Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.72 - Fenomenologia - etimologia.
É Barbara Cassin quem diz:
“Mesmo se o termo "fenomenologia", como acentua Heidegger, só tenha surgido historicamente nos século dezoito, em Lambert, ele é historialmente grego. Phainômenon, particípio médio de plaíno, "o que se mostra, por si, a partir de si", e lógos, "dizer". No parágrafo 7 de Sein und Zeir Heidegger lembra que phaíno vem de phos, "a luz". Mas, na verdade, existe já aí um nó etimológico ainda mais apertado, Chantraine nota, com efeito, que phainô é formado do radical sânscrito bha, dotado "de ambivalência semântica", pois significa ao mesmo tempo "esclarecer, brilhar" (phainoi, (phami)), e "explicar, falar" (phemí, fari, em latim): dito de outra forma, já existe co-pertencimento do dizível e do brilhante, já existe fenomenologia só em fenômeno.
(...)
Para Aristóteles, como enfatiza Heidegger um pouco mais acima (p. 50 fr. = 32 a 11.), remetendo em particular aos capítulos 1 a 6 do De Interpretatione, — “'dizer', légein, é apophaínesthai, 'fazer ver' (phaínesthai) a partir daquilo mesmo sobre o que ele discorreu (apó)”: "No discurso (apóphansis), na medida em que ele é autêntico, o que é dito resulta daquilo de que se fala". É por isso que "fenomenologia quer... dizer apophaínesthai tà phainómena: fazer ver de si mesmo o que se manifesta, tal como, de si mesmo, isso se manifesta" (p. 52 = 34).
Ora, essa compreensão do lógos implica que se esteja, simultaneamente, em posse de um conceito completo de fenômeno. O "tal como" implica, com efeito, que se compreenda o fenômeno como "o que (a) parece como", aparição, e aparência fundada nessa aparição.
Tudo depende, para a compreensão do conceito de fenômeno, de ver bem como as duas significações do que se designa como phainómenon (o "fenômeno" como o que se mostra e o "fenômeno" como aparência) estão unidos pela própria estrutura do conceito. Pois é apenas na medida em que alguma coisa pretende, quanto a seu sentido, se mostrar, quer dizer, ser um fenômeno, que essa alguma coisa pode se mostrar como o que ela não é, pode somente "parecer como" (p. 46 = 29).
(...)
Como se não houvesse alma para assegurar o liame entre as manifestações, um branco entre fenômeno e logia.
[Osório dia: fenomenologia significa dizer o fenômeno]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 223, 227-228, 233).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.71 – Meontologia.
“Meontologia – “... se Parmênides pode ser considerado o responsável pelo início dos estudos sobre o ser, ou seja, o fundador da ontologia, também deve ser considerado — e, de certa forma, como veremos, a fortiori — o fundador dos estudos sobre o não-ser, ou seja, da meontologia 4. 4. Há divergências sobre a denominação da ciência que estuda o não-ser. Nós encontramos referências tanto da denominação meontologia quanto da denominação udenologia. Nossa escolha foi determinada por um precedente, na língua portuguesa do Brasil, constituído por Mario Ferreira dos Santos, grande filósofo paulista, que utiliza meontologia em todos os seus escritos e principalmente numa obra que trata especificamente desse assunto, "A sabedoria do ser e do nada". (FERREIRA DOS SANTOS, 1968). (Fonte: http://www.fflch.usp.br/df/site/posgraduacao/2010_mes/2009.mes.Nicola_Galgano.pdf, em 18.11.10).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.70 - Fenômeno - o que é.
É Barbara Cassin quem diz:
“Para Aristóteles, como enfatiza Heidegger um pouco mais acima (p. 50 fr. = 32 a 11.), remetendo em particular aos capítulos 1 a 6 do De Interpretatione, — “'dizer', légein, é apophaínesthai, 'fazer ver' (phaínesthai) a partir daquilo mesmo sobre o que ele discorreu (apó)”: "No discurso (apóphansis), na medida em que ele é autêntico, o que é dito resulta daquilo de que se fala". É por isso que "fenomenologia quer... dizer apophaínesthai tà phainómena: fazer ver de si mesmo o que se manifesta, tal como, de si mesmo, isso se manifesta" (p. 52 = 34).
Ora, essa compreensão do lógos implica que se esteja, simultaneamente, em posse de um conceito completo de fenômeno. O "tal como" implica, com efeito, que se compreenda o fenômeno como "o que (a) parece como", aparição, e aparência fundada nessa aparição.
Tudo depende, para a compreensão do conceito de fenômeno, de ver bem como as duas significações do que se designa como phainómenon (o "fenômeno" como o que se mostra e o "fenômeno" como aparência) estão unidos pela própria estrutura do conceito. Pois é apenas na medida em que alguma coisa pretende, quanto a seu sentido, se mostrar, quer dizer, ser um fenômeno, que essa alguma coisa pode se mostrar como o que ela não é, pode somente "parecer como" (p. 46 = 29).” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 227-228).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.69 - Sofisma em Freud.
É Barbara Cassin quem diz:
“Jamais se pôde estabelecer que o intelecto humano possuísse uma aptidão particular para discernir a verdade, nem que o espírito humano tendesse especialmente a aceitar a verdade. Moisés e o monoteísmo, (p. 173 da trad. francesa de Anne Berman, Gallimard, 1972).
A posição por si só decide a vitória, quer se trate de guerreiros ou de frases. Jean-Paul, citado por Freud em Os chistes a sua relação com o inconsciente (p. 28 da trad. francesa de Marie Bonaparte e M. Nathan, Gallimard, 1930).
Quando Aristóteles, no livro Gama da Metafísica, tenta estabelecer o primeiro princípio da ciência do ser enquanto ser, aquele que será nomeado princípio de não-contradição, pede simplesmente a seu adversário para falar, isto é, "dizer alguma coisa que tenha um sentido para ele mesmo e para outrem". A exigência do sentido se confunde, desde o gesto aristotélico, com a prática da fala. Entretanto alguns, contrariamente a toda verossimilhança, conseguem, como declara o próprio Aristóteles, excetuar-se dessa exigência universal. Falam "pelo prazer de falar" (lógou chárin). Nenhuma refutação poderia atingi-los, já que são insensíveis à contradição — tanto à que constitui o homem como ser agente, para quem não é igualmente bom e não bom cair num poço, como à que o constitui como ser falante, para quem a mesma palavra, "doce" por exemplo, não poderia ao mesmo tempo ter e não ter o mesmo sentido. A estratégia filosófica consiste em marginalizar esses refratários, em relegá-los, plantas ou deuses, aos confins da humanidade. E quando se encontra um deles, não se buscará convencê-lo como se fosse nosso semelhante, mas se usará de "violência" a seu respeito, voltando contra ele suas próprias armas e só se interessando, em detrimento da exigência do sentido, pelo que existe "nos sons da voz e nas palavras". Trata-se, como compreendemos, dos sofistas, ao menos desses sofistas puramente sofistas que não são ao mesmo tempo, como Protágoras, físicos que acreditam, com escrúpulo excessivo, na verdade dos fenômenos, mas apenas faladores.
Tão distanciada quanto possa parecer pelos séculos e pelas preocupações, essa série de decisões conduz ao âmago da lógica freudiana. Freud, assim como toda a tradição filosófica e como todos nós, se deixou tragar pela exigência aristotélica do sentido. Não há um traço da teoria nem da prática analíticas que não possam testemunhar isso: sintoma, mas também sonho, lapso, ato falho, chiste (mot d'esprit), só se tornam a esse preço objetos da psicanálise. O próprio inconsciente, do qual eles são as formações mais ou menos diretas, só deve seu estatuto de "hipótese necessária e legítima" a um "ganho de sentido e de coerência" (Metapsicologia, p. 66s., da trad. Laplanche e Pontalis, Idées, Paris, 1968). O projeto freudiano consiste, em resumo, em estender de forma virtualmente infinita o domínio do sentido, de modo que aí possa entrar o que sempre foi, mais ou menos grosseiramente, considerado como insensato. Dentre todas as definições do chiste que Freud reúne, aquela, recorrente, de "sentido no não sentido", assume a seus olhos uma importância particular (Os chistes e a sua relação com o inconsciente, p. 16, 90s., 215 e 227 nota 7): aos nossos, essa fórmula poderia definir todo o projeto freudiano.
De Aristóteles a Freud: a pertinência de uma perspectivação se confirma, quando se lê O chiste e suas relações com o inconsciente, com a constatação de que uma das categorias mais importantes situadas, não sem hesitação e sem dificuldade, nas tentativas de taxinomia é justamente a de "sofisma". A posição freudiana em relação ao sofisma aparece então, com um termo que só a reflexão de Freud sobre a não-contradição permite introduzir, ambivalente. O sofisma ou chiste sofístico é simultaneamente desvalorizado sem apelo como erro de raciocínio, não-sentido, do domínio de uma atividade regressiva, infantil, toxicomaníaca, neurótica, até mesmo psicótica, e valorizada sem cessar e apesar de tudo como prazer: prazer pensado não sem prejuízo em termos econômicos como "poupança", mas também prazer de jogar com as palavras e com os sons, e sobretudo prazer, mais próximo da essência da sofística, que o espírito sabe tomar em si mesmo, "em sua própria atividade" (p. 155); o sofisma diz assim a verdade do desejo e libera do jugo da razão crítica: é um exercício de liberdade.
A primeira ocorrência do termo "sofisma" aparece a propósito de uma história do salmão com maionese:
Um infeliz, chorando sua miséria, toma emprestado vinte e cinco florins de um amigo rico. No mesmo dia, o benfeitor encontra-o sentado num restaurante diante de uma porção de salmão com maionese. Ele o censura por isso: "Mas como! Você me dá uma facada e se regala com salmão com maionese! Eis o emprego do meu dinheiro!" — "Não compreendo, diz o outro; sem dinheiro, impossível comer salmão com maionese; eu tenho dinheiro, não devo comer salmão com maionese; quando então eu comeria o salmão com maionese!" (p. 79).
Esse exemplo, embora também apresentando, nós o veremos, suas "complicações indesejáveis", é o primeiro que nos permite, segundo Freud, compreender a primeira taxinomia que ele tenta, não sem dificuldade, estabelecer. Essa taxinomia tem como critério a "técnica" empregada no próprio chiste, à diferença da "tendência" ou intenção atribuível ao autor do chiste e que constituirá o critério de uma segunda taxinomia independente da primeira. A distinção técnica principal está entre "jogo com a palavra" (Wortwitz) e "jogo com o pensamento" (Gedankenwitz). Primeira surpresa para o leitor de Platão e de Aristóteles: o sofisma não está onde é esperado em primeiro lugar. Com efeito, não é localizado como na Metafísica "nos sons da voz e nas palavras", ele não joga, como nas Refutações sofísticas, em primeiro lugar e antes de tudo com a "homonímia", quer dizer, com o mal natural e inevitável constitutivo da nossa linguagem, onde, sendo as coisas em número maior do que as palavras, uma mesma palavra deve necessariamente designar várias coisas que têm definições diferentes. Certamente a homonímia constitui efetivamente para Freud a forma mais realizada do "jogo com a palavra" que pode proceder, segundo diferentes modalidades da mesma técnica, por "condensação" ("familionário"), por "emprego do mesmo material" ("traduttore/traditore") ou, estritamente, por "duplo sentido" ("é o primeiro vol (voo/roubo) da águia", a propósito de Napoleão) e tira proveito assim da avareza da língua para se oferecer o benefício da poupança (pp. 65-71). Mas a história do salmão com maionese está presente para nos introduzir ao contrário à segunda categoria: não mais ao jogo com a palavra, mas ao jogo com o pensamento, cuja característica é exatamente a de ele se manter "quando se substituem as palavras por outras enquanto seu sentido subsistir" (p. 82). A história não funciona mesmo como tipo, diferentemente daquela do banho por exemplo ("Tomaste um banho? — Como? então te faltava um?") a não ser por não apresentar "mais vestígio de duplo sentido": trata-se somente de uma "repetição efetiva de palavras idênticas, repetição exigida pelo próprio sentido da frase" (p. 79). O que sugere então a Freud designar esse respeito pela univocidade constitutiva do sentido com o termo de sofisma?
Que particularidade a resposta desse infeliz arruinado apresenta ainda? É a de assumir de modo impressionante o caráter da lógica. Erroneamente, entretanto, já que a resposta é certamente ilógica. O pobre se defende por ter empregado o dinheiro emprestado em uma guloseima e pergunta, com uma aparência de razão, quando lhe será permitido enfim comer salmão. Mas essa não é a resposta exata para a pergunta, o benfeitor não lhe censura o fato de ter se oferecido salmão no mesmo dia de seu empréstimo, mas lhe faz sentir que, na situação em que se encontra, não tem absolutamente o direito de pensar em iguarias. Nosso pobre arruinado não leva em conta o único sentido possível dessa censura; ele passa ao largo da questão como se a houvesse compreendido mal (p. 79s.).
Assim a técnica do salmão com maionese não repousa sobre um equívoco, mas sobre um "desvio" do sentido — "do sentido da censura na resposta" — que Freud propõe designar, como no sonho, por “deslocamento”: um deslocamento do "acento psíquico do tema primitivo sobre um tema diferente" (p. 82). O termo "sofisma" aparece pela primeira vez, quando da retomada do exemplo, para designar esse deslocamento: o salmão com maionese "apresenta-nos uma fachada que deslumbra por uma ostentação de elaboração lógica; ora, a análise nos mostrou que essa lógica esconde um sofisma, em particular, um deslocamento do curso do pensamento" (p. 89). O sofisma é assim o ilógico escondido sob o lógico, que reduz a lógica a ser apenas um "revestimento", uma "aparência", um "como se", uma "fachada", uma "ostentação". Com essa distorção entre aparência bela ou sadia e realidade enganadora, Freud reencontra com efeito uma outra dentre as caracterizações mais tradicionais da sofística desde Platão e Aristóteles, a que, para se ater ainda ao primeiro capítulo das Refutações sofísticas, compara os raciocínios sofísticos a esses homens que parecem belos à força de se maquiar, ou aos objetos de litargírio, de estanho ou de metal amarelo. A sofística joga com o pseûdos, mistura de falso e de mentira ou de má fé, para se fazer passar pelo que não é: lógica e sabedoria.
Mas é preciso notar entretanto que, em todas as outras histórias dessa série, com exceção da última, e assim como na do banho, a eliminação do duplo sentido por Freud é mais do que laboriosa: com efeito, é sempre um duplo sentido que "permite o desvio na sequência das ideias" (pp. 84, "85). É necessário para ele distinguir finalmente entre dois tipos de deslocamento: o deslocamento prévio em ação na elaboração da própria palavra espirituosa, entre pergunta e resposta por exemplo, e o deslocamento produzido apenas na compreensão do ouvinte, para fazer a diferença entre jogo com pensamento e jogo com a palavra. "No caso em que essa distinção mantivesse alguma obscuridade", acrescenta Freud, o "meio infalível" permanece a "tentativa de redução", que deve provar a independência das variáveis: conservar o duplo sentido perdendo o deslocamento e portanto o caráter espirituoso. Por exemplo: "'Tomaste um banho? — O que consideram que tomei? Um banho? O que é que há? Isso não é um chiste, mas um exagero malévolo ou zombeteiro" (p. 84). Mas Freud tem razão em achar esses exemplos "complexos e difíceis de analisar; pois suas tentativas de redução são pouco convincentes, pareceria antes que o deslocamento não ocorreu quando, e parque, o duplo sentido ("tomaste") não funciona mais livremente. Parece que o uso da homonímia continua a ser, apesar de tudo, uma das armas privilegiadas do pseûdos:
Até aí então nada de realmente novo no que concerne à sofística. Mas a continuação da taxinomia não deixa de ser perturbadora. Seguem-se, com efeito, duas séries de exemplos: a primeira utiliza a técnica não mais do deslocamento mas do "contra-senso" (p. 85), a segunda utiliza "outros erros de raciocínio" e, mais precisamente, "outros erros de raciocínio sofísticos" (p. 101). A taxinomia se esgotará com a categoria dos erros de raciocínio automáticos (p. 101), depois com a da unificação e a da representação indireta (p. 128). Erros de raciocínio, unificação, representação indireta são assim as três rubricas do espírito do pensamento, enquanto a primeira rubrica se divide em erros sofísticos e erros automáticos. Visivelmente então, o salmão com maionese e as duas outras séries de exemplos devem ser reagrupadas sob uma mesma classe: a dos erros de raciocínios sofístico 1. Deve-se entretanto notar que o termo sofisma só é pronunciado para a primeira e a última série: a série intermediária apresenta com efeito uma dificuldade.
Eis como Freud o introduz: "Essa palavra (salmão com maionese), talvez por simples contraste, nos oriente quanto a outros chistes que ao contrário ostentam abertamente o contra-senso, o não-senso e a asneira" (p. 89, grifos nossos). O exemplo "o .nais nítido e o mais puro" disso é o do artilheiro Itzig, inteligente mas indisciplinado, a quem um superior benevolente aconselha comprar um canhão para se instalar por conta própria. Ora, "esse conselho muito cômico é evidentemente um não-senso", mas "um semelhante não-senso espirituoso não é desprovido de sentido": "ele se conforma à asneira de Itzig, faz com que ele dela se convença" (p. 90). Dessa vez então, é o não-sentido que serve de "fachada" ao sentido. Freud encontra assim muito naturalmente a definição canônica do chiste como "sentido no não sentido", mas ela deixa no momento ler de forma ambígua ao mesmo tempo como inversão e como espécie do sofisma.
Compreende-se por que Freud, para essa única série exemplos, não hesita um instante em seu diagnóstico de chiste, enquanto para a primeira série "podemos ser tentados a negar à anedota que nos faz rir (o salmão) o caráter de chiste" (p. 79) e que, para a última, ele se vê mesmo forçado a fazer "uma confissão que não é desprovida de interesse": na falta de critério, é preciso considerar o exemplo do doce como "um chiste, um traço espirituoso sofístico ou simplesmente como um sofisma?" (p. 97). Com essa última série de "desvios do pensamento normal", que oferece o corpus mais propício aos amadores da sofística histórica, retorna-se com efeito à "aparência da lógica característica do sofisma e destinada a encobrir o erro de raciocínio" (p. 98). Como no primeiro caso então, é a lógica que é "fachada", "travestimento" (p. 96). Mas, além disso, a análise do erro se precisa segundo duas dimensões. A distorção em relação ao real, assinalável em três das histórias do corpus: a do doce ("Um senhor entra numa confeitaria e pede um doce; ele o troca em seguida por um pequeno copo de licor. Ele o bebe e quer sair sem pagar, o gerente o retém. 'O que é que você quer?' — 'Pague seu licor' — 'Mas eu te dei um doce em troca' — 'Você também não o pagou' — 'Mas eu não o comi'"), já que o cliente, "pelo artifício de um duplo sentido — sempre a homonímia — cria uma relação inexistente na realidade"; a do casamenteiro de mulher coxa (o acidente é "fato consumado", mas quem preferiria "uma infelicidade realizada a uma infelicidade eventual?"), como a do rabino de Cracóvia que anuncia erroneamente que o rabino de Lemberg acaba de morrer ("Pouco importa, diz o fiel: enxergar de Cracóvia a Lemberg, eis algo sublime"), nas quais "é feita abstração da realidade em favor da possibilidade". Em seguida a recusa da "soma", do "e", do "ao mesmo tempo", que, sozinha, pode fazer contradição, assinalável na história do casamenteiro da corcunda ("você precisa então de uma mulher sem defeito"), assim como na muito célebre história do caldeirão. Em todos esses casos, Freud reencontra a via muito antiga traçada por Platão e Aristóteles: o sofista prefere as ficções das palavras à realidade das coisas e não se preocupa com a verdade como adequação ao real; é isso que lhe permite se aquartelar no tempo da enunciação e de se refugiar na sequência discursiva para resistir à universalidade da não-contradição.
Assim, nessa primeira taxinomia, Freud retoma todos os elementos mais tradicionais da desvalorização da sofística, exceto por uma distorção considerável, já que ela coincide com a aparição do sofisma dentre os chistes: a de que poderia tratar-se, ao menos na segunda série de exemplos, do elemento sentido no não-sentido antes que do elemento não-sentido no sentido. A análise da segunda taxinomia permitirá seguir, de modo não menos hesitante, nessa nova via.
Como a segunda taxinomia não coincide com a primeira, não nos espantaremos de encontrar o sofisma tanto do lado “inofensivo” quanto do lado "tendencioso". Além disso, à parte analítica se sucede uma parte sintética onde Freud, reagrupando todas as suas indicações taxinômicas, se interroga sobre "o mecanismo do prazer" produzido pelo chiste: como a problemática desses dois capítuloTse completa, eu os utilizarei simultaneamente. "Em que os chistes sofísticos podem ser inofensivos e qual prazer ^ngendram então? [Osório diz: pelo acima, o sofisma também admite um “duplo discurso” sobre ele ou sobre o que ele pode “fazer”: ser inofensivo ou ser tendencioso. Isso me remeteu para a Retórica, segundo a visão de Platão/Aristóteles, pode ser boa ou má, o só vem confirmar a tese protagórica!]
Quando ele é inofensivo, "o espírito se basta a si mesmo para além de qualquer segunda intenção" (p. 145), "é para si mesmo sua própria finalidade" (p. 156): buscamos apenas, com esse funcionamento "autônomo", análogo à representação estética, despertar o prazer no ouvinte e obter para nós mesmos o prazer (p. 154s.). Freud observa, de passagem, que "os jogos de palavras inofensivos e superficiais apresentam o problema do espírito sob sua forma mais pura porque eles... nos fazem escapar ao erro de julgamento que se prende ao valor do sentido" (p. 152). Reitera essa observação, na parte sintética, anotando em pé de página que "os chistes 'maus'" — como "rolo caseiro", o rocambole feito em casa (p. 152, 198, ver também 202) onde a homofonia não corresponde a nenhuma ligação "fundada sobre o sentido" — "não são absolutamente maus como ditos espirituosos, quer dizer, não são inaptos a engendrar o prazer". No inofensivo puro, no mau jogo de palavras, não há sentido mas ainda prazer e pode-se mesmo falar de "prazer do não-sentido" (p. 206).
O peremptório seria tão sintomático quanto as hesitações precedentes, pois séculos de resistência aos sofismas, a dificuldade de abandonar o "caminho percorrido" — traçado já pela deusa para Parmênides: o ser é e o não-ser não é —, enfim a atitude do próprio Freud, não levam ninguém a crer que seja tão fácil abandonar o sentido. É verdade que então não se trata mais de "a vida séria", mas novamente da criança, do toxicômano — a conversa mole da cerveja —, do ginasiano neurótico e de certas categorias de psicopatas... E Freud se espanta com o fato de que, "assim fazendo, a elaboração do espírito seja uma fonte de prazer, já que, fora do espírito, qualquer manifestação análoga do menor esforço intelectual desperta em nós desagradáveis sentimentos de repulsa" (p. 206).
A análise dos "exemplos extremos" que Freud propõe em uma nota, bem no fim dessa primeira parte sintética, esclarece ainda mais esse prazer que o adulto aristotélico experimenta em voltar à infância. Prazer ao qual eu não resistirei... "Um conviva, a quem se servia peixe, mergulha por duas vezes as mãos na maionese e as passa em seus cabelos. O espanto de seu vizinho de mesa parece fazer com que ele reconheça sua inconveniência e ele se desculpa dizendo: 'Perdão, pensei que fosse espinafre!'". Freud, que não sabe como nomear esse tipo de palavras — "parecem ter direito à denominação de asneiras de aparência espirituosa" —, nos explica que elas produzem seu efeito "porque retêm o ouvinte na expectativa de um chiste, de modo que ele se esforça para descobrir o sentido escondido pelo não-sentido, sem todavia encontrá-lo, já que é um não-sentido puro e simples".
Há assim como que uma tendência do espírito não tendencioso que consiste em se servir das armas da razão — o princípio de economia, a pregnância das formas lógicas, o reflexo do sentido — contra a própria razão, em uma violência sempre segunda, sempre crítica, para reestabelecer "liberdades primitivas" e "mitigar o jugo da educação intelectual" (p. 210). Mas essa é, como a sofística, uma manifestação ao mesmo tempo salutar e repugnante, cujo caráter marginal deve ser mantido.
O exame do espírito inofensivo permite assim condenar/reabilitar o prazer do não-sentido. O do espírito tendencioso levará ainda mais longe e de modo menos ambíguo: permite conduzir sem vestígios o não-sentido para a jurisdição do sentido, atribuindo um sentido — e que sentido — ao não-sentido.
Freud já indica essa via quando propõe, na parte analítica a "versão reduzida" do salmão com maionese, a fim de provar que essa categoria de chistes prende-se não às palavras mas ao pensamento, e ao deslocamento censura-resposta. Caso se fizesse [p. 290] o gourmet responder “de modo direto”, não haveria mais do que rir. “A versão reduzida seria então a seguinte: 'Não posso ficar sem comer aquilo que adoro e pouco me importa de onde vem o dinheiro. Eis o motivo pelo qual como salmão com maionese hoje, depois você ter me emprestado dinheiro'". Mas, acrescenta Freud, "isso não seria mais ter espírito, seria cinismo".
Quando retoma a análise do salmão com maionese na perspectiva da segunda taxinomia, Freud descobre, ao lado das duas tendências óbvias que são a intenção obscena (o espírito que desnuda) e a intenção agressiva ou hostil, uma tendência mais difícil de circunscrever e que ele classifica provisoriamente de intenção “séria” (p. 175). A fachada lógica que, na primeira taxinomia só mascarava um "erro" desvalorizado como ilógico, assume agora uma outra função, a de dissimular "que aí se diz alfo proibido" (p. 172) ou, mais terminologicamente, a de "desviar a atenção" do fato de se tratar aí da "suspensão da inibição" (p. 250): "Não tememos nos enganar supondo que todas as histórias com fachada lógica queiram verdadeiramente dizer o que pretendem dizer com argumentos voluntariamente errôneos. É precisamente esse emprego do sofisma como intermediário da verdade que lhe confere o caráter espirituoso, caráter que depende, assim, antes de tudo, da tendência" (p. 175). A verdade, que era até o momento o outro do sofisma, se encontra agora revelada por este, que suspende não apenas o recalque aristotélico mas qualquer recalque, exatamente como o lapso ou o sonho, para deixar falar o desejo. O sentido não está mais onde parecia, na fachada lógica, mas no lugar do não-sentido. Um chiste sofístico não pode mais ser analisado nem como não-sentido no ou sob o sentido, nem apenas como sentido no não-sentido: é o não-sentido feito sentido.
A fachada lógica torna-se agora o índice ou o sintoma da nossa aprovação; o gracejo — nosso riso — é uma formação de compromisso e a contradição lógica / ilógica apenas manifesta, ou traveste, a contradição moralidade / imoralidade, na qual estamos todos mergulhados. Enfim, se estamos ainda "chocados", não é mais porque a preguiça intelectual nos repugne, mas simplesmente porque o homem do salmão proclama a verdade do desejo por ocasião de um gozo "inferior" ou "supérfluo".
Quando ao nome especial, não se poderia deixar de observar, que Freud apela sucessivamente para todas as escolas marginais da Antiguidade: após a sofística, o epicurismo, depois o cinismo e mesmo, mais adiante, o ceticismo. Pois o salmão com maionese seria, continua ele, uma história "simplesmente epicuriana": ela equivale a dizer: "esse homem tem razão, não há nada além do prazer, pouco importa a maneira pela qual ele seja proporcionado' (p. 178). A apologia do Carpe diem, murmurada "em voz baixa" pelos chistes, é bastante rearfirmada atualmente, e por Freud amplamente aqui mesmo, em face de uma moral que "exige sempre sem indenizar": "se deus está morto, essa moral não é senão "o decreto egoísta de alguns sujeitos ricos e poderosos que podem, só eles, sempre sem demora, satisfazer todos os seus desejos”. Todo homem de "boa fé, e portanto Freud, "acabará in petto ao menos por confessar isso" (p. 180). E Freud acrescenta abruptamente, reatando com sua primeira análise: "Estamos enfim em condições de dar a esses chistes o nome que lhes convém: são chistes cínicos, o que eles encobrem é cinismo". Daí a abundância, no corpus sofístico, das histórias de casamentos e de casamenteiros, que dizem a verdade do conflito entre civilização e liberdade sexual, e a pregnância das histórias judaicas, onde se exprimem "a autocrítica do povo judeu" e os "mil aspectos da sua miséria sem esperança". Assinalemos, enfim, o apelo ao "ceticismo" como "busca do critério da verdade", a propósito da única mas tão marcante história dos dois judeus no trem ("Como você é mentiroso! Você diz que vai à Cracóvia para que eu creia que vá a Lemberg. Mas sei bem que você vai realmente à Cracóvia. Por que então mentir?" p. 189). Pois da sofística ao ceticismo, não apenas de modo negativo, a tendência séria junta-se à tendência do chiste sem tendência: "abalar o respeito devido às instituições e às verdades" (p. 219), fazendo-se crítica da razão crítica. Mas, para além e de modo positivo, ela preconiza, por meio da inibição, por deslocamento e contradição, em lugar da "verdade filosófica" (p. 26), essa verdade mais verdadeira que é a expressão do inconsciente, reencontra assim, sob o nome das escolas antigas, os tópoi mesmos da sofistica: natureza, e lei, desejo, prazer, gozo, medida subjetiva. [Osório diz:
Todos os elementos de uma reinterpretação positiva da sofística estão assim presentes em Freud: tendo como fundo a atenção dispensada ao dizer, pertinência do que ele não nomeia jogos de significante e pertinência dos erros de lógica. Mas é preciso constatar que — está excluído de jacto, que essa análise tão nova do prazer de falar se efetue, mesmo se a verdade mudasse de sentido, fora desse registro aristotélico de sentido.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 281-293).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.68 - Romance - nascimento e fim da verdade filosófica.
É Barbara Cassin quem diz:
“Esse triunfo se apoia na hegemonia da paideía, da educação sofística, e no desenvolvimento de uma cultura literária: nas escolas onde o diretor é sofista, a "imitação retórica" propõe a apropriação, ao longo do curso, de todas as obras da antiguilidade clássica. Mas o que caracteriza essa retórica generalizada é que ela é criadora. Ao lado de um florescimento dos gêneros antigos, autonomizam-se gêneros novos, em particular o que se tornará literatura por excelência: o romance. [Osório diz: o nascimento do romance].
Ora, a bem considerá-lo, o romance constitui uma resposta completamente original ao interdito filosófico. Pois o romance é um pseûdos que se sabe e se reivindica pseûdos, um discurso que renuncia a toda adequação ontológica para seguir sua demiurgia própria: trata-se de falar, não para significar alguma coisa, mas pelo prazer de falar, e de produzir assim um efeito-mundo, uma "ficção" romanesca. E a popularidade dos romances, reatando com a tradição fundadora dos Poemas homéricos, acaba por constituir o avatar cultural de um consenso político, estendido graças à pax romana até os confins do mundo habitado: "Todo o mundo não vê o mesmo céu", diz Díon (Discurso 53, Sobre Homero, 7-8), mas "mesmo os indianos conhecem Homero". [Osório diz: o romance e o fim da verdade filosófica]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 14).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.67 - Problema - significado.
É Barbara Cassin quem diz:
“Problema, ‘o que é lançado para a frente’”, 36), (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 235).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.66 - Princípio da publicidade.
É Barbara Cassin quem diz:
“O princípio de publicidade é necessariamente princípio de hipocrisia, como para Ântifon, que define o bom uso da justiça pela observância das prescrições das leis quando se está em presença de testemunhas e pela observância das prescrições da natureza quando se está na solidão do privado (87 B44, f r. A, col. 1).” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 83).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.65 – Primeira e segunda Sofística – o que foram.
É Barbara Cassin quem diz:
“Em que a primeira e a segunda sofística são ambas sofísticas?
A priori todas as dúvidas são permitidas e a aproximação que faz saltar mais de seis séculos (imaginem de 1400 ao ano 2000, mas afinal de contas o Renascimento fez bem pior e a expressão "Renascimento grego" foi recentemente proposta por Bowersock), a aproximação corre o risco de parecer de início sofística no sentido banal, quer dizer pejorativo, do termo: uma simples questão de homonímia. Com efeito, os dois objetos, ao menos hoje em dia, nem sequer pertencem ao mesmo corpus. Quanto à primeira sofística, ela é um objeto que se tornou, ou melhor, que voltou a ser, filosoficamente consistente e, é necessário que se diga, bem na moda — uma alteridade constitutiva da filosofia platônico-aristotélica, um duplo, uma racionalidade alternativa.
A segunda sofística, ao contrário, ainda não se constituiu em objeto de reflexão filosófica. Ela pertence a um outro corpus, o da retórica. E se quase não se hesita mais em dar-lhe, como outrora Wilamowitz, uma existência real, isolável, deve-se constatar que a identidade que lhe atribuem nunca é senão histórica e/ou literária. Os trabalhos de Bowie ou de Reardon, tão notáveis em sua categoria, permitem essencialmente, desse ponto de vista, ponderar de modo diferente a avaliação de Bowersock: "A segunda sofística tem mais importância na história romana que na literatura grega”. Mas essa identidade rica e literária ou literária e histórica, não é enquanto tal filosoficamente analisada, não se lhe aplicam as mesmas questões que à primeira sofística.
