Górgias Fragmentos

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Górgias de Leontinhos.

 GÓRGIAS

 

Górgias, filho de Carmântides.

Nasceu em Leontinos, colônia da cidade jônica Cálcis na Sicília, por volta de 490-485 a.C., e os testemunhos provam de forma unânime que viveu até uma idade avançada, tendo morrido com mais de 100 anos. São vários os fatores que explicam essa longevidade. Além de se ter mantido solteiro, sem encargos familiares e concomitantes preocupações.

Deu origem ao verbo “gorgianizar”.

Soube mobilizar a verosimilhança (eikos) e o sentido da oportunidade (kairos).

Terá sido primordialmente um retórico que se serve da filosofia ou um filósofo que se serve da retórica?

A sua apresentação como um orador que confinou a sua atividade ao domínio da arte retórica, demiúrgica, da persuasão, desvinculando-se de qualquer pretensão relativa ao ensino da arete, baseia-se sobretudo nas posições que Platão lhe atribui, nos diálogos Górgias e Ménon.

A discussão alargada da influência da retórica nas suas obras prende-se com a avaliação da índole filosófica das teses aí sustentadas e da seriedade da respectiva argumentação. Ora, a tendência que prevalece na hermenêutica atual vai no sentido de reconhecer o interesse filosófico dos tratados e dos discursos, estabelecendo uma aproximação entre as diferentes classes de textos que permite integrá-los numa mesma doutrina coerente, em que pontos de vista aparentemente díspares se tornam compatíveis. Assim, o Tratado do Não Ente, embora seja fulcral para o estudo do pensamento de Górgias, no que respeita aos conteúdos, é também muito elucidativo no plano formal da argumentação. E os discursos que exemplificam a arte retórica, nomeadamente o Elogio de Helena e a Defesa de Palamedes, não são destituídos de problemática especulativa e dão-nos importantes contributos para a reconstituição da filosofia de Górgias.

Nas questões que aborda, há três áreas de saber, que correspondem aos seguintes núcleos temáticos: retórica, física e psicologia, questões relativas ao conhecimento e à ontologia. Segundo a hipótese hermenêutica de H. Diels, a atenção dada por Górgias a estes assuntos sofreu uma evolução. Numa primeira fase predominou a reflexão sobre a natureza em geral e sobre a natureza da mente, e foi marcante a influência de Empédocles. Na fase seguinte implementou-se a erística e a dúvida em relação ao alcance do conhecimento e da linguagem, no âmbito da discussão das teses eleatas. Por fim, assiste-se à valorização da retórica, como um eficaz instrumento de poder, em que o orador se apropria de elementos já existentes.

Pondo de lado os artificialismos inerentes a uma esquematização rígida das posições gorgianas e partindo das fontes disponíveis, tentaremos fazer o levantamento sucinto de aspectos da filosofia de Górgias que são hoje objeto de relativo consenso. Em primeiro lugar, importa levar a cabo uma leitura da sua filosofia, que tenha na devida conta a importância da retórica no plano global posições teóricas e práticas. Em segundo lugar, não deverá ser descurada a íntima relação entre os diversos escritos gorgianos, mais precisamente entre o Tratado do Não Ente e os discursos que surgem como “modelos” aparentes da arte de bem falar, ao serviço da práxis docente. Assim, nem o referido tratado nem os discursos devem ser encarados como “jogos” em que predomina o exercício formal da argumentação, mas devem ser analisados no plano dos conceitos e das doutrinas em que estes ganham sentido.

É no seu Tratado do Não Ente, que Górgias expõe suas inquietantes três teses, que são, resumidamente:

I) nada existe;

II) se algo existe, não pode ser conhecido;

III) se algo pode ser conhecido, não é transmissível aos outros.

O fundamento básico de Górgias para tanto é o seguinte: “Mesmo que se admitisse que algo existe e fosse cognoscível, não poderia ser comunicado a outrem, pois as palavras não são as coisas, e, pela linguagem, apenas se transmitem imagens sonoras, inaptas a veicular realidades que lhe são estranhas e relevam de outros campos sensoriais heterogêneos. As conclusões susceptíveis de serem extraídas desta argumentação, aparentemente negativa, apontam para a impossibilidade de a linguagem ser instrumento adequado na transmissão de conteúdos cognoscitivos, sobressaindo as limitações do logos, quanto à expressão das realidades consideradas em si mesmas, e a respectiva incapacidade como instrumento de dizer o ser. Esta reflexão abre à reapreciação da vocação específica da linguagem no plano intersubjetivo da comunicação, na medida em que as palavras criam realidades que nascem do próprio discurso e, por estas mesmas palavras, se exerce o poder de agir sobre os estados de espírito dos interlocutores, modificar as suas opiniões e os seus afetos, produzindo efeitos que são relacionados com o logos como “poderoso tirano”, tal como é descrito no famoso § 8 do Elogio de Helena. A mesma doutrina suporta a estrutura argumentativa da Defesa de Palamedes: os juízes, que não presenciaram o crime e não dispõem de testemunhas diretas dos fatos ocorridos, ficam limitados às palavras ouvidas, e as palavras não são as realidades. É num mundo de discursos, feito de palavras, que os mesmos juízes são chamados a decidir, e aquilo com que se deparam é a maior ou menor força persuasiva dos argumentos proferidos pelas partes contrárias. Num e noutro contexto, é primordial a importância do domínio da arte retórica, em todos os campos em que se desenrola o jogo da vida social dos indivíduos.

