Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.42 – Sofistas na história da filosofia (detratores e defensores).
Kerferd ensina:
“A questão da alegada degeneração dos atenienses levanta maiores controvérsias e talvez seja suficiente mencionar a resposta do historiador Grote, que declarou que o caráter ateniense não era realmente corrupto entre 480 e 405 a.C. Mas a questão da natureza dos ensinamentos dos sofistas é exatamente o tema deste livro e será comentada cabalmente mais tarde [Osório diz: seria necessário ver o conteúdo da obra, haja vista que esse período coincide, exatamente, com o final da guerra do Peloponeso, onde a moralidade foi invertida, mas não por obra dos Sofistas!]. A esta altura, talvez seja interessante lembrar uma outra caracterização da opinião corrente sobre os sofistas, uma descrição clássica prevalecente antes da reconsideração do século XIX:
A visão antiga dos sofistas era a de que eles eram um bando de charlatões que surgiu na Grécia no século V e ganhou amplamente o seu sustento impondo-se à credulidade pública: professando ensinar a virtude, eles, na realidade, ensinavam a arte do discurso falacioso e, enquanto isso, propagavam doutrinas práticas imorais. Dirigiram-se para Atenas como ao Prythaneu [aqui = lugar central de assembleia] da Grécia; lá se encontraram com Sócrates e foram derrotados por ele, que expôs a inanidade de sua retórica, revirou do avesso seus argumentos capciosos e vitoriosamente defendeu sólidos princípios éticos contra seus plausíveis sofismas perniciosos. Assim, eles, depois de um breve sucesso, caíram num bem merecido desprezo. E seu nome se tornou objeto de zombaria para as sucessivas gerações.” [Osório diz: eis a opinião de um fanático sobre os Sofistas].
(...)
Afirmativa como esta somente pode ter partido de um fanático!
E nenhum desses fanáticos contextualiza a situação vivida por Atenas nessa época que eles chamam de “degenerada”! Só recentemente, com a história sendo tomada um pouco a sério e imparcialmente, é que se coloca o drama da guerra vivido pela cidade, onde todos os padrões de comportamento são alterados, e, daí, dizer que tal decorreu do ensinamento dos sofistas vai uma grande distância, em especial por serem os atenienses homens iguais a todos os demais.
“Formuladas assim, as acusações realmente reduziam-se a duas: primeiro, que os sofistas não eram pensadores sérios e não tinham papel nenhum na história da filosofia e, segundo, que seus ensinamentos eram profundamente imorais. Ambas as alegações tiveram de enfrentar um certo grau de reconsideração com o desenvolvimento de novas abordagens da história na primeira metade do século XIX. Embora as duas acusações sejam inter-relacionadas, convém tratá-las, até certo ponto, em separado.”
Não fossem os sofistas pensadores, a questão da seriedade nada diz, Platão e Aristóteles não teriam derramado rios e rios de tinta para tentar combater seus pensamentos, e, o melhor, sem sucesso!
“Imorais”! A palavra, traz conotação pejorativa, e, nesse sentido, não pode ser aceita! Se, contudo, entender-se ela em seu sentido apropriado, de ausência nos sofistas de busca de uma imposição de uma doutrina moral, está correta a afirmativa. É que os sofistas não buscavam impor nada, menos ainda uma doutrina moralizante, que sabiam sem sentido e inapropriada, eles não tinham por objetivo impor uma moralidade, mas mostrar que a moralidade posta não servia, não tinha sentido, e que qualquer modo de vida em sociedade tem que ser “construído”, acordado, pactuado pelos que convivem, que nenhuma moral cai do “céu”, aliás é mais fácil cair do “inferno”, ou vem de algum iluminado capaz dizer o que é certo e o que é o errado.
Desde já é bom que se diga: os sofistas, aparentemente, e apenas aparentemente, não queriam construir, edificar nada, mas apenas mostrar que o que estava edificado e tido como o correto não era o melhor, pode-se até dizer que eles diziam: “não sei o que é o certo, mas o que você me apresenta como tal sei que não é, e pelas seguintes razões”! Aí eles destruíam, racionalmente, tudo que lhes era apresentado e passavam à condição de “imorais”.
“Primeiro, a questão do lugar do movimento sofista na história da filosofia. A história do estudo da filosofia grega tem sido profundamente influenciada, nos tempos modernos, até inclusive, o presente, pelo tratamento adotado por Hegel nas suas Conferências sobre a história da filosofia. Hegel, na verdade, restaurou os sofistas a uma posição integrada na história da filosofia grega, mas de tal maneira que seus sucessores puderam continuar, por mais cem anos, com apenas uma modificação parcial da visão prévia profundamente hostil do movimento sofista. [Osório diz: qual a vantagem de ser ou não um filósofo? Para amar a sabedoria precisa-se ser filósofo?].
Hegel via a história da filosofia como o desenrolar progressivo da Mente Universal ou Espírito. O movimento de seu pensar segue o padrão universal para todo pensamento: começa por formular uma tese positiva que é, em seguida, negada pela sua antítese. Prosseguindo, o pensamento produz uma síntese de tese e antítese, e o processo continua com a síntese formando a tese de um novo ciclo, a cada vez, até que tudo o que estava implícito no ponto de partida original tenha se tornado explícito. A esse movimento do pensamento Hegel chamou dialética. Ele procede por negações porque cada passo — tese, antítese e síntese — nega o passo anterior. E pode fazer isso exatamente porque cada passo é, em si mesmo, parcialmente verdadeiro e parcialmente falso.
A aplicação desse esquema à história da filosofia grega resulta em três períodos, supunha Hegel. O primeiro se estende de Tales a Aristóteles, o segundo constitui o período helênico, ou "filosofia grega no mundo romano” (estoicismo, epicurismo e ceticismo), e o terceiro consiste no neoplatonismo. Dentro do primeiro período, Hegel via mais uma divisão em três, ou uma tríade: (1) de Tales a Anaxágoras, (2) os sofistas, Sócrates e os seguidores de Sócrates, e (3) Platão e Aristóteles. A primeira dessas subdivisões é descrita por Hegel como aquela na qual o pensamento se encontra inicialmente em determinações sensórias. Em linguagem não-hegeliana, poderíamos dizer que essas determinações são vistas como meramente objetivas, como enunciando fatos científicos sobre o mundo que percebemos e estudamos. Assim, Tales e os outros ionianos compreendiam o Pensamento Universal na forma de sua determinação natural, como água e ar, dos quais, supunham eles, era feito o nosso universo físico. A segunda subdivisão compreendia aqueles que, mediante a crítica cética, vieram a negar essa visão e substituí-la, como sua antítese, pelo princípio de subjetividade, segundo o qual se supõe que seja o próprio sujeito pensante e perceptivo quem determina seus próprios pensamentos e percepções. O conflito entre tese e antítese previsivelmente suscitou, no devido tempo, a síntese, neste caso os sistemas de Platão e de Aristóteles, que formam, para Hegel, a terceira subdivisão do primeiro período.
A definição mais primitiva de filosofia é “amor pelo saber”!
Quem ama o saber, então, pode ser chamado de filósofo.
Qual a vantagem de ser ou não ser filósofo?
Essa é uma das besterias nas quais se perdem algum por falta de argumento.
Incluir ou não os sofistas dentre os filósofos será de algum proveito? Qual?
Os sujeitos eram professores, e para serem professores estudavam, e estudavam muito, justamente para poderem ter respostas para tudo.
E estudar muito não é amar o saber?
Creio que eles não estariam interessados em estarem juntos a Platão e Aristóteles, em especial do arbitrário e supersticioso Platão. Para que lhes serviria a companhia destes?
Tudo bem, melhor eles não serem filósofos, se for para se igualar a Platão e Aristóteles. Melhor serem combatidos por estes, pois somente o pensamento deles foi discutido e mantido de pé.
O importante é o conteúdo, não o rótulo.