Tudo se passa como se estivéssemos, para a segunda sofística, em uma etapa anterior da apreciação ou da "reabilitação", uma etapa em que a primeira sofística estagnou por muito tempo e certamente às vezes ainda estagna: pode-se comparar o valor literário, um jogo retórico de mais ou menos bom gosto, que já se costumava atribuir ao Elogio de Helena de Górgias e o do Discurso Troiano de Díon Crisóstomo, ou ainda o valor político, leais ou menos demagógico e mercantil, que se atribui à pedagogia de Protágoras, com a paideía fastidiosa e a obsequiosidade, no Império, de Élio Aristides: mas não nos interrogamos nunca sobre o possível sentido filosófico dessas obras ou dessas práticas, que ao mesmo tempo apresentam antes um interesse documentário do que um atrativo real. A imitação funciona aqui ainda, de modo muito platônico, em favor do modelo; a primeira vez, a primeira sofística, era, senão uma tragédia, ao menos um abalo crítico pleno de ambição filosófica, visando, para retomar termos de Rohde e de Boulanger, a "submeter o mundo do conhecimento e o da ação"; a segunda vez, a segunda sofística, é apenas um conjunto de receitas, é uma farsa, e dessa vez mesmo no sentido culinário do termo, tanto mais indigesta por ser, nos fatos, na realidade da época, triunfante e triunfalista. Não nos esqueçamos de que, se Hipócrates corava de vergonha no início do Protágoras com a simples evocação da possibilidade de se apresentar um dia diante dos gregos na qualidade de sofista, o imperador Trajano, sobre seu carro de triunfo, inclinava-se para Díon para murmurar-lhe: "Não sei o que dizes, mas te amo como a mim mesmo" e que na capela de Alexandre Severo encontravam-se quatro retratos: o Cristo, Orfeu, Abraão e Apolônio de Tiana, o herói do romance biográfico de Filóstrato.
Tudo se passa como se a primeira sofística houvesse perdido a guerra filosófica. E a segunda, acreditando ter sua desforra, tivesse de fato permanecido sobre o próprio terreno, no interior das fronteiras a que a derrota reduzira seu modelo. Mediante isso, a filosofia não teve nenhuma dificuldade em excluir, por muito tempo, as duas sofísticas simultaneamente do campo da sua história.
É partindo de uma reflexão sobre o estatuto sofístico da linguagem que me parece possível estabelecer entre a primeira e a segunda sofística uma relação que não seja de homonímia ou de caricatura, mesmo se certamente a identidade das palavras e a mímesis devam representar, aí, um papel essencial. Em suma, que baste enunciar para fazer ser e que nesse procedimento de ficção, no sentido vigoroso do termo, a sofística e as sofísticas consigam fazer frente à filosofia por um lado — compreendida como ontologia — e à poesia stricto senso do outro, eis o que gostaria de mostrar através do exemplo, se um excesso de educação filosófica e poética não fizesse voltar eternamente a questão: mas será que isso é verdadeiro? É assim o sentido mesmo da relação da filosofia com a literatura via retórica que a apreensão como um todo da primeira e da segunda sofística parece-me poder esclarecer. Projeto por demais ambicioso e serei obrigada, ao percorrer certos textos, a sugerir, no melhor dos casos, algumas pistas; no pior, alguns tópoi.
A primeira sofística perdeu a guerra filosófica. É, sabemos, em nome da verdade que a sofística foi de início e sempre condenada: a acusação principal lançada por Platão bem como por Aristóteles se deixa consignar no termo pseúdos. Pseúdos objetivo, o "falso": o sofista diz o que não é, o não-ser, e o que não é verdadeiramente ente, os fenômenos, as aparências. Pseúdos subjetivo, a "mentira": ele diz o falso com a intenção enganar, utilizando, para obter um êxito rentável, todos os recursos do lógos — ao mesmo tempo lingüístico (homonímia dos termos), lógico (raciocínio falso, sofisma) e racional propriamente dito (inaptidão para o cálculo e para a estratégia, tolice do outro). Logo de saída então, no Sofista como em Metafísica Gama 2, a sofística é uma pseudofilosofia: filosofia das aparências e aparência da filosofia. [Osório dia: como Platão e Aristóteles veem a Sofistica].
(...)
Meu intuito foi o de mostrar como, desde que nos colocamos no ponto de vista do lógos sofístico considerado como lógos lógou chárin, produtor retórico de um efeito sobre o outro e produtor poético de um efeito-mundo, a relação entre primeira e segunda sofística não é apenas tolamente mimética, é também filosoficamente instrutiva. A primeira sofística face à filosofia opunha ao discurso conforme ao ente, ou ao ser do ente, um discurso criador de consenso cultural. É finalmente esse próprio deslocamento, da adequação à homónoia, que se lê em seguida no deslocamento da oposição: a história em lugar da filosofia face à segunda sofística. Pois o pólo do verdadeiro não é mais representado pelos entes (ónta), mas, e é bem esse o efeito óbvio da antiga sofística, por aquilo que acontece, na medida em que se faz, em que se age, em que se produz, em que se utiliza: os gignómena, os prattómena, as práxeis, os prágmata, os chrémata. Podemos nos arriscar a designar de outra forma esse deslocamento: teríamos passado, ao mesmo tempo, da ontologia às ciências humanas e da sofística à literatura?” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 248-250 e 270).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.64 – Pragmatismo e relativismo e lógos.
É Bárbara Cassin quem diz:
“A palavra mestra de Rorty é a "conversação", tão valorizada em seu idioma americano quanto diminuída é a tagarelice no alemão de Heidegger. É por aí que passa sua definição preferida do pragmatismo: é pragmático, ou sem dúvida melhor, "pragmatista", "aquele que não aceita coações que pesem sobre sua investigação, a não ser as conversacionais" 9; uma tal definição tem o mérito de compensar, por "um sentido renovado da comunidade", a perda do "conforto metafísico" que representa o essencialismo. Mais uma vez, tais pragmatistas são "relativistas" no sentido em que pensam que "nossa cultura, nosso desígnio, nossas intuições, só podem ser sustentados de forma conversacional" (Conséquences, p. 167).
(...)
Entretanto, não é nada assim. Pois tudo se passa como se, por não poder produzir, de dentro do sistema, o topos da exclusão, Rorty reproduzisse, de facto, os mesmos exclusivos, que, conseqüentemente, não mais se impõem a não ser como lugares comuns. De modo que ele se contenta, para retomar os termos de J. Poulain 10, em fazer "a prolepse do sujeito moral". Seu modelo é muito explicitamente Sócrates, e não o Sócrates complexo, chien-loup, dos diálogos platônicos, mas um Sócrates de cartão-postal, opondo-se aos sofistas por demais caricaturais para terem jamais existido. "É a questão da escolha entre Sócrates de um lado e os tiranos do outro — escolha entre os apaixonados pela conversação e os apaixonados pela retórica que engana a si mesma. Para a minha intenção, é a questão de saber se podemos ser pragmatistas sem trair Sócrates, sem cair no irracionalismo" (Conséquences, p. 169).
Sócrates ou a conversação, eis o que surpreenderá qualquer leitor dos diálogos platônicos em seu desenrolar concreto, já que o interlocutor aí está regularmente, e com freqüência muito rapidamente, reduzido aos monossílabos da aquiescência. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 219-220).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.63 – Política.
É Barbara Cassin quem diz:
“Uma pluralidade de pessoas, que são, cada uma, homens sem valor político, é entretanto capaz quando está reunida (synelthóntas) de ser melhor que uma elite (ekeínon retoma toüs arístous mén, olígous dê, 1281a 40s.), não quando a tomamos uma a uma, mas todas juntas (ouch'hòs hékaston, alVhõs sympantas), como as refeições onde cada um traz seu quinhão, são melhores do que aquelas onde um só oferece tudo. Na verdade, quando há pluralidade (pollon gàr óntõn), cada parte possui uma parte de virtude e de sabedoria prática, e quando a pluralidade se reúne (synelthóntòri), exatamente como a multidão (íò plethos) se torna um único homem cheio de pés, cheio de mãos e cheio de sensibilidades, acontece o mesmo com as disposições morais e intelectuais (tá íthë kai tên diánoian). É por isso que a pluralidade julga melhor as obras musicais e poéticas: cada um julga uma parte e todos julgam o todo (álloi gàrdê páníes) (1281a42b 10).
A qualidade da parte não é, como num corpo ou para Platão, a de ser adaptada ao todo e de permanecer em seu lugar; ela é somente a de ter uma qualidade qualquer, da qual o todo vai se apropriar. Em Platão, o todo otimiza as partes, fazendo de suas insuficiências como indivíduos a condição de sua qualidade, de sua qualificação como órgãos. Em Aristóteles, o todo otimiza as partes, retendo apenas suas qualidades e compondo-as. Com a imagem do piquenique (é assim que L.S.J. traduz tá symphoretá) retomada em 1286a29, é a diversidade por si só que constitui a qualidade, pois o que seria se, ao invés do "com", tivéssemos um "mesmo", e se todos trouxessem tomates?
Democracia ou aristocracia? (1281a 39-41). O alia alinha o argumento dos aristocratas ao dos democratas: a multidão guarda o melhor daqueles que a compõem, assim como os virtuosos em política reúnem neles as qualidades esparsas nuns e noutros. O segundo problema é o da relação entre o objeto pintado e a pluralidade de seus modelos. Tricot traduz: “os elementos disseminados aqui e ali foram reunidos sob uma mesma cabeça, já que, considerados pelo menos separadamente, o olho de uma pessoa em carne e osso, ou qualquer outro órgão de uma outra pessoa, são mais belos do que o olho ou o órgão desenhado”. A parte que serve de modelo é nesse caso superior à parte resultante: quer dizer que se perde alguma coisa quando se reúne, logo, que as qualidades da multidão ou do homem virtuoso são inferiores às qualidades tomadas uma a uma nos indivíduos. Ora, é o contrário que se deve demonstrar: a reunião reúne a cada vez somente o que há de melhor na multidão, no homem virtuoso, num quadro. Para Platão, a parte não deve ser ótima, é preciso mesmo que não o seja por si, a fim de que o todo o seja. Para Aristóteles, o todo só retém o ótimo: como testemunham aliás suas notas ad doc, Tricot cai aqui no platonismo. O litígio é muito circunscrito: trata-se da função de toü gegramménou. Se ele é complemento do comparativo, kállion, então o olho do modelo é na verdade "mais belo do que o olho pintado". Se é um genitivo de posse, então escolheu-se por sua beleza o olho de um tal, reproduzido na pintura. Reconheçamos que a construção proposta por Tricot é aquela que vem imediatamente ao espírito.
Enfim, a diversidade pode ser mesmo substituída pelo número. É então a quantidade que é por si só uma qualidade, como testemunha, para além da louca imagem do corpo tentacular12, a última comparação que serve para justificar o fato de que "a massa dos cidadãos", quer dizer, "todos os que não têm nem riqueza nem qualificação para a virtude, nem mesmo uma" (to plëthos ton politôn. . . hósoi mete ploúsioi mete axioma échousin aretês mede hén, 1281b 24s.), participam do deliberativo e do judiciário:
pois todos têm, quando estão reunidos (synelthóntes), uma sensibilidade suficiente e, misturados com os melhores, eles ajudam a cidade, exatamente como um alimento que não foi purificado acrescentado a uma pequena quantidade de alimento puro torna o todo mais nutritivo; enquanto que a cada um tomado separadamente falta maturidade no julgamento (1281a 34-38).
Essa dietética está muito longe do modelo orgânico.
Talvez certas misturas físicas procedam assim a decantações, depurações automáticas: o resíduo se elimina por si só, caindo no fundo. Mas sem dúvida é mais correto supor que esteja aí a singularidade desse objeto que é a cidade, pois, qualquer que seja sua constituição ou seu regime, ela se define por ser "uma pluralidade de cidadãos" —, até mesmo a própria especificidade do político: constituir por si, entre todas as misturas, um tal procedimento de decantação.
[12. Imagem retomada em III, 16, 1287b 25-31, a propósito do interesse de que haja muitos magistrados:
Pois cada magistrado julga bem quando foi bem formado pela lei e é sem dúvida absurdo que alguém veja com dois olhos, julgue com duas orelhas, aja com duas mãos e dois pés, melhor do que muitos com muitos; de fato, os monarcas se tornam muitos olhos, orelhas, mãos e pés: eles aliam a seu poder aqueles que amam seu poder e sua pessoa.
Seria interessante se perguntar como essa imagem de um corpo com pletora de órgãos se torna a da tirania.]
stásis: Eles se encontram então em conflito (stasiázeiri), oprimindo uns aos outros sem quererem eles mesmos fazer o que é justo" (b13-16).
A homónoia é assim o estado de equilíbrio produzido pelo exercício da singularidade e do interesse egoísta levado até o extremo: novamente a mistura democrática tira partido dos próprios defeitos. Há aí uma astúcia objetiva, não da razão, mas da democracia. Com a condição — é preciso talvez enfatizá-lo mais uma vez — de que o movimento não cesse: a democracia é o contrário de uma "ideia", consiste apenas no seu devir. Aí se encontra, para aquém de Aristóteles, a prática sofística, e inclusive o gesto exemplar de Heráclito narrado por Plutarco16: a seus concidadãos que lhe perguntavam o que pensava da homónoia, Heráclito teria respondido preparando um kykeón (mistura sem dúvida de água, de farinha de cevada e de menta), agitando-o "sem dizer uma só palavra... diante dos efésios estupefatos", antes de bebê-lo e de se retirar. Pois é a mistura, e o movimento criador de mistura, que faz consenso em democracia.
Ao final dessas análises, não é difícil constatar tudo o que o Aristóteles político, antiplatônico, deve à sofística.
O primeiro traço, que pode parecer (voltaremos a isso com Hannah Arendt) o mais grosseiro, mas sobre cuja interpretação se impõe a maior prudência, é a importância do lógos em política. O lógos é, para um sofista, a virtude política por excelência. Ora, Aristóteles apresenta, desde o início de sua Política, duas definições do homem: o homem como "animal de cidade", ou "animal político", e o homem como "animal dotado de logos” (I, 2, 1253a 7-l0). É porque o homem é capaz, não apenas de sons vocais expressivos, mas de lógos, quer dizer, ao mesmo tempo de efeitos convencionais, ou palavras, e de articulação sintática, ou julgamentos, que ele é "mais político" que os outros animais políticos. Todavia o emprego do lógos na Política faz dele menos uma téchcé, uma competência retórica, do que um télos, a finalidade mesma de nossa natureza (VII, 15, 1334bl5)17. Dito de outro modo, uma retórica de tipo sofístico — a mesma que sabe infletir [Osório diz: dobrar, curvar] a decisão dos juízes e as escolhas da assembleia ou, através do elogio, criar valores comuns — tem como objetivo político em Aristóteles nos tornar lógicos in actu; ela deve fazer com que antes de tudo cada um de nós, mediante noutética [Osório diz: por em mente, admoestar, exorar] e educação, possa se tornar aquilo que é, orientado para e por lógos e noûs, algo, para dizer a verdade, que se aproxima de um governante platônico: na medida em que vivemos em uma cidade, somos todos filósofos, ao menos em potência.
O segundo traço comum é a percepção imediata, "física", do homem como cidadão, e da cidade, qualquer que seja sua constituição, como pluralidade, quer dizer, pluralidade de dessemelhantes.
O terceiro traço ligado a isso é a apreensão da homónoia, ao menos num tal plêthos [Osório diz: pluralidade], como puro efeito de uma stásis [Osório diz: discórdia interior, sedição] contínua.
Em Aristóteles, qualquer que seja a complexidade da articulação entre política e ética, parece-me que se pode em todo caso reconhecer nesses dois últimos traços uma certa especificidade do político. A ela corresponde, assim como testemunha o início da Ética a Nicômaco, uma autonomia, até mesmo uma hegemonia, da política, “dominadora e arquitetônica por excelência” (E. N., I, 1, 1094a 26-28), enquanto a própria investigação concernente ao bem é ainda “algo de político” (politiké tis oûsa, ibid., 1094b11). O paradigma disso é sem dúvida que existem ao menos dois livros distintos, a Política e a Ética a Nicômaco, face à unicidade da República de Platão.
Assim sendo, proporia dois critérios que permitissem diferenciar dois modelos de consenso. O primeiro diz respeito à autonomia relativa do político: será esse um domínio que tem seu fundamento, sua razão de ser, em outro lugar que não nele mesmo, na ética por exemplo como em Platão, ou será antes uma potencialidade por si só, arquitetônica se quisermos, como na sofística e em Aristóteles? O segundo diz respeito à autonomia relativa do indivíduo em relação ao todo: trata-se de uma subordinação hierárquica onde a singularidade não é jamais considerada como tal, jamais relacionada a ela mesma, ou antes é um livre jogo de diferenças, uma articulação da concorrência?
(...)
É por isso que Arendt recusa constantemente o nome de "filósofa", em benefício do de "professora de teoria política" — Protágoras já preferia o de "mestre de virtude", ou "professor de excelência" [Osório diz: viria daí a recusa do Sócrates platônico em não aceitar a possibilidade de ser possível ensinar a virtude, especialmente pelo fato de seus alunos terem sido o que foram?].
1.3 A grande ilusão (Para servir a uma encenação da Helena de Eurpipedes) (*)
Eurípedes no teatro, como Tucídides na história, são, se ouso vi áizsr, border-line: clássicos, e mesmo paradigmas do classicismo por vir, porque empregam como que naturalmente os conceitos e as oposições elaboradas pela filosofia; mas sofísticos, em acréscimo e em catástrofe em relação a esses mesmos conceitos e
1. O que não quer dizer que Platão, em todo caso, não seja ele mesmo border-line em relação a seus próprios filosofemas, como eîdos-eídòlon, dos quais se tratará aqui. [Osório diz: vide p. 40 (do livro)]
(...)
A Helena faz girar as oposições canónicas da alétheía e do pseudos. do ser e do parecer. (…) Diz Ronsard, "em uma mesma Helena, uma outra Penélope", tão fiel quanto astuta.
(...)
Gostaria de encenar no papel essa Helena, distinguindo a vertente platónica e a vertente sofística.
(...)
A questão da intriga filosófica: a relação entre a coisa mesma e seu nome, e o estatuto da semelhança.
Velho do mar do canto IV da Odisseia, "Proteu o egípcio", o mestre das formas, "proteiforme" exatamente, que sabe, diz Homero, imitá-las todas, leão, dragão, pantera e porco, água ou árvore (IV, 385; 415-417; 455-461).
(...)
Ela mesma, filha de Tíndaro ou de Zeus e de Leda., diz de si mesma" "Fui nomeada Helena" (22), nome que se pode traduzir por "Aquela que faz avançar".
8. O mesmo tipo de oposição-inversão, eidos/eídõlon, corpo/nome,
Infortúnios que lhe vale sua beleza: "Pudesse eu apagar-me virando-me pelo avesso como se fosse uma estátua oca e tomar uma horrível forma ao invés de uma bela"
Eidos em toda labilidade: o eîdos é então aqui apenas
Helena, insolente de beleza.
Isócrates. Elogio de Helena, 167.
Quiasma
306 C. Helena, aquele que veio, o estrangeiro, quem quer que seja, não acredites que tudo que ele disse é verdadeiro.
H. Mas o que ele disse claramente, em todo caso, é que meu marido está morto.
— Muitas palavras nascem sob o efeito de enganos.
110 — Aquelas em todo caso que os invertem, palavras de verdade, são plenas de clareza
Assim a clareza do discurso se encontra ela mesma colocada cm dúvida pela mesma razão que a clareza da visão. Pode-se medir, com esse simples exemplo, a complexidade, o caráter incessante, da distorção dos conceitos filosóficos. Platão também faz a crítica da evidência sensível, mas para ensinar a da ideia ou do espírito; Platão também faz a crítica da persuasão retórica, da aparência de verdade, mas para induzir a procurar a verdade verdadeira, a realidade ideal. Eurípides não cessa, ao contrário, de colocar em toda solidariedade a ideia com o ídolo e a verdade com o brilho do verossímil.
A constatação de sinonímia recobre o que chamaríamos antes, com Aristóteles, homonímia: coisas que trazem o mesmo. (homo-) nome, mas que não são as mesmas, que não têm a mesma definição. "Sinônimas" entretanto, já mais rigorosamente, porque têm em comum (syn-), além do nome, algo como o gênero ou a espécie: uma mulher, uma cidade. Em todo caso, insuficiência de palavras, insuficiência de nomes próprios, para coisas demais a dizer. Essa pobreza original da linguagem, e essa falta de imaginação eponímica, estão presentes, para tranquilizar Menelau, em toda filosofia. [Osório diz: 9. O mal radical da linguagem e, na verdade, que os nomes sejam necessariamente em menor número que as coisas (cf. Ref. Sof., I, 165 a 12-14). [Osório diz: a palavra folha, por exemplo, serve tanto para a folha da parreira quanto para a folha de papel! E a palavra “manga”, tem “n” acepções]. [Osório diz: é aqui que Aristóteles matou o Crático platônico].
Desde então, Menelau não pode mais se fiar em nada. Nem na linguagem, porque reconhecer uma homonímia não fornece nenhum critério para distinguir entre a coisa que se crê dizer ou / ouvir e a outra. É por isso que o argumento do equívoco da / palavra se acha invocado tanto por Helena — "O nome pode se encontrar em vários lugares, não o corpo" (588) — quanto por/ Menelau; somente Helena chega à plena consciência da liberdade da palavra em relação à coisa que designa: a coisa está apenas onde está, mas o nome está em toda parte onde é proferido, dotado de ubiquidade, e capaz assim de fazer existir simultaneamente, como foi experimentado amargamente por ela, coisas homônimas, ou uma coisa e seu semelhante. Menelau não pode mais se fiar em seus olhos, malgrado a insistência de Helena que ainda tem confiança em seu corpo e em sua forma, pois, assim como a homonímia é a doença da linguagem, a semelhança (prospherésteron, 559, prospherès, 591; homoían, 564; hómoion, 577; éoikas, 579) é a doença (575-581) da visão. É aliás por isso que elas vão tão bem juntas, a tal ponto que a imagem \e o modelo, "o homem" e "o que é pintado", deverão servir para Aristóteles logo no início das Categorias como paradigma para\ a homonímia. A Menelau, não resta mais do que a "clareza" (to... saphés, 578, ver supra), que, ele o confessa no fim, é afinal, com o brilho da sua glória iliádica, apenas a evidência da boa narrativa: "É a grandeza de minhas penas lá embaixo que me persuade, e não tu" (593). Essa cena de desconfiança filosófica, digna de mísfits, é assim completamente magnetizada pela ficção: "ficção" (plásantos, 585) divina dotada de olhar que sabem fabricar os deuses quando encarnam a palavra, ou ficção da epopeia que sabem desenvolver os poetas.
(...)
A cena tradicional de reconhecimento é uma cena de desconhecimento.
(...)
"Estou morta nos fatos, sem sê-lo em ato. . . Pois se meu esposo vivesse, teríamos sido reconhecidos à nossa chegada, pelos sinais que só são manifestos para nós" (286, 290s.).
(...)
— O nome pode se encontrar em vários lugares, não o [corpo
— Deixa-me, eu me vou com minha parte de sofrimentos
— É a grandeza de meus sofrimentos lá embaixo que me [persuade e não tu...
Vê-se com que força a semelhança, que fornecerá na Poética aristotélica um dos recursos principais do reconhecimento, "o reconhecimento por raciocínio" ("nas Coéforas, alguém semelhante – hómoios — chegou; ora, ninguém é semelhante senão Orestes, logo, foi ele que chegou", 16, 1457a 4-6, trad. Lallot-Dupont Roc), constitui o motivo do conhecimento errôneo propriamente dito: "Adeus então, porque és análoga a Helena" (Kai chairé ge, Hélenêi prospheres othoúnek' el, 591).
1049 H. Escuta, mesmo se é uma mulher quem fala, um sábio [conselho:
um cenotáfio
Menelau será a única testemunha ocular de sua própria marte: tal é o poder das palavras.
… por Helena de "sepultar nos vazios tecidos de um véu" (1244): o importante é o nada.
1. Podemos ser pré-socráticos de outra forma? (*)
(Observações sobre a interpretação heideggeriana da sofística)
Três perigos ameaçam o pensamento.
O bom e salutar perigo é a vizinhança do poeta que canta.
O perigo que tem mais malignidade e mordacidade é o próprio pensamento. É preciso que ele pense contra si mesmo, o que só faz raramente.
O mau perigo, o perigo confuso, é a produção filosófica."
Martin Heidegger, na trad. franc., "L'expérience de la pensée",em Questions III, p. 29.
Jean Beaufret, em seu Dialogue avec Heidegger sobre a Filosofia Grega (…) Começa assim:
Com Zenão, o pensamento recai muito abaixo do ápice ao nível do qual havia se estabelecido com Heráclito e Parmênides. Zenão, teria dito Aristóteles, é "o inventor da dialética". Uma tal afirmação não tem nada de elogio, já que, para Aristóteles, a dialética, como a sofística, só tem da filosofia a aparência... O verdadeiro filósofo é aquele que olha e que faz ver. Zenão não tem nenhuma preocupação em olhar e não faz ver nada. Só está atento "àquilo que acontece se". É por isso que não cessa de percorrer a sequência das provas, e eis-nos presos na armadilha sem termos sido esclarecidos... Assim acontece com toda contestação que, para fazer cair cada um de seu próprio erro no do contestatário, distingue-se por substituir a posição pensante do espanto iniciador pela marcha forçada da argumentação constrangedora (p. 86). [Osório diz: quem foi o inventor da dialética? Aristóteles elogia Zenão?]
a argumentação zenoniana sobre o movimento.
libertar "o Aquiles mais sutil de Zenão, preso pelos pés em suas metades de metades".
à maneira dos katabállontes de Protágoras ("argumentos derrubadores", "catástrofes da argumentação"),
1. Há dois tipos de pré-socráticos: os autênticos pré-socraticos (os da manhã, da aurora, da origem) — Parmênides, Heráclito, aos quais é preciso acrescentar Anaximandro; e os pré-socráticos decadentes (os do declínio, da queda) ou inautênticos (os da aparência enganadora da filosofia) — Zenão, a sofística.
(...)
3 - O ponto de decadência é determinável: trata-se de uma transformação da relação com o lógos.
Não nos surpreenderemos em encontrar poucos textos de Heidegger que tenham como objeto estes pré-socráticos.
Que Marlène Zarader caracteriza por um interesse pelos "gregos" em geral que "pensaram o que a tradição ulterior esqueceu" 1 (Logik. Die Frage riach der Wahrheit, 1925-26),
O interesse diferenciado de Heidegger tem como objeto os "primeiros gregos" "que experimentaram o que ninguém pensou”
Qualquer que seja a conotação, a sofística constitui, em todo caso, uma "passagem"3 entre o antigo e o moderno.
No volume Logik (GA 21), Heidegger situa no final da introdução, e como para servir de contraste com a verdadeira pesquisa, a problemática do ceticismo (4. Mõglichkeit und Sein von Wahrheit überhaupt. Skeptizismus, pp. 19-25). Ora, o texto imediatamente evocado para ilustrar a posição cética (aliás, o único texto evocado) não é outro senão o início do Tratado do não-ser de Górgias: "Primeiramente, nada é; em segundo lugar, se alguma coisa é, é inapreensível para o homem; em terceiro lugar, se é apreensível, é incomunicável e incompreensível para outrem". A refutação heideggeriana do ceticismo consiste em mostrar que a questão concernente à existência da verdade, questão que o ceticismo faz passar por primeira e prévia, supõe de fato a questão filosofante concernente à essência da verdade. O próprio ceticismo já resolvera essa questão sem dizê-lo: ele pensa a essência da verdade em termos pós-aristotélicos de validade dos enunciados. É aliás porque o ceticismo supõe o princípio de não-contradição como critério que é legítimo considerar que ele se auto-refuta. E mais, continua Heidegger, "com o ceticismo, é também todo relativismo que se auto-refuta, quer dizer, a afirmação de que não há verdade absolutamente válida" (p. 21). Com efeito, contrariamente ao que pretende o relativista, há para ele ao menos "uma verdade absoluta": que só há verdade relativa. Finalmente, isso tem como efeito o término da questão, qualquer discussão do ceticismo e do relativismo é antes o índice de que "a questão fundamental da lógica ainda não alcançou a dimensão do questionamento filosófico" (p. 24).
(…)
Górgias era contemporâneo de Parmênides com a diferença de algumas dezenas de anos. O médico Sextus Empiricus escrevia por volta dos anos 200 da nossa era, ou seja, sete séculos mais tarde. Foi ele quem apropriou para o ceticismo o Tratado do não-ser de Górgias, que serve em sua obra para ilustrar a inexistência de um critério da verdade. Heidegger, herdando nisso mais da filologia alemã do século dezenove do que da filosofia (a interpretação que Hegel dá do tratado parece, em todo caso, levar muito mais longe, cf. Leçons sur l'histoire de Ia philosophie, trad. Garniron, II, pp. 266-272), homologa a assimilação operada por Sextus sem prudência nem desconfiança. Entretanto, nas primeiras frases de seu capítulo, e como que coagido pela citação de Górgias que aí acaba de anunciar, Heidegger desenvolve uma "rede de questões" às quais não retornará no decorrer de sua análise, mas que parece ultrapassar o campo da questão propriamente cética concernente à existência da verdade: "será que a verdade afinal 'é', quer dizer, será que há alguma coisa que 'dê' o ente tal como ele é? E assim poderíamos continuar a perguntar: será que o ente, afinal, é?" (p. 19). A questão da existência da verdade desemboca aqui na questão da existência do ente em geral, o mais próximo possível da questão metafísica fundamental do "alguma coisa em vez de nada": tal é na verdade o tipo de questão, concernente à relação do "é" e do "não-é" e sobre o "em vez de", em que se engaja efetivamente o Tratado do não-ser5. Mas Heidegger, conformando-se à leitura do tratado como paradigma do ceticismo, não considera nem mais um instante a outra possibilidade que consiste em lê-lo na direção do Poema de Parmênides; nem mesmo na direção indicada pelo Sofista de Platão, ao passo que, muito explicitamente no diálogo, a refutação de Parmênides e o parricídio perpetrado pelo Estrangeiro só são necessários devido à impossibilidade do pseúdos, quer dizer, a posição sofística acerca da verdade".
[4. Heidegger cita certamente a versão dada pelo cético Sextus Empiricus (Adv. Math., VII, 65), a mesma que encontramos em Diels-Kranz, e não a versão provavelmente mais "autêntica", em todo caso, mais autenticamente sofística, transmitida pelo pequeno tratado pseudo-aristotélico Sobre Melisso, Xenófanes e Górgias, que, como a sequência do título basta para indicar, instala Górgias no interior de uma problemática eleática, parmenideana, e não cética.]
(...)
Além disso, o amálgama sofística-ceticismo tem como efeito ligar a refutação do ceticismo e a da doutrina, tradicionalmente atribuída ao próprio Protágoras, do “relativismo”. Entretanto a ligação não é evidente. O ceticismo predetermina a essência da verdade como não-contradição. Ora, isso é justamente o que o relativismo não faz, como testemunha a economia do livro Gama da Metafísica de Aristóteles, onde a demonstração do princípio de não-contradição se encontra acompanhada de uma refutação de Protágoras, porque seu relativismo mantém, até o fim, a recusa do princípio. É antes a refutação heideggeriana que é da ordem do que Aristóteles chama, visando Platão, o thiyloúmenon do "repisado" ou do "trivial" (8, 1012b 14), pelo fato de atribuir ao adversário o princípio que ele recusa, para fazer de sua posição um erro lógico. Lendo bem o Teeteto, Sócrates já estava mais prudente, já que lhe era necessário apreender o instante em que o relativismo afirmava ser verdadeira (e em nenhum caso porque não contraditória) a opinião contrária à sua, para fazer notar que nesse momento preciso a sua era falsa, não porque fosse assim contradita, mas porque ela não era mais verdadeira para ninguém, "nem para ele nem para um outro" (171a 5-7). Com efeito, a exceção que a opinião da relatividade pode constituir — ao menos uma verdade absoluta: que a verdade é somente relativa — só se apoia, na perspectiva própria do relativismo, na força fenomenal, em todos os sentidos do termo, de sua afirmação: a opinião do relativismo parece verdadeira no momento em que é afirmada porque parece dizer o que aparece. É isso que enfatiza fortemente Aristóteles, quando mostra que a posição de Heráclito e a de Protágoras têm sua origem na mesma equação: pensamento = sensação = alteração que lhes impõe afirmar que "o que aparece na sensação é necessariamente verdadeiro" (to phainómenon katà tên aísthësin ex anánkés alëthès einai 5. 1009b 12-15 e, mais geralmente: he perï tá phainómena aletheia, 1009bl, cf. 1009ª 7-8). Nessa perspectiva, é Protágoras quem fornece a Aristóteles o conceito de phainómenon, “fenômeno”, que lhe permite unificar o conjunto do pensamento pré-socrático, não somente o de Heráclito, de Crátilo, de Empédocles, de Demócrito, de Anaxágoras e de Homero, mas também o do próprio Parmênides. Assim, para Aristóteles, Parmênides só é pré-socrático na medida em que é protagórico: um historiador da filosofia sensível ao humor não pode deixar de enfatizar como a reflexão aristotélica sobre o caráter fenomenológico da aletheia pré-socrática — do qual Heidegger se tornará por outro lado constantemente o eco —, leva a pensar em um mesmo movimento Heráclito e Parmênides tendo o “relativismo” de Protágoras como fundo.
(...)
"Do acúmulo das compreensões erradas surgirá finalmente uma compreensão".
Verfall (logificação, tagarelice),
Questão do "é" e do "não é", do "alguma coisa" e do "nada", verdade definida mais "fenomenologicamente" do que não-contraditoriamente: as objeções que apresentei até o momento sobre a interpretação heideggeriana de Górgias e do relativismo só fazem afinal antecipar a outra posição possível em relação à sofística: os sofistas são pré-socráticos; Platão ou Aristóteles, que os compreenderam melhor que a modernidade, entretanto já os ocultaram, mas podemos por nossa vez colocar-nos à escuta de sua fala como mais original ainda. Essa segunda concepção, que se exprime claramente no Complément 8 a "L'époque des conceptions du monde" (Chemins, trad. Brokmeier, pp. 92-95), retomado com algumas modificações em "La proposition de Protagoras" (Nietzsche, II, trad. Klossowski, pp. 110-114), obriga a uma reconsideração do relativismo.