Diz Filóstrato, Vidas dos Sofistas, 1,9, 1-6., que “Górgias foi o introdutor para os sofistas do ímpeto oratório, expressando-se com amor pelo paradoxo, tom inspirado, com um estilo grandiloquente para as coisas grandiosas, frases destacadas e começos improvisados, tudo coisas que tornam o discurso mais harmonioso e mais solene. Que ele improvisava muito facilmente foi mencionado por mim no começo desta obra: não é de modo algum de espantar que, sendo já ancião, na altura das suas discussões em Atenas, suscitasse a admiração de muitos.

Górgias teve contatos diversificados com os meios cultos da época. No entanto, quando visitou Atenas em 427, Péricles já tinha morrido (429). Foi influenciado, na sua formação, pelos filósofos da natureza, pelos pitagóricos, em especial por Empédocles, e teve como discípulos e seguidores, figuras ilustres como Alcidamante, Isócrates, Licínio, Licofronte, Ménon, Pólo, Protarco, Proxeno, entre outros. Veja-se Hellmut Flashar, ed., Die Philosophie der Antike; 2/1, cit., pp. 51-53.

Com efeito, incitando os Atenienses contra os Medos e os Persas e defendendo o mesmo pensamento no Discurso Olímpico, não desenvolveu nenhuma ideia de concórdia entre os Gregos, visto que estava perante os Atenienses, desejosos de um poder que não podiam alcançar, a menos que tomassem medidas de violência. São mais precisamente os meios correspondentes à atividade eficaz (to drasthrion), envolvendo o recurso à força. O passo ilustra a versatilidade gorgiana patente na formulação de diferentes discursos, segundo as circunstâncias: enquanto aconselhava os Gregos a não lutarem entre si, dirigindo antes a sua agressividade contra os bárbaros, não fazia diante dos Atenienses a apologia do ideal de concórdia, pois sabia bem que a renúncia aos expedientes enérgicos, baseados no uso do poder, era incompatível com o desejo de supremacia que os animava.

A intuição do kairos, enquanto captação qualitativa da ocasião propícia ou do que é conveniente fazer ou não fazer, aqui e agora, numa determinada situação, não é um saber redutível a regras e susceptível de ser ensinado.

Foi o primeiro a dar poder expressivo e elaboração técnica ao aspecto retórico da cultura. Utilizou tropos, alegorias, hipálages, catacreses, hipérbatos, anadiploses, epanalepses, apóstrofes e párisos.

Cobrou cem minas a cada um dos discípulos.

Viveu cento e nove anos e compôs muitas obras. Os diversos testemunhos convergem em imputar-lhe uma vida longa e uma produção literária abundante, assim como atestam o montante elevado dos seus honorários, indício dos seus reconhecidos méritos e do sucesso obtido junto dos coetâneos [cotemporâneos].

Pausânias, 6, 17,7 e segs., informa que Górgias teria sido “o primeiro a recuperar a arte dos discursos, então completamente desprezada e prestes a cair no esquecimento dos homens.”

O Epigrama, 875 a, p. 534 Kaibel, datado de começos do século IV, foi encontrado em 1876, em Olímpia, diz:

 

b. Para exercitar a alma em combates de excelência

nenhum mortal descobriu, antes, melhor arte do que Górgias.

A sua estátua ergue-se no vale de Apolo,

não como exemplo de riqueza,

mas como exemplo da piedade do seu caráter.

 

Platão, na Apologia, 19 e., põe na boca do seu “Sócrates: — Isso parece-me belo que alguém seja capaz de educar homens como Górgias de Leontinos, Pródico de Céos e Hípias de Élis.”

Segundo Ateneu, 12, 548 c-d., tendo sido perguntado a Górgias “qual era causa de ter vivido mais de cem anos, disse:

 

“Nada ter feito em sacrifício de outrem [?].”

 

Quintiliano, 3, l, 8 e segs., informa que “Os escritores mais antigos de tratados de oratória foram Córax e Tísias da Sicília, a quem sucedeu um homem desta mesma ilha, Górgias de Leontino.

Diz Eliano, em Histórias Variadas, 2, 35., que “Górgias de Leontinos, no fim da vida e já com uma idade avançada, deitou-se e entregou-se pouco a pouco ao sono. Quando um dos seus familiares se aproximou para o ver e lhe perguntou o que fazia, Górgias respondeu:

 

“O sono começa já a entregar-me à sua irmã!”

 

Ainda Ateneu, 11, 505 d., é que nos conta “que Górgias, tendo lido o diálogo seu homônimo, disse aos amigos:

 

“Que bem [sic bom] que Platão sabe satirizar!”