“Para o nosso propósito, o aspecto importante de tudo isso é que Hegel reinseriu os sofistas na história da filosofia e o fez tratando-os como subjetivistas. Para Hegel, o subjetivismo deles era uma etapa necessária na autodeterminação do Pensamento, que é o que era a história da filosofia. Era uma etapa necessária, apesar de seu caráter negativo, porque a negação era uma parte integral do movimento do Pensamento Universal. Mas, por todo o século XIX e no primeiro terço do século XX, a tradição da filosofia idealista continuou a dominar as mentes dos estudantes de filosofia grega. Em conseqüência disso, a caracterização dos sofistas como subjetivistas foi amplamente aceita. Mas quanto ao restabelecimento de sua reputação como filósofos o efeito foi o oposto. Parecia confirmar o julgamento hostil de Platão e Aristóteles. Verdade e realidade eram objetivas, não subjetivas. Todos os que negassem isso se opunham à verdade e à realidade e, como [19] tais, além de não serem filósofos, eram inimigos da filosofia; tais eram os sofistas [Osório diz: e a objetividade já estava morta há muito tempo]. Paradoxalmente, a visão tradicional que se tinha dos sofistas parecia, dessa forma, ter sido confirmada. E isso se percebia principalmente na esfera da moral. Aqui, para muitos, parecia que defender o ponto de vista segundo o qual o certo e o errado eram subjetivamente determináveis significava, fundamentalmente, negar totalmente a validade dos valores morais [Osório diz: esse é o erro! Refundar os valores é algo diferente! Em especial pelo fato dos valores postos não resistirem a qualquer crítica!].
A etapa seguinte na história é alcançada com o famoso capítulo sessenta e sete da História da Grécia de George Grote. Grote era um Radical e livre-pensador que entrou para o círculo dos utilitaristas Jeremy Bentham e James Mill. Foi, por algum tempo, membro da Casa dos Comuns e esteve associado, desde o início, com o movimento para fundar a então nova Universidade de Londres, na Gower Street, que viria a se tornar, mais tarde, a University College, de Londres. Como reformador e utilitarista, ele estava muito preocupado em atacar a mão morta da tradição. Não foi por acaso que se dispôs a reavaliar os sofistas. Ele os via como os campeões do progresso intelectual e rejeitava aspectos cruciais da avaliação tradicional da obra deles. Argumentava de modo especial, acima de tudo, que não eram uma seita ou escola, mas uma profissão, e que não havia comunidade doutrinária. De modo que, se uma doutrina promovida por um sofista individualmente era contestável, isso não constituía motivo para condenar o movimento como um todo [Osório diz: separando o joio do trigo]. Em segundo lugar, em relação ao pretenso ensino de doutrinas imorais, nem mesmo Platão acusou disso os principais sofistas, Protágoras, Pródicos, Hípias e Górgias. Grote se recusava a crer que qualquer um deles, Trasímaco ou Cálicles, pudesse jamais ter ensinado publicamente as teorias anti-sociais sobre justiça atribuída a eles por Platão na República e no Górgias. Mesmo que o tivessem feito, seria errado concluir daí qualquer coisa em relação aos outros sofistas. Basicamente, Grote considerava os sofistas mestres que simplesmente representavam as opiniões correntes na sua época.” [Osório diz: defesa dos Sofistas].
Grote apenas repete os próprios sofistas no seu propósito de atacar a mão morta da tradição!
Sim, os sofistas não formam uma escola, pois eles sequer eram um grupo, já que os sofistas, regra geral, eram homens cultos, embaixadores enviados a Atenas por suas cidades, dos mais diversos pontos do mundo grego, com distâncias colossais entre eles, como, por exemplo a Abdera de Protágoras e Leontinos de Górgias.
O que os “reuniu”, posteriormente, pelos ditos “estudiosos” foi uma incrível coincidência de, senão uma “unidade de pensamento”, pelo menos a aproximação e encadeamento de suas ideias.
Quais as ideais ditas imorais ensinadas pelos sofistas? Ninguém o diz, nem Platão, mas seus seguidores, sempre fanáticos, fazem disso um mantra!
Certamente que, implicitamente, têm como imorais os questionamentos da religião, das leis, da aristocracia/igualdade etc., temas sensíveis aos donos do poder.
“Uma forte controvérsia se seguiu à defesa de Grote. Seu ponto principal finalmente acabou por receber aceitação geral — simplesmente não era um fato histórico que eles tivessem envenenado e desmoralizado, por ensino corrupto, o caráter moral ateniense. Mas ele pouco fez para reabilitar intelectualmente os sofistas. Na verdade, ao negar que as pessoas denominadas sofistas possuíssem doutrinas, princípios ou métodos ao mesmo tempo comuns a elas e distinguindo-as dos outros, ele tornou difícil defendê-los como uma classe, assim como tinha pretendido tornar difícil atacá-los.”
Como posta, proposta e entendida a história do conhecimento – progresso e verdade – penso que é impossível reabilitar os sofistas, e eles não podem ser reabilitados por quem pensa e propõe tal história nos termos que foram propostos até hoje!
É que a intelectualidade dos sofistas é totalmente contrária àquela proposta por seus detratores.
É que eles não trabalham com a possibilidade de verdade, apenas de melhora. “Não é possível se chegar à verdade”, mas é possível melhorar o conhecimento sobre tudo!
Veja-se que a própria afirmativa de que é possível melhorar o conhecimento sobre tudo, embora sem chegar a tal verdade, já traz em si a necessidade de que se prossiga estudando, tentando e buscando essa melhora!
Portanto, não se pode dizer que os sofistas têm pelo menos uma verdade, aquela que afirma que não se pode conhecer a verdade! Ao contrário, eles eram professores e estudiosos, e incentivavam seus alunos a estudar, apenas não lhes garantiam verdade, mas afirmavam que o estudo é importante. Não pregavam ponto de chegada, mas apenas caminho. É preciso caminhar, embora não se saiba onde esse caminho vá levar.
Quanto a própria possibilidade de conhecimento, Górgias e as suas famosas três teses também pois um freio em seu “progresso” que até agora não foi levantado, daí os seus detratores fugirem de tais teses, jogando-as para debaixo do tapete, por não saberem respondê-las, como “o diabo foge da cruz”, diria um fanático religioso!
Mas, como veremos mais adiante, as teses de Górgias são conciliáveis com os ensinamentos de Protágoras.
Caminho diferente foi seguido por Eduard Zeller na sua influente história da filosofia grega. Embora crítico de muitos aspectos da abordagem de Hegel, Zeller, não obstante, adotou seu esquema básico. Aceitou a idéia de um desenvolvimento da filosofia grega gerado internamente — o que se reflete no título de sua obra: Die Philosophie der Griechen inihrer geschichtUchen Entwicklung. Ele incluiu os sofistas e, diferentemente de Grote e de muitos outros que o seguiram, afirmou que todos eles tinham tanto em comum, a despeito das diferenças individuais, que estávamos autorizados a tratá-los como representando, todos, a mesma disciplina educacional. Ele argumentou de maneira persuasiva contra as tentativas de dividir ou distribuir os sofistas fundamentalmente entre tipos primitivos e tardios, ou entre diferentes escolas, e passou à tentativa de caracterizar o movimento como um todo [Osório diz: tentativa de unir os sofistas entre si]. Fez isso ao modo de Hegel. Primeiro, o lado negativo. O questionamento das coisas feito pelos sofistas destrói todo esforço científico pela raiz; sua erística tem como resultado final apenas a confusão do interlocutor; sua retórica está preocupada com a aparência e serve tanto à causa do falso como à do verdadeiro; o conhecimento científico, na opinião deles, vale pouco; seus princípios morais são perigosos. Mas, do lado positivo, a validade filosófica do princípio da subjetividade foi afirmada, agora, pela primeira vez. O período anterior tinha se limitado, na sua consideração do comportamento prático, à moral vigente e à tradição religiosa e, na sua ciência, à contemplação da natureza. Agora as pessoas se tornam conscientes de que isso não é suficiente. O homem perde o respeito pelo tangível e pelo dado como tais; não aceitará como verdadeiro nada que não tenha ele mesmo aprovado; agirá somente baseado no seu próprio julgamento [Osório diz: é isso que Platão porá a perder]. Mas, para Zeller, isso também é inadequado. Em vez de completar a física por um sistema de ética, a física é posta, agora, totalmente de lado; em vez de procurar um novo método científico, nega-se a possibilidade de conhecimento [Osório diz: isso é o que pensa Zeller, mas não significa que seja assim!]. A mesma coisa acontece com a moral. Em vez de buscar os fundamentos internos da obrigação na natureza das atividades morais e das relações, os homens se satisfazem com um resultado negativo, a não-validade das leis existentes [Osório diz: também não é só isso, isso é a primeira descoberta para mostrar que algo estava errado! Górgias/Protágoras põem as coisas no lugar].
Tai um julgamento quase que apropriado dos sofistas!