Trata-se, nesses textos, de pensar a história do ser preservando a irredutibilidade de suas épocas, no caso a diferença entre a alétheia grega e o subjectum moderno. A análise dos momentos essenciais de uma posição metafísica fundamental permite dissipar "a ilusão de que Protágoras seria, por assim dizer, o Descartes da metafísica grega" (Nietzsche, II, p. 114). A retradução da sentença de Protágoras sobre o homem-medida, e a insistência sobre o fim da citação bastam para fazer entender que não se poderia tratar aí de "subjetivismo":
De todas as coisas (notadamente das que o homem tem em torno de si no uso e no costume, e assim de modo constante — chrëmaía, chresthaï), o homem (a cada vez) é a medida das coisas em presença, de forma que elas se "presencificam" assim como elas se "presencificam", mas também daquelas às quais permanece recusada a "presencificação" de forma que não se "presencificam" absolutamente (Nietzsche, II, p. 110; cf. Chemins, p. 92s.).
O essencial da interpretação consiste em entender a medida não como uma dominação do sujeito soberano sobre os objetos [Osório diz: Mas existe objeto sem sujeito?], mas como uma restrição, uma moderação, até mesmo uma justa medida da não-ocultação.
Essa restrição pressupõe que a não-ocultação já tenha sido experimentada enquanto tal uma primeira vez e assim erigida no saber enquanto caráter fundamental do próprio ente, isto notadamente nas posições metafísicas fundamentais dos pensadores do começo da filosofia ocidental: em Anaximandro, " Heráclito e Parmênides. A sofística — Protágoras passa pelo pensador que a dirige — só é possível sobre o fundo e como forma derivada da "sophía", quer dizer, da interpretação helênica do ser enquanto presença, e da determinação helênica da essência da verdade enquanto aletheia (não-ocultação) (Nietzsche, II, p. 113; cf. Chemins, p. 94; grifo meu).
Protágoras — mas talvez justamente não toda a sofística (se prestarmos atenção à estranha precaução oratória segundo a qual Protágoras "passa pelo" (gezahlt wird) pensador que a dirige), pois não seria ele bom demais para ela? —, então, não aparece mais como um pré-socrático inautêntico ou decaído, mas simplesmente como um pré-socrático derivado, segundo, secundário. Não é preciso mais condená-lo, mas antes ouvi-lo bem, interpretando-o por meio da boa trilogia.
Uma indicação em Chemins, que não encontramos em Nietzsche, precisa a relação com Platão e Aristóteles. Sua interpretação do ente e do homem (que remete à ideia, à theòría) introduz uma mudança decisiva no interior da apreensão fundamentalmente grega do ente: "Ora, essa interpretação, enquanto luta contra a sofistica, e assim na dependência desta, é precisamente tão decisiva que marca o fim do mundo grego, cujo fim ajuda a preparar mediatamente a possibilidade dos tempos modernos" (p. 92; grifo meu). Assim, o papel historial da sofística encontra seu lugar histórico, entre Anaximandro-Heráclito-Parmênides e Platão-Aristóteles.
Se Platão e Aristóteles estão “em luta” contra a sofística, [Osório diz: Como estes dois “gigantes” resolveram enfrentar um “nada”?!] por outro lado não há antagonismo, mas uma simples "restrição" entre a sofística e os grandes pensadores do começo. Podemos perguntar se essa primeira restrição não constituiria, aliás, o modelo do "estreitamento. . . que se encontra ao longo da história da meta-física" '". Se "a interpretação ontológica do ser no começo (h filosofia, na Antiguidade, se realiza orientando-se pelo que é vorhanden" (GA 24, p. 417, citado p. 258), poderia ser então que os sofistas fossem, como Nietzsche supunha, não mais como há pouco os menos gregos dos gregos, mas realmente os mais gregos de todos. Remi Brague escolhe, distinguindo "antropologia" e '.mtropomorfia", afastar Protágoras:
Assim, para Heidegger, a tradição filosófica, e antes de tudo sua origem grega, é antropológica. Não no sentido de que ela seja antropomórfica, de que faça do homem a medida de todas as coisas, mas no sentido em que avalia o Dasein na medida da Vorhandenheit e produz assim o homem (p. 264).
Mas não poderíamos afirmar, ao contrário, valendo-nos da interpretação heideggeriana do homem-medida como restrição da não-ocultação, que ele caracterizou antes aqui, em seu sentido mais eminente, o não-subjetivismo de Protágoras? De qualquer maneira, quando "pré-socrático inautêntico" torna-se alguma coisa como um oxímoro, a sofística perde seu caráter de espelho caricato para se tornar discurso segundo que, na medida em que restringe o pensamento das origens ao se apropriar dele, faz uma sequência historial em direção à modernidade."
Mas se Heidegger retoma o sentido do relativismo, não retoma sua apreensão, ou sua não-apreensão, da discursividade sofística propriamente dita. Esse desprezo ou essa ignorância acerca do lagos sofístico pode ser medido em relação aos silêncios que cercam a nova interpretação de Protágoras. Parece-me significativo que essa reavaliação do relativismo proposta a partir do Teeteto, e que se autoriza da estima professada por Sócrates a Protágoras (Heidegger cita 152b eikòs méntoi sophòs ándra melereiin, "é de se presumir que como homem ponderado... ele não tagarela ao acaso"; grifo meu), não leva absolutamente em conta a "Apologia de Protágoras", onde Sócrates defende magistralmente, quer dizer, como se ele mesmo fosse Protágoras, a tese de Protágoras contra as interpretações abusivas que ele, Sócrates, tinha de início fomentado. Ao contrário, a interpretação que fundamenta essas grosseiras e abusivas interpretações — o homem/o porco é a medida de todas as coisas (161c; 162d; 166c) — é, formalmente, aquela em que se detém Heidegger, mesmo se ele propõe por sua vez uma interpretação magistral da medida não como ego mas o uno restrição da presença. É que na Apologia, Sócrates-Protágoras fala do lógos sofístico enquanto tal, precisamente com tiuila sabedoria que ela impede assimilar tagarelice e recusa da não-contradição. Todas as opiniões são verdadeiras, diz, mas todas não se equivalem: o sofista através de seus discursos como o médico através de seus remédios sabe fazer passar, não de uma opinião falsa a uma opinião verdadeira, mas "de um estado menos bom a um estado melhor” (166d, 167d).
Uma tal sophía e um tal lógos são muito menos fáceis de derivar da alétheia parmenideana; o lógos sofístico torna-se difícil de ser determinado, nem helênico, nem moderno, nem passagem de um ao outro. Que não lhe convenha nenhuma das determinações historiais tornadas tópicas por Heidegger, e que ele tenha sucessivamente tentado aplicá-las a ele, assimilando-o seja ao ceticismo, seja a Parmênides, disso nos damos conta ao ler, por exemplo na Introdução à Metafísica, a dupla caracterização possível do lógos: "Inicialmente, o lógos, enquanto recolhimento, é o pro-vir da não-latência, é fundado nela e está à sua disposição. Agora, ao contrário, o lógos torna-se, como proposição, o lugar da verdade concebida como retidão, correção" (trad. Kahn, p. 190). Mas o lógos eficaz de Protágoras, tal como Protágoras-Sócrates o caracteriza, não é nem o recolhimento do co-pertencimento que, mesmo restrito coloca as coisas presentes na presença, nem a adequação regulada na proposição e, em resumo, pela mesma razão, que faz aventar a fórmula: o que é não se diz nele, ele não diz o que é, mas faz ser o que diz.
Assim sendo, é finalmente o conceito de tagarelice que continua a unificar a percepção tradicional e a percepção "melhorada" que Heidegger pode ter da sofística. A prova disso é que no próprio Nietzsche (I, seção III, "A vontade de potência enquanto conhecimento"), quando Heidegger retorna a Aristóteles e ao "princípio de não-contradição enquanto princípio do ser", reencontra sua antiga violência para condenar a tagarelice catastrófica dos que se recusam a se submeter ao princípio. Sabemos que Aristóteles, para estabelecer o princípio, deve convencer de início Protágoras, que fala corno físico sob o efeito de uma aporia, mas, para além de Protágoras, deve refutar sofistas ainda piores que "falam por (o prazer de) falar", lógou chárin légousi (gama, 5, 1009a 20, 21). Com relação a eles, não pode usar de persuasão, mas somente de violência e, na verdade, a refutação deles, enquanto "refutação do que é dito nos sons da voz e nas palavras" (1009a 21-22), se revela impossível: Aristóteles exclui da humanidade essas plantas que falam. Heidegger só faz atualizar seu gesto mostrando que:
ao sabor das afirmações contraditórias que o homem é capaz de produzir à vontade acerca de uma só e mesma coisa, ele sai de sua própria essência para entrar na não-essência, rompe com toda relação ao ente enquanto tal.
Essa queda na não-essência de si mesmo tem como assustador o fato de acontecer dia-a-dia e só se mostrar sob a aparência do puramente inofensivo sem que os negócios e os prazeres sejam de forma alguma afetados, e que a forma pela qual pensamos não pareça absolutamente ter importância, até que estoure a catástrofe — em tal dia que espera talvez há muitos séculos antes de sair da noite feita de crescente inconsciência" (Nietzsche, I, p. 467).
Para resumir, podemos nos surpreender com o fato de que Heidegger nunca tenha reconsiderado, mesmo quando seu interesse filosófico se focalizava no lógos pré-socrático, os textos pré-socrá-ticos por excelência onde se trata do lógos, a saber, os textos sofísticos. Podemos explicá-lo de duas formas. Em linguagem banal: Heidegger por um lado é o herdeiro da tradição alemã, por outro simplesmente construiu por projeção a origem necessária à economia da sua meditação própria. Em linguagem heideggeriana: Heidegger mostrou — não podemos ser pré-socráticos de outra forma —, Górgias é célico, Protágoras é um sub-Parmênides; acreditar que o lógos sofístico não se deixa subsumir imediatamente sob a alétheia é uma má compreensão da própria alétheia, um erro de perspectiva e uma falta de gosto.
Para esclarecer a insatisfação em que me deixam esses dois tipos de resposta, gostaria de propor algumas indicações programáticas.
É verdade que a sofística é um discurso segundo; creio haver mostrado que o Tratado de Górgias reescreve em catástrofe o Poema de Parmênides; colocando o próprio Parmênides como hipótese (Si Parmênide), Para tentar provar que isso não implica que possamos derivar o lógos sofístico do lógos pré-socrático "normal", podemos partir novamente, seja dos próprios textos sofísticos e de sua apreciação-construção por Platão e Aristóteles, seja — e o risco polêmico seria mais vivo — de Heráclito muito certamente, de Anaximandro provavelmente, que constituem e constituiriam pontos de litígio não somente análogos como também aparentados à sofística. Sem voltar a nenhuma das oposições caducas, um/múltiplo, ser/devir, tratar-se-ia de tomar esses fragmentos segundo uma outra perspectiva, como teorias e práticas do lógos resistindo à medida comum manifestada com tanta potência por Heidegger. Um debate que retomasse a questão a partir de "Lógos" em Essais et conférences, de "La parole d'Anaximandre" em Chemins, do Heráclito de Heidegger-Fink e mais ainda do tomo 55 da GA sobre Heráclito, e da problemática da homalogía, utilizando por exemplo de um outro lado um certo número de interpretações propostas no Heráclito de Bollack-Wismann, nunca ocorreu, que eu saiba, nessa perspectiva.
II
DA FÍSICA A POLÍTICA
II. 1 Imagens da cidade e para um consenso (*)
"dentre todos esses magníficos animais com chifres à frente dos quais o senhor Prefeito nos dá a honra de se assentar, ele • que, de pé na proa do esplêndido rebanho rebanho da raça bovina do país, segura, com um olhar lúcido e vigilante, o leme cujas velas, sob a impulsão do magnífico cavalo de tração ,s. indígena, conduzem, sobre a reta estrada da prosperidade, o matuto de Champignac que não teme seus meandros..." (O prisioneiro de Buda, Franquin, Greg. Jidehem).
Gostaria de tentar questionar, a partir da Grécia antiga, uma noção que me parece cada vez mais central para nosso imaginário político e filosófico atual (a ponto de poder parecer constitutiva da idade adulta ou da modernidade em política, com o referendum, por exemplo, que representa um de seus empregos práticos): a noção de consenso.
O consenso é, na verdade, um conceito-articulação, que permite articular conjuntamente três domínios:
— o lógico, no sentido lato (lógos), já que a linguagem é o instrumento por excelência do consenso, quer se trate de obter por via dialógica, empregando o que se denomina hoje em dia razão comunicacional, ou por via retórica de persuasão;
— o ético, já que o consenso é busca de, e consentimento em, um optimum que preserve toda e cada uma das partes em presença;
— o político enfim, já que obter o consenso é ganhar a paz civil, social, nacional, até mesmo a concórdia internacional, entre estados.
Escolhi fazê-lo a partir de três corpus filosóficos distintos, mas que estão em diálogo, em contradição, em polémica, implícita ou explicitamente, um com o outro: o da sofística, o de Platão e o de Aristóteles. Poderia ter escolhido" corpus não filosófieos" (o dos trágicos, por exemplo, ou o dos historiadores) e corpus filosóficos diferentes (o dos estóicos em particular). Mas meu projeto não é percorrer exaustivamente esses corpus por eles mesmos, como historiador da filosofia, mas tentar ver se e como , certos modelos que eles puderam elaborar funcionam ainda hoje em dia. Ora, parece-me que já se tem com os sofistas, com Platão e Aristóteles, figuras de base, e algo como sua combinatória. Parece-me que se pode — acentuando certos traços e passando assim, no pior dos casos, à caricatura; no melhor, ao ideal-tipo —, propor uma taxinomia que permita dividir um certo número de posições contemporâneas: por exemplo, Heidegger ao lado de Platão e Arendt ao lado de um Aristóteles sofisticado.
A cada vez o que difere é, em todo caso, a modalidade da articulação entre lógica, ética e política. Para servir de fio condutor, eis como me parece possível caracterizar cada uma das posições:
1. Consenso retórico: criação continuada da cidade pelo lógos
Um consenso de tipo sofístico é o resultado sempre precário de uma operação retórica de persuasão, que produz, ocasião após ocasião (é o kairós), uma unidade instantânea inteiramente feita de diferenças. À phýsis dos jônicos e ao Ser dos eleatas, que a ontologia nascente tinha como tarefa dizer adequadamente, se substitui a política que o discurso cria: a natureza não serve então de modelo para a cidade, é mesmo, ao contrário, a cidade que serve de modelo para o indivíduo. Com a homónoia e a homología sofísticas, o lógos torna-se a virtude política por excelência.
2. Consenso ético-político: consentir na hierarquia fixista das diferenças
Na República de Platão, a cidade é um engrandecimento da alma, e a homónoia determina uma das quatro virtudes características tanto da cidade quanto do indivíduo, a "temperança" (sophrosyne). Ela se define como sentido da hierarquia. Com a justiça, virtude da estrutura ("que cada um se ocupe de seus afazeres"), ela ordena a fixidez das diferenças funcionais no interior de uma unidade orgânica. A política e a ética são apenas uma, submetidas à mesma ideia do Bem (filósofo-rei).
3. Especificidade da mistura política: otimizar os defeitos
As relações entre política e ética são tão complexas em Aristóteles que podem parecer contraditórias. Mas a cidade se define de saída como plethos politon, "massa", "quantidade" de cidadãos. Assim se compreende que a constituição democrática possa por vezes ser chamada simplesmente "constituição", ela só levando em conta o plethos enquanto tal. Assiste-se no Político ao emprego de paradigmas cada vez menos platônicos para a cidade: como uma alma, mas antes como uma equipagem, como um coro, enfim como um piquenique, onde a organização das funções é substituída pela única mistura capaz de otimizar as diferenças e aumentar a qualidade do todo pela simples acumulação dos defeitos singulares. A virtude do homem de bem e a do cidadão, ética e política, encontram-se consequentemente cuidadosamente distintas e o consenso no seio do plethos termina sendo um ponto de equilíbrio no conflito dos egoísmos.
1. O consenso sofístico ou a criação do político
Homología. "identidade de discurso", homónoia, "identidade de pensamento", que se traduzem por "acordo", "consenso", por vezes "concórdia", são termos que pertencem antes de mais nada ao vocabulário dos atomistas (Heráclito, Demócrito) e dos sofistas (Górgias e Ântifon, Crítias, Trasímaco). Por exemplo, Górgias e Ântifon escreveram, cada um, um Perì homonoías. Limitar-me-ei a alguns fragmentos de Górgias e de Ântifon, ou gravitarei em torno deles, para caracterizar a homónoia, e a uma análise do papel do lógos em política, a partir do mito de Protágoras.
1.1. Górgias: produzir a homónoia pelo lógos integrando a stasis
A homónoia é obtida por meio do lógos. Isso já se manifesta em "Górgias. O Elogio de Helena, por exemplo, que tematiza a onipotência do discurso, ligando-a explicitamente ao tempo ("Se todos acerca de tudo tivessem na memória o passado e o presente, e conhecessem antecipadamente o futuro, o discurso não seria tal como é”.
(…)
[1. Eetomo aqui um certo número de teses elaboradas com, e às vezes por, Michel Narcy durante um seminário comum sobre "Sofística, filosofia e consenso. A genealogia do consenso", no Colégio Internacional de Filosofia, em 1987 (cf. Lê Cahier 5, abril 1988, p. 136s.).]
Como diz Sócrates falando por Protágoras na Apologia do Teeteto, o sofista através de seus discursos, como o médico através de suas drogas realiza a mudança, a inversão dos estados, fazendo passar não do falso ao verdadeiro, mas do pior ao melhor (166e-167b). Que se trate, com o lógos assim compreendido, não de conhecimento mas de prática e de virtude política, esse pode ser o próprio sentido do audacioso enunciado de Górgias, associado por Plutarco à tragédia (B23): "Aquele que seduz", até mesmo "aquele que envana" (apátesas), "é mais justo do que aquele que não engana" e o que é enganado, mais sábio do que o que não o é".
Num discurso sobre a homónoia, ou que visa a produzi-la, o que é preciso seduzir é, a bem dizer, a própria stásis [Osório diz: discórdia interior (hoje, guerra civil). Em Tucídides: “sedição”, “convulsão popular”].
2. Ântifon
2.1. A homología define a cidade (87 B44 D.K.; II, 346 = trad. francesa Plêiade, p. 1106: Peri alëtheías, fragmento A, col. l e 2).
No papiro Sobre a verdade, a evidência primeira não é que “o ser é”, mas que "se cidadaniza" (politeúetaí tis, 9, 10): a primeira realidade não é a phýsis, a "natureza", mas a pólis, a "cidade". A natureza torna-se assim a escapada das leis da cidade: é o secreto do privado, aquilo de que, conseqüentemente, não há escapatória possível (eiàn láthëi, me lathón, dfaletheian, col. 2, 5, 10, 23). A diferença entre a cidade e a natureza deve-se finalmente àquela das leis que as regem: existe o legal, o prescritivo, na cidade como na natureza (tá nómima. . . ta mèn ton nómon. . . tá dê tes phy'seõs, col. l, 23-26), mas o legal das leis é "instituído", é o "resultado de um acordo" (homologethénta, homologósantas, col. l, 29s., 33s., col. 2, 6), enquanto que o legal da natureza é "necessário" e "brota" com ela (phjnta, col. l, 32). A homología caracteriza assim para Ântifon a essência mesma da lei que constitui a cidade.
2.2. O Sobre o acordo (87 B44a D.K., U, 356 = trad. francesa Plêiade, p. 1109).
O Perì homonoías [Osório diz: Sobre a concórdia], que traduzimos frequentemente, a bem dizer cõnTlnaior preocupação com o latim do que com o grego, por Sobre a Concórdia. (…) “é o legal que é justo.”
(...)
O conteúdo da homónoia é notavelmente descrito: não se trata de compartilhar as mesmas opiniões, os mesmos julgamentos, os mesmos valores (o juramento não tem por objetivo que "os cidadãos votem pelos mesmos coros, louvem os mesmos tocadores de flauta, escolham os mesmos poetas, tenham prazer com as mesmas coisas", 16), não se trata de "simpatia"; trata-se, simplesmente, de que "eles sejam persuadidos pelas leis", que eles lhes "obedeçam" (hínajois nó móis peíthontai). A lei dos gregos é então a lei de prestar juramento de obedecer às leis. A homónoia, condição para que uma cidade seja cidade, que uma casa seja casa (polis eu polieutheíë, oïkos kalSs [p. 80] Voiketheíe), e então essência do político, é assim não uma unidade de identidade, mas uma unidade verdadeiramente formal, livre, vazia, a forma de uma unidade aberta a todos os conteúdos. [Osório diz: Harmonia entre Protágoras e Górgias].
(…)
É assim a política, homónoia/stásis, que serve para pensar a natureza e o indivíduo, do qual se exige que não seja "instável" (ástatos), "mal instalado" (astáthmetos), "em guerra contra si mesmo" (polémios prós heautórí). O modelo parmenideano encontra-se aí visivelmente invertido: a unidade do "com", unidade coletiva e plural da cidade, torna-se a matriz da unicidade.
É mais difícil interpretar os fragmentos atribuídos a Ântifon. Pois, frequentemente curtos, muito díspares, propõem sobretudo notações de vocabulário e um grande número de lugares comuns. Mas apresentam talvez uma renovação de interesse em nossa perspectiva: a homónoia, longe de estar cristalizada na unicidade de um agora eterno, deve ter em conta a diversidade das opiniões, a mediocridade das condutas efetivas e do vivido da finitude. Trata-se do tempo da vida (49-53a, cf. 77), do tempo da hesitação, do terror, da indolência, do desejo (pp. 55-59), do tempo da educação (pp. 60-65), do desgaste do tempo, mas também de seu uso segundo o kairós e segundo a diferença entre passado, presente e futuro. Pois o tempo, como o dinheiro, como não importa qual bem, só tem presença se, longe de ser mantido, for gasto, colocado em jogo. Com a fábula do avarento (p. 44), encontramos, como na sëhíënça de Protágoras, a importância do sentido etimológico dos chrémata,[Osório diz: coisa, bens ou dinheiro] aquilo de que a mão se serve e que se trata de utilizar: "aquilo de que alguém não se serviu e não se servirá, quer seja ou não dele, isso não tem nem mais nem menos o mais possível" como Cálicles, nos tonéis furados, deixou que lhe roubassem o tesouro que havia enterrado no jardim.
(...)
De uma forma mais geral, a gnómé, o senso comum, que se encontra assim frequentemente pregado pelos sofistas com a ortodoxia das condutas, é sempre suscetível de ir, parece-me, em um sentido e em um outro: "tal pai, tal filho", ou "pai avarento, filho pródigo", há sempre uma gnómé que convém; nada menos cristalizado do que o senso comum, já que, lábil e contraditório, está sempre pronto para um novo kairós. [Osório diz: senso comum é o mesmo que ditos populares?]
(…)
2.3. O lógos de Protágoras
O mito de Protágoras narrado por Platão é o texto mais longo e mais explícito que possuímos sobre a política dos sofistas. Ora, o lógos aparece no mito, contrariamente ao que deduzimos de Górgias e de Ântifon, como radicalmente impróprio para constituir a dimensão do político: “a arte de articular os sons e as palavras” é do domínio do savoir-faire prometeico, e entretanto os homens prometeicos se deixam devorar ou matam uns aos outros por não possuírem a “arte política” (321c-322b). É necessário, eis aí todo o mito, um dom suplementar de Zeus, aidós e díke, para que possam se constituir “as ordens que constituem a cidade e os liames que reúnem, trazendo a amizade” (poleõn kósmoi te kaï desmoï philícs synagogoí, 322c).
Entretanto, observando mais de perto, parece que a importância constitutiva do lógos em política deve ser mantida. Por várias razões. Primeiro porque aidós e díke exigem uma relação com o discurso em um espaço público. Aidós é o “respeito da opinião pública”, o “sentimento de respeito humano” 5, logo de forma alguma um sentimento de obrigação moral cuja transgressão provocaria um problema de consciência, mas o sentimento do olhar e da espera do outro. Da mesma forma, díke, de deíknymi, “eu mostro”, antes de ser a disposição própria do justo, diz a regra, o uso, a norma pública da conduta. Aidós é assim apenas a motivação para respeitar díke, e a díke só tem força na medida em que cada um experimenat do aidós: “respeito” e “justiça”, depois “justiça e controle de si” (dikaiosyns, sõphrosnë, 323a), adquirem sentido na concepção sofística apenas quando mediatizados pelo olhar do outro. É por isso que Protágoras proclama ao concluir o mito que “em matéria de justiça e de virtude política em geral, mesmo quando sabemos que um homem é injusto, se ele diz publicamente a verdade sobre si mesmo (talethê légëi), o que acreditávamos sabedoria há pouco (dizer a verdade) é aqui loucura”, e “diz-se que todos devem dizer” que eles são justos (kaï phasin pántas deln phánaï), quer o sejam ou não, e que “aquele que não finge a justiça (prospoioúmenon) é um louco” (323bc). O princípio de publicidade é necessariamente princípio de hipocrisia, como para Ântifon, que define o bom uso da justiça pela observância das prescrições das leis quando se está em presença de testemunhas e pela observância das prescrições da natureza quando se está na solidão do privado (87 B44, f r. A, col. 1).
É bem isso que desenvolve o lógos de Protágoras, que se segue ao mito: a virtude é como o lógos, é um aprendizado da convenção. A cidade inteira ensina o “valor”, arete, ao mesmo tempo em que ensina a falar. O aprendizado começa desde que a criança “presta atenção” ou “compreende o que lhe é dito” (syníei tá legómena, 325c 7), desde que efetua a “convenção” que são as palavras. Ele prossegue através do estudo das formas mais e mais refinadas do lógos, até esta instância eminente que é sua prestação de contas no fim da magistratura (326e). É por isso que não existem mais mestres de virtude do que mestres de grego (328a): o poder da justiça, a virtude política, se confunde com o do lógos. Mas é também por isso que Protágoras se considera um dos melhores professores.
Observaremos, para concluir, que o que ressalta do lógos após o mito, a saber que o próprio lógos constitui a virtude política por excelência, torna-se o essencial do mito na reconstrução que dele propõe Élio Aristides, no meio do segundo século de nossa era, quando a Segunda Sofística reflete sobre os poderes da retórica em plena paz romana. Em Contra Platão sobre a retórica, os homens "morrem em silêncio" (II, 396) enquanto Zeus hão lhes outorga, não mais aidos e díkë, porém a retórica que Hermes lhes traz (397). É "a vitória do lógos que permite constituir a cidade (398); a retórica "liga e ordena" (synéchei kaï kosmeï, 401, cf. 424): como "um guardião que não dorme jamais", ela consegue sempre "tornar coerente o que não cessa de acon-... tecer" (aeï to paròn synütheménS, 401). Em uma palavra, o lógos é a atualidade do político, sua criação continuada, contradição após contradição, reviravolta após reviravolta. A homónoia-homología diz essa construção perpétua do artefato que é a cidade.
(…)
3.1. Platão (República IV)
3.1.1. A cidade é como a alma
Na verdade, em Platão não se trata tanto de metáfora quanto de ampliação e de miniatura. Diante da dificuldade de definiria justiça, Sócrates propõe, com efeito um expediente:
"epanáfora" (434e) da cidade no indivíduo, se faz a partir do capítulo XI do livro IV, para chegar à constatação de que a cidade soube realmente tornar legíveis "o princípio e o modelo da justiça" (archën te kaï typon, 443b).
Mas as coisas são manifestamente um pouco mais complicadas. Pois, quando Sócrates se dedicou a definir a justiça em letras grandes, no grande teatro da cidade, recorreu sem cessar ao que se passa no homem, no indivíduo. Tomarei um único exemplo, crucial para meu propósito: o da sophrosyne~, uma das quatro virtudes, parece, "evidentes" da cidade "perfeitamente boa" (427e); é um termo que se tem o costume de traduzir por "temperança", justamente por causa da prioridade do modelo "psicológico". A temperança então, diz Sócrates, é "um tipo de ordem e de império sobre os prazeres e os desejos" (430e); para melhor explicá-la, lê se serve da expressão "ser senhor de si” (kreíttõ hautoü): "parece-me que essa expressão quer dizer que, no próprio homem, há, em sua alma, uma parte melhor e uma parte menos boa, e quando, como é natural, a parte melhor domina a parte menos boa, então diz-se que se é "mestre de si" (431a). É então, e somente então, que Sócrates propõe "voltar os olhos" (apóblepe, 43 Ib) em direção à cidade "temperante", para constatar que a melhor parte aí comanda, como no homem temperante, a menos boa.
"parte que decide" (to bouleutikón), representada na cidade pêlos "governantes" ou "guardiães perfeitos", e na alma pelo "princípio lógico" (ho lógos, to logistikón), e cuja virtude é de ser "sábio" (sophôs); "a parte que vem em auxílio" (to epikourëtikóri): na cidade, os "guerreiros"; na alma, o "humor" (to thymoeidés), cuja virtude é a "virilidade" ou "bravura" (andreia); enfim, "a parte que é referente aos objetos", "que se liga aos bens" (to chrèmatistikón): na cidade, os produtores e os comerciantes; na alma, "o desejo" (to epithymëtikón), que tem como virtude, precisamente, a "temperança" (cf. sobre tudo isso, em particular 440e-441a).
(...)
A temperança é esse consenso (homónoian), consonância (xymphõnían) natural do pior e do melhor para determinar qual dos dois deve comandar tanto na cidade quanto em cada indivíduo".
3.1.3. A parte em função do todo
Vemos que é finalmente o modelo orgânico, mesmo se não é nem o mais explícito nem detalhado em sua totalidade, que triunfa: a cidade/a alma funciona como o corpo. A diferença entre as partes é necessária pela mesma razão que aquela entre as mãos e os olhos. Aliás, a cidade está doente do cidadão como ohomem está doente do dedo (IV, 462cd); e, mais geralmente, a justiça é saúde da alma como da cidade (444c-e), da mesma maneira que as formas desviantes de constituições são doenças, segundo a metáfora que desenvolve o livro VIII. A homónoia descreve a maneira pela qual as partes concorrem para o todo. Bem entendido, desde que uma parte pretenda a autonomia, só pode se tratar de uma perversão stricto sensu, ao mesmo tempo perigosa e culpável. À diferença do todo sofístico, o todo platônico não sabe ou não quer tratar a livre concorrência das singularidades que o constituem.
3.2. A política de Aristóteles
3.2.1. "A cidade é uma pluralidade de cidadãos"
É precisamente contra isso que Aristóteles objeta em sua Política, propondo outras imagens para a cidade e, conseqüente-mente, um outro modelo de consenso. "Pois ser feliz não é como ser par: o par pode bem ser o atributo do todo sem ser o de nenhuma das partes, mas para a felicidade isso é impossível" (Pol. II, 126 4b 19-22). Quer se trate da felicidade ou da virtude da cidade, Aristóteles escolhe constantemente a ordem sintética: se cada um, então todos — "pois mesmo se é possível que todos sejam politicamente zelosos sem que cada um dos cidadãos o seja, entretanto a segunda modalidade é a preferível: pois o todo é também uma consequência do cada um" (VII, 13, 1332a 36-38). De Platão a Aristóteles é a intuição de partida que difere: para Platão, a cidade é. antes de mais nada, uma; para Aristóteles, ela é, antes de mais nada, pluralidade, plêthos. Toda a crítica aristotélica de Platão deriva 3aí: Platão confunde o económico e o político, pois rebate sobre a unidade do indivíduo (e mesmo sobre a da alma, e mesmo sobre a do corpo) a unidade da casa e a da cidade:
definições do livro III:
A constituição é uma certa organização (táxis) dos que habitam a cidade. E já que a cidade é uma mistura (ton synkeiménõri), como qualquer totalidade que é antes de mais nada composta de várias partes (synestótõn d'ek pollõn moríüri), é evidentemente do cidadão que se deve tratar de início. Pois a cidade é uma pluralidade de cidadãos (hè gàr polis politbn tis plêthos estíri) (1274b 38-41).
3.2.2. Da equipagem ao piquenique
… o que não deixa de lembrar o início sofístico do Menon.
Já que a cidade é feita de dessemelhantes (ex anomoíorí) (como . um ser vivo é constituído de saída de alma e de corpo; e a , alma, de razão e de impulso; e a casa, de um homem e de uma mulher; e a propriedade, de um senhor e de um escravo; a cidade também é constituída de tudo isso, com outras espécies de elementos dessemelhantes além dessas), necessariamente, a virtude de todos os cidadãos não é única, não mais do que num coro, a do corifeu e a de seu assistente (III, 4, 1277a 5-12).
11. A sequência imediata do texto coloca um duplo problema. "Quanto ao resto (álla],
3.5.3. A "amizade política'
philía, amizade
(…)
A esses filosofemas de um Aristóteles não platônico-heideggeriano são precisamente, a meu ver, os de um Aristóteles sofista. Os traços dominantes da cidade grega são, para Arendt, através de toda sua obra, aristotélico-sofísticos. É em primeiro lugar o próprio político que só pode surgir da distinção sofística, a que estrutura em seguida o livro I da Política de Aristóteles, entre público e privado, lei e natureza, convenção e necessidade biológica, cidade e família, economia, até mesmo sociedade.