 

Platão, no Górgias, 456 b., faz seu personagem dizer:

 

“Górgias: — Várias vezes, eu estive com o meu irmão e com outros médicos, junto de um doente que não queria tomar o remédio nem permitia que o médico cortasse ou cauterizasse; e, quando o médico não o conseguia persuadir, persuadia-o eu sem outra arte para além da retórica.”

 

Como é a conclusão de Górgias à sua afirmativa (tese) de que nada existe? É a seguinte:

 

“se, na verdade, algo existe, certamente ou existe o ente ou o não o não ente ou tanto existe o ente como o não ente. Ora nem o ente existe, como estabelecerá, nem o não ente, como explicará, nem o ente e não ente, como também ensinará. Não existe, portanto, coisa alguma. Na verdade, o não ente não existe; se, com efeito, o não ente existe, existirá e, ao mesmo tempo, não existirá. Enquanto é concebido como não ente, não existirá, mas, enquanto existe como não ente, existirá de novo. Mas é absurdo, em absoluto, algo existir e não existir ao mesmo tempo. Portanto, o não ente não existe. E, dito de outra maneira, se o não ente existe, o ente não existirá. Com efeito, estes são contrários entre si, e, se a existência foi atribuída ao não ente, ao ente será atribuída a não existência. Mas não é certo que o ente não existe e, [por conseguinte], nem o não ente existirá. (68) Também o ente não existe. Com efeito, se o entre existe, decerto é eterno ou gerado ou, simultaneamente eternoe gerado. Ora não é eterno, nem gerado nem ambas as coisas, como mostraremos. Por conseguinte, o ente não existe. De fato, se ente é eterno (deve começar-se a partir daqui) não tem qualquer começo. (69) Tudo aquilo que nasce tem um começo, mas o que não nasce, sendo eterno, não tem começo. Por outro lado, o que não tem começo é ilimitado. Ora, se é ilimitado, não está em nenhum lugar. Com efeito, se estiver nalgum lugar, é diferente de si mesmo naquele lugar em que está; e, assim, já não será ilimitado o ente que está contido num outro. O continente é maior do que o conteúdo; mas nada é maior do que o ilimitado, de modo que o ilimitado não existe em parte alguma. (70) Também não existe nada contido em si mesmo. Com efeito, o continente e o conteúdo serão a mesma coisa, e o ente desdobrar-se-á em dois, lugar e corpo (o continente é o lugar, o conteúdo, o corpo). Mas isto é absurdo. Assim, o ente não está contido em si mesmo. Deste modo, se o ente é eterno, é ilimitado, se é ilimitado, não está em lugar nenhum, se não está em lugar nenhum, não existe. Por conseguinte, se o ente é eterno, o ente não existe em absoluto. (71) E, por outro lado, não é possível que o ente seja gerado. Se foi gerado, certamente foi gerado ou a partir do ente ou do não ente. Se é ente, não foi gerado, mas já existe; nem foi gerado a partir do não ente, pois o não ente não pode gerar coisa alguma, porque aquele que gera algo deverá necessariamente partilhar da existência. Por conseguinte, não é possível que o ente seja gerado. (72) De forma análoga, não pode ser ambas as coisas: eterno e, simultaneamente gerado. Estas excluem-se entre si e, se o ente é eterno, não é gerado, e, se é gerado, não é eterno. Portanto, se o ente não é eterno, nem gerado nem uma coisa nem outra, o ente não pode existir. (73) E, além disso, se existe, certamente ou é uno ou múltiplo. Mas não é uno nem múltiplo, como será estabelecido adiante. Portanto, o ente não existe. Com efeito, se o uno existe, ou é uma quantidade ou algo contínuo ou uma grandeza ou um corpo. Mas, se for alguma destas coisas, não é uno, porque, se é uma quantidade, será dividido, se é contínuo, será cortado. Da mesma maneira, se for concebido como grandeza, não será indivisível. Se for corpo, terá uma tripla dimensão: comprimento, largura e profundidade. Ora é absurdo afirmar que o ente não é nenhuma destas coisas. Portanto, o ente não é uno. (74) Por outro lado, também não é múltiplo. Com efeito, se não é uno, não é múltiplo. Na verdade, a multiplicidade é a síntese das unidades singulares; por isso, sendo destruído o uno, será também destruída a multiplicidade. Assim, é claro a partir disto que não existe nem o ente nem o não ente. (75) Concluímos, pois, que não existem ambos, o ente e o não ente. Se é verdade que o não ente existe e o ente existe, o não ente será o mesmo que o ente quanto à existência. E, por isso, nenhum dos dois existe. Que o não ente não existe, é já aceite. Mas foi demonstrado que o ente é o mesmo que o não ente; por conseguinte, ele também não existirá. (76) Mas, se, por outro lado, o ente é o mesmo que o não ente, não podem existir ambos, pois, se um e outro existem, não são idênticos e, se são idênticos, não existem um e outro. Disto se conclui que nada existe. Se, de facto, nem o ente existe o não ente nem ambos e para lá destes nada existe susceptível de ser pensado, nada existe.