As grandes preguntas que se poderiam fazer a Zeller são:
a) por que os sofistas deveria ter proposto/criado uma moral?
b) por que destruir a possibilidade do conhecimento é errado?
c) por que comprometer-se com um esforço científico que está errado?
d) por que o homem teria de crer, em vez de ele mesmo comprovar?
e) é a retórica deles que está preocupada com a aparência ou é o verdadeiro que não existe?
O resultado, para Zeller, era algo superficial e unilateral, anticientífico e de conseqüências perigosas [Osório diz: mostrar que o rei está nu é culpa de que o vê despido? Deveriam eles incentivar a mentira?]. Mas essa unilateralidade não devia ser evitada, e tinha seu lugar na história da filosofia. Assim como os alemães dificilmente teriam tido um Kant sem o período do Iluminismo, assim os gregos dificilmente teriam tido um Sócrates e uma filosofia socrática sem os sofistas [Osório diz: para mim, a quem Sócrates não diz nada, isso nada diz!]. Essa foi a avaliação feita por Zeller em 1892. A sexta edição, publicada em 1920, continha uma apreciação extra, por Wilhelm Nestle, que seguiu o ponto de vista de Zeller, mas apresentou um recuo em um ponto. Os sofistas são, agora, diferenciados dos filósofos (sem qualificação), e não simplesmente dos primeiros filósofos. Eles diferem segundo o objeto com os quais se ocupavam (homens, não a ciência natural, e sobretudo homens em sociedade); nos seus métodos, que eram empíricos e baseados na experiência, em vez de dedutivos e baseados em supostos primeiros princípios ou primeiros inícios, para o mundo físico; e sua finalidade era diferente. Ocupavam-se do conhecimento subjetivo para propósitos práticos, para assegurar domínio sobre os homens e sobre a vida, ao passo que o filósofo se ocupa com o conhecimento pelo próprio conhecimento [Osório diz: daí vindo a chacota: “filósofo é aquele com o qual ou sem o qual o mundo continua tal e qual”]. Mas, ao contrastar os sofistas com filósofos, Nestle acentuava tão fortemen [23] te a sua irrevogável conexão que, de fato, ele os tratava como uma espécie de filósofos [Osório diz: na verdade, os filósofos é que são uma espécie de sofistas. Usam tudo com que trabalhou a sofística e negam tal uso!]. O que ele estava realmente fazendo era o que tinham feito os seus predecessores, isto é, restringindo o termo filósofo a um certo tipo (o tipo aprovado) de filósofo. Tornou-se comum classificar os defensores dos sofistas em dois grupos: um que rotulava os sofistas de "positivistas do Iluminismo", provindos de Grote, e o outro, os hegelianos. Nestle, com Zeller, pertence ao segundo grupo.
Os sofistas, e não Sócrates (embora, para nós, este seja um deles, contudo não faz falta se retirá-lo do grupo), trazem o homem para o debate, deixando a natureza de lado, como fizeram aqueles que os antecederam, em especial os chamados de físicos.
A tentativa de distribuir os escritores do século XX entre os dois grupos é perigosa, visto que quase todos, de um jeito ou de outro, provavelmente desejariam, agora, combinar elementos dos dois grupos. Mas pode-se ainda reconhecer as simpatias predominantes. A abordagem positivista concentra-se mais no que os sofistas eram e faziam do que no que eles pensavam. Segundo essa abordagem, os sofistas eram inspirados sobretudo pelo ideal educacional da retórica, e seriam os enciclopedistas ou iluministas da Grécia; seriam, acima de tudo, mestres do ideal de virtude política (ou, mais simplesmente, de como ser bem-sucedido na política), ou do ideal de virtude ou sucesso na vida em todos os seus aspectos; ou seriam humanistas pelo fato de porem o homem e seus valores no centro da interpretação do universo. Todas essas opiniões tendem a se associar à asserção de que não se pode esperar nenhuma doutrina, intelectual ou filosófica, realmente específica, comum ao movimento como um todo. [Osório diz: O que eram os sofistas ou o que ensinavam].
Por outro lado, muitos continuaram a situar os sofistas firmemente dentro da história da filosofia e procuraram caracterizar o movimento como um todo em termos de suas doutrinas, continuando, pelo menos de modo geral, a tradição começada por Hegel. Aqui eu colocaria o mais recente tratamento completo dos sofistas em inglês, por W. K. C. Guthrie, que contrasta o empirismo e o ceticismo dos sofistas com o idealismo de Platão, de um lado, e, de outro, com o interesse pelos fenômenos naturais, típico da maioria dos pré-socráticos antes deles. Suas simpatias pessoais [Osório diz: e estas existem?], porém, acho que seria justo dizer, são para com o que eu chamaria, de modo geral, a tradição idealista, e não para com os seus oponentes.
Muito diferente é a abordagem polêmica desenvolvida, na Itália, por Mario Untersteiner durante os últimos trinta anos. Na sua obra Os sofistas ele apresenta uma visão diferente. Escreve que "os sofistas estão de acordo quanto a uma concretude antiidealista que não trilha os caminhos do ceticismo, mas, antes, os de um realismo e um fenomenismo que não confinam a realidade num único esquema dogmático, mas permitem que ela reine com todas as suas contradições, com toda a sua trágica intensidade". Para Untersteiner, se é que o entendo corretamente, o ponto de partida são sempre as experiências encontradas pelo indivíduo, inclusive aquelas que chegam a ele vindas da sociedade e de outros indivíduos. Elas estão quase sempre, como é de esperar, em conflito, em mútua contradição. Através do poder da mente, o homem pode conseguir domínio sobre a multiplicidade de sua experiência e, assim, na realidade, gerar ou regenerar seus conteúdos para si mesmo. Boa parte disso é facilmente inteligível somente dentro do esquema geral de pensamento do filósofo expressionista Benedetto Croce.[Osório diz: penso que Untersteiner diz Górgias e o acordo, convenção de Protágoras].
O esboço acima, embora muito incompleto, deveria deixar claro o quanto sofreram os sofistas por terem sido postos em conflito com a tradição idealista. Os resultados, às vezes, foram curiosos e radicais. Escrevendo, em seu Geshichte der Philosophie, antes da publicação das conferências de Hegel, Heinrich Ritter, de Berlim, julgava as doutrinas materialistas de Demócrito e dos atomistas, embora reconhecidamente divergentes das doutrinas dos sofistas, igualmente antifilosóficas, porque nos privariam de qualquer acesso à verdade. Ainda de certa forma mais notável era a concepção encontrada no livro de Th. Funck-Brentano, Les sophistes grecs et les sophistes contemporains (Paris, 1879). A segunda parte do livro é dedicada a "Os sofistas contemporâneos ingleses", e esses são principalmente John Stuart Mill e Herbert Spencer. Com eles deveriam ser classificados os predecessores escolásticos de Bacon e Descartes, na Renascença, que se seguiram aos grandes doutores da Igreja. Em cada caso chega-se a supor que opiniões contrárias são igualmente legítimas, a verdade se torna uma armadilha enganadora, as tentativas de alcançá-la, loucura. O resultado é desorganização intelectual e moral. Protágoras, Polos e Trasímaco desempenham o mesmo papel que Adam Smith, Diderot, Helvetius e Rousseau, que haveriam de ser seguidos pelos positivistas Comte, Mill e Herbert Spencer.
Aqui é interessante o posicionamento de que os anteriores seguiram os posteriores, e não o contrário. O depois veio antes!
Algumas conclusões podem, acho, ser legitimamente tiradas. A abordagem histórica, em si mesma, é evidentemente essencial. De fato precisamos compreender o movimento sofista em relação tanto com a história anterior do pensamento grego como com Platão e Aristóteles. Mas é perigoso ir depressa demais. De modo particular, a tentativa de chegar a respostas antes de um estudo detalhado é insatisfatória [Osório diz: elementar, eu diria!]. Quando acoplada a uma esquematização prévia da suposta direção do desenvolvimento do pensamento humano, o resultado pode ser desastroso. O perigo não era tanto a imposição de um esquema fixo derivado de Hegel — isso, de fato, foi logo criticado e, em grande parte, abandonado —, mas algo mais profundo. Era o sentimento de que a direção correta e desejável para a evolução do pensamento humano era para a maior compreensão da importância do Geist, ou Espírito, em contraste com as inadequações do materialismo e das interpretações baseadas nas percepções sensoriais e nada mais [Osório diz: esse papo é de religioso ou de seus advogados]. Isso, quando acoplado à crença em que toda a história passada do pensamento deve ter consistido de tentativas, embora mal dirigidas, de chegar à única verdadeira filosofia, como quer que seja interpretada, é a receita certa para a distorção histórica. Portanto o que se quer não é uma reavaliação dos sofistas ainda dentro desse esquema, isto é, por aqueles para quem o pensamento na direção contrária é mais louvável. Esses haveriam de ver os sofistas como predecessores das posições antiidealistas, positivismo, liberalismo, materialismos dialéticos ou não. Isso também é, basicamente, aceitar o esquema hegeliano, ao passo que o que se quer é uma abordagem mais cautelosa, que vise evitar esquematizações prematuras da história do pensamento. Isso implica partir dos dados reais sobre os sofistas, sobre os pré-socráticos e sobre Platão, sem pressuposições, mas, não obstante, com uma contínua vigilância quanto à possibilidade de interpretações unificadoras, as quais, a seu devido tempo, podem constituir elementos de modelos globais.
