavras quer em hábitos e praticando ações dignas com muito tempo e dedicação. (8) E, ao mesmo tempo, a seguinte desvantagem junta-se à glória conseguida em pouco tempo: os homens não recebem de bom grado aqueles que subitamente e em pouco tempo se tornam ricos, sábios, bons ou viris.
(1) Quando alguém que aspira a algum destes bens consegue levá-lo a bom termo, quer se trate de eloquência, de sabedoria ou de força física, deve usá-lo para fins bons e conformes às leis. Mas, se usar o bem de que dispõe para fins injustos e contrários às leis, ele torna-se o pior de todos os males e a sua ausência é preferível à sua presença. (2) Assim como aquele que possui uma destas qualidades por se servir dela para fins bons é bom em absoluto, assim também aquele que as usa para fins perversos é o pior que se possa imaginar [em absoluto]. (3) Deve examinar-se por que palavra ou ação se tornará excelente quem aspira à virtude completa. Consegui-lo-á o homem que for útil ao maior número possível de pessoas. (4) Quem beneficiar os vizinhos com dádivas de dinheiro será forçado a tornar-se de novo mau, quando acumular mais dinheiro. Além disso, não conseguirá acumulá-lo numa abundância tal que não o esgote com as suas dádivas e benesses. E esta segunda desvantagem advém de ter acumulado dinheiro, se acontecer ficar pobre, depois de ter sido rico, e sem nada, depois de ter tido posses... (5) Como é que alguém poderá beneficiar os outros sem distribuir dinheiro, mas por um outro meio e sem recorrer ao vício, mas à virtude? E, mais ainda, como é que se presenteia sem se perder a capacidade de dar? (6) Isso acontecerá da seguinte maneira: se se salvaguardarem as leis e a justiça, eis o princípio que congrega e mantém unidas as cidades e os homens.
[A prossecução da excelência traduz-se no plano altruísta do serviço dos outros, discutindo-se a maneira mais eficiente de concretizar esse propósito. O autor denuncia o equívoco de pretender beneficiar o próximo com presentes e dádivas em dinheiro. O único princípio que permite assegurar a unidade no âmbito das comunidades políticas é o respeito pelas normas justamente instituídas.]
(1) É necessário que todo o homem exerça um grande autodomínio sobretudo sobre as suas paixões. Será particularmente refreado, se for superior ao dinheiro, ao qual todos sucumbem, e se, sem poupar a vida, se ocupar ativamente do que é justo e procurar sempre a virtude. Em relação a estas duas exigências a maioria dos homens não tem força de vontade. (2) Por causa disso mortificam-se da seguinte forma: estão apegados - à alma, porque é a alma que é a vida. Poupam-na e reclamam-na por amor à vida e pela convivência com aquela desde o crescimento. Estão apegados ao dinheiro pelas razões que enunciaremos e que os assustam. (3) Quais são elas? As doenças, a velhice, os danos súbitos — não me refiro aos danos que advêm das leis (é possível tomar precauções em relação a estes e evitá-los), mas refiro-me a danos como os incêndios, as mortes de familiares, as perdas de gado e outras desgraças que pesam, umas, sobre o corpo, outras, sobre a alma, outras, sobre os bens. (4) Por causa de tudo isto, para disporem de dinheiro para enfrentar estas situações, todos os homens aspiram à riqueza. (5) Mas existem também outros fatores que impelem os homens, não menos do que os que antes mencionamos, a ocupações que visam dinheiro: a rivalidade pelas honras entre eles, a inveja e situações de domínio, em que se considera de grande importância o dinheiro, porque ajuda a tais fins. (6) O homem verdadeiramente bom não procura a glória, com ornamentos que não lhe pertencem, mas com a sua própria virtude.
(1) A respeito do apego à alma poderíamos acreditar no seguinte: se acontecesse ao homem viver livre da velhice e da morte para sempre, desde que não fosse morto por outrem, haveria um perdão pronto para o que poupasse a alma. (2) Mas, uma vez que cabe à vida que se prolonga a velhice, que é bastante molesta para os homens, e a não imortalidade, prova uma grande ignorância e convivência com motivos e propósitos perversos poupar a alma com desonra em vez de deixar [uma glória] imortal no seu lugar — um renome eterno e sempre vivo, no lugar de uma alma perecível.