(Nem o ente nem o não ente existem nem existem em conjunto. Se “o não ser é” e “o ser é”, então identificam-se quanto ao ser; mas “o não ser não é”; portanto, se “o ser” se identifica com “o não ser”, ambos não são (não existem). Se o ser é idêntico ao não ser, não existem ambos; se existem ambos, não há identidade entre eles; se há identidade entre eles, não podem ser dois, mas sim um só; daqui se infere que, se não existe o ente, nem o não ente, nem ambos, a conclusão da primeira parte é a de que nada existe.).

(77) Deve demonstrar-se de seguida que, mesmo que algo exista, é incognoscível e inconcebível para o homem.

(Na segunda parte, Górgias demonstra que tanto se podem pensar realidades existentes como não existentes, pelo que é posto em causa o princípio da filosofia eleata, segundo o qual só se pode pensar e dizer o que é. Com efeito, “se pensamos coisas às quais atribuímos o predicado da brancura, à brancura deve ser atribuído o predicado da pensabilidade” (§ 77); de forma análoga, “se para os conteúdos de pensamento se deduzir o predicado da não existência, por necessidade lógica, deduzir-se-á para as coisas existentes a não pensabilidade (ibidem)”; daí que ele possa argumentar que “se se admitir que os conteúdos de pensamento são existentes, o que não existe não será pensado e, consequentemente, se o que existe for pensável, o que não existe será impensável (§ 80), baseando-se no princípio de que, se “para os contrários se deduz a predicação do contrário, o contrário daquilo que existe é o que não existe (ibidem). Górgias mostra que, no plano dos factos, se torna patente que pensamos coisas inexistentes, tais como “homens que voam e carros correndo sobre o mar”. Assim, não será admissível que a “pensabilidade” como tal seja simultaneamente imputável às realidades inexistentes e às existentes, pois o ponto crucial de todo o argumento assentaria na impossibilidade de atribuir o mesmo predicado a realidades contraditórias: veja-se, nesse sentido, H. D. Rankin, Sophists, Socratics and Cynics, London, Croom Helm, p. 42.).

Com efeito, diz Górgias, se as coisas pensadas são não existentes, o existente não é pensado, o que é lógico. Do mesmo modo que às coisas pensadas se atribuiu serem brancas, também se poderia ter atribuído às coisas brancas o serem pensadas; igualmente, se as coisas pensadas se atribuiu não serem existentes, necessariamente se atribuirá às coisas existentes não serem pensadas. (78) É por isso que é sensata e de salvaguardar a conclusão de que, “se as coisas pensadas são não existentes, o existente não é pensado”. Ora as coias pensadas (devemos partir daqui) são não existentes, como estabeleceremos; então o existente não é pensado. Também, [por outro lado], é evidente que as coisas pensadas são não existentes. (79) Com efeito, se as coisas pensadas são existentes, todas as coisas pensadas existem, independentemente da maneira como forem pensadas, o que é absurdo. [Se assim é, está errado]. Na verdade, se alguém pensar num homem a voar ou em carros a correrem sobre o mar, não é por isso que o homem voa ou os carros correm sobre o mar. De modo que as coisas pensadas são não existentes. (80) Além disso, se as coisas pensadas são não existentes, as coisas não existentes não serão pensadas. Com efeito, a realidades contrárias atribuem-se predicados contrários. Ora o não existente é contrário ao existente. E, por causa disso, não há dúvida de que, se ao existente se atribuiu o ser pensado, ao não existe atribuir-se-á o ser não pensado; ora isto é absurdo. De facto, também Sila e Quimera e muitas coisas não existentes são pensadas. Portanto, o existente não é pensado.

[PARÁFRASE DO TRATADO DO NÃO-SER* NO MXG (tradução de Aldo Dinucci)<![if !supportFootnotes]>[1]<![endif]>

 

Aldo Dinucci<![if !supportFootnotes]>[2]<![endif]>

 

(979a) Górgias diz que nada é. Se é, é incognoscível. Se tanto é quanto é cognoscível, não pode ser evidenciado aos demais. E conclui que não é ao reunir as coisas ditas por outros – isto é, todos os que, dizendo coisas contrárias acerca do-que-é, denunciam-se (como parece) uns aos outros [Osório diz: não ficou claro este trecho. Teria como deixar isso mais claro para leigos?]. (15) Alguns, ao dizerem que o ser é uno e não múltiplo. Outros, ao dizerem que é múltiplo e não uno. Alguns, ao dizerem que o ser não é gerado. Outros, ao dizerem que é gerado. [Osório diz: os sábios se contradizem! “Tudo veio da água”, Tales. “Tudo veio do fogo”, Heráclito. Quer coisa mais contraditória?]

Górgias raciocina segundo ambas as partes. Pois é necessário, diz ele, que, se algo é, não sendo nem uno nem múltiplo, nem não-gerado nem gerado, então nada é. (20) Pois se algo fosse, seria uma coisa ou outra.