Alguns exemplos devem bastar à guisa de ilustração. Um modelo favorito era o de ver a importância dada ao Nous ou espírito, no pensamento de Anaxágoras, como enormemente importante e, de fato, como uma influência formativa sobre o movimento sofista. O próprio Anaxágoras tinha lhe atribuído apenas um papel limitado, como lamentou Platão no Fédon, 97b-98c, talvez confinando-o no início do processo de formação do mundo. Entretanto isso representou um começo importante, porque permitiu aos sofistas generalizar a importância do espírito (individual) acima da área toda da filosofia [Osório diz: bacana isso, pois tira de Sócrates a primazia, embora ele fosse sofista também]. Mas há muito pouco sentido ou substância nessa opinião. Não há nenhum indício de que os sofistas fossem influenciados pela ideia do nous de Anaxágoras, e a cronologia torna duvidosa até mesmo a possibilidade de tal influência para os primeiros sofistas, inclusive Protágoras [Osório diz: realmente, ambos nem eram conselheiros de Péricles]. Além disso, nous de Anaxágoras era material, não espiritual; é descrita como a mais tênue e pura de todas as coisas — fr. 12 DK —, mas ainda claramente material [Osório diz: Protágoras não pode tê-lo transfomado em espiritual, em especial para quem lê o Mito de Prometeu?]. Em segundo lugar, diz-se frequentemente que os sofistas representavam um abandono da especulação física em direção a algo novo — a introdução da mente humana como fator determinante na moldagem de nosso pensamento. Há, contudo, bons indícios de que os sofistas conservaram um vivo interesse pela especulação física [Osório diz: Sócrates também, ah, mas ele era sofista! Senhor Kerferd, quem se propõe a ensinar tudo tem que estudar tudo, captou?]. Mais importante, contudo, é que a caracterização de seus predecessores como exclusivamente ocupados com o mundo físico objetivamente observado é simplesmente falsa [Osório diz: nenhum conhecimento é estanque. E quem diz o contrário são os fanáticos por Platão/Sócrates]. Desde o mais antigo estágio eles estavam fundamentalmente preocupados com o que chamaríamos de filosofia do espírito. Heráclito e Parmênides começaram movimentos nos quais o jeito das coisas parecerem para as pessoas e as razões pelas quais assim pareciam estavam bem no centro de suas especulações, e isso continuou através dos pluralistas. Havia, nessas questões, muito mais continuidade e muito menos notável contraste entre os sofistas e seus predecessores do que tem sido comumente suposto. Exatamente a mesma coisa se aplica, argumentarão, na comparação entre o próprio movimento sofista e o pensamento de Platão [Osório diz: pelo menos isso! “A mesma coisa se aplica”!]. O que se faz necessário, agora, é uma série de estudos detalhados dos dados reais relacionados com os sofistas individuais, que leve a sério esses dados e não seja inibido já desde o ponto de partida pela convicção de que qualquer atribuição de doutrinas importantes a um determinado sofista provavelmente não será correta porque "os sofistas não eram o tipo de pessoas que se ocupavam de doutrinas sérias" [Osório diz: Chupa Platão”]. Naturalmente os dados são muitas vezes deficientes, inadequados e difíceis de interpretar. Mas o mesmo vale para os pré-socráticos e, no caso deles, não se pode dizer que investigações e reconstruções minuciosas e eruditas tenham sido seriamente impedidas. Que o mesmo tipo de abordagem seja, agora, aplicado aos sofistas[Osório diz: perfeito nesse final].
Toda a história do pensamento tem sido uma continuidade de pensamentos anteriores (Newton e os ombros de gigantes), com Platão não seria diferente, embora seus seguidores digam que criou tudo o que diz a partir do nada!
Com os sofistas já se parte do pressuposto de que eles, sem serem estudados, não são sérios, mas, isso é plenamente compreensivo, uma vez que, já que não se tem respostas para seus questionamentos, melhor esquecê-los!” (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 18-30).
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(uma biografia do conhecimento)
41.41 – Sorteio como forma de escolha dos governantes – não era bem assim!
Kerferd ensina:
“Esses dois princípios são (1) que o poder deveria estar com o povo como um todo e não com uma pequena parte do conjunto dos cidadãos [Osório diz: com os aristocratas, como defende Platão e sua família], e (2) que os cargos com direito de aconselhar e agir em nome do povo deveriam ser confiados aos mais competentes e mais capazes de desempenhar essas funções [Osório diz: E quem atestava isso ou seria melhor para atestar? O próprio povo, embora isso não fosse visto com bons olhos por quem perdia poder, em especial o grupo ao qual pertencia Platão]. Em termos práticos, o primeiro princípio era expresso no poder da assembleia e dos conselhos de massa e a extensão gradual do sistema de seleção por sorteio para a maioria das magistraturas municipais. A introdução de pagamento tornou possível que cidadãos mais pobres se apresentassem para possível seleção, e sua importância é atestada pela fúria que provocou na oposição conservadora [Osório diz: leia-se Platão, em especial, embora posterior! Pagamento, justo, pela prestação de serviço público para o público].
Por outro lado, não houve nenhuma tentativa de estender o princípio de seleção por sorteio aos comandantes militares. De um ponto de vista militar isso era, sem dúvida, questão de bom senso [Osório diz: Platão não faz essa importantíssima ressalva!]. O autor do tratado pseudo-xenofontino Sobre a Constituição de Atenas (I, 2-3) contrasta os cargos para os quais todo o mundo pode ser admitido com
aquelas magistraturas que, quando bem conduzidas, trazem segurança para todo o povo, mas mal conduzidas trazem perigo; nessas magistraturas o povo não pede para tomar parte — eles não acham que devam tomar parte no generalato mediante sorteio, nem no cargo de comandante de cavalaria. Porque o povo está consciente de que lhe é mais vantajoso não ocupar esses cargos, e deixá-los para os homens mais capazes.[Osório diz: trecho fundamental para destruir o argumento platônico/socrático].
A importância deste segundo princípio não confinava-se a assuntos militares, visto que foi como strategos ou general que Péricles assegurou a si mesmo um poder virtualmente ininterrupto, tanto que Tucídides podia dizer que, sob Péricles, o que tinha o nome de democracia estava, de fato, em processo de se tornar o governo de um só homem. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 33-34).
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(uma biografia do conhecimento)
41.40 – Sectarismo dos seguidores de Sócrates e Platão.
Kerferd ensina:
“Como vimos, a partir de outro testemunho, antes de citar a passagem de Fedro, o método de falar brevemente estava muito claramente relacionado, por Sócrates, ao método de pergunta e resposta (ver Prot. 329b3-5,334d4-7,335a6, bl-2) — de fato, é de se perguntar como poderia ter sido diferente, sobretudo com um sofista, o menos inclinado, entre todos os homens, a querer falar brevemente, na discussão, e depois ficar calado [Osório diz: Kerferd está dizendo que Sócrates era sofista?]. Conseqüentemente, não é plausível a sugestão de que a brevidade no discurso de Protágoras e Górgias era simplesmente um estilo lacônico, "de pôr uma coisa no menor número possível de palavras", e não uma técnica de investigação. No mínimo, se não era uma técnica de investigação, era certamente uma técnica de argumentação e de ensino [Osório diz: boa defesa dos Sofistas por Kerferd].