(1) Além do mais não nos devemos lançar na procura da nossa vantagem, nem considerar que o poder ao serviço da vantagem é uma virtude, enquanto a observância das leis é cobardia. Esta ideia é muito perversa e dela provém tudo o que se opõe ao bem: perversidade e dano. Se os homens nasceram naturalmente incapazes de viver sozinhos, mas se associaram uns aos outros, sob a pressão da necessidade, e se descobriram todo um modo de vida e artifícios com ele relacionados e se não é possível conviverem uns com os outros e viverem sem o respeito pelas leis (seria para eles um castigo maior do que viverem sós), pode concluir-se que, por causa destas necessidades, a lei e a justiça governam os homens e que não podem, de maneira nenhuma, estar sujeitas a modificações, pois foram firmemente estabelecidas pela natureza. (2) Se existisse alguém que, desde o nascimento, fosse invulnerável, inabalável pela doença, impenetrável ao sofrimento, resistente como o aço e de porte extraordinário no corpo e na alma, talvez se pensasse que o poder fundamentado na vantagem bastaria a um homem desta envergadura, com base na ideia de que semelhante criatura ficaria impune mesmo que não obedecesse à lei. Mas quem pensa assim não pensa corretamente. (3) Se existisse uma pessoa tal, pois na realidade não poderá existir, poderia sobreviver se se tornasse aliada das leis e do justo, reforçasse estes princípios e usasse a sua força para os defender, a estes e àquilo que os protege; de outro modo, uma pessoa desta envergadura não conseguiria resistir. (4) Parece que todos os homens se mostrariam hostis perante um homem de tal natureza e que, pelo seu respeito pelas leis e pelo seu grande número, o excederiam com expedientes ou força e levariam a melhor sobre ele. (5) Desta forma parece que o próprio poder, aquilo que é mesmo o poder, é preservado pela lei e pela justiça.
[A hipótese de um ser superior, excepcionalmente dotado em todos os domínios, não o tornaria autossuficiente e em situação de prescindir das leis. Na perspectiva do Anônimo, o homem excepcional, que se apresentasse com tais qualidades aos olhos dos demais, suscitaria grande inveja e tornar-se-ia alvo da hostilidade de todos, o que o forçaria a recorrer à proteção da justiça e a invocar em seu favor a autoridade das leis. É de ter em conta a divergência nos pontos de vista aqui expressos e aqueles que são defendidos por Cálicles, no diálogo platônico Górgias (482 c e segs.). Enquanto, para Cálicles, o indivíduo que, por natureza, é superior aos outros homens pode impor a sua definição do justo e do injusto sem ter de respeitar as leis criadas pelos mais fracos, no contexto do Anônimo, a doutrina é radicalmente diferente, pois o homem superior não pode nem deve eximir-se à referida enkrateia que é a nota constitutiva do sábio e do justo.] [Osório diz: não esquecer que Cálicles é apenas um personagem de Platão e, também, que os poderosos jogam com a lei: fazendo-a, mudando-a ou interpretando-a!]
(Vale a pena compreender isto acerca da observância da lei e da não observância, como diferem uma da outra e que [a] observância é melhor para o Estado e para o particular, e a não observância é pior. Da não observância provêm logo [os maiores] males. Começaremos por destacar os primeiros benefícios da observância da lei.)