Após sua primeira e original demonstração, na qual diz que não há ser nem não-ser, Górgias tentar mostrar, como Melisso e Zenão [Osório diz: que relação estes rapazes tinham com Parmênides? Eles o seguem ou o deturpam?], que o ser não é uno ou múltiplo, que não é não-gerado nem gerado [Osório diz: ficaria compreensivo assim: “não é gerado, nem não-gerado?].

(25) Com efeito, se o não-ser é não-ser, o-que-não-é seria tanto quanto o-que-é. Pois tanto o-que-não-é é o-que-não-é [Osório diz: o não-ser É O não-ser] quanto o-que-é é o-que-é, de modo que as coisas são e não são. Entretanto, se o não-ser é, o ser – a sua antítese – não é, diz ele. Pois se o não-ser é, cabe ao ser não ser. (30) De modo que, assim, diz Górgias, nada seria, a menos que ser e não-ser fossem o mesmo. Mas se são o mesmo, ainda assim nada seria, pois tanto o-que-não-é não é quanto o-que-é não é, já que justamente é o mesmo que o-que-não-é. Eis aí, pois, o argumento dele.

[...]<![if !supportFootnotes]>[3]<![endif]>

(979b20) Depois de seu argumento, Górgias diz que, se algo é, é ou não-gerado ou gerado. Admitindo as afirmações de Melisso, se é não-gerado, é infinito. Mas o infinito não pode ser em parte alguma, pois nem seria em si próprio nem em outro, já que haveria dois, tanto aquele-que-é-em [Osório diz: ... si “mesmo”?] quanto aquele-no-qual-é [Osório diz: no qual está contido?]. (25) E, de acordo com o argumento de Zenão acerca do espaço [Osório diz: o que diz Zenão?], o que é em parte [Osório diz: lugar? Ou seria o que não é em parte alguma?] alguma não é nada.

Com efeito, em razão do seguinte [o ser] não é não-gerado nem gerado [Osório diz: ficaria compreensivo assim: “ o ser não é gerado, nem não-gerado?]. Nada seria gerado a partir do-que-é nem a partir do-que-não-é. Pois se <fosse gerado a partir do-que-é, se transformaria [Osório diz: seria outro?], o que é impossível, já que><![if !supportFootnotes]>[4]<![endif]>, se o-que-é se transformasse, não mais seria o-que-é [Osório diz: pois seria outro?]. (30) Do mesmo modo, se o-que-não-é fosse gerado, não mais seria o-que-não-é [Osório diz: pois seria o ser]. Certamente nada poderia ser gerado a partir do-que<-não->é. Se, com efeito, o-que-não-é não é, nada pode ser gerado a partir do nada [Osório diz: o do nada não leva para o sentido existencial?]. Mas se o-que-não-é é [Osório diz: ... não-é?], tanto não é gerado a partir do-que-é, quanto não é gerado a partir do-que-não-é. Então se algo é, é necessário que seja não-gerado ou gerado. Mas isso é <impossível>. Logo, é impossível também que algo seja.

(35) E ainda, se algo é, é ou uno ou múltiplo, diz Górgias. Se não é uno nem múltiplo, nada seria. E – diz ele – <certamente uno não seria, porque o uno seria verdadeiramente incorpóreo [Osório diz: não teria corpo], na medida em que não possui nenhuma grandeza, o que é confirmado pelo argumento de Zenão [Osório diz: qual argumento?]>.<![if !supportFootnotes]>[5]<![endif]>

(980a1) Pois se o ser não é uno nem múltiplo, nada se moveria [Osório diz: “nada se moveria”? Confirmar]. Pois não seria movido por nada, ou não mais seria nem se manteria do mesmo modo; mas, por um lado, não seria e, por outro, o não ser seria gerado [Osório diz: confuso demais]. E ainda ou se move ou é movido, e se se modifica, não sendo contínuo, o ser torna-se dividido, e não é aí <onde é dividido>. De modo que, movendo-se todas as suas partes, em todas as suas partes seria dividido. (5) Mas se é assim, não é em parte alguma<![if !supportFootnotes]>[6]<![endif]>. Pois falta ser aí onde é dividido, diz Górgias, e chama isso de dividido ao invés de vazio, do mesmo modo que está dito nos escritos atribuídos a Leucipo.

Então se nada é, essas demonstrações o dizem por completo.

(10) Pois é preciso que as coisas pensadas sejam, e o-que-não-é, já que não é, não pode ser pensado. Mas se fosse assim, ninguém diria nada falso, diz Górgias, nem mesmo se dissesse que bigas combatem no mar, pois assim todas essas coisas seriam. Com efeito, as coisas vistas e as coisas ouvidas serão [Osório diz: existirão por estas simples observações] por isto: porque cada uma delas é pensada. (15) Mas se não é assim, como não vemos as coisas que são, do mesmo modo <não são> as coisas que vemos ou pensamos. Com efeito, mesmo que muitos as vissem e muitos também as pensassem, não seria evidente que tipo de coisas é verdadeiro, de modo que, se tais coisas também são, para nós serão incognoscíveis.