Eis um assunto que, para alguns, oferece muita matéria a ser discutida. Pois a técnica em questão é a base do que conhecemos como a tradição socrática em educação; na realidade Diógenes de Laércio recorda a tradição segundo a qual Protágoras foi o primeiro a desenvolver o método socrático de argumentação [Osório diz: o antes veio depois! Não seria que Sócrates desenvolveu o método protagórico?]. O que foi considerado uma tentativa de roubar de Sócrates o crédito por esse feito suscitou, talvez e inevitavelmente, forte sectarismo. É o que vem à tona, muito claramente, na discussão de Henry Sidgwick. A seu ver, se Protágoras tivesse realmente inventado a disputa metodológica de perguntas e respostas curtas, seria "absolutamente incrível” que pudesse jamais ser representado assim como o representa Platão no diálogo que leva o seu nome. Ele estava a pensar que a arte de disputa, mais tarde atribuída aos sofistas em alguns dos diálogos de Platão, tais como o Eutidemo e o sofista, originou-se inteiramente com Sócrates, e que ele é totalmente responsável ao menos pela forma dessa “segunda" espécie de sofística. [Osório diz: Sócrates seria segunda sofística!!!]
[Osório diz: vejam o que diz, segundo Guthrie, o sectário “Henry Sidgwick em 1872, que assim sintetizou a opinião corrente acerca dos sofistas:
Eram uma súcia de charlatães surgida na Grécia no séc. V, ganhando muito bem a vida impondo-se à credulidade popular: professando ensinar a virtude, ensinavam na verdade a arte do discurso fanático [Osório diz: isso depõe contra Platão que, sob o pálio de dizer que a virtude não era passível de ser ensinada, vedada o ensino de qualquer coisa! Ou será que ele dizia que apenas o que é ruim é passível de ser ensinado?], propagando doutrinas práticas imorais. Gravitando em redor de Atenas, o pritaneu da Grécia, Sócrates os encontrou aí e os derrotou, expondo o vazio de sua retórica, revirando de dentro para fora os seus sofismas, e defendendo triunfalmente princípios éticos sadios contra seus sofismas perniciosos”. [p. 16, da obra de Guthrie]
Essa opinião é frequentemente citada com aprovação, seja com ou sem restrições. Que eu saiba, a mais cuidadosa discussão recente dessa questão é a de Norman Gulley. Ele tem consciência, eu diria, de que a opinião de Sidgwick simplesmente não se sustenta, e que os sofistas realmente desenvolveram um método de argumentação por pergunta e resposta. Esta, eu diria, é a única opinião possível com base no testemunho que temos. Mas Gulley se sente obrigado a reforçar a conclusão o mais possível, argumentando da seguinte forma: o procedimento dos sofistas era provavelmente um desenvolvimento bastante tardio, influenciado, na sua formulação, pelo método de exame por perguntas e respostas de Sócrates. É provável que qualquer elemento de questionamento no método de Protágoras fosse um elemento quase incidental, e tivesse uma importância mais dramática do que filosófica. Portanto, conclui ele, seria mais prudente seguir Platão e chamar o método de Sócrates de "dialético" em contraste com o método "erístico" dos sofistas. [Osório diz: quem disse que em filosofia não existe o jeitinho brasileiro?]
O contraste entre os termos "dialética" e "erística" será discutido mais adiante. Quanto ao resto das controvérsias mencionadas acima, simplesmente não há nenhum indício, nada que possa sugerir que o método de Protágoras, e dos outros sofistas, fosse posterior ao de Sócrates. Mas temos motivo para associar o método de Protágoras com a sua doutrina dos Dois Logoi, um oposto ao outro. De fato, Platão, no Sofista, numa passagem a ser discutida logo mais (232b), destaca um aspecto como distintivo de todos os sofistas como tais, a saber, que eles eram Antilogikoi, que opunham um logos a outro. Isto significa que o que estamos chamando de método de Protágoras tem fundamento na própria teorização de Protágoras, e isso certamente sugere que é mais provável que o método seja mesmo dele do que simplesmente de Sócrates. Portanto, a seguinte esquematização do “método de Protágoras" tem considerável plausibilidade, embora seus detalhes vá um pouco além dos testemunhos: (1) um estilo de exposição formal seja na preleção ou no manual, (2) troca oral num pequeno grupo de discussão informal, e (3) a formulação antitética de posições públicas e o estabelecimento de princípios a serem seguidos pelos membros do grupo. O que podemos dizer com certeza é que temos todos os motivos para atribuir a Protágoras o uso de um método tutorial para suplementar exposições esteriotipadas, e que não há razão para supor que isso se tenha originado com Sócrates. [Osório diz: o método socrático é protagórico]
Por isso, para resumir, eu diria que em certo sentido o problema está longe de ser tão importante quanto tem parecido. O método socrático, mesmo que possa ter se originado com Sócrates, não obstante originou-se a partir de dentro do movimento sofista, porque o próprio Sócrates fazia parte desse movimento [Osório diz: Sócrates era sofista]. Uma vez reconhecido que outros sofistas, além de Sócrates usaram, de fato, o método de pergunta e resposta, e isso certamente temos de reconhecer, então o grau de originalidade de Sócrates e o grau em que ele foi influenciado por outros sofistas são, ao mesmo tempo, uma questão sem resposta e também de importância subordinada, sob todo e qualquer ponto de vista que não seja o do sectarismo socrático. [Osório diz: para o sectarismo socrático tudo é socrático!]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 59-63).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.39 – Professor - para Platão e seguidores.
Ensina Kerferd:
“Mas nesse estágio, no Mênon (96d), Sócrates pensa melhor. Não é só sob a orientação do conhecimento que as ações humanas são bem e corretamente feitas. Virtude pode, realmente, ser dirigida pelo conhecimento, mas essa não é a única maneira. Opinião correta (orthê doxa) pode ser tão bom guia quanto o conhecimento para a finalidade de agir corretamente. Ambos, conhecimento e opinião correta, são adquiridos e não vêm pela natureza. Tanto os estadistas como outros homens agem baseados na opinião, não no conhecimento, quando agem corretamente; e a própria expressão orthê para correta, no caso da opinião, sugere pelo menos uma consciência da doutrina sofista do orthos logos, expressão também usada, ocasionalmente, pelo próprio Platão (cf. Fédon 73alO, Leis 890d7, Crítias 109b2). A conclusão que seria de esperar é que, visto que opinião correta se adquire, ela é também adquirida pelo ensino, e parece provável que Platão estava bem consciente de que essa seria a conclusão sofista normal. Mas ele não aceita essa conclusão. Opinião correta se adquire, sim, mas não por ensino, visto que ensino se refere apenas ao conhecimento. Resta que a posição dos estadistas que agem orientados pela opinião correta não deve ser diferente da dos profetas e dos que proferem oráculos, que sob a inspiração divina dizem muitas coisas verdadeiras, mas não têm conhecimento do que estão dizendo. Platão, naturalmente, não pode dizer que os sofistas estão agindo sob inspiração divina, mas o que se infere da discussão, no Mênon, é que, na medida em que possuem opinião correta, se é que, a seu ver, realmente a possuem, eles adquiriram, de algum modo, certo grau de percepção. Na medida em que fossem capazes de comunicar essa percepção estariam, por consequência, desempenhando uma função de valor para a comunidade.” [Osório diz: as voltas de Platão]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 233-234).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.38 – Péricles e suas relações com Sofistas e outros intelectuais.
Kerferd ensina:
“Os sofistas, então, supriam uma necessidade social e política. Mas além disso eles deviam muito ao patronato individual e, acima de tudo, ao patronato de um homem, Péricles. Isso é algo que talvez não tenha sido sempre reconhecido, tanto quanto deveria, nos relatos sobre o movimento sofista [Osório diz: eu, particularmente, sempre o reconheci!]. A falta de dados torna difícil para nós formar qualquer juízo claro e confiável sobre a personalidade de Péricles. Mas seu intelectualismo não se discute. Seus associados mais próximos e, ao que parece, seus únicos amigos pessoais eram artistas, intelectuais e filósofos. Um dos sofistas, o ateniense Damon, amigo de Sócrates e fiel companheiro de Pródicos, foi mencionado como seu "instrutor e mestre em política", e Isócrates disse de Damon que ele era considerado o homem mais sábio de seu tempo. Subsequentemente ele ganhou suficiente importância política para ser expulso de Atenas, por dez anos, pelo processo do ostracismo [Osório diz: a entourage de Péricles].