(1) Advém da observância da lei, em primeiro lugar, a confiança que beneficia muitíssimo todos os homens e é um dos grandes bens. Daquela advém comunidade de propriedade e, assim, mesmo que a propriedade seja escassa, ela é suficiente, pois há circulação de bens; contudo, sem a confiança mútua, nem que a propriedade seja abundante, será sempre insuficiente. (2) E as mudanças da sorte que afetam os bens e a vida dos homens, sejam favoráveis ou desfavoráveis, são orientadas de forma mais conveniente, se houver observância da lei. Os afortunados gozam da sua boa sorte em segurança e sem intrigas; os desafortunados recebem ajuda dos que são afortunados devido às suas transações comerciais e à confiança mútua, as quais resultam precisamente da observância da lei. (3) Por causa da observância da lei é baldado o tempo que os homens gastam nas tarefas políticas, é, pelo contrário, bem empregue o tempo dispendido nas atividades da vida. (4) Sob a observância da lei, os homens ficam libertos da preocupação mais desagradável e entregam-se à mais agradável. Com efeito, a preocupação com tarefas políticas é muito desagradável, mas a preocupação com as atividades da vida é muito agradável. (5) Quando se rendem ao sono, que constitui para os homens uma pausa nos infortúnios, avançam para ele sem temor e sem pensamentos dolorosos. Quando regressam dele, experimentam sensações semelhantes. Não ficam de súbito com temor nem, após o dulcíssimo transe do sono, esperam que o dia seja... Mas concebem pensamentos livres de perturbação acerca das atividades da vida e agradavelmente aliviam a fadiga de procurar as coisas boas com esperanças e expectativas em que é fácil acreditar. A observância da lei é a causa de tudo isto. (6) E aquilo que traz maiores males aos homens, a guerra, que conduz à submissão e à escravidão, sobrevêm mais frequentemente aos que não observam a lei e menos aos que observam a lei. (7) E existem muitas outras coisas boas na observância da lei, as quais constituem uma proteção para a vida e um consolo nas adversidades que dela advêm. Os males que derivam da não observância da lei são os seguintes. (8) Em primeiro lugar, os homens não dispõem de tempo para as atividades da vida e ocupam-se com o mais desagradável, tarefas políticas em vez daquelas atividades. Acumulam dinheiro por causa da desconfiança e da ausência de transações comerciais, mas não o partilham, e assim ele torna-se escasso, mesmo que seja abundante. (9) Mudanças da sorte, quer as adversas quer as propícias, servem propósitos distintos. A boa sorte não está assegurada, quando não há observância da lei, mas está sujeita a conspirações; a má sorte não é afastada, mas fica fortalecida com a falta de confiança e a ausência de transações comerciais. (10) Pela mesma razão mais facilmente estalam a guerra externa e as lutas internas; e, se não tiver acontecido antes, sucede nessa altura. Na verdade, os homens estão sempre envolvidos em atividades políticas por causa das ciladas entre eles, que os levam a passar a vida a precaver-se e a armar mais ciladas uns aos outros. (11) E nem acordados têm pensamentos agradáveis nem a dormir encontram um refúgio aprazível – encontram, pelo contrário, um refúgio cheio de angústia. O despertar dominado pelo medo e pelo sobressalto conduz o homem a lembranças imprevistas dos seus infortúnios. Estes e outros males que acima referi derivam todos da não observância da lei. (12) Mesmo a tirania, um mal tão grande tão monstruoso, também provém da não observância da lei. Alguns homens, que não o explicam corretamente, pensam que são outras as causas que levam à instituição da tirania e que os homens ficam privados da sua liberdade, sem serem pessoalmente responsáveis por isso, mas por terem sido submetidos à força pelo tirano instituído. Contudo não estão a fazer um raciocínio correto. (13) Quem julgar que um rei ou um tirano provém de uma causa distinta da não observância da lei e da prepotência é tolo. Quando todos se voltam para o mal, passa-se então isto, pois não é possível que os homens vivam sem lei nem justiça. (14) Sempre que estes dois princípios, a lei e a justiça, se afastam do povo, a tutela e a proteção do mesmo passam para as mãos de um só indivíduo. Como é que o poder absoluto ficaria nas mãos de um só homem, se a lei que é do interesse do povo não tivesse sido suprimida? (15) Este homem, que destruirá a justiça e abolirá a lei, que é comum e útil a todos, só pode ser duro como aço, pois vai arrebatar um bem ao povo, apesar de ser apenas um contra muitos. (16) Se fosse apenas de carne e osso e igual aos restantes não poderia fazer isto; mas, pelo contrário, se restabelecesse princípios que tinham deixado de existir, conseguiria ser o único governante. É por isso que alguns homens não viram isto acontecer.
Fonte: todas as informações acima sobre o Anônimo de Jâmblico foram retiradas de: SOFISTAS – testemunhos e fragmentos, tradução e notas: Ana Alexandre Alves de Sousa e Maria José Vaz Pinto, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2005, a qual, portanto, deve ser consultada.