(20) Mas se são cognoscíveis [Osório diz: passíveis de conhecimento?], como, diz Górgias, poderia alguém evidenciá-las a outro? Pois, diz Górgias, como alguém poderia evidenciar, pela palavra [Osório diz: ... dizer para outros as coisas que vê?], as coisas que vê? Ou como poderia evidenciá-las (980b1) para alguém que as escute e não as veja? Pois do mesmo modo que a visão não conhece os sons, assim também a audição não ouve as cores, mas os sons. E aquele que fala não fala a cor nem a coisa. Então como poderia alguém que não tem determinada coisa na mente vir a tê-la por intermédio de outra pessoa através da palavra [Osório diz: de quem fala] ou do signo [Osório diz: de um signo que vê?], (5) que é diferente da coisa, a não ser que ou a veja se for uma cor ou a escute se for um som? Pois, primeiro, ninguém diz o som nem a cor, mas a palavra, de modo que não é possível pensar a cor, mas vê-la, bem como não se é capaz de pensar o som, mas ouvi-lo. Mas se é possível perceber<![if !supportFootnotes]>[7]<![endif]> e ler a palavra, como o que escuta terá na mente a mesma coisa? (10) Pois não é possível o mesmo [Osório diz: objeto ou coisa] estar simultaneamente em numerosas pessoas e ser um ente separado, pois um seria dois. Mas se, diz Górgias, fosse o mesmo em muitos, nada impede que não lhes pareça semelhante, não sendo neles semelhantes em cada lugar e em si mesmo [Osório diz: confuso]. Se algo fosse em tal lugar, não seria dois [Osório diz: cnfuso]. (15) Porém, um mesmo <ser humano> não parece perceber coisas semelhantes ao mesmo tempo, mas coisas diferentes pela audição e pela visão, e diferentemente tanto agora quanto antes, de modo que dificilmente alguém perceberia uma coisa idêntica a outra.

(20) Assim, [o ser] não é. Ninguém pode evidenciar [Osório diz: dizer, demonstrar] o que conhece a outro, pois tanto o não-ser é coisa dizível quanto porque ninguém conhece o mesmo que outro [Osório diz: ... conhece a respeito, aparentemente, da mesma coisa].

Todos, incluindo Górgias, consideram as aporias dos mais antigos, de modo que, na investigação acerca daqueles, também será preciso examinar a fundo os problemas destes.]

 

(Untersteiner (I Sofisti, l, cit, p. 241) adere à reconstituição do argumento feita por A. Levi (Storia delia Sofistica, Napoli, Morano Editore, 1966, pp. 221-222) nos seguintes termos:

 

“Casos indiscutíveis provam que nem tudo que é pensado existe, de modo que o facto de que uma coisa seja pensada não basta para provar a sua existência. Assim, ainda que noutros casos pudéssemos captar as realidades, não saberíamos como distingui-las das que lhes são opostas, de modo que nada (enquanto existente) é cognoscível com certeza” O mesmo Levi observa que Górgias ao utilizar o conceito de “conhecimento” lhe dá uma acepção diferente da de Paracônides: enquanto, para este, o conhecimento é um logos estritamente racional, oposto à percepção fundada sobre as percepções sensíveis e fonte de enganos, para o sofista de Leontinos, o conhecimento envolve não só as experiências dos sentidos como as construções da imaginação. Isso implica o desvanecimento da oposição rígida entre conhecimento verdadeiro e doxa, própria do eleatismo, assim como se aplica a um campo muito mais vasto o princípio da identidade entre pensar e dizer e ser, cujo uso legítimo se reduzia, para Parmênides, ao ser uno e imutável, correlato do pensamento puro.).

 

(81) Tal como as coisas que se veem se dizem visíveis por serem vistas e as coisas que se ouvem se dize audíveis por serem ouvidas, e não rejeitamos as coisas visíveis por não serem ouvidas, nem desprezamos as coisas audíveis por não serem vistas (cada objeto deve ser julgado pelas suas próprias sensações e não por outras), do mesmo modo também as coisas pensadas, embora não sejam vistas com a vista nem ouvidas com o ouvido, existirão, porque são apreendidas a partir seu próprio critério. (82) Se, portanto, alguém pensa em carros a correr sobre o mar e não os vê, deve acreditar que existem carros a correr sobre o mar. Mas isto é absurdo. Portanto, o existente não é pensado, nem apreendido.

 

(83) E também, se fosse apreendido, não seria possível transmiti-lo a outrem. Se, com efeito, as coisas existentes são visíveis, audíveis, e, em geral, perceptíveis (o que significa que são substâncias exteriores), e destas as visíveis são apreendidas com a vista; e as audíveis com o ouvido e não inversamente, como poderiam estas coisas ser reveladas a outrem?