A especificidade do político consiste, então, em operar uma desqualificação pura e simples das oposições canônicas para a teoria e o bíos theõrêtikós. Em política, não há oposição entre a dóxa múltipla, mutante, suposta mestra do erro, e a coação, eterna e solitária, da alëtheia, não mais do que, nesse "espaço das aparências" que é a cidade, não poderia haver conflito, nem mesmo diferença pertinente, entre o parecer e o ser: "A dóxa não é nunca uma ilusão subjetiva ou uma distorção arbitrária, mas (...) a verdade está ligada invariavelmente a ela" — é o que ensina um Sócrates consequentemente pouco platônico, formado antes na ágora do que na escola do dokeî moi sofístico ("parece-me" diz a verdade que existe no que aparece) e, já antes, na escola do poema homérico que canta ao mesmo tempo Aquiles e Heitor: formado então, já que ele sabe assim "ver o mundo (...) do ponto de vista do outro" e "trocar" os pontos de vista, na "percepção política por excelência"27. Um testemunho disso é justamente em Aristóteles a caracterização, também enfatizada por Arendt, da phrónësis, "prudência", essa virtude propriamente política, como "virtude doxástica". [Osório diz: verdade e opinião]
• Porém, ainda mais radicalmente, Arendt faz da linguagem a faculdade política por excelência, e do discurso adaptado ao momento, à ocasião, a ação política por excelência: "A partir do momento em que o papel da linguagem está em jogo, o problema se torna político por definição, pois é a linguagem que faz do homem um animal político"2S. Ela não cessa assim de fazer referência à definição inaugural do homem como "animal dotado de linguagem", erguendo-se contra o contra-senso que faz dele um animal rationale; mas, aquém da Política de Aristóteles, ela pretende regressar à "opinião mais corrente da pólis sobre o homem e a vida política", opinião de facto sofística, a única adequada para criar e manter esse maravilhoso "sistema o mais tagarela de todos" que é a cidade grega. [Osório diz: o que faz do homem um animal político]
"Os homens vivem juntos sob o modo da fala"30: a especificidade do político é a competição dos lógoi, normalizada por aquilo que, segundo Kant, pode-se nomear o gosto, que "corteja o consentimento do Outro", no seio de uma condição plural. É por isso que, para Arendt à diferença de Platão/Heidegger, "considerar a política na perspectiva da verdade quer dizer estabelecer-se fora do domínio político".
Para concluir, gostaria de prevenir uma má interpretação. Reconhecer a especificidade do político não implica que se saiba por isso evitar os erros, os horrores, em política: Carl Schmitt, assim como Max Weber ou Raymond Aron, pensa o político como tal. Resta saber qual é a especificação mantida. Mas, qualquer que seja essa especificação, não se confundirá jamais, por definição, com a distinção ética entre bem e mal, nem com a distinção teórica entre verdadeiro e falso, que sem dúvida nos tranquilizaria imediatamente com o risco de nos aterrorizar mais tarde. E mesmo quando ela desse um caráter eminente ao lógos, nem por isso estaríamos livres da tirania nem da demagogia. Assim sendo, gostaria simplesmente de fazer surgir a partir do imaginário ou da metafórica gregos essas duas grandes formas de pensar o político, como (filósofo) ontólogo ou como (filósofo) politólogo, e sugerir, com a problemática do consenso, a necessidade de confrontá-los com a maneira pela qual o indivíduo se relaciona com o todo.
II.2. Sofística, retórica e política segundo Aristóteles (*)
Meu ponto de partida é a dificuldade de conciliar o caráter inaugural da tão célebre definição do homem pelo lógos dada desde o capítulo 2 do Livro I da Política, com a pouca incidência explícita dessa definição na continuação da obra.
Na Condição do homem moderno, querendo operar a divisão entre público e privado, Arendt faz valer, como um dos contra-sensos que determinam a modernidade, a tradução, proposta por Sêneca e consagrada por Tomás de Aquino, do politikós aristotélico por "social": essa tradução-traição impede na verdade pensar a ruptura grega entre o "privado ou o econômico (casa, família, lar, regidos pela necessidade biológica) e o político, mundo público da ação e da fala, nesse "sistema o mais tagarela de todos" que era a cidade grega. Arendt continua:
A definição aristotélica do homem, zôion politikón, não era somente estranha, até mesmo oposta à sociedade natural vivida entre os familiares; ela só pode ser compreendida plenamente se lhe for acrescentada a segunda e não menos célebre definição dada por Aristóteles do homem, zôion lógon échon ("um ser vivo capaz de linguagem"). A tradução latina, animal rationale, repousa sobre um mal-entendido tão fundamental quanto a expressão "animal social". Aristóteles não queria nem definir o homem em geral nem designar a mais alta faculdade humana que, para ele, não era o lógos, quer dizer, a linguagem ou a razão, mas o noûs, a faculdade da contemplação, cuja principal característica é a de não poder se exprimir na linguagem (Ética a Nicômaco, 1142a25 e 1178a6)2. Nessas duas definições mais célebres, Aristóteles apenas formulava a opinião mais corrente da pólis sobre o homem e a vida política e, segundo essa opinião, tudo o que estava fora da pólis, tanto os bárbaros como os escravos, era áneu lógou, o que não quer evidentemente dizer privado da fala, mas excluído de um modo de viver no qual a linguagem e apenas a linguagem tinha realmente um sentido, de uma existência na qual todos os cidadãos tinham como primeira preocupação a conversação.
Retenho dessa longa citação dois traços determinantes. Logo de início, e quaisquer que sejam suas precauções ("o lógos, quer dizer a linguagem ou a razão"), Arendt escolhe nitidamente interpretar o lógos, porque político, como "fala e persuasão", até mesmo como "conversação" em oposição à "força" e à "violência". Além disso, já que se trata aí da "opinião mais corrente" da cidade sobre ela mesma, é manifesto que Aristóteles é, nesse ponto, eminentemente grego, só se tornando propriamente aristotélico com a continuação (a teoria da escravidão, por exemplo, a distinção entre valor de uso e valor de troca, ou a análise das constituições). Essa dupla herança — cujo ponto principal seria que o homem político, aquele que sabe encontrar as palavras corretas no momento certo, se chama "retor" (ibid., p. 35, nota 2) — parece-me poder, com razão, embora a própria Hannah Arendt não o diga [Osório diz: é o que ocorre], ser caracterizada como sofística.
O título do interessante artigo de J.-L. Labarrière, "Aristóteles: para uma poética da política?"4, é suficiente para indicar que é importante novamente interpretar o lógos, não como racionalidade à maneira hegeliana, mas como discursividade: "(...) ao invés de invocar a Razão quanto à diferença humana, examinarei o argumento 'por lógos' " (op. cit., p. 26). Sem que possamos apresentar as análises detalhadamente, o desvio através do De Anima e da Retórica permite compreender que "o que diz o lógos político é precisamente o que a Lógica não estuda, orientada que é pelo lógos apophantikós, 'o discurso de verdade', mas o que concerne à Retórica ou à Poética" (ibid., p. 40). O estudo do discurso deliberativo, o mais político de todos, de suas provas e de seu estilo, faz na verdade passar da retórica à poesia ou, para retomar o título da última parte, "do discurso do porvir à metáfora do ator-cidadão". Esse ator-cidadão, que representa e que se representa "entre o parecer e a aparência" (ibid., p. 45), não pode deixar de evocar novamente, mesmo se novamente a palavra não é pronunciada, irresistivelmente o sofista, até mesmo, para uma consciência aguda da metáfora, o sofista da romanidade.
O primeiro interesse dessas abordagens, para meu propósito, é o de tornar manifesto que, para apreender as questões da Política, é importante levar em consideração sua relação com a sofística. Como na Metafísica, a sofística corre bem o risco na verdade de constituir uma grande arma de que Aristóteles sabe fazer uso contra Platão3. De fato, a sofística constitui, sem dúvida, uma das primeiras reflexões sobre a especificidade do político (politeúetai tis, dizia Ântifon8), com a diferença entre natureza e lei, público e privado. Ela fornece, sobretudo, o modelo de um consenso suscetível de servir de antídoto para a aquiescência que o cidadão platônico deve dar à hierarquia fixista que estrutura organicamente a república. O plêthos politôn, que define a cidade de Aristóteles e permite tirar partido, sem reduzi-las, de todas as diferenças entre os cidadãos, e mesmo de todos os seus defeitos, é assim sem nenhuma dúvida o herdeiro da homónoia sofística7. Entretanto, o lógos não é empregado na Política de Aristóteles da mesma maneira do que na política dos sofistas. A célebre definição não deriva somente, como crê Hannah Arendt, de uma herança dóxica, ao mesmo tempo fundamental e ultrapassada, que funcionaria em Aristóteles como uma aquisição mais ou menos inconsciente. Ela também não implica a meu ver que, como deixa pensar J.-L. Labarrière, o logos politikós se confunda com, nem mesmo conduza para, o da retórica e o da poética. É ao contrário — como veremos, ao menos se se quer ser aristotélico ou aristotelizante e não sofista — a retórica que dá e deve dar lugar à política. Tomar a retórica como a palavra final da política seria tomar as coisas ao inverso, de modo sofístico e estigmatizado como tal por Aristóteles.
Em síntese, três teses sobre o sentido político do lógos em Aristóteles, comparado aos sofistas:
— A política de Aristóteles é sofística (Arendt diria grega), na escolha do lógos como traço dominante do caráter político do homem;
— Ela é ainda sofística (e dessa vez deliberadamente antiplatônica) em sua maneira de articular a pluralidade das diferenças e também, portanto, dos pontos de vista e dos discursos, na unidade plural da cidade;
— Mas ela é anti-sofística (e, sem dúvida, precisamente nessa tensão, aristotélica) na interpretação que dá do lógos, e no que se pode chamar a auto-subordinação do retórico ao político, do linguístico e do discursivo ao lógico e ao racional.
Para melhor esclarecer esse estatuto do lógos na política de Aristóteles, gostaria aqui de me contentar em explorar dois corpus complementares sem propor um levantamento exaustivo e sim indicando suas linhas de força: o do termo lógos na Política, e o do termo “política” na Retórica.
O lógos intervém por duas vezes corno próprio do homem na Política. A primeira e mais célebre ocorrência (Pol. I, 2, 1253a9s , então) apresenta duas definições do homem. Segundo a que vem primeiro, assim como a cidade é uma entidade natural, o homem é por natureza um "animal de cldã3e" (ánthrõpos ph^sei politikòn zSion, 2s.). Aristóteles estabelece assim, como nota J.-L. Labar-Tière, uma continuidade natural entre os animais e os homens, confirmada pelo fatp. de que existem outros "animais políticos" além do homem: "São políticos aqueles para quem se faz uma certa unidade e uma comunidade, partilhada por todos, no domínio da obra — o que não fazem precisamente todos os que vivem em grupo. Mas é o caso do homem, da abelha, da vespa, da formiga, do grou". A segunda definição, a que nos ocupa, aliás, não menos naturalista do que a primeira, produz então um efeito de limite nessa continuidade:
[9. Hist. Anim, I, l, 488a 7-10: Politikà destin hôn hèn ti kai koinòn gínetai pántôn to érgon, hóper ou pánta poiei agelaía. Ësti dê toíoüton ánthrõpos, mélitta, sphëx, myrmex, géranos. Nessa passagem, Aristóteles distingue inicialmente os animais que vivem em grupo (ta mèn agelaía), os que vivem isolados (tá dê monadiká), e os que são suscetíveis dos dois gêneros de vida (tá d'epamphoterízei), como o homem. Depois ele propõe uma segunda distinção, válida, desde que se respeite a lição unânime dos manuscritos, para uns como para os outros, entre "políticos", que fazem então, obra comum, e "esporádicos", que, a contrario, devem então perseguir fins dispersos e viver "cada um por si". Compreendemos muito bem que possa haver aí gregários esporádicos, por exemplo os atuns e os carneiros; é mais difícil compreender como podemos ser ao mesmo tempo solitários e políticos, como, segundo a taxinomia, devem poder sê-lo em particular, os homens (ver Labarrière, loc. Cit., p. 34, nota 5). Vários casos podem entretanto se apresentar: podemos ser solitários por acidente (profundamente aptos a viver na cidade (Robinson Crusoé); podemos também ser solitários e todavia fazer, exatamente por isso, obra comum (os velhos elefantes são assim "solitários", mas "bem entendido certos filósofos, poetas, itinerantes ou não, místicos, matemáticos)]
A razão pela qual, aliás, o homem é um animal mais político do que qualquer abelha ou animal gregário, é manifesta: a natureza, na verdade, como dizemos, não faz nada em vão; ora, o homem é o único dentre os animais a ter o lógos. Sem dúvida os sons vocais são o signo da dor e do prazer, e é por isso que pertencem aos outros animais; sua natureza, na verdade, se limita a ter a sensação da dor e do prazer e a significá-la uns para os outros. Mas o lógos é feito para manifestar o útil e o nocivo e, conseqüentemente, o justo e o injusto; tal é, na verdade, o próprio dos homens em relação aos outros animais: serem os únicos a ter a sensação do bem e do mal, do justo e do injusto, e de todo o resto; ora, o ato de tornar comuns essas sensações faz a casa e a cidade (1253a 7-15). [Osório diz: bom!]
Constata-se que a superioridade — o "mais" — política do homem remete à diferença entre sons vocais e lógos, mas que essa diferença, por sua vez, remete a uma outra diferença, a da extensão coberta pela sensação: os animais sentem o prazer e a dor e sua voz significa-os, ao passo que os homens sentem o útil e o inútil, ou o bem e o mal, o justo e o injusto, etc... e é isso que seu lógos é capaz de mostrar. Essa simples diferença de extensão induz uma mudança de ordem, já que o "mais" político torna-se o verdadeiramente político, em todo caso, o tema da Política. [Osório diz: o homem valora com o lógos]
Como a diferença entre os objetos suscetíveis de serem sentidos induz um efeito semelhante? É que o prazer e a dor são objetos simples que provocam respostas naturais imediatas, comuns aos animais e aos homens, dentre as quais reações motoras como a fuga ou a busca [por exemplo, Ética a Nicômaco, II, 2, 110b 34s.: “o prazer é comum aos homem e aos animais”, VIII, 6, 1157b 6s.: “a natureza parece, no mais alto grau, fugir da dor e tender ao prazer”. [Osório diz: o cristianismo pensa o contrário], ou esses sons vocais que as exprimem. Por outro lado, os objetos próprios somente do sentir humano são objetos complexos, objetos de um julgamento, que suscitam respostas elaboradas. Isso pode ser demonstrado, cada vez mais facilmente, por cada um dos pares que caracterizam o sentir humano. Certamente, não é de início fácil distinguir entre o prazeroso e o útil, pois ambos, com o belo, determinam nossas escolhas, assim como o feio, o nocivo e o penoso, nossas repulsas; além disso, o belo e o útil parecem ambos prazerosos, e é finalmente em relação ao prazer que a virtude é decisiva (Ética a [p. 107] Nicômaco, II, 2, 1104b30-1105al). Mas isso significa dizer justamente que, se o belo e o útil são prazerosos, eles não são somente prazerosos, que podem ser reduzidos através da análise ao prazeroso, mas que são também alguma coisa a mais.
A diferença é quando muito mais explícita no caso do "bem" e do "mal", que substituem o par útil-nocivo quando de sua retomada (Pol., I, 2, 1253al6-17); pode-se entretanto tentar decifrar nessa perspectiva uma passagem do De Anima (III, 7, 431al4-431bl2): quando se trata do bom e do mau, a alma "afirma ou nega (phesin hé apóphësi, b 16) e foge ou persegue"; é, com efeito, "quando se pode afirmar que aí (hótan eípëi hõs ekei..., a9) está o prazeroso ou o penoso, é então precisamente que se evita ou se busca e eis tudo que se passa na ação. Quanto ao que está fora da ação, o verdadeiro e o falso, isso pertence também ao mesmo gênero que o bom e o mau, com a diferença de que é absoluto e não relativo a alguém". Vemos aqui se esboçar, dada a insistência sobre a operação afirmativa e negativa, como que provocada pela identidade genérica com o verdadeiro e o falso, a característica diferencial do bem e do mal: ser objeto de um julgamento e não simplesmente, como o prazeroso ou o penoso, de uma apreensão imediata.
A mediação torna-se enfim totalmente clara no caso do justo (Pol., ibid., a 15 e 17), do qual Aristóteles nos diz por várias vezes que ele é "o útil à comunidade", definindo com isso "o bem (na) político(a)"11. É evidentemente possível produzir, através de um julgamento, o justo a partir do útil, e é aliás o sentido do hóste (1.15: "o útil e o nocivo, e consequentemente o justo e o injusto"), que não é assim tão "protagórico" quanto o supõe J.-L Labarrière (op. cit., p. 40). O domínio de objeto apreendido pelo lógos torna assim manifesto que já se trata, com o lógos, de uma elaboração em syn ou em kata, de um julgamento capaz de modular, até mesmo de constituir, essa própria objetividade.
Uma comparação com o De Interpretatione permite sustentar, sob a especificidade da Política, a constância das características do lógos humano. O primeiro traço marcante é a inversão de dêloün e de sêmaínein de um texto ao outro e o deslizamento de phôné. Na Política, o lógos "mostra", enquanto a phôné animal "significa". No De Interpretatione, "os sons inarticulados, como [p. 108] os dos animais, mostram assim alguma coisa, mas nenhum é uma palavra" (2, 16a 28s.: epei dêlôüsi gê ti kaï hoiagrámmattoi psóphoi, hoion thëríõn, hõn oudèn estin ónoma); a palavra se define, por outro lado, por ser uma phôné sêmantikê, "sons vocais que têm um sentido"; e esse sentido não existe por natureza — não há "palavra natural" (physei ton onomátõn oudén estin, 16a27) — mas é sempre o efeito de uma convenção (katà synthèkën, 16ãl9), de modo que "todo o lógos é significante, entretanto não como um instrumento natural, mas... por convenção" (4, 16b33-17a2: ésti dê lógos hápas mèn semantikòs, ouch hõs órganon dê, ali' hosper eíretai katà synthèkën). Como vemos, é a continuidade entre o animal e o homem que é sempre preferida na Política: o lógos humano aí ainda "mostra", e as vozes animais aí já "significam" (i.e. como um instrumento natural), e isso é paralelo à fixação na natureza e na sensibilidade. Mas, com a diferença de extensão da sensibilidade, já está presente a mudança de ordem, que dispara a engrenagem dos estabelecimentos das relações necessárias para a determinação de novos objetos, e que encontrará sua descrição adequada, symploké, sýnthesis, syllogismós, no De Interpretatione. Assim, o racional não é efetivamente nada
senão o emprego do discursivo: dito de outro modo, é na própria continuidade do lógos expressivo-discursivo-racional que reside a descontinuidade entre o animal e o homem.
A segunda ocorrência do lógos como próprio do homem intervém no livro VII da Política (em 13, 1332b4s.), a propósito da educação na cidade. Com a ideia de que se cada cidadão é "virtuoso" (spoudaíos, "homem de bem") toda a cidade será desse modo, Aristóteles analisa os três fatores que tornam virtuoso: phýsis, "a natureza"; éthos, "o hábito"; e lógos, que aqui sempre, se traduz por “a razão”. A sequência é duplamente hierarquizada, quanto a seus três termos, que são de potência crescente, e quanto aos tipos de animais que caracterizam. Com efeito, para se tornar virtuoso, é preciso em primeiro lugar ser um homem, e não de uma outra espécie animal, logo ter uma certa qualidade de corpo e de alma; mas um certo número de traços naturais, neles mesmos indiferentes, são "modificáveis" pelos hábitos, que podem voltá-los para o melhor ou para o pior: enquanto todos os animais vivem segundo a natureza, apenas um pequeno número dentre eles vive também segundo os hábitos. Enfim, o homem vive também segundo o lógos: "com efeito, ele é o único animal a ter o lógos" (mótion sic. coda. gàr échei lógon, 5), de modo que esses três fatores devem se harmonizar uns com os outros: pois em muitos casos os homens agem sob o efeito do lógos contra os hábitos e a natureza, se estão persuadidos (eàn peisthosí, 7) de que é melhor que seja de outro modo". Ainda há pouco era o discursivo que se tornava por si mesmo racional; no momento, é o racional, enquanto domina no homem e consegue fazer harmonizar consigo natureza e hábitos, que se faz discursivo, "persuasivo" e, logo, retórico.
Além disso, a ênfase da passagem incide sobre a educação ela conclui por: "aprendemos certas coisas pelo hábito e outras ouvindo (akoúontes, 11)". Ora, a importância do lógos e da persuasão na educação se ressalta muito vivamente numa passagem paralela no final da Ética a Nicômaco, X, 10, 1179b20-1180al4; os três fatores evocados são dessa vez phýsis, éthos e didaché, “o ensino” (21), retomado pelo sintagma ho lógos kaï hë didache (23), "o raciocínio e o ensino", como traduz Tricot; mas o conjunto do vocabulário induz novamente de modo nítido o caráter persuasivo do lógos em questão: trata-se da alma do "ouvinte" (ten toü akroatoü psychên, 25), da oposição lógos/bía, "discurso/coação" (8) daqueles que a necessidade, mais do que o lógos "persuade a obedecer" (peitharkoûsi, 1180a5), enfim, da tarefa dos legisladores, que devem "chamar" à virtude e "exortar" ao bem (parakaleïn...kaï protrépesthai, 6). A racionalidade é, assim, um verdadeiro apelo da, e à, razão: ela funciona necessariamente também no registro da discursividade retórica.
A definição inaugural e sua recorrência obrigam a entender lógos em toda a continuidade, ida e volta, de seu sentido, do discursivo ao racional e do racional ao discursivo. Animal rationale não é um contra-senso, ou, se preferirmos parar na discursividade pura, de tipo retórico e não lógico, constitui um contra-senso simétrico. Veremos que se trata, com a sequência do corpus lógos na Política, essencialmente de noûs, de télos, de ética: o segundo contra-senso corre o risco então de ser ainda mais embaraçoso do que o primeiro.
(…) De acordo com o primeiro modelo, a alma comanda o corpo, e seu poder sobre ele é "despótico" [Osório diz: bem Nietzsche!] (he mèn gàr psychè toü sômatos árchei despotikën archén, I, 5, 1254b4s.). De acordo com o segundo, é uma das partes da alma, o noûs ("o intelecto", traduz-se frequentemente), que comanda a outra, o “apetite”,
da escravidão por Aristóteles,
e escravo por natureza" (I, 2, 1252a32-34).
"é um objeto de propriedade animado" (ktëmá ti émpsychon, b32").
O escravo seria assim não mais um corpo, mesmo animado, mas algo como o corpo da alma. É preciso ainda acrescentar que a modulação lógica do sem lógos continua ao infinito, pois Aristóteles logo precisa que "as partes da alma existem em todos esses seres (i.e, o escravo, a mulher e a criança), mas que elas existem neles diferentemente: o escravo não tem absolutamente a faculdade de deliberar, a mulher a tem mas sem poder de decidir, a criança a tem mas não totalmente" (10-14). Sem dúvida, a melhor maneira de caracterizar a relação do escravo com o lógos, que o possui então sem possuí-lo, seria dizer que é sensível a ele: é por isso que não se deve "privar os escravos de lógos dando-lhes apenas ordens", é preciso, ao contrário, lhes "colocar coisas no espírito" (nouthetêtéon), "juízo na cabeça", diríamos, ainda mais do que às crianças (1260b5-7).
"escutar o lógos e se deixar persuadir a lhe obedecer" (katëkoon... kaï piitharchikón, 31),
A ligação entre lógos e noûs assim esclarecida nos reconduz, com a noutética, à persuasão. Mas essa persuasão, quer se trate do escravo ou da criança, nomeia exclusivamente o efeito do lógos sobre o que o possui sem o possuir. Ela é então inteiramente "submissa à paideía, e o lógos não funciona aí como uma téchnê, de tipo retórico, mas como um télos: trata-se de conduzir ao lógos pelos lógos.
É sempre o melhor, a saber o lógos, que orienta a finalidade, e que essa perspectiva única é, só ela, criadora de harmonia: assim como a guerra se faz tendo em vista a paz, o não lazer tendo em vista o lazer, o necessário e o útil tendo em vista o belo, o cuidado do corpo será feito tendo em vista a alma, e o do apetite tendo em vista o lógos. Se "o homem é por natureza um animal que tem o lógos, essa definição é melhor compreendida quando não se esquece que "o lógos, para nós, e o noûs constituem a dualidade da natureza" (ho dê lógos hemin kaï ho noüs tës physeôs iflos, 1334b 15). De qualquer forma, torna-se impossível autonomizar a retórica ou inverter a ordem dos meios e dos fins: assim como a discursividade produz a racionalidade, a retórica tem por objetivo ajudar cada um a entrar em posse de sua parte de lógos e a se tornar o animal lógico que ele é.
O lógos de Aristóteles e o de Protágoras
Essa concepção do lógos como finalidade e não como técnica determina, em Aristóteles, seu caráter político. Assim podemos dizer, paradoxalmente, que Aristóteles tem desde o início uma concepção do lógos mais política que a sofística.
Protágoras, pelo menos no mito narrado por Platão, define o homem prometeico por uma série de próprios, dependendo todos dessa "sabedoria plena de savoir-faire [Osório diz: saber fazer ou saber como fazer] que vem com o fogo" (tën éntechnon sophían syn ~pyri, 3~2Ïd) furtada aos deuses: é "o único dos animais" a honrar os deuses, a praticar as artes e as técnicas, incluindo a agricultura, mas também é o único, como em Aristóteles, a possuir "a arte de articular por si mesmo uma emissão vocal e palavras" (phonen Wi onómata. . .diërthrõsato ifi téchnèi, 322a). Ora, sabe-se bem — eis aí todo o mito — <|iie ele nem por isso possui "a arte política": se os homens vivem st-paradamente, ekv se deixam devorar pêlos animais por não .saberem fazer a guerra, e se se reúnem em cidades, matam uns aos outros por não possuírem a justiça. Assim sendo, é necessário um dom suplementar de Zeus, aidós (intraduzível "pudor", bom comportamento, moderação, percepção ou domínio de si) e díkè ("justiça"), "a fim de que existam as estruturas que fazem a brlcza das cidades e os liames que reúnem trazendo a amizade" -(póleòn kósmoi te kaï desmoï philías synagogoí, 322c, parafraseado).
(...)
A convenção linguística fornece o modelo e o fundamento de todas as outras. Compreende-se então que a maior parte das repetições do mito de Protágoras, de Isócrates a Élio Aristides, passando por Cícero e Quintiliano, tenham terminado por fazer do lógos o único dom, natural ou divino, necessário a cada passo para o acesso ao político, philía incluída.
Como marcar ainda a especificidade de Aristóteles? Não seria melhor dizer que Aristóteles, contrariamente ao que havíamos suposto, se acha duas vezes sofista, ultra-sofista? De um lado, porque ele pensa desde o início, até as últimas consequências a finalidade política do lógos; por outro lado, porque, graças à Retórica e aos Tópicos, estabelece para ele o estatuto de techné daí para o futuro. Nesse "de um lado, por outro lado" reside entretanto o fio condutor que permite apreender a especificidade aristotélica. Na verdade, não há para Aristóteles nenhuma confusão possível entre o orador e o político, entre aquele que sabe — ou que ensina a — falar e aquele que pode e deve conduzir uma cidade. Que se faça por vezes a confusão, eis o que, para Aristóteles, não é precisamente amputável senão à sofística.
Um certo número de observações, esparsas, sobre a relação entre demagogia e retórica mostra como a confusão entre competência retórica e competência política constitui um grande risco. Aprende-se assim que as democracias de outrora se transformavam em tiranias "porque naquela época os dirigentes procediam de meios militares (pois ainda não tinham habilidade de falar), enquanto no presente, com a inflação da retórica, os que são capazes de falar são os dirigentes12 que, devido à sua inexperiência quanto às coisas da guerra, não atacam o regime" (V, 5, 1305alO-15; é a ocorrência de rhëtorikë dada por Dreizenhnter). A notação é bem menos marginal do que parece, na medida em que a inflação da retórica, e a substituição da política pela retórica, é para Aristóteles característica da modernidade, até na tragédia por exemplo, onde “se os poetas antigos faziam falar os seus personagens como cidadãos (politikós), os modernos fazem-nos falar como oradores” (rhetórikos, Poet. 6, 1450b 7s.). A desconfiança acerca de um regime de assembleias, onde reinasse apenas a retórica, se marca ainda no fato de que a melhor democracia é, para Aristóteles, a dos agricultores e dos pastores, diferente dos artesãos e dos mercadores, porque suas ocupações impedem que eles se reúnam com muita frequência (Pol. V, 4, 1318bl2; cf. 1319a30). De modo que, enfim, nos subterfúgios de uma frase, a persuasão e a violência se encontram como em Platão, lado a lado, características do despotismo: não convém submeter os outros povos à sua lei, assim como "não é função do médico nem do piloto usar de persuasão ou de violência, um em relação aos seus doentes, o outro em relação aos seus passageiros" (ê peisai è blásasthai, VII, 2, 1324b 29-31).
Assim, então, o lógos da competência retórica, o que serve exatamente para estabelecer os contratos, regulamentar as contestações diante do tribunal e, já mais politicamente, orientar as decisões das assembleias, deve consentir à sua finalidade e se deixar ser como que absorvido pela virtude política. É a dificuldade mesma da política o fato de dever fazer com que o lógos se desenvolva ao máximo, sem jamais confiná-lo apenas em techné, quer ela seja reservada apenas aos experts, ou vulgarizada, partilhada por todo o mundo.
O mais surpreendente é certamente o do capítulo 2, onde se diz que a retórica "reveste a forma que é a da política" (hypodyetai hypò to schema to tës politikês, 27s.), segundo os próprios termos que, no livro Gama da Metafísica, estigmatizam a maneira pela qual os dialéticos e os sofistas se fazem passar por filósofos (íò auto.. .hypodyontai schema toi philosóphõi, 2, 1004b 18)13. Recordemos o contexto. Aristóteles acaba de caracterizar a retórica como "um poder de fazer em cada caso a teoria do persuasivo que convém", (1355b 25s.). As duas características, capacidade (dynamis, 25; dinasthai, 32 — poder, potência, faculdade, capacidade) e universalidade (perï hékaston, 25; perï toü dothéntos, 32, glosado por ou perí ti génos aphorisménon, 33s.), estão assim, pela definição, indissoluvelmente ligadas. Por seu lado, o persuasivo se codifica em meios de persuadir, ou "provas" (písteis), suscetíveis de uma dupla classificação: provas extratécnicas, dados que o orador deve apenas saber "utilizar", e provas técnicas que o orador deve saber "inventar". Essas últimas dependem do emissor (prendem-se ao éthos, ao "caráter", à "personalidade", à "pessoa" do orador), do receptor (prendem-se às "disposições" — diatheínai, 1356a3, páthos, 15 — suscitadas no ouvinte, enfim do próprio meio, do discurso enquanto "ele demonstra ou parece demonstrar" (dia toü deiknynai ë phaínesthai deiknynai, 4). Dessas poucas definições depende toda comparação entre retórica, dialética e política.
[14. Ethos é pelo menos tão intraduzível quanto lógos, já que ele é do domínio ao mesmo tempo, em nossas classificações modernas, da psicologia (caráter), da sociologia (hábitos), da etnologia (usos e costumes), da ética e da política (pessoa). "Caráter" não é uma tradução, é um simples jeton emitido pela tradição, e que é frequentemente cómodo utilizar.]
[15. Traduzo syllogísasthai simplesmente por "raciocinar", na medida em que se trata aqui ao mesmo tempo do "silogismo" propriamente dito, dedução ou entimema, e da indução ou do exemplo.]
A retórica é um "rebento" da dialética, porque o raciocínio (toü syllogísasthai, 3) é um dos três meios de obter tecnicamente a persuasão. A metáfora tecida de modo mais correto diria que a dialética, quer dizer, o estudo do raciocínio com premissas endoxais construído nos Tópicos, assim como o estudo do raciocínio científico realizado nos Segundos Analíticos, brotam no tronco do silogismo em geral, elaborado nos Primeiros Analíticos; mas diria que a retórica circunda a dialética considerando o raciocínio dialético, dedutivo e indutivo, apenas sob o aspecto do "persuasivo" e não sob o da demonstração, o que a autoriza a abreviá-lo em entimema e em exemplo. É nesse sentido que se deve compreender que a retórica é uma "porção" (mórión ti, 30s.) da dialética, mesmo se a arte de raciocinar só condicione, como vimos, uma parte das provas retóricas. A relação todo-parte é, aliás, logo corrigida por uma relação de semelhança: retórica e dialética são "semelhantes" (homoia, 31) no fato de que precisamente ambas diferem da ciência: sua "analogia", sua "substituabilidade" deve-se ao fato de que, coextensivas e transgenéricas, elas são capazes de dar argumentos sobre qualquer coisa (dynámeis tines toü porísai lógous, 33), permitindo em particular, o que é o próprio de toda dýnamis, chegar aos contrários, neste caso a conclusões contrárias, em vez de prover conhecimentos sobre um objeto determinado.
[16. O terrno parece ser um hápax em Aristóteles, mas o verbo paraphyestai é frequente, e encontramos um emprego metafórico de paraphyés em Ética a Nicômaco, I, 4, 1096a 21: "o relativo é semelhante a um rebento e a um acidente do ser".] [Osório diz: acidente ou não, existe].
Aristóteles acaba de enfatizar que a retórica "não tem como tarefa persuadir, mas ver o que se pode encontrar de persuasivo a cada vez". Também é manifesto, acrescenta ele, que:
Pertence à mesma disciplina ver o persuasivo e o persuasivo aparente, assim como é do domínio da dialética o raciocínio e o raciocínio aparente, pois a sofística não está no poder, mas na intenção; com a única diferença que, do ponto de vista da retórica, seremos oradores ora por nossa ciência, ora por nossa intenção, enquanto do ponto de vista da dialética, seremos sofistas por nossa intenção e dialéticos não por nossa intenção, mas por nosso poder.
O texto se esclarece quando compreendemos que ele versa sobre o estatuto do "aparente". Desde que dizemos phainómenon, do Sofista de Platão à Metafísica de Aristóteles e, ainda mais além, pensamos: sofística. Ora, trata-se de mostrar que essa combinação tão impertinente, aparência-universalidade, não faz entretanto da retórica, tampouco da dialética, uma sofística. Contudo, retórica e dialética não diferem da sofística da mesma maneira: é aliás por isso que elas são "semelhantes" ou "substituíveis" (em relação à ciência, por exemplo), mas não idênticas.