De importância ainda maior foi Anaxágoras. Segundo Plutarco, esse era o homem que Péricles admirava até ao exagero. Adquiriu com ele a sua gravidade de pensamento e de aparência e, mais ainda, seu racionalismo científico e a rejeição da superstição. Isso era ilustrado pela história segundo a qual Péricles fora capaz de explicar o eclipse do sol, em 431 a.C., e acalmar os que estavam assustados, explicando os movimentos do sol e da lua e ilustrando o que dizia com a sua capa, levantando-a, aparentemente para esconder seu próprio rosto. Mais importante, contudo, do que essa história é o testemunho de que tentava basear todas as suas ações em decisão racional e cálculo judicioso (Gnomé) de preferência a emoções (Orgé), esperança ou acaso. [Osório diz: Péricles e Anaxágoras].
Além de Anaxágoras, havia outros intelectuais intimamente associados a Péricles (cf. [Platão] Alcib. I 118c). Protágoras era certamente um deles. Ele elogiava Péricles por sua atitude filosófica depois da morte de seus dois filhos ilegítimos na praga de 429 a.C. (DK 80B9). Muito antes, ele tinha sido claramente escolhido, por Péricles, para escrever as leis para a nova cidade de Turói, uma importante fundação na Itália meridional, no ano 444/443 a.C. O traçado das suas ruas fora encomendado a Hipódamo de Mileto, teórico político e planejador urbanista que foi também responsável pela configuração das ruas do porto de Atenas, em Pireus. É-nos dito, ainda, que Protágoras passou, certa vez, um dia inteiro conversando com Péricles sobre a questão de quem ou o que deveria ser corretamente acusado por uma morte acidental ocorrida durante a celebração de um festival atlético — a arma (um dardo), o homem que o lançou ou os organizadores dos jogos. [Osório diz: Péricles e Protágoras].
Uma outra tradição preservada por Plutarco (Per. 4,3), mas provavelmente conhecida também por Platão (DK 29A4), conta que Péricles ouvia as conferências de Zenão, o Eleático. Outros do seu círculo eram Heródoto, o historiador, Fídias, o escultor, e Sófocles, o tragediógrafo. [Osório diz: a entourage de Péricles].
A provável influência do pensamento sofista em Péricles não passou, de fato, despercebida. Mas a importância dele na promoção do movimento sofista não era, claramente, menos importante. Não foi por acaso que sofistas de todo canto do mundo grego vieram para Atenas. Isso foi devido, em parte, à própria Atenas. Primeiro, porque a cidade oferecia excelentes oportunidades para um sofista ganhar muito dinheiro e, segundo, em nível mais elevado, porque, sob muitos aspectos, ela estava em processo de se tornar um verdadeiro centro intelectual e artístico para toda a Grécia. Mas o patronato individual era também importante. Protágoras, o diálogo de Platão, abre com um brilhante cenário na casa de Cálias, em Atenas. A cena dramática é colocada exatamente antes do começo da Guerra do Peloponeso. Hospedados na casa de Cálias estão Hípias e Pródicos, aos quais se reunira, recentemente, Protágoras, que chegara do exterior dois dias antes. Estão presentes, também, muitos dos seus seguidores e discípulos reunidos para ouvir seus discursos. Esse Cálias pertencia a uma das famílias mais ricas de Atenas e, segundo Platão, na Apologia (20a4-5), gastou mais dinheiro com os sofistas do que foi gasto por todos os outros juntos. Não pode ser insignificante o fato de sua mãe ter sido a primeira mulher de Péricles, antes de se casar com o pai de Cálias, Hípônico. Além disso, Cálias não era o único patrono particular dos sofistas — ficamos sabendo, por Platão, que Górgias es- [38] tava hospedado e preparado para fazer uma palestra na casa de Cálicles (Górgias, 447b7-8), e especulações posteriores sugeriram que Protágoras fez a leitura de sua obra Sobre os deuses ou na casa de Eurípides ou na casa de um certo Megaclides (Diógenes Laércio IX, 54). [Osório diz: quem foi Cálias / Protágoras leu sua obra – escrita].
Embora fosse esse, claramente, um importante patronato particular, dificilmente teria a mesma importância que o de Péricles. Não sabemos se ele teve, alguma vez, sofistas hospedados em sua casa, mas há menção de conversas com sofistas em sua casa, aparentemente em inúmeras ocasiões (Plut. Per. 36.2). Mas já vimos o seu grande interesse pessoal por eles. Considerando-se a sua posição, é razoável supor que a importância desse interesse tenha sido considerável. A profissão de sofista, em Atenas, não era isenta de perigo. O ponto de partida, aqui, são as palavras que Platão põe na boca de Protágoras:
Quando um homem, que é um estrangeiro, vai para grandes cidades e lá persuade os melhores jovens a abandonar suas associações com outros, sejam parentes ou estranhos, mais velhos ou mais jovens do que eles, para se associarem consigo, movidos pela ideia de que se tornarão melhores mediante a sua associação com ele, um homem que assim procede precisa estar vigilante. Pois grandes são os ciúmes que surgem junto com outros ressentimentos e ataques contra ele [Osório diz: isso parece até uma confissão, no contexto!]. Ora, eu declaro que a arte sofista é muito antiga, mas os que a praticavam nos tempos antigos [Osório diz: já!? A antiguidade da Sofística! É que ela nasceu com o homem: falar é sofismar!], receando o ódio que despertava, construíam um escudo e máscara para si mesmos; alguns deles poesia, como no caso de Homero, Hesíodo e Simônides; alguns, ritos religiosos e profecias, como fizeram Orfeu, Museus e seus seguidores, alguns, tenho observado, também o atletismo, como aconteceu com Icos de Tarento e um outro ainda vivo, Heródico de Selimbria, originalmente de Mégara, tão sofista como qualquer outro; e música foi disfarce adotado por vosso próprio Agátocles, um grande sofista, e Pitocleides de Ceos e muitos outros. Todos esses, como digo, receando a má vontade contra eles, usaram essas artes como anteparos (Prot. 316c5-e5). [Osório diz: rol interessante de sofistas anteriores ao século V! Muito estranha essa não condenação, o que leva a crer até em uma possível distorção dos escritos platônicos]
(...)
Sem dúvida, os que atacavam os filósofos, em Atenas, estavam atacando Péricles. Isso é simplesmente prova do íntimo envolvimento e da patronagem de Péricles em relação ao movimento sofista. Mas os indícios são realmente fortes de que houve toda uma série de processos contra filósofos e outros em Atenas, na segunda metade do século V a.C., geralmente sob a acusação de Asebeia ou impiedade. Isto é preservado não por uma fonte, mas por várias. Entre as vítimas se incluía a maioria dos líderes do pensamento progressista em Atenas: Anaxágoras, Diágoras, Sócrates, Aspásia, Protágoras e Eurípides, embora no seu caso pareça que a denúncia não foi bem-sucedida. De Protágoras se disse que foi exilado de Atenas e seus livros foram queimados (DK 80Ale3); parece não haver dúvida de que Anaxágoras foi exilado, embora a data seja incerta. Fídias, depois de condenado por apropriação indébita, ou morreu na prisão ou foi exilado. Damon, como vimos, sofreu o ostracismo. É difícil acreditar que tudo isso foi simplesmente inventado, a despeito da incerteza sobre alguns detalhes. [Osório diz: perseguição aos intelectuais em Atenas. Mais uma vez Sócrates não difere dos demais sofistas! Sócrates, no entanto, parece que não é do agrado de Péricles! Se o fosse, talvez Platão tivesse dito ou o destacou dos demais, justamente para fazer o contraponto, tentando dizer que ele era o melhor, daí não ter recebido atenção].
Em vista dos testemunhos acima não é de se duvidar da autenticidade da tradição segundo a qual alguns sentiam que seria prudente que o sofista ocultasse o fato de ser sofista. Encontramos isso não só na passagem do Protágoras de Platão citada anteriormente, mas também aplicado a Damon, na Vida de Péricles, de Plutarco; tratado como pilhéria por Sócrates, no seu próprio caso, em Teeteto 149a7 [Osório diz: nisso é pilhéria? No dos outros não?]; como um argumento sério na Apologia 33c4-34b5, e aplicado a outros, além de Protágoras, em Mênon 91e3-92a6. Se os sofistas poderiam ocasionalmente sentir-se inseguros em Atenas, certamente haveriam de ter recorrido ao apoio de Péricles. Consta que Péricles interveio diretamente para socorrer Anaxágoras e Aspásia. Não há por que duvidar de que sua influência estava disponível para socorrer outros também, e é provável que o apoio de Péricles fosse a secreta fonte de segurança em que se fiava Protágoras (Prot. 317B6-7). (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 36-40 e 41).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.37 – Mal e ignorância.