 

(Untersteiner (I Sofisti, l, cit., pp. 53-57) destaca como vertentes principais da terceira parte do tratado a defesa da heterogeneidade dos diversos campos de experiência e o relativismo individual. Assim, no que respeita ao primeiro aspecto, cada órgão sensorial tem a sua receptividade específica, e pelo discurso proferido transmitem-se “palavras”, corporizadas em sons, que não são as coisas e não as reproduzem. Por conseguinte, o que ouve as palavras não tem, por via disso, acesso a outras realidades sensoriais diferentes das auditivas, nem tem cesso à experiência dos outros sujeitos, e o sentido atribuído aos sons percionados só pode advir-lhe das suas próprias experiências.).

 

(84) O meio por que as exprimimos é a palavra, e a palavra não é nem os fundamentos das coisas nem as coisas existentes. Em suma, não revelamos aos que nos rodeiam as coisas existentes, mas a palavra, que é outra relativamente aos fundamentos das coisas. Do mesmo modo que o visível não se pode tornar audível e vice-versa, assim o existente, porque tem um fundamento exterior, não se pode tornar a nossa palavra. (85) E, não sendo palavra, não poderá ser manifestado a outrem. A palavra, diz ele, surge a partir dos objetos exteriores, que atuam sobre nós, isto é, a partir de objetos sensíveis; por exemplo, a partir do contacto com o sabor, forma-se em nós a palavra relativa a esta qualidade, e a partir da impressão da cor forma-se a palavra relativa à cor. Mas, se isto é assim, a palavra não representa o objeto exterior, mas o objeto exterior torna- se revelador da palavra. (86) E, por outro lado, não é possível dizer que a palavra tenha um fundamento da mesma maneira que as coisas visíveis e audíveis, de tal modo que os fundamentos das coisas e as coisas existentes possam ser revelados a partir do seu fundamento e da sua existência. Embora admitindo, diz ele, que a palavra tem um fundamento, ela difere, no entanto, de todos os restantes fundamentos das coisas e, sobretudo, os corpos visíveis são diferentes das palavras: de facto, as coisas visíveis são apreendidas por meio de um órgão diferente daquele com que é percepcionada a palavra. Por conseguinte, a palavra não manifesta a multiplicidade dos fundamentos das coisas, assim como aquelas não tornam patente a natureza umas das outras.

 

(Na sequência do que foi dito, ressalta a incapacidade de transmitir, pelas palavras, o que as coisas são em si mesmas e, por outro lado, assinalam-se as limitações da linguagem no plano da transmissibilidade de conteúdos cognitivos.).

 

(87) Levantadas tais aporias, sob o ponto de vista de Górgias, o critério de verdade desaparece, no que lhe diz respeito, porque, não havendo o existente, nem podendo ser conhecido, ou transmitido a outrem, não haverá possibilidade de critério.

 

(Uma vez refutado o princípio da identidade entre dizer, pensar e ser, o fato de que algo seja susceptível de ser pensado não chega para assegurar a sua verdade, deixando de constituir um critério que permita com segurança distinguir o verdadeiro do falso, o que representava, na óptica de Sexto Empírico, um argumento a favor do ceticismo.).

 

Ao afirmar-se que “o não ser é não ser, o não ente não seria menos do que o ente.” De fato, o não ente é não ente e o ente é ente, de modo que as coisas são não mais do que não são. Se no entanto, diz, o não ser existe, o ser, que se lhe opõe, não existe. Com efeito, se o não ser existe, é conveniente que o ser não exista, de modo que, assim, diz, nada existiria, se não são o mesmo ser e não ser. Se são o mesmo, também, assim não existiria nada: o não ente não existe assim como o ente, se ele é o mesmo que o não ente. Eis, pois, a sua própria argumentação.

 

(A chamada inversão dialética resulta do seguinte fato: querer formular a distinção original de Parmênides entre “é” e “não é”, estabelecendo o “não é” na sua identidade de “não ser”, é desde logo produzir o “não ente é não ente” de pleno direito, equiparado ao “ente”. Assim, ao enunciar que “o não ente é não ente” prevalece a compreensão existencial de esti, e o referido enunciado leva a uma leitura ambígua, contendo potencialmente consequências decisivas: “o não ente existe como não ente”. Cf. B. Cassin, Sir Parmenide, cit., pp. 447-454, mais precisamente, pp. 448-449.).

 

(A argumentação baseia-se na heterogeneidade das percepções e na especificidade de cada tipo de experiência, já focadas antes. No âmbito da cultura grega e associada aos próprios matizes da língua, há uma estreita relação entre oran, “ver”, e eidenai, “conhecer”, por isso o “visível” é tido como potencialmente “inteligível” e vice-versa. Cf. o comentário de B. Cassin, a este propósito, em Sir Parmenide, cit., pp. 548-552, em pp. 549-550. É de sublinhar a radical dissimetria entre a visão que ensina a conhecer e o ouvido que apenas faz ouvir (e não propriamente “entender”), sendo esta a principal causa da impossibilidade de transmitir o saber com um discurso. Com efeito, este é constituído por um conjunto de sons articulados, meros ruídos, phthogoi, relevantes no domínio da audição, insusceptíveis, enquanto tais, de veicularem o conhecimento das coisas. Deste modo, “a autarcia da linguagem” [autarcia = autarquia, suficiência própira, autossuficiência, que se basta a si mesma] apresenta-se sob três aspectos: a impossibilidade de expressar ou “codificar” num discurso uma percepção; a dificuldade de atribuir um sentido àquilo que é ouvido por parte daquele que ouve; a incapacidade da linguagem para comunicar quaisquer saberes acerca das coisas e a concomitante inoperância do diálogo enquanto tal (cf. B. Cassin, ibidem, p. 549).).