Eis, creio, a argumentação. Partamos, já que ela apresenta menos problema, da relação entre dialética e sofística. A dialética trata "do raciocínio e do raciocínio aparente" (syllogismón te kal phainómenon syllogismón, 16s.): o início dos Tópicos explica como o raciocínio aparente é, ora uma simples aparência de raciocínio (ele é então, para retomar a classificação de J. Bruschwig, "formalmente erístico" 18), ora um raciocínio efetivo, mas que parte de premissas apenas aparentes, neste caso apenas aparentemente endoxais (ele é então "materialmente erístico"). Ora, uma das tarefas que Aristóteles atribui à dialética é precisamente a de fazer a distinção entre o raciocínio aparente — que ela remete à sofística e à erística e da qual trata, por exemplo, nas Refutações sofísticas — e o simples raciocínio: ela é "peirástica", põe à prova. A dialética só trata então do phainómenon, na medida em que se encarrega de diferenciá-lo, como "apenas aparente", do realmente concludente e do realmente endoxal. Dito de outro modo, para ser dialético é necessário ter competência, mas não intenção: a dialética se encarrega disso, uma vez que, crítica, ela só poderia ter, por definição, boas intenções. Ao contrário, a sofística trata do phainómenon, mas só trata dele, preocupada não em distingui-lo, mas em confundi-lo com o real; é aliás por isso que ela mesma é constantemente qualificada de phainoméne (Soph. El, l, 165a 21; 11, 171b 28s.; ver infra). Quando se consideram as coisas do ponto de vista da dialética, o que caracteriza o sofista é sua "intenção": a intenção de fazer se enganar, enquanto que o que caracteriza o dialético é seu "poder": mesmo se num sentido sofista e dialético (e aliás orador) têm o mesmo poder de encontrar argumentos contrários e de tratar do phainómenon; em um outro, apenas o dialético tem um poder crítico, o poder de impedir que nos enganemos. Ou ainda, pode-se bem tomar um sofista por um dialético, mas um dialético enquanto tal não pode ser ao mesmo tempo um sofista.
[19. É exatamente da mesma maneira que é preciso interpretar o texto paralelo das Refutações Sofísticas, I, 3, 165b 7s., que traduziremos, diferentemente de Tricot: "são erísticos dos raciocínios que partem de premissas que parecem prováveis quando não o são, ou os raciocínios que parecem somente sê-lo"]
Mas a diferença entre retórica e sofística é, basta Platão para atestar isso, mais difícil de ser determinada. Pois a retórica não se preocupa antes de tudo com o concludente, mas com o persuasivo. E, olhando mais de perto, a simetria é falsa: "aparentemente persuasivo" não tem verdadeiramente o mesmo sentido que "aparentemente concludente". De fato, o aparentemente concludente é em realidade não-concludente, ao passo que o aparentemente persuasivo permanece persuasivo enquanto persuadir. A diferença deve-se à própria natureza do persuasivo, que é sempre "persuasivo para alguém" (Ret., I, 2, 1356b 28), como à definição da retórica, que não deve fazer a distinção entre o verdadeiro e o aparente, mas apenas buscar, em todos os casos, os meios de persuadir. Por falta de capacidade crítica, não há intenção não enganadora implicada pela, ou coextensiva à, retórica. É precisamente por isso que, dessa vez, pode-se ser simultaneamente orador e sofista. É o que confirma o estudo, no fim do livro II, dos "entimemas aparentes" (cap. 24, l00b 38, 1401a 41): eles existem certamente ao lado dos simples entimemas, exatamente como os silogismos aparentes ao lado dos silogismos. São suscetíveis de uma classificação em lugares análoga, ao menos parcialmente, àquela que propõe as Refutações sofísticas. Mas a diferença de estatuto manifesta-se na conclusão, com a lembrança da techné de Córax e da pretensão ostentada por Protágoras: duas proposições contraditórias parecem em conjunto verossímeis, ou inverossímeis; assim, que um raquítico seja culpado de sevícias é inverossímil, mas que um homem forte o seja, também é inverossímil porque já é sempre verossímil que nós o creiamos culpado; de modo que a inocência é verossímil nos dois casos: simplesmente verossímil, ou verossímil por sua própria inverossimilhança.
E é isso que é tornar mais forte o argumento mais fraco. Sendo assim, os homens, em toda a justiça, tinham dificuldade em suportar a proclamação de Protágoras; pois é falsa, e um verossímil que não é verdadeiro mas aparente, e não se encontra em nenhuma outra arte a não ser na retórica e na erística (1402a 24-28).
Para poder fazer a distinção que falta do ponto de vista da competência entre o orador e o sofista, é preciso definir o orador não somente por sua "ciência" — compreendo: a técnica retórica considerada do ponto de vista de seu desdobramento causal (thebreín to pithanón, 2, 1355b 32) —, mas também por sua "intenção", a intenção de perfazer o triunfo natural do verdadeiro e do justo pela técnica, e de ajudar a julgar (hai kríseis) como convém, a separar o aparente do verdadeiro (l, 1355a 21-23; cf. 14-17 e 36-38): "do ponto de vista da retórica seremos oradores ora por nossa competência científica, ora por nossa intenção". É somente quando se apela para a intenção, quando se acrescenta alguma coisa como uma vontade crítica que não pode entrar nos requisitos da techné rhetoriké enquanto tal, mas depende já, parece-me, de uma exigência meta-retórica que se pode distinguir, pela boa e a má intenção, o orador do sofista. O fato de que só se possa tratar de um suplemento, desmentido pelos próprios princípios que fundam a competência, faz efetivamente da retórica uma disciplina menos moral, quer dizer, menos confiável ontologicamente, do que a dialética.
[22. Acrescentemos que o "para alguém" não significa "para cada indivíduo" (to kath'hékaston, Sócrates, Cálias), mas "para cada gênero de pessoas" (íò toioísde), o que confirma ao mesmo tempo a proximidade com a dialética, e a cientificidade da técnica retórica (Retórica, I, 2, 1356b 28-35]
Assim, a retórica brota, por assim dizer, do enxerto ético. Mas ela não poderia ser podada, pois traz frutos tão específicos quanto indispensáveis. Para fazer face ao perigo sofístico, Aristóteles pode somente, no subterfúgio de uma frase, lhe fazer, precisamente, esse enxerto de ética.
• Retórica, dialética, política (continuação)
A retórica, retomando nosso primeiro texto, é por outro lado o rebento da política. No contexto imediato, isso significa simplesmente que os dois meios restantes, à parte o raciocínio, para obter a persuasão, concernem à política. Com efeito, "o conhecimento especulativo dos caracteres e das virtudes", a saber as provas que dizem respeito ao próprio orador, concerne por definição à disciplina que trata dos caracteres — as excelências, as virtudes, sendo sempre a transformação que submete a phrónésis às disposições naturais, sob o modelo do aperfeiçoamento da natureza pela arte (Ética a Nicômaco, VI, 13). Por seu lado, "o conhecimento especulativo das paixões" que determinam a escuta dos ouvintes remete aos caracteres, como testemunha o próprio plano da retórica onde se trata de início, no livro II, do ethos daquele que fala, depois dos páthé dos que escutam, antes de retomá-los como um dos fatores a considerar para uma análise de seus éthé (ao lado do habitus, da idade e da sorte). Ora, a disciplina" que trata dos caracteres — mas que não receberá antes da Grande Moral o nome apócrifo de "ética" — está subordinada à política: tal é ao menos o veredicto pronunciado logo no início da Ética a Nicômaco (I, l, 1094a 26ss.), onde se articulam "o bem que é também o melhor" (o intitulado "Bem Soberano", 1094a 22) e "o bem humano" (1094b 7), ao mesmo tempo em que "o bem do indivíduo" e "o bem das etnias e das cidades" (bl0), veredicto ao qual só podemos aqui remeter. Pela ética então, que temos razão de nomear "política", a retórica entra na árvore política. Mas enquanto o conhecimento dos éthé constitui para a retórica algo como um tópico das almas, um repertório permitindo inventar premissas adaptadas a fim de suscitar paixões e de promover a convicção, a disciplina ética contribui para conhecer e, sem dúvida para educar, os indivíduos e as cidades a fim de fazê-los alcançar a felicidade de bem viver: mais uma vez, a finalidade retórica, bem circunscrita, é como que convidada a se abandonar a uma finalidade mais final.
É por isso que, aproveitando-se de seu recobrimento parcial, é ao mesmo tempo tão possível e tão perigoso confundir retórica e política. Encontramos aqui uma segunda e mais radical maneira "de a retórica ser sofista: não somente, como há pouco, quando ela persuade na intenção de enganar, mas quando se insinua sob a forma mesma da política. Pois tudo aqui, e não somente a retomada da célebre fórmula de Gama 2, conota a pretensão sofística. Os oradores que aspiram à política o fazem com efeito por três razões; a apaideusía, essa falta de formação que é, em toda amplidão do termo, uma falta de educação, caracteriza aqueles que não têm senso dos limites, em particular lógicos: os que reclamam uma demonstração para tudo (Met. Gama, 4, 1006a 6; 3, 1005b 3), os que não sabem fazer a diferença entre os argumentos próprios de um domínio e os argumentos estranhos (Ét. Eud., 6, 1217a 8), aqui mesmo, aqueles que não discernem os limites da retórica (deduziremos daí, sem dúvida, que, da mesma forma que em Gama existem sofistas involuntários ou inconscientes que podemos educar explicando-lhes Aristóteles, haveria também aqui oradores com pretensões curáveis, um Isócrates por exemplo). Da mesma forma, a alazoneía, a presunção dos charlatões, caracteriza o habitus dos sofistas" (Aristófanes, As Nuvens, 102 e,g.); Aristóteles a define muito precisamente na Ética a Nicômaco (II, 7, 1108a 19-23) em relação a essa mediedade que concerne a comunidade entre os homens nos discursos e nos atos, e para a qual ele adapta o nome de "verdade" (alétheia): quando aspiramos a isso (prospoíésis, como prospoioúmenoi em nossa passagem) por falta, é a "ironia", e por excesso, exatamente essa "presunção". Pretender ser político quando se é apenas orador, é então aumentar a verdade. Enfim, o terceiro tipo de motivos, vontade de potência ou cupidez, é simplesmente remetido ao humano-muito humano (anthrôpikás, que não equivale a anthrôpinás), não menos tradicionalmente característico desde Platão, encenador de Eutidemo e de Cálicles, do despudor sofístico. Em suma, a retórica contrafaz sempre a política por falta sofística do senso de medida.
[25. Duas advertências todavia concernentes a essa passagem: 1. a "ética" não é nomeada (salvo certamente sob a forma: ciência ou potência que trata do bem), em contrapartida, as potências estratégica, econômica, retórica, são expressamente subordinadas à política (1094b2s.); 2. o grau de acribia exigido para a política deve ser adaptado a seu objeto, que não tem necessidade mas uma simples constância: "é tão impróprio pedir de um matemático um discurso de persuasão quanto reclamar de um orador uma demonstração científica" (1094b 27). A comparação dá a^/ entender que a política aristotélica, diferentemente da de Platão, está mais próxima da retórica do que das matemáticas — mas somente mais próxima]
• Dialética, sofística, filosofia
Eis aqui um indício: os dialéticos e os sofistas se insinuam sob a mesma máscara que o filósofo; pois a sofística é uma sabedoria somente aparente e os dialéticos fazem dialética sobre tudo sem exceção; ora, o ente é comum a tudo, e eles fazem dialética sobre tudo, manifestamente, pois é bem esse o domínio da filosofia. Pois sofística e dialética giram em torno do mesmo gênero que a filosofia, mas esta difere da dialética pela orientação de seu poder, e da sofística pela escolha do modo de vida; a dialética põe à prova onde a filosofia conhece, a sofística parece mas não é (1004b 17-26).
Aí se vê, confirmando nossa interpretação do texto 2, que a dýnamis caracteriza a dialética, e que o "aspecto", a "orientação" que toma essa capacidade é a experimentação "peirástica"; da mesma forma, é a "intenção", "a escolha do modo de vida", que define a sofística. Dialética e sofística podem ambas "se insinuar sob a forma da filosofia", "tomar-lhe a máscara", mas na medida em que a diferença de intenção, ao contrário da diferença de método, não é discernível do exterior, é manifesto que a sofística é, ainda mais que a dialética, indiscernível da filosofia, que "se apresenta" (phainoméne) exatamente como ela, de modo que a metáfora lhe convém ainda melhor.
Dir-se-á então, por superposição com o texto l, que a retórica está para a política assim como a sofística está para a filosofia. Mesma postura de usurpação. Mesmo fundamento para a semelhança: a identidade de objeto — a sofística trata, como a filosofia, de todo o ente (ela "gira em torno do mesmo gênero"); a retórica, que trata também de tudo à sua maneira, é, como a política, ao menos uma ciência dos "caracteres". Mesmo erro ético presidindo à usurpação: a intenção, a pretensão "hibrística".
A analogia encontra entretanto aqui seu limite. Pois a intenção da sofística é, por definição, má, não a da retórica. Só há, no sentido ético do termo, bons dialéticos, pode haver bons oradores, não poderia haver bons sofistas. Ou ainda: é somente quando a retórica baralha os domínios e não consente em dar lugar à política que ela é sofística, mas a sofística é bem evidentemente sempre sofística, não consente jamais em dar lugar à filosofia. Se a forçamos a isso, como em Gama, ela não é mais sofística, porém filosofia (e desumanidade, se persiste a se recusar), ao contrário da retórica que pode, e deve, permanecer retórica, ao lado ou no interior da política.
• Retórica, analítica, política, sofística
Um texto, tirado ainda do livro I da Retórica, ajuda "a compreender como a retórica deve dar lugar à política. Trata-se, dentre os três gêneros oratórios, daquele que a retórica de Aristóteles pretende ser a primeira a não negligenciar: o gênero deliberativo (symbouleutikón, que trata do útil e do nocivo; corresponde à prática da arenga (tà démêgoriká) de que já se sabe que é "mais bela e mais política" que os discursos de defesa judiciários (I, l, 1354b 22-25). Já que se trata do interesse comum, o ouvinte está com efeito diretamente implicado, de modo que o orador não tem necessidade de captar sua atenção mas apenas de "provar que acontece como ele diz" (30s.). No capítulo 4, Aristóteles se propõe a arrolar os temas "possíveis de deliberação. Somente:
Na circunstância presente, não se deve buscar enumerar com exatidão um por um e dividir em espécies os temas sobre os quais se costuma deliberar, nem tampouco defini-los tanto quanto possível segundo a verdade; pois isso não concerne ao savoir faire retórico, mas a um outro, que comporta mais prudência a veracidade; e foi dada à retórica, precisamente no nosso tempo, uma extensão que excede de muito as questões que são de sua alçada. De fato, o que tivemos ocasião também de dizer acima é verdadeiro: a retórica, por um lado, é um composto da ciência analítica e da política que trata das pessoas; por outro lado, é semelhante ora à dialética e ora aos discursos sofísticos.
Notemos logo de início que essa passagem faz explicitamente referência aos textos l e 2, anteriormente citados, para confirmar: l — que a retórica é bem um composto de dois elementos, a ciência dos raciocínios (analítica, especificada em dialética, particularizada em retórica) e a ciência das pessoas (que é do domínio da política); 2 — que ela é duplamente semelhante: é semelhante dialética (quando sua intenção é boa, sua competência é idêntica sub specie pithanón, se ouso dizer), é semelhante à sofística (quando sua intenção é má e ela se serve do phainomenon para enganar).
[27. Oponho-me então duplamente à nota de Médéric Dufour, op. cif., ad. loc., para quem: "não se trata, corretamente falando, da ciência analítica, teoria da demonstração científica, mas da Dialética" (mas sim, trata-se da ciência analítica, e mesmo dos Primeiros Analíticos, onde se elabora a teoria geral do raciocínio)". A Retórica se parece com esta, quando confirma; mas se aproxima dos discursos sofísticos, quando refuta" (mas nem só as refutações são sofísticas: trata-se de saber se a retórica persuade com ou contra a verdade)]
A ciência que se ocupa dos objetos de que falam esses discursos é a política. A política, presente no início e nomeada no fim de nossa passagem é então uma meta-retórica, a única habilitada a tratar com verdade — e prudência — dos objetos a propósito dos quais deliberamos e de sua classificação. O próprio Aristóteles deve então evitar, em sua Retórica, intrometer-se em sua Política e sua Ética. É assim, por exemplo, que ele conclui sua enumeração, necessariamente dóxica e conjuntural, dos grandes lugares de deliberação (recursos, guerra e paz, defesa do território, importação-exportação, legislação), remetendo o que é talvez o mais interessante e o mais útil, as narrativas geográficas e as investigações históricas, ao campo político (1360a 33-37 28). Aí se encontra a imperiosa necessidade do "lugar comum", o único que impede a retórica, como a dialética, de usurpar o estatuto de todas as ciências particulares, tais como o direito, a física, a ética ou a política: "o lugar comum não torna informado sobre nenhum gênero, já que não concerne a nenhum objeto (hypokeiménon, como em 1359b 15); quanto aos lugares próprios, quanto mais os escolhemos como premissas, mais criamos, sem nos aperceber, uma ciência diferente da dialética e da retórica; pois se por acaso encontrarmos princípios, não haverá mais então nem dialética nem retórica, mas a ciência mesma à qual pertencem esses princípios" (I, 2, 1358a 21-26). Assim, é sua universalidade mesma que garante a justa medida da retórica, pois está ligada ao seu estatuto de ciência dos discursos, por oposição ao de ciência dos (ou de um) objetos. Permanecer dýnamis traz consigo uma dupla consequência, feliz e infeliz: assemelhar-se à sofística por uma vocação para a universalidade discursiva, e não usurpar a identidade da política, ciência dos objetos dos quais ela fala.
• Sofística, retórica, política — ou a política: potência e ato
Já evocamos o final da Ética a Nicômaco (X, 10; ver supra, p, 9s.), para enfatizar a importância do lógos e da persuasão no ensino. Para dizer a verdade, como tudo o que depende da circularidade no homem entre natureza e cultura, o apelo à razão só se faz ouvir quando estamos preparados para ouvi-lo; daí a importância de ser educado sob leis corretas que levem em conta a educação pública como na Lacedemônia, ou — na falta disso, mas também melhor ainda porque de maneira mais adaptada à singularidade de cada indivíduo — a importância de ser bem educado por um pai que conhecesse o espírito das leis e fosse assim bom legislador. A educação volta então, de uma maneira ou de outra, à nomotética: como então tornar-se um nomoteta? [Osório diz: nomoteta: “legislador, membro da grande comissão legislativa que, formada de ex-juízes, era encarregada, entre os atenienses, da revisão das leis existentes.”] Essa questão conduz novamente a uma comparação entre sofística, retórica e política:
A singularidade da política é, em primeira análise, que a dýnamis e a enérgeia, a potencialidade e a atualidade, se separam. Enquanto um só e mesmo médico torna capaz (transmite sua capacidade a seus alunos), e pratica (cura efetivamente), o sofista ensina o que nunca pratica e o homem político pratica o que não sabe ensinar. Como se um tivesse toda a dýnamis e o outro toda a enérgeia. Aristóteles reencontra então tons platônicos (cf. Menon, 93ss.; Protágoras, 319,320) para constatar que nenhum homem político jamais escreveu ou falou de política ("o que seria entretanto bem mais belo do que defesas judiciais ou arengas"), nem nunca fez de seus amigos ou de seus filhos um homem político ("o que seria entretanto a melhor das heranças a deixar para a cidade"): prova de que eles não o podem.
Esse estatuto paradoxal da política, onde potência e ato ficam partes extra partes, tem uma consequência desastrosa. Pois se os políticos não ensinam, é preciso acrescentar que os sofistas tampouco o fazem:
Os sofistas que fazem excessivas proclamações estão manifestamente bem longe de ensinar. Em uma palavra, eles não sabem com efeito nem de que ensino se trata e nem qual é seu objeto. Senão, eles não teriam identificado, até mesmo subordinado, a política à retórica, e eles não teriam pensado que é fácil legislar apenas reunindo as leis mais reputadas (1181a 12-17).
Os sofistas, cujo caráter "hibrístico" reencontramos, só ensinam a retórica fazendo-a ser tomada pela política — uma retórica que, aliás, eles ensinam mal, já que dão compilações de receitas, compilações de leis, os resultados da arte ao invés da arte 30. De um lado então, presunção, usurpação de identidade, suposta cientificidade dos sofistas oradores. De outro, empiria, experiência inevitável mas incomunicável dos homens políticos: quem pode então ainda ensinar a política? Resposta murmurada: nem o orador nem o homem de estado, mas talvez o leitor assíduo da Política de Aristóteles, que saberia com ela nutrir seus filhos. [Osório diz: todo este texto de Aristóteles é ridiculamente ridículo! Veja: se os sofistas não ensinavam nada, em especial política, por que o ódio nutrido contra eles ao combate-los? Ou seja, o autor acaba por afirmar aquilo que tenta negar].
Essa referência de segunda ordem à dýnamis é aqui em todo caso manifestamente subordinada à dicotomia primeira entre dýnamis — poder retórico e enérgeia — prática política. Trata-se de uma outra dýnamis que poderíamos caracterizar como a "capacidade" que tem o homem político de tratar os problemas que se apresentam, seu senso pragmático;
O lógos de Aristóteles é em si, pela sua própria definição, mais político do que o lógos sofístico: pelos objetos que ele mostra, desde sua relação ao justo e ao injusto, e porque funciona sempre como télos e nunca apenas como téchne. Mas a política que pratica necessariamente o animal dotado de lógos é uma disciplina altamente paradoxal, como se a definição fosse mais reguladora, e como se o homem não chegasse nunca a ser conforme a seu conceito. A dificuldade do estatuto da política deve-se, nessa perspectiva, ao hiato entre sua dýnamis e sua enérgeia. Devido a esse hiato corremos sempre o risco de nos determos na dýnamis retórica, agindo então assim, diz Aristóteles, como sofista: como "hoje".
(…)
Protágoras e Élio Aristides – liame retórico.
(394) Se é preciso, por nossa vez, contar um mito, temo que algum cômico, zombando de nós, vá nos dizer para devolver às mulheres a sua tarefa.
[2. Mesmo que o mito propriamente dito, que nos será recontado, seja uma retomada do mito de Protágoras (Platão, Protágoras, a partir de 320c), o conjunto do discurso Para defender a retórica é um palimpsesto de diversos diálogos simultaneamente jogados uns contra os outros, e em particular do Górgias ao qual pretende retorquir. O Górgias é legível não apenas no desenvolvimento dos grandes conjuntos argumentativos, mas também numa quantidade de pequenas referências. Assim, a alusão ao conto de “mulheres” que seria o mito retoma, entre outras, uma expressão de Sócrates defendendo sua narrativa do último julgamento (527a).
Trata-se dos gêmeos que Antíopa teve de Zeus, e da grande cena agonística onde eles tiveram que confrontar seu tipo de vida: Zeto se dedica à luta, à agricultura e à criação, enquanto Ânfion só cultiva a sua lira. Cálicles se faz Zeto para repreender com toda benevolência Sócrates-Ânfion, aconselhando-o a se tornar enfim adulto, a cessar de filosofar com e como os jovens, para participar da vida pública e falar de uma maneira "livre, grande, eficaz" que o torne capaz, por exemplo, de não se deixar condenar à morte por um acusador vil e perverso. Sócrates, quando Cálicles interrompe a conversação, lamenta não ter podido continuar com ele o diálogo “o tempo suficiente para lhe ter revidado a tirada de Ânfion contra a de Zeto”. Sabe-se que ele continua entretanto à sua maneira, que se quer precisamente não "retórica" mas filosófica, demonstrando que e sem dúvida ele, Sócrates, na medida em que visa sempre em seus discursos o melhor e não o mais agradável de ouvir, "o único ateniense a assumir a verdadeira arte política, a praticar a política" (52lde).
Entretanto, é bem claro, quando se lê o mito, que esse não é o caso. E com toda razão. Antes de mais nada, Élio Aristides escreve "contra Platão, para defender a retórica", para defendê-la em particular, e com indignação contra a acusação de adulação que Sócrates não cessa de instruir no Górgias. Dito de outro modo, Aristides protege, como Cálicles, a retórica que Sócrates ataca, essa retórica que cria o liame entre os homens no espaço público e constitui assim a polis e a política. Por um lado, então, de modo evidente, Aristides não é senão Cálicles-Zeto aprimorado. De súbito, ele se torna capaz de ser, no lugar de Sócrates, um Ânfion não menos aprimorado: é ele que vai enaltecer o desenvolvimento pacífico de todas as músicas ao abrigo do incomparável escudo do lógos; poder-se-ia mesmo dizer que a retórica é a própria música. Assim como a retórica é arte pública e arte privada, arte de combate e arte de paz (401 e 402), Aristides sem dúvida alguma se propõe a ser ao mesmo tempo Cálicles e Sócrates, Zeto e Ânfion.
Em uma passagem análoga do Contra Platão, para defender os Quatro (III, 515), Aristides atribui a Cálicles o direito de apresentar a tirada de Ânfion. Dessa vez, o sentido do jogo de papéis é explícito: deriva da, e revela a, inconsistência mesma da posição platônica segundo a qual, segunda o texto do Górgias, os quatro grandes oradores políticos — Temístocles, Címon, Miltíades e Péricles ora são (503) e ora não são (517a) aduladores. É porque Platão muda de opinião que os personagens que põe em cena podem tão facilmente entrecruzar sua função.
Nessa perspectiva, a alusão a Eurípedes parece-me apresentar o interesse de instituir um nível suplementar: Aristides não é somente um dos dois gêmeos, como Cálicles no diálogo; também não é apenas, como o Sócrates de Platão, como bom orador dialético, capaz de ser os dois pelas necessidades da sua própria causa. É também, como Eurípedes, o autor, o criador que unifica no real as duas ficções antagônicas. Como Eurípedes ou como Platão. Pois um dos trunfos mais notáveis da retórica de Aristides é o de lhe permitir perceber Platão também como um autor. Ele situa, coloca no seu devido lugar, a pretensão à verdade do discurso platônico, fazendo simplesmente notar que Platão, que finge ser Sócrates, escreve "ficções" com seus diálogos: “Quem não sabe que Sócrates, Cálicles, Górgias, Pólo, tudo isso é Platão, transformando os discursos à sua vontade?” (III, 632). Aristides, consciente da sua própria autoridade, não esquece nunca o autor do enunciado sob o sujeito da enunciação, a escritura sob a verdade em curso];
(…) todos os pássaros (aquilo que os grous, como disse Homero, faziam os pigmeus 3 suportar acontecia com todos os homens de então, presa de todos os pássaros intrépidos), menos fortes, e bem menos, do que os leões, os javalis e vários outros. Morriam então em silêncio. (396) De fato, pela estrutura de seu corpo, estavam bem aquém do gado, e mesmo bem aquém dos caracóis, já nenhum deles tinha a possibilidade de se bastar a si mesmo. [Osório diz: eis o homem!]
A raça caminhava para sua destruição e desaparecia pouco a pouco, quando Prometeu se apercebe disso e, sempre um pouco filantropo, parte em embaixada em socorro dos homens sem que estes o enviem, já que então ainda não se podia saber enviar um embaixador por sua própria conta. Zeus, excessivamente impressionado com a correção do que dizia Prometeu, e não sem ter ele mesmo refletido sobre isso, ordena a um de seus filhos, Hermes, que vá até os homens para levar-lhes a retórica. (397). Era para todos sem exceção e dando-os a cada um que Prometeu, anteriormente, havia modelado os órgãos dos sentidos e os membros do corpo: dessa vez, ele ordenou a Hermes que não fizesse uma distribuição como a dos lugares no teatro, de forma que todos pudessem ter lado a lado sua parte de retórica, como de olhos, de mãos e pés, mas que escolhesse os melhores, os mais nobres, as naturezas mais fortes, e que lhes colocasse o dom em mãos para que tivessem com isso como se salvar e salvar os outros.
É provindo assim dos deuses que a retórica veio aos homens: desde então, os homens puderam escapar à dureza de sua vida com os animais e cessaram de ser todos, nas proximidades, inimigos uns dos outros, descobriram o princípio da comunidade. (…)
É assim que o homem foi solidamente provido de grandeza: de fraco e de inválido que era no começo e, de início, desprezado como uma criatura de nada, encontra-se, desde então, senhor do que há sobre a terra para fazer com isso o que quiser, fazendo do discurso seu escudo por toda proteção.
(400). E que o mito acabe aqui para nós, dotado de um início que não tem, creio, nada de desonroso. Mas esse não é bem um mito nem um sonho: é uma visão do real 5 e, as coisas o mostram bem, é o discurso das próprias coisas. (401). Certamente, a potência da retórica não fez apenas surgir, no início, essas determinações e essas instituições mas, ainda hoje, a retórica assegura a coesão e a ordenação das cidades habitadas há muito tempo, através de uma busca incessante daquilo que se adapte à sua ornamentação atual 6. Com efeito, como já disse, a legislação está fora de jogo desde que as leis são feitas e a justiça não está mais implicada após o voto. Mas ela, tal como uma sentinela que não dorme jamais, não negligencia a guarda: estava de início associada a essas duas artes e servia de guia e de professor; doravante examina sozinha todos os casos, propõe, age como embaixador, e não cessa de tornar o presente coerente. E, mesmo quando todas as injustiças e todos os erros se afastassem dos homens, nem por isso ela perderia sua utilidade, ainda que nesse caso não houvesse mais necessidade de leis nem de tribunais. (402). Ao contrário, enquanto nos relacionarmos entre nós e com outros, ainda haverá trabalho para a retórica.
De um modo geral, uma das grandes divergências entre a tradução de Behr, aliás quase sempre excelente, e a minha, é precisamente a do termo lógos. Todo mundo sabe que a amplidão grega do termo é intraduzível. Mas parece-me "lógico" não retirar de Aristides os meios de sua defesa da retórica e preferir com tanta constância quanto possível o termo "discurso" ao termo “razão”. Assim, é a vitória do “discurso” e da discursividade, e não a de uma "razão" pura, que no mito permite aos homens se organizar em cidade (398: notaremos a tradução de Behr: "when reason prevailed" e o remorso lacônico da sua nota 277, em B2: "Or 'speech'"). Há casos em que a ênfase sobre a razão faz mais do que contra-senso não senso (403-409, e o cúmulo: hoi lógoí, "reason", 408: para um jogo análogo singular/plural, cf. 204).
Mas mesmo após ter dividido a arte do cuidado e distinguido rei e tirano somos tentados a traduzir por "é evidente" ou "tudo nos prova". Só que se trata, no interior do mito, da retórica, dom dos deuses que nos dá um conhecimento dos deuses e que nos permite oferecer-lhes como premissas * a todos os sacrifícios "as palavras" de nossas preces (tàs apò tSn lógòn) E trata-se, bem entendido, mais amplamente, do próprio mito que nos "conta" (kal mython légein, 394) Élio Aristides, no interior do "discurso" que faz para defender a retórica. É por isso que preferi pecar por insistência: "o discurso nos persuade".
Um problema análogo se coloca ao tradutor escrupuloso demais em 411, onde a locução tôi lógôi, que traduzi por "por dizer", significa "por hipótese";
[5. A belíssima oposição ónar/hýpar, "sonho"/"visão do real", já é atestada na Odisseia XIX, 547 e XX, 90, a propósito de dois sonhos de Penélope: a carnificina dos patos pretendentes pela águia Ulisses e cujo sentido é revelado pela própria águia do sonho, e a quase alucinação da presença de Ulisses no leito ao lado dela.
É assim que, após ter explicitado o que é um paradigma, o Estrangeiro tenta, por meio do paradigma da tecelagem, aprender a conhecer, e dessa vez de modo hábil, o que é o cuidado das coisas da cidade, a fim de, diz, "que nos venha a vigília (ou o real) ao invés do sonho" (278e, hina hypar ant'oneiratos hemin gignetai).
Élio Aristides pode fazer a economia do paradigma já que, como acaba de enfatizar, seu mito já encontrou seu fim: o lógos que explicitava o mito no Protágoras (324d) já está presente como reconstrução do mito, incorporada a seus mitemas (ver infra, pp.). É por isso que o mito "não é bem um mito", mas constitui antes já o lógos das próprias coisas de que trata, nos dois sentidos do genitivo, objetivo porque o mito nos confia a "definição" da cidade e do político, subjetivo porque através do mito é o próprio real que se exprime, o mito dá fala ao político. É também por isso que se trata não de um sonho, mas, como através de um paradigma o do lógos demonstrativo, de uma "vigília", de uma "visão do real", da "presença mesma do real", em toda graça eficaz da retórica realizada; (N. das T.)]
[É aliás por isso que, contrariamente a Platão, é preciso pensar mais em termos de inclusão do que de analogia: a legislação e a justiça nascem da retórica, e não o inverso, elas são mesmo partes desta (205-226).
Todos esses termos de mesma raiz (cheir, "a mão") traçam uma configuração importante da sofística: a importância do "uso", em todos os sentidos do termo, sobre a qual Platão não cessa de chamar pejorativamente a atenção. Não esqueceremos, em particular, que kremata designa aquilo de que o homem é a medida na frase de Protágoras.]
(…)
Ao contrário, o que é superior em discurso ultrapassa da mesma maneira cada um separadamente e todo o mundo junto; a superioridade que tem permanece constantemente igual e ele não a perde. Pois não é possível fazer uma coleta como se fosse dinheiro nem cobrir um déficit por um empréstimo. [Osório diz: a superioridade do homem que fala. Quando a parte é maior que o todo.]
É aí sobretudo que se vê como o parentesco do discurso com o belo é grande e que os discursos estão para a alma assim como a beleza está para o corpo. [Osório diz: a superioridade do homem que fala. Quando a parte é maior que o todo.]