Kerferd ensina:
“Da insistência de Sócrates em dizer que virtude é conhecimento conclui-se que vício e mau procedimento só podem ser devidos à ignorância. Isto, por sua vez, leva à famosa afirmação socrática de que "ninguém peca deliberadamente", interpretada como significando que quem possui conhecimento do que é bom e do que é mau invariavelmente faz o que é bom. Para surpresa dos comentadores, descobrimos Protágoras, no diálogo que leva o seu nome, dando o seu assentimento a essa proposição exatamente (Prot. 352c8-d3). Entretanto, ambos, Protágoras e Sócrates estão bem conscientes de que essa não é a opinião comum. Como diz Sócrates (352d): "Você está consciente de que a maioria das pessoas não ouvirá nem a você, nem a mim; mas digamos que muitos, mesmo sabendo o que é melhor, não estão dispostos a fazê-lo, embora tenham poder de fazê-lo e, ao invés, fazem outras coisas. E sempre que lhes perguntei a razão disso, eles dizem que os que agem assim estão agindo sob a influência do prazer ou da dor, ou de algumas das coisas mencionadas agora mesmo" (a saber, impulsividade ou raiva [thumos], prazer, dor, desejo sexual e, frequentemente, medo). O resulta do é que consideram o conhecimento um escravo que é arrastado de um lado para outro por todo o resto (352b-c). (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 234-235).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.36 – O Corpus Hipocrático – identidade e ensinamentos.
Ensina Kerferd:
“Uma exposição completa do movimento sofista no século V a.C. exigiria que se considerassem os elementos sofistas na coleção de escritos médicos atribuídos a Hipócrates. Essa é uma vasta área de estudo na qual ainda resta muito a ser feito, e somente muito pouco será dito aqui. Muitos dos tratados no Corpus mostram poucos sinais, ou nenhum sinal, de influências sofistas específicas. Esse, porém, certamente não é o caso de dois tratados, Sobre as artes e Sobre a respiração, que não parecem ter sido escritos por médicos. Têm mais o caráter de epideixeis ou demonstrações de argumentação sofista. Assim, Sobre as artes, no processo de defender a arte da medicina contra os que a atacam, começa com uma referência aos que fizeram uma arte de difamar as artes a fim dar uma demonstração (epideixis) da sua própria erudição. Lembrando, assim, aos leitores de Protágoras, o ataque de Protágoras à prática de Hípias, passa a defender a arte da medicina como possuindo uma existência independente, recorrendo às doutrinas sofistas a respeito da relação entre nomes e classes de coisas. Tentativas anteriores de atribuir a autoria a Protágoras ou a Hípias não são convincentes, mas é difícil negar-lhe lugar dentro do movimento sofista.
A obra Sobre a respiração argumenta que o ar, tão importante na natureza em geral, é também, na forma de respiração, o agente mais ativo em todas as doenças, enquanto todas as outras coisas são causas secundárias e subordinadas. Diferente é a posição do tratado Sobre a medicina antiga, que sustenta que as artes são invenções humanas desenvolvidas no decorrer de um longo período de tempo. E prossegue (no capítulo 20) atacando certos médicos e sofistas que afirmam que, a fim de entender de medicina, é necessário saber o que é o homem [Osório diz: esse é o mesmo argumento que uso para dizer que Sócrates estuvada sim astronomia, como diz Aristófanes]. Em resposta, argumenta-se que questões tais como a natureza do homem pertencem às especulações da filosofia física, não fazem parte da medicina e não a auxiliam em nada. O que é necessário é o estudo detalhado das doenças individuais e dos históricos de caso individuais.” (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 100-101).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.35 – Epideixis – significado.
Kerferd ensina:
“Epideixis – significado – Exposição ou demonstração ou preleção pública. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 52).
Logôn agônas - segundo Diógenes Laércio IX, 52 (DK 80A1), Protágoras tinha sido o primeiro a introduzir "debates de argumentos" (logôn agônas), e isso constituiu um dos pontos de partida para a elaborada teoria proposta por Gilbert Ryle, que merece ser mencionada. Segundo Ryle, elas constituíam o que ele chamava de "assembleias erísticas", ou debates públicos entre oradores concorrentes.(...) O que a frase agón logôn significa é apenas o tipo de conflito entre argumentos encontrados em todos os casos de antilógica, escritos ou não, em público ou em particular. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 53-54).
Dicionário:
Impiedade (asebeia) (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 280).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.34 – Heráclito e a imobilidade, precursor de Platão!
Kerferd ensina:
“Heráclito de Éfeso, talvez por volta de 500 a.C., depois de censurar a insensatez e a cegueira da maioria dos homens, que os levavam a viver como se tivessem, cada um, a sua própria compreensão particular, argumentava que todas as leis humanas são alimentadas por uma lei divina, e que era a esta que eles deveriam obedecer (combinando DK 22B2 com 114, conforme Marcovitch, Heraclitus Mérida, 1967, fr. 23).
Ao apelar das leis ordinárias para uma realidade superior, Heráclito estava apelando daquilo que varia e é sujeito a mudança e a impugnação, para o que era permanente, imutável e não sujeito a impugnação. Estava, de fato, procurando alguma coisa da qual derivar as leis humanas e, no processo, justificar algumas delas, enquanto rejeitava outras como não estando de acordo com a lei superior. Por implicação, estava também provendo um critério ou padrão à luz do qual as leis ordinárias pudessem ser corrigidas ou melhoradas. Historicamente foi isso que aconteceu, quer Heráclito compreendesse ou não que era isso que estava fazendo [Osório diz: dessa ideia surgiu “o mundo das ideias de Platão”! Originalidade!]. Tudo isso foi bem entendido por Aristóteles, que escreveu na Retórica (137b4-ll):
Há dois tipos de lei, a particular e a comum. Por leis particulares quero indicar aquelas determinadas por cada povo em relação a si mesmo; e essas, de novo, são divididas em escritas e não-escritas; por leis que são comuns refiro-me às que estão de acordo com a natureza. Pois, de fato, há uma ideia comum do que seja justo e injusto de acordo com a natureza, que todos os homens adivinham até um certo ponto, mesmo que não haja nem partilha nem acordo entre eles. É isso o que Antígona, em Sófocles, evidentemente quer dizer quando declara que é justo, embora proibido, enterrar Polínice: que é naturalmente justo.
Na realidade, em Antígona, a natureza não é mencionada como um critério de justiça — Antígona apela é para as nomina divinas contrastadas com as leis determinadas entre os homens; é Aristóteles que, aqui, iguala a lei comum, universal, ao que é justo por natureza.” (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 192-193).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.33 – Gregos versus bárbaros.
Kerferd ensina:
“Muito mais indefinida era a crítica da instituição da escravidão. Na verdade, é de se duvidar que alguém, no século V, tenha ido mais longe do que sugerir que muitos dos escravos existentes o eram apenas por acidente das circunstâncias. Embora Aristóteles aceitasse isso, sua conclusão era que, em um mundo ideal, a escravidão estaria confinada aos "escravos naturais" e todos aqueles que não eram escravos por natureza seriam libertos. Não chegou até nós nenhum texto do século V que de fato condenasse toda escravidão como tal. Que toda escravidão é contrária à natureza pode ser uma consequência da oposição desenvolvida por Antífon entre nomos e physis, mas não temos nenhum registro de que ele a tenha tirado, e não é suficiente argumentar que ele condenou então a escravidão porque "deve ter feito isso". A essa consequência finalmente se chegou e Aristóteles sabia disso quando escreveu Política I, 3.4. Há muitos que gostariam imensamente de poder atribuir essa visão ao século V. Mas, na verdade, a primeira pessoa de que se tem notícia que a defendeu é Alcidamas, um discípulo de Górgias que, no seu Discurso Messeniano, disse: "Deus deixou todos os homens livres, a Natureza não fez ninguém escravo". Mas a data do Discurso pode bem ser 362 a.C., ou mais tardia, e é só com os estóicos que encontramos toda a fundamentação teórica para a doutrina segundo a qual nenhum homem é escravo por natureza. [Osório diz: os sofistas e a escravidão! Vejam de quem Alcidamas era aluno! Se Platão e Aristóteles a defendiam, é por que alguém a condenava! Não se defende aquilo contra o que não existe acusação/oposição! Alcidamas nasceu onde?]