(408). Todavia, sobre esse ponto, poderíamos dizer que o tempo refuta facilmente a beleza: assim lhe atribuímos sem dificuldade o nome de "primavera" 11. Ao contrário, os discursos progridem com o tempo e nada revela tão bem quanto o tempo quais são os melhores, assim como, dizia Sófocles, só o tempo permite ver que um homem é justo. Subtraio desse acúmulo o fato de que os discursos tenham, entretanto, por natureza, acertar em cheio não somente com o passar do tempo mas também imediatamente, e que lhe advenha a imortalidade na sua única primavera. (409). Aquele que possui riquezas, quando faz com que delas se beneficiem os que julga conveniente, ele o faz subtraindo do que tem, de modo que diminui o que resta daquilo que abandona. Mantendo constantemente um tal desejo de glória, rapidamente necessitará de que o ajudem. Mas a posse e a potência dos discursos não se gastam quando nos servimos deles: ao contrário, se se pode dizer, sua natureza é a de aumentar, por essa mesma razão, até o ponto máximo. (410). A causa disso é que tiramos as riquezas lá de baixo, das minas, das pedreiras, por meio de rudes trabalhos, enquanto os discursos nos vêm de trabalhos que não destroem nada, por meio dos quais nos causam benefício. Eles são então, em toda verossimilhança, os únicos a participar da natureza divina. [Osório diz: isso vale para o saber/conhecimento, que o discurso não deixar de integrar. Discurso: riqueza que mais aumenta quanto mais se gasta]
[12. Hoi lógoi t9i chrónõi symprobaínousin: "os discursos progridem com o tempo". Behr traduz "reason increases with time".]
(412). Se, por outro lado, ela tem interesses comuns com uma das outras artes, uma das outras potências, por Héracles, não poderíamos dizer a que ponto o que vem dela é revelador. Se, por exemplo, um médico se associa à retórica, é então que conhecerá perfeitamente o charme da própria medicina. Pois se ele acrescenta o poder de persuadir aos meios que lhe pertencem conformemente à sua arte, o que o impede de dar, na maior parte dos casos, uma pré-medicação retórica antes de tocar nos utensílios médicos, utilizando, como se diz, a mais sábia das drogas?
[(ver "Do falso ou da mentira na ficção", incluído nesse volume).
Mais ainda, é preciso levar em consideração o texto preciso que aqui se acha presente de modo implícito e transformado: o do Górgias de Platão (comparar com Protágoras, 167a), onde Górgias desvela a Sócrates "a potência total da retórica" (455d), que "por assim dizer, tem e compreende (syllaboûsa, "tomar em conjunto", 465a l, é retomado aqui em prosláboi, 412, "tomar a mais", "se acrescentar"), sob a sua própria, todas as outras potências". Eis seu testemunho: eu acompanhava frequentemente meu irmão ou outros médicos à casa dos doentes que recusavam uma droga; "o médico permanecia impotente para persuadir, enquanto quem persuadia era eu, sem outra arte que não a retórica"; pois o orador sabe convencer melhor do que o médico de que ele é médico (456b-d).
Eis porque o lógos não é mais o que faz tomar o phármakon, engolir a pílula, mas é ele mesmo phármakon, uma das pílulas eficazes possíveis na própria medicina. O orador-médico é capaz de curar assim pela linguagem]
[14. A comparação entre estratégia, arte do comando e retórica atravessa também todo o Górgias, desde a preferência afirmada por Sócrates pelo "perito": "Quando se trata de edificar muralhas, de organizar portos e arsenais, aconselhar-nos-emos com os arquitetos; quando se trata de escolher estratégias, de dispor um exército em ordem de batalha ou de tomar uma praça aconselhar-nos-emos com os estrategistas, não com os oradores" (455bc). Górgias responde que Temístocles ou Péricles — que não eram arquitetos, mas antes estrategistas, e, em todo caso, oradores — construíram efetivamente longas muralhas, organizaram os portos e os arsenais. É sobre os Quatro (Temístocles, Simão, Miltíades e Péricles) que a discussão com Cálicles versará em seguida, a partir de 503c (cf. 515b), e sabemos que Aristides compôs um longo e célebre discurso Contra Platão, para defender os Quatro (III, Behr = XLVI Dindorf).
Mas o argumento aqui não é o de uma acumulação, da superioridade estratégica do estrategista-orador, como do médico ou do piloto que sabe falar, sobre o simples especialista. Pois a retórica "salva" (sóizein) a estratégia. Confundida com a exortação ao combate e com o conselho, é sob sua asa que a arte da guerra pode se desenvolver. Ou ainda, o estrategista é apenas o "escudeiro" do orador e a retórica é, na verdade, como Aristides já o havia mostrado para se opor também ao Político, "a arte basílica" (cf. 392; ver também 422, 438)]
Ele tem assim a retórica como superior em poder à estratégia, em proporção inversa à da inferioridade numérica entre dez homens e dez vezes dez mil. (415). Em toda verossimilhança, pois ele não teve que buscar longe para provar isso: quando os aqueus investiram para fugir, quando já tinham levantado a rampa das naus e coberto com seus gritos o barulho do mar, se nossos dois oradores não os tivessem retido, de que serviria a tática, de que serviriam os escudos, as lanças, as naus, a massa das riquezas e dos equipamentos? Mas falando a verdade, toda essa preparação teve bem a aparência de um escudeiro em relação a um hoplita, comparada à retórica que comanda tudo isso. [Osório diz: são os velhos políticos com seus discursos que fazem a guerras, não com suas forças e estratégias]
O piloto por sua vez, quando traz para si uma parte dessa potência, quando sabe provocar medo cada vez que é oportuno ou, inversamente, ganhar a confiança, como isso não seria superior ao que é a própria função da arte de pilotar!
[O piloto de Aristides, por que sabe falar, sabe também produzir em seus passageiros o estado que convém, o temor ou a coragem adaptada ao kairós da travessia. Com esse último exemplo aparece um outro conceito-chave da sofística, o de "momento oportuno", de "ocasião"," e de discurso conveniente a esse momento (cf. por exemplo a descrição do orador em 383; é também o termo utilizado em 422, que traduzo por "a hora" das armas. Ver A. Tordesillas, "A instância temporal na argumentação da primeira e da segunda sofística: a noção de kairós", em Le plaisir de parler Paris, Minuit, 1986).]
(417). Assim, então, ela é constantemente admirável por si, ao mesmo tempo que dá tanto peso àquilo a que se junta. Afirmo por minha parte que, num concurso entre beleza e retórica, a decisão se fará por meio da retórica, e que ninguém terá, ao olhar um homem assim dotado, tanto prazer quanto ao escutá-lo falar. Homero parece ainda testemunhar isso:
pois não é por nada nem sem pesquisar que ele diz "coroa", é para indicar que a retórica não preenche apenas as faltas, mas que, ainda e sobretudo, torna vencedor, já que a coroa é precisamente o símbolo da vitória. (419). Se, então, ele situa o homem feio capaz de um belo discurso à frente do homem mais bonito porém incapaz de falar, é verossímil e coerente que afirme que o que é ao mesmo tempo belo e orador suscita ainda mais admiração por seus discursos. [p. 158]
[18. Odisseia, VIII, 169s. A citação já serviu em 96, onde o comentário privilegia não "coroa" mas "o deus". Trata-se então de responder com a ajuda dos poetas, de Sócrates, e de um certo Platão, à acusação do Górgias que recusa à retórica até o estatuto de téchnê para fazer dela uma contrafação vergonhosa: seja — réplica Aristides — a retórica não é o efeito da arte, da experiência nem da aprendizagem, mas nos vem dos uses — Hermes (cf. além do mito, 49, 57 ou 423) —, é um dom da natureza (33-34). De uma outra ocorrência da mesma citação, em XXVIII, 40, um Aristides a quem se reprova sua vaidade, concluí que o próprio Ulisses sabe bem se fazer valorizar. As três paráfrases são, afinal de contas, irrepreensíveis. Aí se vê como os mesmos versos constituem todo um arsenal, uma riqueza à disposição de quem sabe utilizá-los]
(420). Píndaro exagera ao ponto de dizer 19 que, no casamento de Zeus, enquanto Zeus perguntava aos próprios deuses se tinham necessidade de algo, eles lhe requisitavam que fabricasse deuses capazes de desdobrar em palavras e em música a ordenação desses altos feitos e de todos os seus próprios preparativos. [Osório diz: é a exigência da poesia!]
(421). E não são apenas os poetas, mas todos os homens que concordam com isso. O resto, para falar em geral, apresenta seja um atrativo para a alma, seja uma utilidade; mas só o nosso objeto preenche totalmente as duas finalidades e apresenta, com os serviços que presta, um charme admirável. Assim, quando os homens partem em guerra uns contra os outros, recebem embaixadores despachados por esses assassinos que matam os seus, e fazem "questão de enviá-los, pois fazem exceção para a raça dos oradores e são cheios de respeito pela natureza do discurso, com a ideia de que, em sua origem, a retórica apareceu para a salvaguarda do gênero humano e a utilidade comum. (422). O hábito das armas não serve para nada em tempos de paz, mas o poder dos discursos não é sem honra em tempos de guerra: é útil aos concidadãos e inspira respeito ao inimigo e, frequentemente, quando é a hora das armas, supera as armas. (423). É por isso também, parece-me, que os poetas nomeiam apenas Hermes, mestre dessa sabedoria e patrono de um tal charme, com o nome que se aplica em comum aos deuses. Dão o nome de "doador de bens" a todos eles tomados em conjunto, mas também somente a ele, por conta própria: chamam-no "o sem mal" e "o prestativo", porque o dom que vem dele é desprovido de mal e proporciona aos homens todos os bens, uns após os outros, em guerra, em paz, na terra, no mar, nas dores, nas alegrias, em toda parte. Há também, parece-me, a acreditar em Platão, uma raça de demônios, que levam as mensagens dos homens para os deuses e as dos deuses para os homens; de modo que poderíamos dizer, com exatidão, que a retórica é um liame que une o todo, e que ela é essa raça. [Osório diz: a importância dos embaixadores, que eram, quase todos os sofistas! / Vitória de Hermes! O deus do discurso]
[20. "Um atrativo para a alma": o termo assim traduzido é psychagôgía, "psicagogia". Trata-se sem dúvida terminologicamente, na oposição com kreia, da diferença entre o prazer e a necessidade, a sedução exercida pela retórica e a satisfação das necessidades — "pleasure on use", traduz Behr. Em Aristides, a "psicagogia" se opõe mesmo à seriedade professoral, que não é conveniente no teatro (cf. XIX, 21, e para a "sedução" trágica, Aristóteles, Poética, 6, 1450a 33).
Mais ainda, reunir apenas na retórica, logo também em uma única retórica, o útil e o agradável, "os serviços" e “o charme” (tôn ôpheleiôn /tên chárin), quer dizer os próprios termos que o Gorgias (cf. 502b 6s. e g.) não cessa de dividir, é recusar que haja uma boa e uma má retórica, a retórica filosófica do Fedro e a retórica do Górgias, essas duas retóricas que o próprio Górgias evoca rapidamente (502e — 503a, citado e comentado por Aristides em 344-348, depois a partir de 446) para declarar que a boa é impossível de achar. Assim, a retórica se acha duplamente absolvida: o prazer da suposta má é um bom prazer; a boa e a pseudo-má constituem inseparavelmente o apanágio do gênero humano]
(425). Mas a coisa mais importante a dizer sobre essa potência, é que nada é ao mesmo tempo tão comum à multidão, que possa entretanto escapar a esse ponto à condição e à natureza dessa multidão. Ainda que ela esteja, por assim dizer, sempre presente no homem, só a encontramos com a mais extrema dificuldade sob sua forma acabada. Pois como os leões e todos os animais valorosos são naturalmente mais raros do que os outros, nos humanos nada é tão raro quanto o orador digno desse nome. (426). Ainda é sorte se, tal como o pássaro indiano dos egípcios, nascem deles um ou dois por revolução solar. Mas a maioria, tendo encontrado da arte oratória apenas partes, tem necessidade de um Homero para saudá-los, como quando ele diz: ele, que "conduz a carro", ou ainda: "vassalo de Posídon" (é o início e o fim de um verso). Tão longe em natureza de Mitecos e Tearião estão os oradores que o são verdadeiramente.” [Osório diz: a multidão ver nos poetas/cantadores o dizer que eles querem mais não sabem exprimir]
[22. As citações são tiradas da Ilíada, VI, 19, e da Odisseia, IV, 386. Miteco é o autor de um livro de cozinha siciliana, e Tearião, o padeiro que Sócrates compara aos Quatro de Cálicles (Górgias, 518b): Péricles, Simão, Miltíades e Temístocles são tão pouco oradores políticos quanto aqueles são mestres de ginástica. A réplica prossegue com a comparação de 427, onde o bom regime, simples e atlético (cf. e.e. Rep., III, 404d), é o da retórica, em oposição às guloseimas ou às futilidades dos gêneros literários.]
(427) Todos os outros gêneros de discurso então — para não deixarmos de falar neles — estão em relação ao discurso da retórica exatamente como as guloseimas em relação ao pão e à carne. De modo que os mais renomados em cada gênero são os que aí introduziram o máximo de retórica e, dentre eles, sobretudo aquele que tiver chegado mais próximo da retórica. (428). Homero, e essas passagens em Homero, Sófocles, e essas passagens em Sófocles. Mas o próprio Platão, o que nos diz? Pois, longe de ignorá-lo, estamos prontos a colocá-lo no lugar de honra do coro. [Osório diz: Platão, o contraditório]
Êlio Aristides, Contra Platão, para defender a retórica (II, 234).
A consistência do político: ética ou retórica?
Trasímaco passa por um sub-Cálicles que sustenta, suando em bicas, que a justiça "é o interesse do mais forte" (República, I, 338c3). Emile Chambry 2 nota que "Platão pinta aqui na pessoa de Trasímaco", profeta mórmon, "o sofista arrogante, cúpido, imoral, cuja figura é tanto mais expressiva pelo fato de formar um contraste violento com a modéstia, o desinteresse e a alta virtude de Sócrates". Glauco e Adimanto, bispos católicos, em todo caso "puros atenienses", são os irmãos de Platão, que ele "honra, dando-lhes, ao lado de Sócrates, os papéis mais importantes na mais bela de suas obras". Glauco entretanto só faz retomar o discurso de um Trasímaco fascinado por Sócrates cedo demais, para provar que não se pratica nunca a justiça por ela mesma, como um valor em si, mas por seu efeito social; de modo que o injusto que parece justo sem sê-lo, injustiça suprema, será mais feliz do que um justo que, como Justine, terá conhecido apenas os infortúnios da virtude (360e-361d). Só que, se Glauco fala assim, é, pelo que diz, somente para que Sócrates enfim o persuada do contrário (358cd, ver 367b). É a intenção então, e não o argumento efetivo, nem sua força, explicitamente contrários à intenção — Sócrates exclama: "É preciso que haja em vós algo de verdadeiramente divino, já que não estais convencidos de que a justiça vale mais do que a injustiça, após terdes falado sobre esse assunto com tanto vigor!" (368a) —, que faz toda a diferença entre Trasímaco e Glauco.
Eis, diz-nos Rorty lendo Rawls, justamente o que o Estado liberal_está_no direito de ignorar: a intenção, a ética. Mas e já, tê-lo-emos compreendido, através das inenarráveis e desconcertantes torções do diálogo platônico, nos discursos dos que ocupam verdadeiramente ou não a posição de adversários, que se coloca a questão de uma consistência não-ética, a-ética, do político. Tal é a questão que escolhemos esclarecer, de Platão a Rawls, com a ajuda de um terceiro termo que sua leitura, ou certas leituras de seus textos, convida a levantar: o de lógos, de retórica. Trata-se então de refletir sobre o que implica a substituição do retórico, em lugar do ético, na relação com o político.
Relação com o político, ou mais exatamente, consistência mesma do político: o problema é com efeito o do liame, o daquilo que liga. Esse é explicitamente o problema de Rawls, a razão pela qual, por exemplo, qualquer que seja o caráter fictício e insuficiente da doutrina do contrato, não obstante ele a prefere à doutrina do utilitarismo clássico que considera sempre "as pessoas como outras tantas direções separadas" 5. Do mesmo modo, o liame é já aquilo cuja gênese trata-se de assegurar desde os primeiros mitos. Assim, o mito que narra Protágoras no Protágoras de Platão, encontra seu fim na existência, graças à aidós e díkê, "belas estruturas das cidades, e laços de amizade próprios para reunir" (híríeien póleõn kósmol te kaï desmol philías synagõgoí, 322c 2s.).
Se buscamos explicitar através de Platão esse tema do liame (desmós, sýndesmos), é todo o Político e a arte do tecelão real que é preciso convocar (a partir de 308c), com o entrecruzamento dos caracteres de cadeia e dos caracteres de trama. É esse liame que protege e que garante a lei (Rep., VII, 520a3; Leis XI, 921c4).
Existe entretanto uma outra interpretação possível, em todo caso plausível, desde que se interprete o mito, como o próprio Protágoras convida, levando em conta o lógos, o "discurso contínuo", pelo qual ele o completa e o decodifica em linguagem comum. Com efeito, a interpretação, pelo sofista, do grande mito político da sofística faz, no lógos, intervir o lógos: aprender a "falar grego" (328al); é por isso que, mesmo se existem mestres, pode-se crer que todo mundo, ou ninguém, o ensina.
O texto de Élio Aristides, proposto ao leitor no início, é uma reconstrução antiplatônica que barra toda interpretação ética [Osório diz: bem/bom] e impõe uma interpretação retórica: não são mais os equívocos aidós e díkê, mas efetivamente o lógos que constitui o dom divino na origem do político. Pois o liame é a própria retórica.
Sigamos em primeiro lugar essa palavra, "liame", no Contra Platão 5. Antes de tudo, uma primeira alusão ao mito prometeico, na primeira parte da discurso (205-211), faz da retórica o único phármakon, "comum à raça e de mesma utilidade para todos" (209), que permite os homens "escapar à força pela persuasão" (211) e impede que eles se matem uns aos outros até o último. Ela e assim, antes de mais nada, syndesmos toü bíou toïs ii,tliriif)ois (210), “o liame constitutivo da vida para os homens: uma salvaguarda biológica, "que torna a vida vivível".
Além disso, numa resposta muito sutil às analogias do Gá, giavI que segue essa primeira alusão ao mito, Élio Aristides rt maneja as relações até invalidar a noção mesma de relação. Pc de-se deduzir do Górgias que a sofística está para a legislaçã como a retórica está para a justiça. Num primeiro procedimento Élio Aristides, orador da segunda sofística, recusa distinguir entr retóricae sofística e silencia sobre a sofística, furioso em todo caso porque essa pseudo-retórica que é a sofística platônica, re presenta um papel mais estruturante e menos conjuntural (legis lação e não justiça, ginástica e não medicina) do que a verda. deira ou a boa retórica: retórica será seu nome comum. É então que mostra como "a retórica sozinha ocupa todas as posições' (233): ela precede a legislação como a justiça, compreende-as em si mesma e cerca-as; é assim ao mesmo tempo início, meio e fim; ela é o seu meio e elas estão no meio dela, de modo que o conjunto só se mantém unido servindo-ase da retórica como de umliame" (anti syndésmou tti ritetoriUi ehrMenai, 233): é elaa barra de fração que dinamiza, e dinamita, a analogia.
Em seguida, sobretudo, na passagem que escolhi traduzir, o papel do liame está ligado, ainda com mais insistência, à existência mesma da pólis. Com efeito a retórica "assegura a coesão e a ordenação das cidades", "mantém-nas juntas e faz delas mundos" (synéchei te ka7 kosmei, 4:01): coerência política propriamente dita, à qual voltaremos sempre. É ela, enfim, que assegura a ligação entre os deuses e os homens, é "o que liga o todo" (s.yndesmon ... toú pantós, 424 1), constitutiva de um tipo de cidade do mundo, que assegura a coesão cósmica das mensagens. É então do "liame retórico" que se tratará nesse remake.
[6. Lembro a analogia completa, enunciada em 465c: a sofística está para para legislação como a estética (a dos institutos de beleza) está para a ginástica, e a retórica está para a justiça como a cozinha está para a medicina. Sofística e retórica, estética e cozinha são "contrafações", "adulações", "sombras" no domínio da alma ou no do corpo. É essa acusação de adulação e o conjunto da analogia que Aristides se esforça incansavelmente em refutar para defendera retórica]
(…)
Para resumir em algumas palavras a matéria dos Discursos platônicos: Aristides ataca a opinião de Platão de que a retórica não é uma arte, e seu método preferido (à parte a invectiva, que não falta) é de fazer agir o filósofo contra ele mesmo, justapondo frases e ideias tomadas aqui e ali em sua obra para fazê-lo contradizer-se. Basta dizer isso. Um Aristóteles pode discutir com Platão: um Aristides não é capaz disso. Ele é incapaz — será necessário dizê-lo? — de compreender Platão: e seria inútil aprofundar a questão (p. 150).
Eis, em todo paradoxo, de que nos tranquilizar: apreciaremos afinal Aristides como os platônicos; e suporemos que "fazer agir um filósofo contra ele mesmo" constitui a definição de uma boa, em todo caso legítima, crítica interna: "Platão para nós refuta Platão" (II, 203), a temática de Aristides é pelo menos plena de futuro.
Digamos, para fixar imediatamente as ideias com a ajuda de um exemplo mais contemporâneo, que Élio Aristides faz como Perelman: tomando o partido da retórica contra o da filosofia, joga a boa retórica do Fedro contra a má retórica do Górgias. Só que Perelman, mesmo tendo aprendido com Dupréel a apreciar Protágoras e Górgias como precursores de uma teoria da argumentação visando a produzir um consenso prático, elabora entretanto uma retórica filosófica ou, em todo caso, "digna do filósofo", que ele escolhe esclarecer com a ajuda de todos os conceitos aristotélicos, com a lógica do provável visando a um auditório universal. Perelman quer realizar, graças a Aristóteles, a ambição de Platão, mantendo os valores deste.
[11.Para a escolha por Perelman da retórica contra a filosofia, ver sua profissão de fé no primeiro capítulo de L’empire rhétorique (Paris, 1977, p. 19):
Subordinando a lógica filosófica à nova retórica, tomo partido no debate secular que opôs a filosofia à retórica e isto desde o grande poema de Parmênides. Este, e a grande tradição da metafísica ocidental, ilustrada pelos nomes de Platão, de Descartes e de Kant, sempre opôs a busca da verdade, objeto proclamado da filosofia, às técnicas dos retores e dos sofistas, contentando-se em fazer admitir opiniões tão variadas quanto enganadoras.
(…) quando Bénézé lhe pergunta: "(Aceitarias) resumir tudo que ouvimos com essa frase: que o acordo entre aqueles que não pensam da mesma maneira só pode ser feito pela eloquência, quer dizer, uma persuasão conduzida e obtida por aquele que sabe falar". Perelman replica: "E quem sabe pensar" (p. 306, ou: Platão, Fedro, 266b).
(…) onde Perelman conclui a confrontação Górgias/Fedro. "Se toda retórica serve à ação eficaz sobre os espíritos" é a qualidade desses espíritos que distinguiria então uma retórica desprezível de uma retórica digna de elogios".
Rejeitei essa análise em nota, já que Romain Laufer desenvolve-a amplamente, em termos aos quais só posso subscrever.] [Osório diz: isso, em tradução, sem acesso ao tal Romain, é uma bosta]
Élio Aristides vai, considerando-se tudo, "filosoficamente" mais longe. Ele não censura Platão apenas por condenar no Górgias a boa retórica ao mesmo tempo que a má, o vício ou a sombra que é a sicofantia, sob o nome da virtude que é a retórica (452). Mas desloca a imagem platônica da má retórica: a má não é má, e "os Quatro" fazem como Sócrates ou como Platão, ou, antes, melhor do que eles (III). Inverte assim a divisão axiológica dos conceitos, como o agradável, o adulador, e o que visa o útil, o verdadeiro, o bem: mostra então que não há duas retóricas, nem mesmo apenas dois usos da retórica, mas talvez uma única retórica, tal que os defeitos para Platão nela se confundem com as qualidades. Em suma, não se contenta em jogar o Fedro contra o Górgias, mas antes joga o Fedro sobre o Górgias. E se existe Aristóteles em Élio Aristides, é o Aristóteles de uma única frase que, pelo que sei, ele aliás não cita: "A razão pela qual o homem é um animal mais político que qualquer abelha ou animal gregário é manifesta: a natureza, como se diz, não faz nada em vão; ora, o homem é o único dentre os animais a possuir o lógos" (Política, I, 1253a 7-10). Élio Aristides então não realiza tanto o programa de Platão quanto mostra como, quer queira quer não, Platão satisfaz o seu.
Como quer que seja, de Élio Aristides a Perelman, a retórica torna-se, de direito, a potência de universalidade por excelência: retórica "basílica", reinante ou real, "Império retórico". Mesmo se essa universalidade comporte ainda e sempre um paradoxo. Como se estruturalmente a retórica não pudesse se impedir de imitar essa filosofia que a denigre, ela produz o limite, denegado, adiado, redefinido, de um mau uso ou de uma profanação dela mesma que faz contrafação: que faz "sofística". Aí ainda, quando se trata de designar o mau orador, Élio Aristides se mostra, creio, mais retórico do que Perelman. Pois, "no domínio evasivo da retórica, onde se é sempre o sofista de alguém", Aristides distingue dois tipos de maus sofistas; de um lado, classicamente, os asianistas, que são apenas os "efeminados", as "prostitutas" (os "coloristas") da eloquência. Mas também, e sobretudo, o próprio Platão, ele que não cessa de fingir ser o que não é, um filósofo, e que recusa ser o que é, um orador; ele que acusa os outros de amar, convencer ou agradar enquanto ele mesmo volta à Sicília para seduzir os tiranos; ele que, enfim, grande promotor do verdadeiro, não cessa de fazer falar Sócrates em ficções dialogadas. Assim, no final do Contra Platão [p. 168] ei-lo, "o pai e o professor dos oradores" (465), reconduzido por Aristides sob o jugo da retórica como um "escravo fugitivo" (463). Audácia, ironia e humor desse procedimento sofístico por excelência, de retorno ao remetente e de catástrofe em espelho, que não são exatamente da sensibilidade de Perelman. [Osório diz: Platão o contraditório]
O mito e seu remake
O mito de Protágoras revisto e corrigido por Élio Aristides apresenta ao menos dois interesses. Pode-se muito facilmente mostrar, nesse caso, como Aristides é inteligente: a reconstrução toca o mito ponto a ponto para fazê-lo se tornar o que ele é, um mito sofístico; veremos que ele consegue incorporar ao mito propriamente dito, sob forma de novos mitemas, os principais conceitos que utiliza o Protágoras de Platão para canalizar o sentido de seu mito. Conseqüentemente ele desenvolve de uma maneira talvez jamais igualada a essência retórica da política sofística, quer dizer, as características de um lógos suscetível de fazer consenso, de fazer cidade. É precisamente por conta disso que me interessa apresentá-lo hoje.
Protágoras tem como profissão ensinar a arte política, o "valor" — essa areté que traduzimos sempre por "virtude". Sócrates duvida que exista aí matéria para ensino. É isso que Protágoras escolhe responder em dois tempos: o mito (Protágoras, 320c-324p) e um discurso contínuo que o explicita (até 328d). Quanto ao mito em Aristides, ele surge no fim de uma análise de Homero chegando à proposição segundo a qual a retórica, longe de ser uma adulação, é uma arte real: "A obra da retórica é então a de pensar direito, e apresentá-lo não somente fazendo ela mesma o que é necessário, mas persuadindo os outros a fazer o que é necessário, de modo que ela é obra real" (392). O mito é então proposto como um suplemento de prova, que vem ao final do discurso se unir a todos os argumentos precedentes, à lógica, aos testemunhos dos fatos, dos poetas, dos provérbios. Essa diferença de finalidade é evidentemente sensível na transformação do mito.
Conhecemos a estrutura da narrativa: um estado inicial, que levaria a um desaparecimento do homem; um suplemento divino, que se caracteriza por sua natureza e seu modo de distribuição; nas consequências. Gostaria de estabelecer, termo a termo, a correspondência entre o mito original e sua reconstrução.
O estado inicial, em primeiro lagar.
Em Platão, dois actantes [Osório diz: Aquele que participa numa ação ou num processo.] ou dois fatores. Epimeteu, que "dá um jeito" (emêchãnâtó) de "repartir" (némein) todas as "potências" (dynámels) de que dispõe: mas "ele não é completamente sábio, e não se apercebe de que gastou tudo com os sem-palavra" (áloga); "resta a raça dos homens sem nada para orná-lo", ou "para equipá-lo" (akósmêtorí), e Epimeteu "não sabe mais como se sair bem" (êpórei hó ti chrësaito, 321bc). É então que seu irmão Prometeu vem inspecioná-lo, no dia em que o homem deve sair da terra para vir à luz. "Não sabendo o que fazer para encontrar um meio de salvação para o homem, ele rouba de Hefaistos e de Atena a sabedoria da arte ligada ao fogo (tên éntechnon sophían syn purí) — pois, sem fogo, não há meio de possuí-la ou de se servir dela —, e a dá ao homem". O homem se acha então possuidor da "sabedoria que concerne à vida", quer dizer, "todas as facilidades para viver" (euporía toü bíou), "mas não a política", pois essa última está perto de Zeus, em sua acrópole impenetrável (321c-322a). Deve-se entretanto observar que a euporia que resulta do único dom prometeico é efetivamente considerável: o homem possui já a religião (ele honra os deuses, fabrica altares e estátuas), possui também a linguagem ("a arte de articular o som e as palavras"), e certamente sabe construir casas, se vestir e cultivar a terra. Mas ainda há mais: os homens, face às agressões dos animais, chegam mesmo a "se reagruparem" e a "fundar cidades"; só que esse "agregado" não dura, não faz reunião ou liame, pois "eles são injustos uns com os outros, exatamente por não possuírem a arte política". Assim perecem, novamente dispersados, por não saberem combater os animais selvagens, já que a arte da guerra é também uma parte dessa arte política. Assim, a ignorância da política condena-os a uma alternância de males (322ab): o homem, cordeiro para o lobo, ou lobo para o homem. Eis aí o estado primitivo: os homens prometeicos têm tudo por eles, inclusive o lógos (muito mais, em todo caso, do que um Epimeteu previdente ter-lhes-ia jamais podido dar), salvo essa pequena coisa que lhes permitiria não somente se reunir, mas viver juntos em cidade e escapar, assim, realmente à morte da natureza bruta.
O estado inicial no novo mito é antes o do homem epimeteico, quer dizer, totalmente desprovido. No ruído e no furor da criação das raças, os homens só têm entre eles e com os outros animais relações de força: ora, eles são "inferiores a todos e em tudo, quer sob um aspecto, quer sob outro", não tendo mesmo a autarquia do hermafrodita caracol: o homem é o animal mais incompleto, porque "nem ao menos sabe para que ele mesmo pode servir". Só lhe resta, então, "morrer em silêncio" (395-396). Como vemos, o novo homem primitivo não pode nem se reunir (oudè gàr en to synágon), nem falar: falta-lhe tudo e, logo, até a própria existência.
O suplemento, agora.
No mito de Protágoras, é o próprio Zeus que, depois de ter castigado o Titã, se inquieta. Ele manda Hermes levar aos homens aidós e díke, "pudor e justiça", traduz Croiset (322c). Mas é difícil então compreender como essas duas virtudes podem, só por elas, constituir a política. Considerando os termos mais literalmente, aidós é o respeito pelo sentimento com a opinião dos outros, o respeito da opinião pública e, ao mesmo tempo, o respeito de si — "pudor" somente se se entende a mediação do "e eles viram que estavam nus". De forma alguma, em todo caso, um sentimento de obrigação moral cuja transgressão provocasse uma perturbação da consciência, mas o sentimento do olhar e da expectativa de outrem. Da mesma maneira, dikê, antes de ser a "justiça", portanto o "processo" e o "castigo"", é "a regra", o "uso", "o procedimento", tudo aquilo que se pode “exibir” (deíknymi): norma pública da conduta, conduta exigida em público. O aidós é assim apenas a motivação para respeitar a dikê e a dikê só tem força na medida em que cada um experimente o aidós 13. Não há nessa combinação nenhuma matéria de intenção ética, ainda menos com uma autonomia de um sujeito moral, mas exclusivamente matéria de moralidade prática, respeito às regras do jogo público: algo já de uma justice as fairness, em que se entendia certamente não a equidade mas o fair-pjay. [Osório diz: “Fair Play significa jogo justo, jogar limpo, ter espírito esportivo, em português. Fair Play é uma expressão do inglês que significa modo leal de agir.”]
No mito de Aristides, é somente então que intervém o filantropo Prometeu, que se auto-envía em embaixada para chamar a atenção de Zeus sobre a sorte do gênero humano. Zeus, impressionado pela correção das análises de um Prometeu com papel tão positivo, envia Hermes para dar aos homens a retórica (396-397). A retórica faz, então, as vezes de dois tipos de dons precedentes: a sabedoria técnica roubada por Prometeu e o suplemento político concedido por Zeus. A retórica sozinha basta para definir o homem novo de Prometeu-Zeus.
[15. Apóio-me aqui em uma análise do mito de Protágoras proposta por Michel Narcy, durante um seminário comum sobre "A genealogia do consenso", realizado no Colégio Internacional de Filosofia, em março 1987]
Mas o modo de distribuição não difere menos do que o dom.
No novo mito, a repartição da retórica é um efeito da sabedoria prometeica. Aristides evoca então o papel de demiúrgico [Osório diz: demiurgo = artífice] do Titã na confecção do corpo humano, outorgando-lhe por esse fato um atestado de igualdade distributiva: todos nós temos os mesmos órgãos dos sentidos e os mesmos membros do corpo. Mas essa igualdade distributiva, assim como a igualdade corretiva da subvenção para assistir aos espetáculos, serve dessa vez de contra-modelo. Da retórica, não é necessário que "todos participem" (pántes metéchoien, 397), "mas é necessário escolher os melhores", os mais bem nascidos, as naturezas mais fortes, entregar-lhes o dom para que possam se salvar e salvar aos outros" (397). O dom retórico, ao contrário exatamente do aidós e da dikê, é, como requer expressamente Prometeu, essencialmente desigual: essa é a segunda grande diferença entre as duas versões. [Osório diz: igualdade/desigualdade entre os homens].
Uma palavra, enfim, sobre as consequências do dom.
Respeito e norma são enviados (uma proposição, já evocada, basta para dizê-lo) "a fim de que pertençam às cidades as ordens e os laços de amizade que são próprios para reunir". As conclusões que Protágoras tira daí em seguida sobre os hábitos políticos e a educação em Atenas, não pertencem mais ao mito embora aí se encontrem justificadas. O suplemento tem assim como única consequência o fato de fazer passar do agregado (hathroízesthai, hathroistheien, 322b 5s.) à "sinagoga", ao liame propriamente dito. Em Aristides, em contrapartida, a retórica fator único de todo progresso. Ela basta para que os homens escapem à lei da natureza, aos animais, assim como às suas próprias inimizades e descubram "o princípio de comunidade". Do lógos resulta, ao mesmo tempo, toda a política (cidade, leis, governo), a religião, assim como o domínio e a posse da natureza: o homem passa de nada a tudo "com o discurso como escudo, servindo de toda proteção" (398 s.).
É preciso enfatizar o que os dois pivôs da transformação, natureza do dom e modalidade da repartição, visam provar. Por um lado, não há essência separada do político, o político não depende de excelências específicas a interpretar, nem eticamente, nem mesmo em termos de moralidade objetiva: o político é somente e inteiramente questão de lógos. Por outro lado, a igualdade na repartição, como se o político fosse um sentido ou um órgão suplementar, não permite sair do estado de natureza: é a desigualdade, e mesmo o reforço das desigualdades naturais, que sozinha faz passar ao político, quer dizer, faz coerência, liame.
Os mitemas do discurso comum [Osório diz: No estudo de mitologia, principalmente a partir de uma leitura antropológica estruturalista, um mitema é a partícula essencial de um mito, um elemento irredutível e imutável similar a um memes cultural, algo que sempre se encontra dividido com outros, mitemas relacionados e reunidos em variações "empacotadas" na metáfora de Claude Lévi-Strauss - ou vinculados em relações extremamente complexas, como uma molécula em um composto.
Ela é tão ruim contando histórias que não lembrava com precisão nem do mitema.]
Essas duas teses são em si mesmas perturbadoras. Entretanto, são menos opostas às de Protágoras do que parece. O mito de Aristides, segundo ele pretende, não é um mito, mas uma "visão do real" e o "discurso das coisas mesmas" (400). Assim, não há nada de muito surpreendente no fato de que ele corresponda, não aos mitemas do mito original, mas às ideias e aos conceitos que dependem das conclusões de Protágoras e de seu "discurso" sobre o ensino da virtude. É aí que proponho ler, com efeito, já ao mesmo tempo a preeminência do lógos e o caráter intransponível da desigualdade das competências.
Quanto ao lugar do lógos em política segundo Protágoras: os atenienses deixam todos tomar a palavra, participar do conselho (322e — 323a): aí está, sabe-se, a atividade política por excelência. Além disso, o primeiro ato político não é "falar a verdade" (talèthê légein, 323b4, 5s.): ao contrário, em matéria de virtude política, o que se acreditava sabedoria ainda há pouco (dizer a verdade) é aqui loucura. A hipocrisia é a conseqüência da estrutura pública de aidós e dikê: "diz-se que todos devem dizer (kaí phasin pántas dein phánai) que eles são justos, quer o sejam ou não," (323b6). Enfim, a virtude política é o objeto de um ensino que começa desde que a criança "compreende o que se lhe diz" (syníei. . . ta legómena, 325c 7s.) — muito literalmente, "convém", efetua por sua conta essa convenção que são as palavras. Ora, o modelo desse ensino ao mesmo tempo perpétuo e difuso, é o da própria linguagem, hellenízein: procurar os professores "é como procurar quem nos ensina a falar grego, não encontrarias apenas um" (327e-328a). O ensino do valor político se confunde, assim, com o ensinamento do lógos, dos balbucios da ama ao aprendizado da leitura, da escrita, da música, até essas outras páginas de escrita que são as leis, traçadas pela cidade como as páginas, a copiar, o são pelo mestre, até mesmo à prestação de contas no final das magistraturas (325-326e).
O discurso de Protágoras é aí também artificioso. Certamente todos "participam" (metéchein., 322dl, 323a3, 323cl, 324el, 325a3) do valor político do lógos. Depois do mito, não existem mais idiotas nem brutos. Só que alguns são "naturalmente mais dotados" do que outros (euphyestalos, 327b9). Se se ensinasse a flauta como a justiça, todos saberiam tocá-la, mas os filhos dos melhores flautistas não seriam necessariamente os melhores flautistas: a natureza se define aí não por um dom hereditário, mas por uma superioridade, uma diferença, uma distância (diaphoraí, diapheróntõs, 328a9, b2) que aumenta ao ser cultivada. É por isso que existem mestres, é por isso que se paga Protágoras que, quando desenvolve seu discurso, prende Sócrates, "como apaixonado, no desejo de entendê-lo".
É então essa diferença, ligada ao estatuto do lógos, que Aristides terá transformado em mitema. Aristides imita Protágoras como a technê aristotélica imita a phýsis: ao imitá-lo, ele o perfaz e o realiza. Com efeito, o lógos é, agora, ao mesmo tempo o que diferencia o homem do animal e o que diferencia o homem do homem (diaphérei, 403, paralállousin, 405). Ou ainda, nada é tão comum, mas nada é tão raro em sua perfeição (425). Todos sabemos falar e sabemos agora que é isso mesmo que nos une, mas o orador digno desse nome é impossível de encontrar, como a fênix (426) — como o homem que age por dever em Kant. O Fedro tem razão em um ponto: "o melhor no discurso é o mesmo que o homem melhor" (429). Modelo ao mesmo tempo perfeitamente democrático — somos todos cidadãos, temos todos o direito de falar —, e estritamente elitista, até mesmo despótico, real, messiânico — há alguns homens mais poderosos do que outros, pois "os que receberam o dom em suas próprias mãos têm como se salvar e salvar os outros" (397).
Lógos e tempo
O primeiro espanto é o de que o discurso não entre em nenhum processo cumulativo. À diferença das outras potências como a força física ou a riqueza, o poder retórico não se adiciona; aquele que domina em lógos é e permanece primeiro da mesma maneira diante de cada um separadamente e diante de todos juntos (405). Ou ainda, em matéria de lógos, "um e vários têm poder igual', "a comunidade e o número (hë dê koinõnía kaï to plíthos) não têm nenhum peso" (407). Isso significa que a essência do político é ser um domínio onde o único, superlativamente melhor, prevalece sempre sobre a maioria, e mesmo sobre a unanimidade: em política, um único vale por todos. Só há liame social lógico, mas essa própria lógica faz com que o lógos do mais forte em lógos, a razão do mais forte, seja sempre o melhor. O consenso assim produzido só terá então acidentalmente a ver com uma discussão racional (se, por exemplo, a forma do diálogo parece oportuna ao orador), pois não se trata de reduzir as diferenças para chegar a um acordo, mas de promover a adesão. Entretanto, essa adesão não é o efeito sicofântico de uma conformidade às expectativas do público, mas o arrebatamento, a atração dos homens sensíveis ao lógos por um lógos superior. O fato de que discurso, à diferença do argumento e da razão, não seja capitalizável, abre para uma democracia dos mestres, sem que se tenham meios de saber se a palavra significa professor ou Führer.
A única analogia proposta então por Aristides é novamente uma maneira de agir sobre o Górgias ("sobre a retórica; diálogo anatréptico”*) (*No original renversant. A palavra traduzida por Barbara Cassin é "anatréptico". Usualmente traduzida por "refutativo", é aqui enfatizada com o sentido de "derrubar o adversário". (N. das T.)) com a ajuda do Fedro ("sobre a beleza; diálogo ético"): os discursos estão para a alma como a beleza está para o corpo (407). Pois também a beleza não é acumulável: o homem mais belo é e permanece mais belo do que o conjunto composto daquele que tem os mais belos olhos e daquele que tem os mais belos joelhos. Digamos que aquele que tem os mais belos olhos tenha joelhos horríveis: ora, em matéria de discursos como em matéria de beleza, são os defeitos que se conservam. Aí se encontra o inverso exato da adição que caracteriza a cidade e a constituição democrática em Aristóteles. Na Política, essa "comunidade" constituída por uma "pluralidade de cidadãos" é tal que somente as qualidades (é o funesto "otimismo" de Aristóteles para Tricot) se acrescentam:
Uma pluralidade de pessoas, que uma a uma são homens sem valor político, é entretanto capaz, quando está reunida, de ser melhor do que uma elite, não quando a tomamos uma a uma, mas todas juntas, como os banquetes onde cada um leva seu quinhão são melhores do que aqueles onde apenas um oferece tudo. Com efeito, quando existe pluralidade, cada parte possui uma parte de virtude ou de sabedoria prática e, quando a pluralidade se reúne, exatamente como a multidão se torna um único homem cheio de pés, cheio de mãos e cheio de sensibilidades, acontece o mesmo com as disposições morais e intelectuais.
De forma que o melhor para Aristóteles é sempre apenas aquele que realiza em si a síntese das qualidades, como o mais belo retrato reúne os belos traços espalhados no real:
De resto, é assim que aqueles dentre os homens que são politicamente virtuosos diferem de cada um daqueles que compõem a pluralidade, exatamente como se diz que aqueles que são belos diferem daqueles que não o são, e os objetos pintados por um artista dos objetos reais: eles diferem pela reunião de traços separados uns dos outros em uma unidade (Política, III, 1281a 42-b7 e 10-12).
*No original renversant. A palavra traduzida por Barbara Cassin é "anatréptico". Usualmente traduzida por "refutativo", é aqui enfatizada com o sentido de "derrubar o adversário". (N. das T.)
Por comparação, Aristides é realmente platônico: o valor ou o belo são incomensuráveis em sua disseminação, o um não é produzido nem avaliado pelo plural, ele só tem poder, fénix, ideia, obra talvez, de sua própria solidão.
O segundo espanto, complementar, diz respeito à conaturalidade do lógos e do tempo, que ultrapassa a equivalência com a beleza e faz com que o lógos só se pareça finalmente a si mesmo. Se o tempo "refuta" nossa primavera como o fruto hegeliano refuta a flor (408), ele não pode nada contra o "poder" (krMeï 405), ou antes a "superioridade" retórica (to kreïtton, 407). Ao contrário, os discursos "marcham com o mesmo passo que o tempo" (408): o tempo simultaneamente os beneficia, como um vinho, e revela os melhores, autentifica-os como tais neles mesmos diante da posteridade. Mas ser contemporâneo do tempo é também estar, de instante a instante, imediatamente aí, estar sempre no presente: o discurso "acerta em cheio imediatamente", ligado ao kairós, à "oportunidade", à "ocasião", sempre propícia e apreendida pelo orador (408). A retórica se beneficia assim da dupla temporalidade do próprio tempo: progresso e presença, ela envelhece e não envelhece.
As riquezas ordinárias, aquelas que precisamente são cumulativas e acumuláveis, são duplamente ligadas ao desgaste: gastam o solo que as produz (410), e diminuem quando são gastas (409). Ao contrário, "a posse e a potência dos discursos não são gastas quando delas nos servimos" (para tën chresin, 409): dito de outra forma, a verdadeira riqueza é ter sempre um lógos à mão, é ser orador. Mais wonderful [Osório diz: maravilhoso] do que a pilha Wonder, não somente o discurso não se gasta quando nos servimos dele, mas também ele aumenta (410). Poder-se-ia transpor mais banalmente: em termos de economia capitalista, gastar dá lucro 17; em termos de linguística, a competência progride com as performances. Mas está aí, pela primeira e talvez única vez, tematizado explicitamente a propósito de seu objeto próprio, o eco de uma das problemáticas sem dúvida mais originais da sofística: a do ser como gasto, como consumação, e não como conservação. [Osório diz: socialização do saber].
[17. Onde se encontra o liame estabelecido por Aristóteles entre sofística e crematística [Osório diz: Crematística é um conceito aristotélico que advém das idéias de khréma e atos - busca incessante da produção e do açambarcamento das riquezas por prazer. Foi mencionado no livro Ética a Nicômaco.] (Ref. Sof., 11, 171b28), com a condição de definir claramente a riqueza como aquilo que se gasta e não o que se acumula, tempo e não espaço, de modo que toda parada do processo a anula]
No domínio da moral, é essa oposição mesma que faz erguer Cálicles contra Sócrates (Górgias, 493-494). Para refutar Cálicles, que sustenta que a moderação e a justiça (sóphrosyne e dikaio-syne, 492b is., ou seja, os próprios termos que servem a Protágoras na conclusão de seu mito para retomar aidós e dikê. Protágoras, 323a is.) são apenas uma falta de virilidade, Sócrates esboça o quadro comparativo de dois gêneros de vida, a do homem da ordem, sábio e temperante (sóphrori), que enche seus tonéis de vinho, de mel, de leite, depois cessa de se ocupar disso e vive sem preocupação — é o econômico e seu pé-de-meia ético —: o outro, indisciplinado ou incontinente ou incorrigível (akólastos), tem os tonéis furados, que vazam, e trabalha noite e dia para enchê-los. "Tu não me persuades, Sócrates", responde Cálicles, "pois para o homem que encheu o depósito, não existe mais nenhum prazer..., é viver como uma pedra, sem alegria nem dor. Viver com prazer, é derramar o mais possível". Pedra ou tarambola, formiga ou pigarra, economizar ou gastar: dois modelos ontológicos e duas maneiras de usar o tempo, como um inimigo a deter, ou como um companheiro. Remeteremos, para uma fábula digna de La Fontaine e, em todo caso, de Esopo, ao fragmento 54 de Ântifon 18 onde um homem, tendo entesourado muito dinheiro, recusa-se a emprestá-lo, mesmo a juros, àquele que o solicita, e prefere esconder seu tesouro em um canto. Ele é visto, é roubado. Não encontra mais suas riquezas (tá chrêmatá), e chora por não ter se servido delas (ouk échrese) para quem tinha necessidade, o que as teria ao mesmo tempo preservado e aumentado. Aparece inesperadamente aquele que solicitara, que o consola assim:
Ele o exorta a não se preocupar, e a pensar que é ainda dele e que nada desapareceu, enterrando uma pedra no mesmo lugar. "De qualquer forma, quando era teu tu não te servias dele (oud’... echrô), não penses então agora que estais privado de qualquer coisa que seja”. Pois aquilo de que não nos servimos e de que não nos servimos (em grego), quer seja ou não nosso, não faz nem mais nem menos mal. [Osório diz: vida dionisíaca]
A leitura de Aristides leva-nos a entender que se trata, com essas riquezas, não de uma racionalidade razoável — no sentido digamos cartesiano-habermasiano, onde o bom senso e a comunidade racional são, de fato ou de direito, a coisa melhor compartilhada — tal que também uma economia demonstrativa universal esteja em condições de constituir o progresso, mas de uma racionalidade retórica, que se modela sobre o fluxo do tempo, tal que, instante após instante, a persuasão experiente, e mesmo genial, apreenda a ocasião do consenso.
É por isso que a retórica é realmente o nome da política na medida em que ela é da atualidade, sempre de novo da atualidade: "como o vigia que não dorme jamais, ela não interrompe sua guarda" (401); ela não cessa de "compor", de "arranjar em conjunto" (syntithèménè) "o que está aí", "a circunstância" (tò parón): "de tornar o presente coerente". É em cada cidade o que a "mantém junta" (synéchei) e "faz dela um mundo" (kosmeí), exatamente porque não cessa de procurar "o que pode ainda contribuir" (tò prósphoron) para a ordem e para o ornamento que constitui o mundo presente (toüs paróntas... kós-tnini.t). Retórica, e somente retórica, é para Aristides a sempre nova cotidianeidade do com — ele, hipocondríaco e fanfarrão, que, dizem as más línguas, só tinha às vezes cinco ouvintes: as quatro paredes e o cofre.
Fazer do lógos a condição necessária do político é, devido à própria amplidão do sentido de lógos, um fio tão grosso ou tão frouxo que permite ligar na mesma meada uma boa parte da Antiguidade (por exemplo, um pouco de Platão, muito de Aristóteles, toda a sofística), e uma boa parte da modernidade próxima (por exemplo, Perelman, Rorty, Apel, Habermas, Arendt, sem dúvida Heidegger). Dessa forma, a pergunta subsidiária é, como nos concursos, a única que desempata: existe um bom e um mal (uso do) lógos, ou ainda: é ou não o lógos enquanto tal fator de eticidade (ética comunicacional, autenticidade), de tal maneira que de seu bom ou de seu mau uso depende toda a moral e toda a moralidade da política? [Osório diz: os discípulos de Sócrates! Será que Platão diz ser impossível ensinar a virtude somente para defender seu mestre?]
Conhecem-se respostas sem equívoco no sentido lógos-ética (com risco de repensar o próprio sentido do lógos e da ética, como em Heidegger). Não estou certa de que existam respostas sem astúcia ou sem equívoco no outro sentido. Aristides, não mais do que Cícero ou Quintiliano, não mais do que Perelman, não ousa recusar totalmente a problemática platônica Górgias/Fedro, má retórica (sofística) / boa retórica (filosófica). Mas seu trabalho consiste entretanto em deslocar, em omitir, em destituir a distinção: a substituir, por exemplo, o sintagma fusionai kalós kagathós (homem belo-e-bom) pelo de kalós rhétor (belo, no sentido de bom orador). O mito de Protágoras, reescrito por Aristides, tem assim o singular mérito de colocar em cena até o fim a solução do "todo retórico", e portanto de retardar indefinidamente a introdução da intenção em benefício da percepção do efeito. O que se poderá sempre passar a limpo sobre um programa: realizar a humanidade do homem em uma democracia elitista suficientemente resistente para funcionar sob qualquer império.
(...)
Para comparar Arendt e Heidegger, Arendt e qualquer filósofo, convém, creio, seguir o fio condutor que ela mesma não cessa de indicar com insistência: "Não sou filósofa", repete ela, nem mesmo professora de filosofia política, mas “professora de teoria política”, de "pensamento político"; ou ainda, retomando os termos de Kant, que representa, em seu ponto de vista, a grande exceção quanto à relação entre filosofia e política: "não sou pensadora de profissão". Assim, em "Só permanece a língua materna", uma entrevista televisionada de 1941 1, a Günter Gaus que a apresenta como filósofa, ela replica: "Temo ter que protestar de saída: não pertenço ao círculo dos filósofos. Minha [Osório diz: essa recusa de Arendt em ser tida por filósofa se torna engraçada quando se percebe que muitos que a querem incluir em tal rol, deles excluem Nietzsche e os sofistas! Embora eu pense que os tanto Nietzsche quanto os últimos estariam pouco se importando com isso. Aliás, temo até que eles realmente não queiram fazer parte de tal rol] profissão — para me exprimir de modo geral — é a teoria política. Não me sinto absolutamente filósofa e também não creio que tenha sido recebida no círculo dos filósofos..." E quando Gaus, mal convencido, pede-lhe para precisar a diferença entre filosofia política e seu trabalho de professora de teoria política, ela responde com uma segurança absoluta: "A diferença, veja, diz respeito à própria coisa... (O filósofo) não se coloca de modo neutro em face da política: desde Platão, isso não é mais possível... É na essência de própria coisa, quer dizer, na questão política como tal, que reside a hostilidade".
Nós que queremos honrar os pensadores, embora nossa permanência seja no meio do mundo, quase não podemos nos impedir de achar surpreendente e talvez escandaloso, que tanto Platão quanto Heidegger, quando se engajaram nos assuntos humanos, tenham recorrido aos tiranos e aos ditadores. Talvez a causa não seja encontrada nos dois casos nas circunstâncias da época e, menos ainda, numa pré-formação do caráter, mas antes no que os franceses denominam uma deformação profissional (p. 320). [Osório diz: Arendet arrasa Platão e Heidegger!].
Hannah Arendt esclarece, de modo senão mais filosófico, ao menos mais conceitual, essa repugnância, no sentido próprio, no tomo I de A vida do espírito, O pensamento, quando formula no capítulo 3 a pergunta: “O que nos faz pensar?". "Os postulados pré-filosóficos do pensamento grego" (§ 14) e "a resposta de Sócrates" (§ 17), ela também menos filosófica do que parece, enquadram as duas respostas "profissionais" de Platão (§ 15) e dos romanos (§ 16). A resposta de Platão cabe em uma só palavra: thaumázein, "espantar-se". A filosofia, desde o Teeteto 155d, é "filha de Tomás" *. Ora, acrescenta ela,
O espanto platônico, o choque inicial que incita o processo do filósofo foi redescoberto, no nosso tempo, no dia em que Heidegger, em 1929, terminou uma conferência intitulada "O que é a metafísica?" por... "Por que afinal há o existente, em vez do nada?" e batizou essa como "a questão fundamental da metafísica" (V.E., l, p. 167). [Osório diz: aqui Heidegger bate de frente com Górgias, mas será que o enfrenta respondendo sobre a “existência do nada”? Pelo que li, de outros autores, o grego é, pura e simplesmente, ignorado].
*Alusão a Thaumas, pai de Íris e a thauma (espanto), sentimento que dá origem à filosofia (N. das T.)
Para Heidegger, mesmo se a modalidade que faz aproximar denken, "pensar", de danken, "agradecer" (ibidem, I, p. 172, cf. II, p. 217), abrindo assim ao intraduzível Gelassenheit, não é evidentemente platôica, filosofar, se espantar, é de todo modo buscar o invisível no visível:
A resposta dos filósofos romanos, cujo paradigma é fornecido pelos estóicos, diz respeito à "desunião" entre o homem e o mundo: "o truque descoberto pela filosofia estóica é o de se servir do espírito de tal modo que a realidade não alcance aquele a quem ele pertence" (ibidem, I, p. 179). É por isso que Hegel, que transporta o mundo inteiro na consciência, é finalmente seu herdeiro como nota habilmente Arendt, cada vez que a filosofia é compreendida como "ciência", trata-se de um retorno às velhas posições estóicas.
Mas as duas fontes "quase opostas" que constituem o espanto platônico e a desunião estóica entre o homem e o mundo são, entretanto, bastante aparentadas. Com efeito, nos dois casos, "o pensamento se retira do mundo dos fenômenos" (ibidem, I, p. 186). Assim, de Parmênides a Platão e dos estóicos a Hegel, "essa colocação da realidade entre parênteses permanece uma das grandes tentações dos pensadores de profissão": eis então a "deformação profissional". Observa-se então que Heidegger não é somente o eco de Platão: é, no fundo, o cruzamento das duas respostas ao mesmo tempo. De Parmênides a Platão e a Heidegger, trata-se de buscar o invisível no visível, o ser do ente. Mas, dos estóicos a Hegel e a Heidegger, constitui-se um "amálgama de agir e de pensar" (ibidem, II, p. 215). Como nota Arendt quando analisa em suas Conclusões "a Vontade-de-não-querer de Heidegger" e a "reviravolta" que ela situa entre os dois volumes do Nietzsche, essa "história do ser" onde o acontecimento será a mutação do conceito de verdade, que se trata de deixar acontecer, mas em nenhum caso a invenção do telescópio, essa história do ser é então sempre apenas uma "nova versão um pouco mais rebuscada da astúcia da razão ou do espírito do mundo". Para Heidegger, a diferença é, antes, perigosa
Qualquer que seja sua repugnância a respeito dos pensadores de profissão, entretanto Arendt pensa, faz mesmo, diz, "experiências de pensamento político" (esse é com efeito o substituto de A crise da cultura). E é aí que se introduz a temática da Antiguidade.
No prefácio de A crise da cultura — infeliz tradução, apesar dos tradutores, de Between past and future — Hannah Arendt descreve a atividade de pensar como uma "instalação na brecha entre o passado e o futuro" [Osório diz: o presente não existe, pois é o sempre consumido! Imediatamente é passado ou, no máximo, ainda futuro, quando projetado!]. Além disso, define a época moderna como aquela em que a condição do pensador se torna a condição de todos:
Quando o fio da tradição finalmente se rompeu, a brecha entre o passado e o futuro deixou de ser uma condição particular apenas da atividade do pensamento e uma experiência reservada ao pequeno número dos que faziam do pensamento sua tarefa essencial. Ela se tornou uma realidade tangível e um problema para todos, o que quer dizer que se tornou um fato que era do domínio do político. [Osório diz: o que diria a autora nesta época de internet!]
Estou claramente de acordo com aqueles que há muito tempo se esforçam para desmantelar a metafísica, assim como a filosofia e suas categorias, tais como as conhecemos ambas desde seus inícios na Grécia e até os nossos dias. Esse gênero de despedaçamento só é possível se se parte da hipótese de que o fio da tradição está rompido e de que não se poderá uni-lo novamente.
Procurar desmantelar a metafísica é uma forma de se dizer heideggeriana [Osório diz:o professor Celso Lafer gosta de dizer que Arendt, não é heideggeriana!]: é com efeito a Heidegger, "a ele e somente a ele", que ela agradece o fato de que o desmantelamento, o "desabamento se tenha desenrolado de uma maneira digna daquilo que a precedeu" ("Martin Heidegger faz oitenta anos", V.P., p. 311s.): e nisso, precisamente, ela é, ou é apenas, pensadora. Mas, prossegue:
A diferença fundamental em relação a Heidegger se exprime logo após o reconhecimento: Arendt não pensa, ela pensa o político, nossa história política.
Out of Antiquity
[Osório diz: fora da antiguidade]
Logo de início, só se pode tratar, tanto para um como para o outro, de uma relação "livre": nem filistinisnio [Osório diz: Qualidade de quem é grosseiro ou inculto, especialmente em relação às artes.] nem erudição, nem, dizem eles, filologia. É por isso que Arendt presta homenagem a Heidegger:
(...) Há alguém que..., precisamente porque para ele o fio da tradição está cortado, descobre novamente o passado... o pensamento tornou-se novamente vivo, ele faz falar tesouros culturais do passado que se acreditavam mortos e eis que propõem coisas totalmente diferentes do que se acreditava, embora desconfiando delas ("Martin Heidegger faz oitenta anos", V.P., p. 310).
Ela diz, aliás, o mesmo de seu próprio trabalho:
Com a tradição, perdemos nosso sólido fio condutor nos vastos domínios do passado, mas esse fio era também a cadeia que ligava cada uma das gerações sucessivas a um aspecto predeterminado do passado. Seria possível que somente hoje em dia o passado se abrisse para nós com um frescor inesperado e nos dissesse coisas para as quais ninguém ainda teve ouvidos ("O que é a autoridade?", em, C.C., p. 124s.). [Osório diz: incentivo para uma volta aos Sofistas! E “com os pré-socráticos acabou a filosofia”!?
Que a cultura seja um "campo de ruínas", tal é com efeito a "sorte" que nos permite "descobrir o passado por nossa própria conta", ler "seus autores como se ninguém os houvesse nunca lido antes de nós". ("A crise da cultura", em C.C., p. 262: cf. "A tradição e a época moderna", ibidem, p. 42). [Osório diz: Por que ler os clássicos?]
Além disso, tanto para um como ainda para o outro, a liberdade da relação diz respeito ao fato de que a interpretação ou a crítica é uma experimentação. Reencontra-se assim o eco do que Heidegger nomeia desde o § 7 de Sein und Zeit "o método fenomenológico da nossa pesquisa" até no prefácio de A crise da cultura, onde se trata de
descobrir as origens reais dos conceitos tradicionais a fim de extrair daí novamente o espírito original que se evaporou tão tristemente das palavras-chave mesmo da língua política... deixando por trás dele conchas vazias próprias para ajustar quase todas as contas, independentemente de sua realidade fenomenal subjacente (p. 26). [Osório diz: Por que ler os clássicos?]
É aliás por isso que a atenção não cessa de se deter na língua, na palavra-chave, na sua etimologia. [Osório diz: Professor Tercio] E não cessaremos de ter exemplos disso, tanto para um como para o outro. Entretanto, é sempre a mesma diferença que convém enfatizar. Em Vidas políticas, a propósito de Walter Benjamim, Arendt nota toda época para a qual seu próprio passado se tornou problemático a um tal grau como a nosso, deve se chocar contra o fenômeno da língua: pois na língua o que é passado tem uma base inextirpável, e é na língua que vêm fracassar todas as tentativas de se desembaraçar definitivamente do passado. [Osório diz: língua e passado]
Arendt heideggeriana até aí. Agora, Arendt: "A pólis grega continuará a estar presente no fundamento da nossa existência política, no fundo do mar, logo durante todo o tempo em que tivermos na boca a palavra 'política'" (p. 304). Pois é preciso ouvir aqui, sob Arendt, um Aristóteles diferente do fenomenológico apofântico: "A partir do momento em que o papel da linguagem está em jogo, o problema se torna político por definição, já que é a linguagem que faz do homem um animal político". (C.H.M., p. 10). Assim o lógos não é tomado, nem apenas, nem em primeiro lugar, no mesmo registro de sentido.
Essa atenção dada à língua implica que nos possamos deter, tanto Arendt quanto para Heidegger, no fragmento. Com essas ^ "conchas vazias" que são os conceitos-chávF~responde, no final do primeiro tomo de A vida do espírito, a Tempestade de Shakespeare: "Por cinco braças sob as águas/Teu pai estendido dormita. /De seus ossos nasce o coral / De seus olhos nascem as pérolas/Nada nele de perecível/Que a vaga marinha não mude/Em tal ou tal fausto estranho." (p. 237). E acrescenta ela:
Foi nesses fragmentos vindos do passado, depois de a vaga marinha tê-los mudado, que eu me detive... Se alguns dos meus leitores ou dos meus ouvintes se sentirem tentados a experimentar as técnicas de desmantelamento, que eles tomem cuidado para não destruir o "fausto estranho", o "coral" e as "pérolas" que só se podem, sem dúvida, salvaguardar sob forma de fragmentos. [Osório diz: sobre os fragmentos].
É aí entretanto que a diferença em relação a Heidegger pode novamente se inscrever. Pois o que conta na fragmentação arendtiana é que se trata de uma narrativa: importa, com efeito, não tanto ter olhos para o fenômeno quanto ter ouvidos para o passado. Aborda-se com isso a concepção arendtiana da história, totalmente explícita por exemplo em "Compreensão e política" (E., p. 97): "Quando ocorre um acontecimento importante o suficiente para esclarecer seu próprio passado, a história (history) aparece. Então o amontoado caótico do passado se transforma em uma narrativa (story) que pode ser contada porque tem um começo e um fim". As crises da época moderna permitem transformar o caos sublime das conchas vazias e das pérolas em narrativa. Como o passado se torna narrativa: Arendt não nos propõe então a história, nem histórica, nem historial, dos conceitos ou do pensamento, mas nos conta algo como histórias de conceitos, ou de pensamento. Out of Antiquity, como se diz Out of África.
Gregos e romanos
Gostaria de seguir esse fio condutor: pensamento político contra pensamento profissional ou pensamento do pensamento, para analisar de modo mais preciso as experiências que Arendt, de um lado, e Heidegger, do outro, fazem com a Antiguidade.
Creio que é preciso retomar a questão a partir da clara evidência constituída pela diferença dos corpus. Arendt tem dois corpus: os gregos e os romanos, Heidegger tem apenas um: os gregos, e depois ainda os gregos.
Em Heidegger, para dizê-lo não sem caricatura, a relação entre Roma e a Grécia é uma relação de tradução-traição. Quando Heidegger evoca o latim, é em regra geral para marcar como a tradução dos termos gregos trai a experiência grega da alétheia. A veritas aprisiona a alètheia e o movimento da experiência heideggeriana do pensamento é um "retorno a montante" dos latinos aos gregos, em seguida dos gregos ao mais grego que os gregos. [Osório diz: Heidegger, o grego]
Para dar o tom e a substância dessa relação, basta talvez uma citação, que tiro da Origem da obra de arte 4:
(As determinações gregas) fundaram... a interpretação acidental do ser e do ente. Ela começa com a retomada das palavras gregas no pensamento romano-latino. Hypokeímenon torna-se subjectum; hypóstasis, substantia; symbebekós vira accidens. Mas é bem verdade que essa tradução dos termos em língua latina não é absolutamente esse pequeno acontecimento inofensivo como ainda é tomado nos nossos dias. Essa tradução aparentemente literal (e por isso aparentemente uma salvaguarda) é uma verdadeira tradução, uma transferência da experiência grega em um outro universo de pensamento. O pensamento romano retoma as palavras gregas sem a apreensão original correspondente ao que elas dizem, sem a fala grega. É com essa tradução que se abre, sob o pensamento ocidental, o vazio que o priva doravante de todo fundamento. [Osório diz: Heidegger e a tradução dos gregos pelos romanos. Traição]
O Parmênides, datado de 1942-43, explicita as repercussões desse vazio no pensamento do político 5: "Pensamos o político de maneira romana, quer dizer, imperial' (p. 63) ou: "Desde a época imperial, a palavra grega 'política' significa algo de romano. De grego, há apenas a palavra" (p. 67). O Imperium (im-parare, "dispor de"), o numen de deuses que não deixam mais sinais mas dizem "tu deves", o direito que não deriva mais de díkè, a deusa que mostra, mas de justitia: tantos termos que remetem à mutação da aléthèia em veritas. A diferença é marcada ainda mais essencialmente com a transposição do pseûdos (o que se dissimula) em falsum (o que cai, o que fracassa). Eliane Escoubas pode justamente propor equacionar: imperium romanum, pax romana (de pango, "fixar") e falsum/verum: de fato,
se consideramos mais de perto o processo pelo qual a romanidade se apossou no dizer, do pensamento, do mito e da cultura dos gregos, vemos que o falsum, quer dizer o que faz fracassar, transformou segundo seu sentido o pseûdos, quer dizer, o que dissimula, transmutou-o assim em si e com isso suplantou-o. Uma tal transmutação é, em todos os tempos, a forma mais perigosa e também a mais durável da dominação. Desde então, o Ocidente só conhece o pseûdos sob a figura do falsum (Parmênides, p. 67s.). [Osório diz: este ensinamento de Heidegger deve servir também para quando se tratar de Maquiavel e os Sofistas].