Estamos apenas um pouco melhor situados quanto ao testemunho relativo a gregos e bárbaros. De modo geral, os gregos tinham um forte senso de sua superioridade em relação aos outros homens. Segundo Hermipo, tal como citado por Diógenes Laércio (I, 33), havia alguns que costumavam dizer que Sócrates tinha o hábito de declarar que havia três coisas pelas quais devia agradecer a Fortuna: primeiro, por ter nascido ser humano e não um animal; segundo, por ter nascido homem e não mulher; e terceiro, por ter nascido grego e não bárbaro. O próprio Hermipo supunha que a história realmente se referisse a Tales de Mileto. De qualquer forma, ela corretamente incorporava a tradicional opinião grega sobre bárbaros e mulheres.
Ao discutir primeiro a comparação entre gregos e bárbaros, será conveniente começar com a posição adotada por Platão na República. Ele distingue entre os dois de maneira bem fundamental. O relacionamento natural entre grego e grego é o de parentesco e origem comum. Portanto são, por natureza, amigos. Quando lutam um contra o outro, isso significa que a Grécia está doente e dilacerada por guerra civil [Osório diz: sempre que se fala em guerra civil no século V deve-se entender a guerra do Peloponeso? As guerras que vieram após a derrota de Atenas?]. Portanto deve-se impor limites rigorosos acerca de que coisas podem ser feitas quando estão lutando entre si. De modo particular, é totalmente errado que Estados gregos vendam gregos como escravos. Totalmente ao contrário é o caso de gregos em luta com bárbaros. Pois gregos e bárbaros são inimigos por natureza. Quando lutam, estão envolvidos em guerra, e é adequado, então, que os gregos tratem os bárbaros como os gregos agora (erradamente) tratam outros gregos (Rep. 469b-471c). Daí fica claro que Platão aceita e aprova a instituição da escravidão mesmo no seu Estado ideal [Osório diz: Platão e a escravidão]. A razão disso é a sua crença de que os bárbaros são, por natureza, inferiores aos gregos, os únicos que, por sua inteligência e amor do saber, estão habilitados a ser senhores. Aristóteles está apenas acompanhando Platão quando, na Política (1252b7-9), cita com aprovação a opinião dos poetas segundo a qual está certo que os bárbaros sejam governados pelos gregos, porque os bárbaros são escravos por natureza [Osório diz: Aristóteles e a escravidão].
Os pontos essenciais da posição platônica parecem ter sido antecipados por Górgias (DK 82B5b), que, nos seus esforços para unir os gregos e dirigir suas energias contra os bárbaros, declarou que as vitórias sobre os bárbaros exigiam hinos de louvor, ao passo que as vitórias sobre os gregos exigiam lamentos. Opinião diferente teria sido defendida por Hípias, no Protágoras (337c-d), quando declara aos presentes que os considera como "parentes da mesma classe e como concidadãos por natureza, embora não por nomos. Pois o semelhante é aparentado ao semelhante por natureza, ao passo que a lei, que é tirana sobre os seres humanos, frequentemente impõe repressões que são contrárias à natureza". Todos "os presentes" eram, de fato, gregos [Osório diz: porém estrangeiros em Atenas!], de modo que é possível que ele não queira dizer nada além do que Platão tinha dito na República, a saber, que os gregos constituem uma família e afins. As necessidades do contexto no qual Hípias está falando estariam de fato satisfeitas se ele estivesse afirmando nada além de que há uma afinidade natural entre homens sábios onde quer que se encontrem, gregos ou bárbaros, ou talvez meramente onde quer que se encontrem entre os gregos. Mas a universalidade da segunda sentença citada acima, segundo a qual por natureza o semelhante é aparentado ao semelhante, sugere que provavelmente ele queria ir além e defender o parentesco universal de todos os seres humanos que participam de qualquer semelhança específica, por exemplo todas as crianças, todas as mulheres, todos os sábios ou todos os mendigos, e assim por diante.
Uma declaração mais explícita, ainda que infelizmente difícil de interpretar de maneira exata, encontra-se no fragmento de papiro de Antífon (DK 87B44, II, pp. 352-3), cuja primeira sentença já foi citada em conexão com a questão do respeito que advém aos homens de nascimento superior.
Respeitamos e admiramos os filhos de pais ilustres, mas os que vêm de lares não-ilustres, não respeitamos nem admiramos. Nisso nos barbarizamos em relação uns aos outros. Pois somos todos, por natureza, da mesma maneira plenamente adaptados para ser bárbaros ou helenos. Isso se pode ver pelas coisas que são, por natureza, necessárias a todos os seres humanos. Elas estão abertas para todos para serem obtidas da mesma maneira, e em todas elas nenhum de nós é distinguido como bárbaro ou grego. Pois todos nós respiramos o ar com nossas bocas e narizes, e todos comemos com nossas mãos. [Osório diz: sofistas contra a escravidão].
Aqui há incertezas a respeito de algumas das reais palavras do texto grego traduzidas nas duas últimas sentenças. Mas não há dúvida quanto ao sentido geral da passagem. O que ele está dizendo é que não há diferença fundamental, fixada pela natureza, entre gregos e bárbaros, ou entre bem-nascidos e mal-nascidos. Menos clara é a sequência do argumento e a conclusão particular que Antífon deseja alcançar. Na tradução usualmente adotada para a terceira sentença da passagem acima, no lugar das palavras em itálico temos alguma coisa como: "Pois por natureza somos feitos para ser iguais sob todos aspectos, tanto os bárbaros quanto os gregos". Aí temos, então, uma sequência lógica muito estranha, como observa Guthrie, a saber: "Damos muita atenção a nascimento nobre, mas isso é se comportar como os bárbaros, pois na realidade não há diferença entre bárbaros e gregos" [Osório diz: será que ele não queria dizer que os bárbaros dão especial importância ao nascimento nobre, e que os helenos não deveriam segui-los, quanto a isso? Em seguida afirma que não há diferença entre eles, logo, todos são iguais, não quanto a costumes (nascimentos nobres), mas quanto a natureza “humana”]. Isso simplesmente não tem sentido, nem é uma tradução acurada. O que é preciso, diz Guthrie, é voltar à tradução usada pelos primeiros editores do papiro, Grenfell e Hunt, que é a das palavras acima em itálico: Pois somos todos, por natureza, da mesma maneira plenamente adaptados para ser bárbaros ou helenos [Osório diz: não é Heródoto que nos conta a história de um rei que mandou uma criança ir viver entre outro povo que não aquele onde nascera e lá passou a falar a língua onde foi criada, que era diversa da do seu lugar de nascimento?]. Com esta tradução, muda-se a interpretação global da sequência do argumento, e a não-compreensão disso é, sem dúvida, a razão pela qual esta tradução foi substituída por outra menos acurada e menos plausível.
Creio que uma chave para a correta interpretação pode ser encontrada em uma passagem do tratado de Hipócrates Sobre ares, águas e lugares, cap. 12. O tratado como um todo diz respeito aos efeitos das diferenças de clima e meio ambiente sobre a saúde e o caráter. No capítulo 12, a comparação é entre a Ásia Menor e a Europa (isto é, a Grécia), e é dito que as condições na Ásia Menor são tais que coragem, indústria e o impulso para a ação não poderiam manifestar-se lá, seja entre os nativos, seja entre os imigrantes. Lá, o prazer reina de modo absoluto. O contraste é claramente com os gregos, que vivem no continente e que de fato possuem essas qualidades. Mas, se eles emigram para a Ásia Menor, tornam-se como os nativos lídios asiáticos, que os atenienses consideravam incapazes e voluptuosos em comparação consigo mesmos.
Tomando-se por base esse texto, que pertence ao século V, é possível sugerir a seguinte interpretação do que Antífon está dizendo. Fisicamente, e por natureza, não há diferença entre os seres humanos — nossas necessidades e nosso equipamento são os mesmos em todos os casos. Mas somos capazes de nos desenvolver de diferentes maneiras devido a influências subsequentes — podemos, então, ser ou gregos ou bárbaros, ou inteligentes e civilizados, ou amantes do prazer e estúpidos. Ao admirar estupidamente os filhos de pais nobres e classificá-los acima dos que se originam de famílias humildes, nós nos comportamos à maneira [Osório diz: que atribuímos aos] dos bárbaros, como se nós mesmos tivéssemos nos tornado [Osório diz: o que condenamos nos] bárbaros e perdido a inteligência apropriada [Osório diz: que atribuímos] a nós, os gregos. Isso resolve o problema da sequência do pensamento na passagem e tem a vantagem de nos autorizar a manter a tradução mais acurada da sentença em itálico. Devido à falta do resto da passagem no papiro, não se pode, naturalmente, afirmar que esta interpretação esteja absolutamente certa. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 265-270).