(…)
Essa reação contra a latinidade e essa preocupação com a origem grega escondida sob a tradução é certamente um dos componentes da atitude de Arendt. Tomaria simplesmente, dois exemplos, particularmente claros. De início, sua análise da noção de "espectador", em A vida do espírito: a paixão de ver, essa atitude fundamental dos gregos que determina ao mesmo tempo a pólis como espaço das aparências e a filosofia como preocupação teórica, perde todo seu sentido com Lucrécio, onde se trata simplesmente — "ver de que males escapamos é coisa doce" — de assistir em segurança ao desencadeamento da tempestade: "é evidente que nessa passagem o alcance filosófico do papel de espectador se perde totalmente — esquecimento que foi o destino de muitos conceitos gregos quando eles caíram nas mãos dos romanos" (I, p. 162; cf. nota 72, p. 176). Um segundo exemplo, mais estritamente heideggeriano, é o da tradução latina de Aristóteles. Traduzir zôion politikón por animal socialis, como Sêneca ou São Tomás, faz perder completamente de vista a experiência grega: é substituir, com efeito, pela camaradagem da espécie humana, entidade biológica e não política, a diferença entre público e privado, pólis e oikía, visada por Aristóteles: "melhor do que toda teoria, essa substituição do político pelo social mostra até que ponto se perdeu a concepção original grega da política" (C.H.M., p. 32). A tradução de zôion lógon échon por animal rationale "repousa sobre um mal-entendido tão fundamental" (ibidem, p. 36), pois ainda se trataria aí, para Aristóteles como para toda a Grécia, de uma definição exclusivamente política, assim como testemunha com evidência o fato de que bárbaros e escravos possam ser considerados aneu lógou — "excluídos de um modo de vida no qual a linguagem, e apenas a linguagem, tem realmente um sentido" —, ainda que falem. Do mesmo modo Heidegger, no Parmênides, por exemplo, observa que o zôion, o "vivo", deve ser pensado em relação à phýsis, à "natureza", mas não em relação à biologia, como se faz desde Roma (p. 100).
Assim, os romanos não têm ouvido para a Grécia, nem filosófico nem político. Mas essa surdez, segundo Arendt, uma boa razão de ser. Para ela com efeito, a experiência romana não se analisa como uma restrição da única experiência fundamental original que seria a dos gregos, mas constitui, enquanto tal, uma experiência não menos fundamental. Só que essa experiência não é uma experiência no pensamento, teórica, filosófica: é uma experiência exclusivamente política, e é aliás nisso mesmo que reside a sua originalidade.
"A concepção corrente da filosofia foi elaborada pelos romanos herdeiros da Grécia" e não traz "a marca da experiência [p. 189] romana original, que era exclusivamente política" (V.E., I. p. 174). É verdade que há, na conservação "dessa herança grega, que os romanos, mas nunca os gregos, souberam cuidar e preservar" ("A crise da cultura", C.C., p. 272), uma pista muito precisa sobre a natureza da traição que constitui a tradução romana: pode-se dizer que Roma conservou a filosofia política dos gregos como se fosse simplesmente a filosofia. É aliás nisto que vivemos:
Ainda hoje, acreditamos que Aristóteles definiu o homem essencialmente como um ser político dotado de fala ou de razão — o que ele fez apenas num contexto político — ou que Platão expôs a significação original da sua doutrina das ideias na República onde, ao contrário, ele a transformou por razões políticas 6. Apesar da grandeza da filosofia política grega, pode-se pensar que ela teria perdido o caráter utópico que lhe era inerente, se os romanos, em sua busca incansável da tradição e da autoridade, não tivessem decidido retomá-la e reconhecê-la como a mais alta autoridade em todas as coisas da teoria e do pensamento. ("O que é a autoridade?", em C.C., p. 158).
Ora, esse deslizamento da filosofia política grega à filosofia simplesmente e a submissão de Roma à Grécia são sempre apenas o efeito da experiência política original dos romanos: a da fundação. A "tradição", definida por essa trilogia romana, autoridade-cultura-religião, que é posta em crise na modernidade, não é nada senão a decisão de submeter a civilização romana ao pensamento grego, dito de outro modo, de "fundá-la". Em "O que é a autoridade?", como em A condição do homem moderno, Arendt opõe, termo a termo, em uma análise inigualável, pólis e pátria: "Não há diferença mais profunda entre a Grécia e Roma do que suas respectivas atitudes acerca do território e da lei" (C.H.M., p. 219). "Onde quer que estejais, sereis uma pólis": esta é a palavra da colonização grega. Ao contrário, ab Urbe condita enraíza no solo, é a palavra de um império romano que saberá fazer do mundo ocidental o interior do seu país. Há as póleis, as cidades, há uma Urbs, uma cidade. O fundador e o legislador, na cidade grega, são estrangeiros, às vezes bárbaros, pois as leis são, sempre, apenas a muralha ao abrigo da qual pode haver pólis: é após a fundação e após a legislação que começa a vida política, ao passo que o legislador e o fundador são para Roma os pais da pátria. Do mesmo modo, a religião viu Roma "liga para trás", re-ligat, pela fundação; a auctoritas, de augere, "aumenta" a fundação; em política, a autoridade romana é a do Senado, que se caracteriza pela gravitas, quer dizer pela aptidão em suportar o peso do passado, em lastrar o navio o Estado. Envelhecer é se debruçar sobre o passado, é debruçar-se sobre a origem da autoridade e, quando se é romano, o que se trata de fazer é imitar. Mas, quando se é grego, "envelhecer", para retomar a palavra de Goethe citada nessa ocasião por Arendt, "é se retirar do mundo das aparências" e, ao invés de imitar, trata-se de "rivalizar".
Essa oposição fundamental de duas experiências políticas, espaço das aparências na pólis e fundação da pátria, remete-nos ao fato, "historicamente capital", de que "os romanos pensaram ter necessidade também de pais fundadores e de exemplos autoritários nas coisas do pensamento e nas ideias, e admiraram os grandes ancestrais gregos como suas autoridades para a teoria, a filosofia e a poesia" (O que é a autoridade?", C.C., p. 163). Assim se explica o próprio paradoxo da fundação romana: diferentemente da fundação judaica para a qual a datação parte da criação do mundo, é preciso, para que o fio da tradição não se rompa, que a fundação seja ao mesmo tempo primeira e não-primeira — e é assim que se interpreta a Quarta Écloga de Virgílio, onde a fundação de Roma é também um renascimento de Tróia 7.
A submissão de Roma à Grécia é um efeito dessa busca da autoridade, que é, ela mesma, um efeito da experiência política fundamental dos romanos. É por isso que a Grécia fez calar Roma pelo menos tanto quanto Roma fez calar a Grécia. "Os conceitos gregos, uma vez canonizados pelos romanos por meio da tradição e da autoridade, simplesmente eliminaram da consciência histórica todas as experiências políticas que não podiam ser integradas no seu sistema" ("O que é a autoridade?", C.C., p. 178). Todas as experiências políticas, quer dizer, em todo caso, a da fundação. A sorte constituída pela ruína da cultura, para retomar Between past and future, é que é enfim possível “olhar o passado com olhos que nenhuma tradição desvia, com uma imetiatidade que desapareceu da leitura e da escuta ocidentais desde que a civilização romana se submeteu à autoridade do pensamento grego” (“A tradição e a era moderna”, C. C., p. 42). Pode-se enfim ter ouvido para os romanos: escutá-los, com Arendt, ao lado dos gregos, como duas experiências fundamentais que não formam sequência, dois acontecimentos irredutíveis, e não apenas pensá-los, com Heidegger, em seguida aos gregos, como um simples algo marcado (échéance).
Gregos e gregos
Mas, para falar com excessiva rapidez no que concerne a Heidegger, já que ele serve aqui simplesmente como ponto de comparação, a relação que se instaura em sua obra entre os pré-socráticos de um lado e os outros gregos como Platão e Aristóteles do outro, é análoga, mutatis mutandis, à relação entre gregos e romanos. O artigo de Marlène Zarader, "O espelho com três reflexos, história de uma evolução" 8, distingue utilmente três épocas. Uma época em que os gregos se opõem a Roma e à tradição que ela representa: "os gregos pensaram o que a tradição ulterior esqueceu": nenhuma clivagem então entre os pré-socráticos e Platão, e quando Heidegger fala, durante o período de Marbourg, de um "passo para trás", trata-se de retornar à ontologia grega, quer dizer, essencialmente a Aristóteles. Em um segundo tempo, a diferença passa, ao contrário, entre os primeiros gregos e Platão ou Aristóteles: privilégio da "manhã grega", onde "os primeiros gregos experimentaram o que ninguém pensou"; o ser dispensou-se nas palavras da origem, phýsis, alétheia, lógos, moîra como aquilo que é de verdade, quer dizer como retraimento. "A doutrina de Platão sobre a verdade", que mostra como já em Platão a mímêsis funciona como adaequatio, fornece então um paralelo ao aprisionamento da alétheia em veritas. Deixo de lado a eventualidade de uma terceira época, marcada por "O fim da filosofia e a tarefa do pensamento", onde a alétheia seria de saída homoíosis, e onde somente um olhar oblíquo poderia fazer perceber que todo original é imediatamente derivado. Basta enfatizar a ambiguidade fascinante de Aristóteles, ao mesmo tempo pré-socrático e platônico, tomado ao mesmo tempo no desvelamento e na adequação, como testemunhas as análises repetidas, e contrastadas, de Metafísica, Teta e do Sobre a interpretação. No interior de Aristóteles, como entre gregos e gregos, como entre gregos e romanos, a clivagem é constantemente algo marcado (échéance) ou decadência* (déchéance), nessa história do ser que é história da verdade.
(…)
Pois a liberdade, por definição, não é um conceito filosófico,
é um conceito exclusivamente político e mesmo a quintessência da cidade e da cidadania. Nossa tradição filosófica de pensamento político, que começa com Parmênides e Platão, foi fundada explicitamente em oposição a essa pólis e a essa cidadania. O modo de vida escolhido pelo filósofo foi compreendido em oposição ao bíos politikós, ao modo de vida político ("O que é a liberdade?", C.C., p. 254s.).
A entrada da liberdade em filosofia ocorre somente, com efeito, muito mais tarde, com São Paulo e a identificação cristã entre liberdade e livre-arbítrio: ela prossegue, magistralmente, até Heidegger, com a convicção expressa em Da essência da verdade, de que a essência da verdade é a liberdade.
O Sócrates de Hannah Arendt
A articulação entre pré-filosófico — político e filosófico no sentido estrito é representada por Sócrates; ou, para dizer de modo mais provocador, o pré-socrático, em Arendt, é Sócrates. Como observa Françoise Collinn 11,
a história da filosofia ocidental é uma "sucessão de notas" acrescidas, não à obra de Platão, mas à de Sócrates, ou melhor, já que ele não a tem — e é eminentemente político "que não a tenha —, ao seu processo a sua condenação.
Arendt nos apresenta, para dizer a verdade, um Sócrates muito estranho: um Sócrates dilacerado entre o já filosófico e o ainda pré-socrático. Enquanto pré-socrático, no sentido arendtiano e não heideggeriano, Sócrates me parece ter todas as características de um sofista. E isso que ressalta, parece-me, da "resposta de Sócrates" em "O que nos faz pensar?" (V.E., I, pp. 190-219), assim como do curto texto sobre "Filosofia e po- ; lítica" (C.G., pp. 85-94). [Osório diz: Sócrates sofistas].
Afirmar de Sócrates que ele é pensador não profissional é finalmente sustentar duas afirmações em uma: dizer que ele é pensador e dizer que é cidadão. Com o pensador, trata-se antes do Sócrates de Platão, do Sócrates platonizante: com o cidadão, trata-se antes do Sócrates sofista. [Osório diz: dois Sócrates!]
Pensador, Sócrates o é certamente através do que Arendt considera, analisando o Górgias de Platão, como suas duas afirmações-chave, duas respostas a Cálicles, logo também duas profissões de fé anti-sofísticas. Com a primeira afirmação: "cometer injustiça é pior do que sofrê-la", não poderia ser o cidadão que fala pela boca de Sócrates, mas somente o pensador, pois, para o cidadão, o crime requer um castigo enquanto transgressão da lei. Quanto ao seu segundo preceito, homologeïn autòn liïatiti, segundo o qual vale mais estar em desacordo com todos do que consigo mesmo, ele constitui a estrutura mesma do pensamento, essa relação do pensador consigo mesmo que Arendt nomeia "o dois-em-um". Sozinho contra seus juizes, sozinho contra os seus amigos mas de acordo consigo, tal é o filosofo [Osório diz: o pensador e sua solidão!]. Sócrates é assim o inventor do princípio de não-contradição sobre o qual Aristóteles fundou a lógica ocidental e que ressoa até no imperativo categórico de Kant: "Porque sou, não me contradirei a mim mesmo. E posso me contradizer a mim mesmo porque no pensamento sou dois-em-um" ("Filosofia e política", C.G., p. 90: cf. VV.E., I, p. 213). [Osório diz: ou seria ele o destruidor de tal princípio, uma vez que ele, sendo dois-em-um, é e não é ao mesmo tempo! Veja-se o parágrafo seguinte].
Entretanto, o "dois-em-um" já é em si mais complexo, pois, com o pensamento, não se está totalmente na filosofia. De fato, o critério do dois-em-um não é a verdade, mas o acordo, e a dualidade do acordo remete à pluralidade, quer dizer à condição mesma do político:
Assim como a metáfora preenche o fosso entre o mundo dos fenômenos e as atividades mentais que aí se desenrolam, o dois-em-um socrático traz um bálsamo para a solidão do pensamento; sua dualidade inerente deixa entrever a pluralidade infinita que é a lei da terra 12.
Talvez assim não seja inútil notar aqui, embora Arendt não o note, e sem dúvida não o saiba, que homología (literalmente: identidade de discursos"), com homónoia ("identidade de pensamento"), é a palavra mestra da política dos sofistas, onde designa ao mesmo tempo a "concórdia" entre as cidades, o "consenso" entre os cidadãos, que se trata de suscitar, ocasião após ocasião, e que constitui a vida mesma da cidade, enfim esse "acordo" entre si e si mesmo que se tornou característico do pensamento socrático 13. Assim, a despeito das aparências — Sócrates num canto absorvido por seu "demônio" — já é na medida em que pensa que Sócrates é cidadão.
Uma pólis sofística
Como repete Arendt, Aristóteles só faz em suas definições célebres — homem, "animal político", "animal dotado de lógos" — formular a opinião corrente da pólis sobre o homem e a vida política. É suficiente dizer que toda a comparação Arendt-Heidegger poderia ser organizada a partir da percepção de cada um deles de Aristóteles: Heidegger tem dois Aristóteles, um pré-socrático e o outro já moderno, assim como Arendt tem dois Aristóteles, um pré-filosófico e político, o outro platônico e teorético. Mas Jacques Taminiaux, em "Heidegger e Arendt, leitores de Aristóteles" 14, mostrou — bem demais para que possamos voltar a isso — como, para Arendt que o interpreta de modo aristotélico e não platônico-heideggeriano, o bíos theôretikós não absorve nele todos os traços da prâxis. A prâxis, em Aristóteles, está ligada à pluralidade humana e à dóxa: Arendt, enfatiza J. Taminiaux, ressuscita o conceito aristotélico da pólis, do político, da cidadania. Por minha parte, precisarei que Arendt ressuscita assim o conceito sofístico da pólis, do político e da cidadania.
O primeiro traço é constitutivo, estrutural, tão óbvio, que corremos o risco de omiti-lo: é justamente contra a sofística/ contra o bíos politikós que se elaborou a theoría platônica.
Por outro lado, Arendt retoma, para definir a pólis, os termos de Aristóteles, "o pôr em comum palavras e atos" 15, e caracteriza assim "a solução dos gregos" para a fragilidade das coisas humanas. Ora, os elementos distintivos dessa solução são outros tantos tópoi sofísticos. Primeiro elemento: a distinção entre público e privado, entre o domínio da lei e o da convenção, o domínio da natureza e o da necessidade: antes do primeiro livro de Política de Aristóteles, antes de Cálicles ou Trasímaco apresentados por Platão, foi o Ântifon do Sobre a verdade 16 quem pela primeira vez tematizou essa oposição e suas consequências: na cidade, trata-se de "cidadanizar" e o privado se define como aquilo que escapa à empresa do público.
Segundo elemento; a diferença entre dóxa e alétheia, pluraidade das dóxai e unicidade, coação solitária da verdade. Na pólis grega, a alétheia só existe como produto das dóxai e se confunde com ela. É contra isso que Platão se insurge, mas é a essência mesma da política dos sofistas, e, em uma certa medida, da de Sócrates. Deve-se confrontar, com efeito, o que Arendt diz de Sócrates, em oposição com os sofistas, em "Filosofia e política", com o que diz dos próprios sofistas em "O conceito de história". "Em oposição aos sofistas, (Sócrates) tinha descoberto que a dóxa não é nunca uma ilusão subjetiva ou uma distorção arbitrária, mas que a verdade lhe está invariavelmente ligada" (“Filosofia e política” C.G., p, 90); precisemos: Sócrates, dando à luz a cada um de seu dokeî moi, de seu "parece-me" irredutivelmente singular, torna entretanto manifesto que é o mesmo mundo que se abre diferentemente para cada homem, e essa é a verdade da dóxa; "esse tipo de compreensão, ver o mundo... do ponto de vista do outro, é a percepção política por excelência" (ibidem, p. 89). Ora, em A crise da cultura, é dessa vez graças aos sofistas, "num fluxo de argumentos totalmente inesgotáveis, tais como os sofistas os (apresentam) aos cidadãos de Atenas", que o grego aprende "a trocar seu próprio ponto de vista, sua própria 'opinião', com as de seus concidadãos..., a olhar o mesmo mundo a partir da perspectiva de um outro grego" (p. 71). Homero, nesse sentido, é o primeiro sofista ao mesmo tempo que o primeiro historiador, já que canta ao mesmo tempo Aquiles e Heitor, e lhe seguem os passos Hesíodo e Tucídides. Em outros termos, Sócrates, como todos aqueles que sabem tornar manifesta a verdade relativa de cada ponto de vista para criar um mundo comum, é realmente protagórico. [Osório diz: Sócrates sofista].
O terceiro elemento é inseparável do precedente: trata-se da diferença entre aparecer e ser, filosoficamente exacerbada, mas politicamente nula e não realizada. Pois na pólis há a produção do ser pela pluralidade das aparências. Arendt, em relação a isso, observa que Górgias criticou "cedo demais" a cisão entre ser e aparecer, e estigmatizou tanto a impotência do ser quanto a do parecer sozinhos, citando mesmo um fragmento atribuído ao sofista por Proclus ( = 82 B26 D.K., II, p. 306, cf. V.E., ï, p. 40): "O ser é invisível (aphanés) quando não chega ao parecer, e o parecer é impotente (asthenés) quando não chega ao ser".
Todos esses elementos convergem em direção a um quarto: o estatuto do lógos como condição do político. Arendt, retomando Burckardt, repete que a pólis é o "sistema mais tagarela de todos": trata-se sem cessar de uma competição entre lógoi, e de promover a convicção adaptando seu lógos ao kairós, à "oportunidade"; pois o lógos enunciado segundo o kairós é uma prâxis, uma "ação", a ação política por excelência. O processo de Sócrates é assim uma ruptura, marcando a desconfiança quanto a peithó, à persuasão, quer dizer a forma política do lógos. Mas quanto à Sócrates, "tavão, parteira, raia-elétrica" (V.E., I, p. 198), "foi o maior dentre (todos os sofistas), porque pensava que havia, ou poderia haver, tantos lógoi diferentes quanto homens, e que todos os lógoi reunidos formam o mundo humano, na medida em que os homens vivem juntos sobre o modo da fala" ("Filosofia e política", em C.G., p. 90). O discurso socrático, enquanto sofístico, representa então, para Arendt, um modelo de unidade que não é uma unidade de unicidade, mas uma unidade constituída pelas singularidades diferenciadas, unidade tal que a pluralidade possa aparecer como a condição do político. [Osório diz: Sócrates sofista] Reencontramos aqui, por contraste com o organicismo hierarquizado da república platônica, as metáforas aristotélicas, que respeitam ao mesmo tempo a igualdade e as distinções, onde mesmo os defeitos individuais são favoráveis à melhor realização do todo, como num coro, um navio, e como num banquete, tal como nosso piquenique, "onde os convivas trazem seu quinhão, melhor do que aqueles em que as despesas são arcadas por um só" (Política, III, 11, 1281b 2s., seguindo a trad. Tricot). Ora, sabemos desde Platão, justamente, que essa prática da persuasão, capaz de conferir o poder e mesmo o dinheiro, não é filosófica: foi ela, ao contrário, que soube fazer dos sofistas, para retomar a expressão de Hegel, "os mestres da Grécia", ou, segundo Grote, os iniciadores da democracia e os precursores da Aufkläruns.
Mais radicalmente, Sócrates-sofista, ou os sofistas socráticos que praticam "a autêntica e verdadeiramente nobre sofística" (segundo a tradução consagrada do Sofista de Platão, 231b, cf. V.E. I, p. 197), [Osório diz: ver essa tradução] pela sua purgação drástica, nos introduzem na "mais política das faculdades humanas": a faculdade de julgar. Sócrates é aquele que faz passar do pensar ao julgar, pelo efeito liberador da crítica, ligado ao dois-em-um, à exigência de conformidade consigo mesmo. Arendt (ibidem, p. 199) retoma o único texto em que Heidegger fala explicitamente de Sócrates, em O que é pensar?:
Em outros termos, Sócrates é aquele que coloca o problema da significação em oposição ao problema da verdade. Logo no início do livro (I, p. 30s.), Arendt já enfatizava que "a exigência da razão não é inspirada pela busca da verdade mas pela da significação. E verdade e significação não são uma só e mesma coisa". Heidegger fornecia então "o exemplo mais recente e, em certo sentido, mais impressionante" do "argumento falacioso por excelência" (fallacy, que é preciso traduzir por "sofisma",*) "o que consiste, como em Ser e tempo, em interpretar a significação ("a questão do sentido do ser") segundo o modelo da verdade ("a essência do ser... quer dizer, sua verdade")". É disso mesmo que se trata ainda, quando, como pensador profissional, ele confunde no "vento do pensamento" a faculdade de conhecer com a de julgar.
Na verdade, mais do que Sócrates, é Protágoras que deveria aqui servir de modelo.
Arendt propõe, em A condição do homem moderno, uma interpretação complexa, e finalmente desfavorável, do "homem medida": Protágoras aparece aí antes de mais nada, "como o primeiro precursor de Kant, pois se o homem é a medida de tudo, o homem se torna o único objeto a escapar das relações de fins e de meios, o único fim em si a poder utilizar todo o resto como meio" (p. 177). Entretanto, como sugere a réplica paradoxal de Platão nas Leis, para quem não é o homem mas "o deus que é a medida dos objetos de uso" (716d, citada p. 178), Protágoras é, no fim das contas, o precursor de Marx, já que ele estende, quer queira quer não, o modelo do homo faber ao conjunto do mundo, correndo assim o risco de transformar esse mundo e o espaço público em um simples mercado ("o vento serve para..."; cf. p- 186). [Osório diz: Protágoras precursor de Kant e Marx]
Haveria várias maneiras de defender Protágoras. Heidegger propôs uma dentre elas — interpretar a proposição como restrição, até mesmo justa medida, da não-ocultação, quer dizer, da verdade parmenideana 17 —, mas deve-se temer que ela não constitua uma carga suplementar, de profissionalismo no pensamento, aos olhos de Arendt. Assim, conviria antes fazer notar que se trata exclusivamente na frase de chrêmata 18, quer dizer, muito literalmente "utensílios", bens, riquezas, de que alguém se serve, e não das pragmata de "aquilo que se faz", que designa as "coisas" em geral e depende ao mesmo tempo da obra e da ação. Porém, mais radicalmente, a melhor apologia de Protágoras já pronunciada, e pelo próprio Sócrates, no Teeteto de Platão, que, a meu conhecimento, nem Arendt nem Heidegger jamais levaram em consideração; Sócrates-Protágoras tem entretanto aí a estatura política do Kant da Crítica do julgamento lida por Arendt, Protágoras, que se exprime pela boca de Sócrates, pretende então, apenas com a força terapêutica de seus discursos curar o outro e lhe permitir operar uma "conversão de estados", fazendo-o passar não certamente de uma opinião falsa a uma opinião verdadeira, o que não é, diz, nem possível nem desejável, mas realmente de uma opinião menos boa a uma opinião melhor. Respeitando a distinção entre sentido e verdade, Protágoras ensina assim a julgar melhor, conformando-se aos dois traços característicos do pensamento kantiano: "cortejar o consentimento do outro" (peíthein, e não dialégesthai, precisa Arendt), e pensar o julgamento a partir do gosto; mediante isso, já que "para os julgamentos de gosto, é o mundo que é primeiro e não o homem, não mais do que a vida do homem ou seu eu", o suposto "arbitrário" do gosto caracteriza a vida pública e o mundo comum, em suma, o pertencimento mútuo da cultura e do político, a cidade mesma ("A crise da cultura" C.C., p. 284s.).
[17. Cf. o "Complément 8" a "L'époque moderne dês conceptions du monde" em Chemins qui ne ménent nulle pari, Paris, 1968, trad. Brock-meier, pp. 92-95, e "La proposition de Protágoras", em Nietzche II, Paris 1971, trad. Klossowsld, pp. 110-114. Permito-me remeter a meu artigo: "Podemos ser pré-socráticos de outra forma?", incluído nesse volume]
Enfim, para retomar a análise de Étienne Tassin, poderíamos sustentar que Protágoras vai ao extremo, quer dizer, além de Sócrates: até Maquiavel [Osório diz: não seria o contrário! Maquiavel quem vai a Protágoras? Pelo menos cronologicamente]. No próprio Protágoras, ele conclui seu célebre mito onde aidôs e díke constituem a virtude política propriamente dita, atribuída por Zeus como um dom suplementar igualmente repartido entre todos os homens, constatando que aprendemos essa virtude como a língua materna, sugando-a com o leite de nossa ama: quanto àqueles que não a teriam, se não fingem tê-la, então são loucos que se excluem assim da comunidade dos homens (Protágoras, 323bc.). Assim, a política é necessariamente política da aparência, e o político grego fala a linguagem da sofística que desdobra todas as condições de possibilidade: pluralidade, espaço das aparências, persuasão e julgamento.
Observaremos somente, para concluir sobre Arendt e a sofística e tentar explicar, por intermédio do filosófico, as flutuações da audácia em seu pensamento do político, que, desde que nos estabelecemos fora do político, o julgamento que ela faz sobre a persuasão se modifica. Um melhor testemunho disso é sua apreciação do mentiroso, em "Verdade e política". Por um lado, o mentiroso é "ator por natureza", "ele tira partido da inegável afinidade de nossa capacidade de agir, de mudar a realidade, com essa misteriosa faculdade que temos, que nos permite dizer 'O sol brilha' quando chove a cântaros" (C.C., p. 319); é assim que nossa capacidade de mentir é uma confirmação da liberdade humana. Por outro lado, a persuasão é uma violência, que utiliza aqueles que estão no poder; mas "a persuasão e a violência podem destruir a verdade, não podem substituí-la" (ibidem, p. 330), pois "a verdade é o solo sobre o qual nos apoiamos e o céu que se estende acima de nós" (p. 336). Exceto que, observa Arendt, "considerar a política na perspectiva da verdade quer dizer estabelecer-se fora do domínio político" (p. 330). Do mesmo modo, é em latim filosófico que se enuncia fiat veritas et pereat mundus.
Do transcendental em política: Sófocles ou Péricles?
O fato de que se deva tratar em política de pensar o julgamento a partir do gosto, coloca de maneira aguda o problema da relação entre estética e política, entre a obra e a ação na cidade. A diferença entre Heidegger e Arendt encontra-se aí em seu ponto culminante. Torná-la-emos das mais sensíveis comparando a interpretação do primeiro coro da Antígona de Sófocles e a da Oração Fúnebre pronunciada por Péricles no livro II das Histórias de Tucídides, sem deixar de reter já, como uma indicação, a natureza (poesia trágica/prosa histórica) da obra escolhida.
O homem, "o que há de mais inquietante", "o inexperto sem saída", é também hypsípolis ápolis (v. 370).
“Traduz-se pólis por Estado e cidade: isso não dá o sentido pleno. Pólis significa antes o lugar, o aí, no qual e em virtude do qual o ser-aí é historial. A pólis é o lugar da pro-veniência, o aí no qual, a partir do qual, e para o qual a pro-veniência pro-vém. A esse lugar da história pertencem os deuses, os templos, os sacerdotes, as festas, os jogos, os poetas, os pensadores, o rei, o conselho dos anciãos, a assembleia do povo, o exército e a marinha.
Nesse ponto, constata-se aliás que aliás que a experiência grega da pólis, na medida em que é pensada como experiência do "lugar", do "aí", não pode deixar de se confundir, dando-lhe o tom ou imitando-lhe as metamorfoses — como se quiser — com a experiência romana da pátria. Em todo caso, o político é pensado como, ou a partir da, obra de arte, enquanto aquilo que dá lugar.
... É a partir dessa expressão que Heidegger escolhe, por exemplo na Introdução à Metafísica, interpretar o sentido da palavra pólis:
Para fazer compreender o que é a pólis, Arendt tem costume de se servir de uma frase de Péricles: philokaloümén te gàr met' euteleias kal philosophoümen áneu malakías, que ela propõe traduzir por algo como: "Amamos a beleza no interior dos limites do julgamento político, e filosofamos sem o vício bárbaro da moleza" 21. A interpretação de Arendt não pareceria menos forçada ao helenista do que uma interpretação heideggeriana: sua audácia deve-se essencialmente ao fato de entender "correção de visada" e “moleza” como dois termos "estritamente políticos" ("A crise da cultura, C.C., p. 273). Malakía, que designa antes de tudo a doçura (a de um leito, de um tecido, de uma pradaria, de uma pele, de um rosto, de um olhar) conota, com efeito, frequentemente a moleza (exatamente a dos moluscos sem carapaça), a fraqueza física ou moral, a efeminação: "filosofamos como homens e não como delicados", diz também Péricles [Osório diz: nem todo grego era pederasta. Platão sim, era]. Mas é bem mais difícil entender eutéleia como um termo positivo; sem dúvida, a palavra em si mesma é magnífica: eu, "bem", "de forma boa", e téleios, "terminado", "realizado", "perfeito", de télos, "alvo", "fim".
[21. Tucídides, Histórias, II, 40; cf. C.H.M., pp. 222-224, 230-232 V.E. I, p. 154, 203; CC., p. 24, 97, e sobretudo pp 272-288. Compararemos a tradução de J. de Romilly, Paris (Lês Belles Lettres), 1962: "Cultivamos o belo na simplicidade e as coisas do espírito sem falta de firmeza".]
Afinal de contas, é essa a maneira por excelência de ter gosto, a maneira mesma de não agir em democracia como no Império suntuoso e "hibrístico" do Grande Rei: "O gosto desbarbariza o mundo do belo não se deixando submergir por ele" ("A crise da cultura", C.C, p. 286).
Porém, não mais do que Homero, Tucídides ou Pausânias não fazem arte engajada. "Atenas jamais resolveu o conflito entre a política e a arte unilateralmente" e "os gregos... puderam dizer de um só o mesmo sopro: 'Aquele que não viu o Zeus de Fídias em Olímpia viveu em vão' [Osório diz: aquele que não viu Maraã, viveu ou vive em vão] e 'As pessoas como Fídias, a saber os escultores, são impróprias para a cidadania'" ("A crise da cultura", C.C., p. 277). Arendt reproduz esse paradoxo que a fascina; "Esse conflito (entre a arte e a sociedade) não pode nem deve ser resolvido" (ibidem, p. 278), ou ainda: "Não temos aqui que escolher entre Platão e Protágoras" (C.H M., p. 195). A política tem necessidade da arte; a fim de ser o que sempre se considerou que o mundo fosse, pátria dos homens durante sua vida na terra, o artifício humano deve poder acolher a ação e a fala: sem Píndaro, nada de Jogos olímpicos. Entretanto, a pólis substitui a arte, elevando a ação, sem nenhuma necessidade de reificá-la, ao primeiro lugar da hierarquia na vita activa, e designando a fala como a distinção decisiva entre o homem e o animal — "o que nos dois casos conferiu à política uma dignidade que mesmo hoje em dia não desapareceu completamente" (ibidem, p. 231). Esse paradoxo é um efeito do paradoxo inerente ao estatuto da própria obra de arte, ao mesmo tempo obra no sentido eminente, quer dizer, objeto o mais intensamente tangível do mundo, objeto que pertence ao mesmo espaço público que a política, e não-obra, que escapa à finalização do homo faber tanto quanto à necessidade biológica do trabalho.
Assim, e tomadas todas essas precauções, parece-me que persiste a diferença entre Platão e Protágoras: é, se preferirmos, a diferença entre uma forte tendência de Heidegger e uma forte tendência de Arendt. Um último exemplo, o da tragédia, poderá resumir tudo. A tragédia, que só poderia ser grega, é para Heidegger, como o testemunha explicitamente o Parmênides, tragédia da alétheia. Para Arendt, é "a arte política por excelência" (C.H.M., p. 211).
Assim, no primeiro caso, a dignidade do político é a de não ser ele, mas então o filósofo põe em risco Siracusa. No outro, a dignidade do político é ser apenas ele, e o "filósofo", se existe Arendt, deve somente pensar as condições de possibilidade dessa especificidade do político. [Osório diz: primeiro caso (Heidegger): o filósofo não é político, seu compromisso é com a verdade. Se é assim, como Platão foi à Siracusa? Segundo caso (Arendt): o político não é filósofo, busca apenas construir as condições de manutenção da pólis]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 90, 91, 92, 94, 95, 96, 99, 37, 38, 39, 40, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 75, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 115, 116, 117, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 153, 154, 155, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 164, 166, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 194, 195, 196, 197, 198, 199, 200, 201, 202, 203, 204, 2056, 206).