 

Afirma que “dificilmente alguém poderia ter sensações absolutamente semelhantes às de outro. Assim (não é um, é cognoscível) ninguém poderia mostrá-lo a outrem, porque as coisas não são palavras e porque ninguém concebe uma outra coisa por outra como sendo a mesma.

 

Se, para um mesmo sujeito, as representações diferem, essa divergência acentua-se no plano intersubjetivo. Desta situação resulta uma pluralidade de modos de compreender o sentido das palavras, a que corresponde um inegável relativismo no plano gnosiológico.

 

Planudes, em A Hermógenes, 5, 548 Walz. Afima que “Dionísio, o velho, no segundo livro dos Caracteres, quando fala de Górgias, diz o seguinte: Não deparei com discursos judiciais da sua autoria, mas apenas com alguns discursos políticos e uns discursos-modelo, na maioria discursos epidíticos [dizia-se do gênero ou estilo demonstrativo que emprega ostentação.]. Eis um exemplo do estilo dos seus discursos (louva os Atenienses que se mostraram mais denodados na guerra):

 

O que falta a estes homens daquilo que os homens devem possuir? E o que está, pelo contrário, presente do que não deve estar presente? Possa eu dizer o que quero, queira eu dizer o que devo, escapando à indignação divina e fugindo à inveja humana. Estes possuíram uma excelência divina e uma mortalidade humana, preferindo muitas vezes a brandura da equidade à inflexibilidade da justiça, a justeza dos raciocínios à exatidão da lei, pensando que esta era a lei mais divina e mais universal: na altura devida o dever dizer, calar, fazer [e deixar por fazer], exercitando sobretudo duas qualidades das que são devidas: a razão [e a força], uma para deliberar, a outra para atuar, cuidando dos que são injustamente infelizes, arrogantes de acordo com a sua conveniência, com bom caráter em relação ao que é ajustado, capazes de deter com a sensatez da razão a insensatez [da força], insolentes com os insolentes, honestos com os honestos, intrépidos com os intrépidos, terríveis nos momentos terríveis. Como testemunho disto, ergueram os troféus dos inimigos, oferendas a Zeus, oferendas votivas da sua parte, não sendo inexperientes do inato sentido bélico, nem dos amores legítimos nem da luta armada nem da paz amiga da beleza, reverentes para com os deuses pela justiça, piedosos para com os pais pelos seus cuidados, justos para com os cidadãos pela igualdade, leais para com os amigos pela sua fidelidade. Por conseguinte, depois de estes morrerem, não morre a saudade que deixaram, mas vive, imortal, nos corpos mortais, embora eles já não vivam.

 

Este “Elogio Fúnebre ou Epitáfio foi proferido em louvor dos atenienses mortos em combate, sendo um exemplo muito significativo da prosa artística de Górgias e um fragmento fundamental para reconstituir as linhas gerais de suas concepções éticas e jurídicas. Além do interesse do texto no plano formal, exemplificando os elementos literários e retóricos mais característicos do chamado “gorgianizar”, alude a conceitos e a valores significativos das maneiras de pensar e de sentir correntes naquela época, em geral, e próprios de Górgias, em especial. Destaca-se, sobretudo, a noção de to epieikes, correspondente ao “verdadeiro justo”: a determinação, em cada momento e em cada situação concreta, da “justa medida” apela para a intuição do kairos, “ocasião propícia”, “momento oportuno” e do to prepon “o que é conveniente ou adequado”. Cf. M. Untersteiner, I Sofisti, I cit., pp. 77-280; veja-se também M. Massigli, “Gorgia e l’estetica della situazione. Contributo alla rilletura dell'estetica gorgiana”, in Riv. Filos. Scolastica, anno 73, n.° 4, 1981, pp. 656-682.”

 

Discurso Pítico

 

Deste discurso dá notícia Filóstrato, no seu Vidas dos Sofistas, 19, 4.

 

Elogio aos habitantes de Élis

 

Dele fala Aristóteles, na Retórica, 3, 14, 1416 a 1. É deste tipo o Elogio aos habitantes de Élis, da autoria de Górgias; sem preâmbulo ou introdução, começa abruptamente assim: “Élis, cidade ditosa.”

 

Elogio de Helena

 

Ei-lo:

 

(1) A harmonia, para uma cidade, é a coragem dos seus concidadãos; para um corpo, a beleza; para uma alma, a sabedoria; para uma ação, a excelência; para um discurso, a verdade, e os contrários destas coisas são formas de desarmonia. É preciso honrar com louvor o que é digno de louvor e censurar o que for indigno: um homem, uma mulher, um discurso, um feito, uma cidade. De fato, é igualmente erro e ignorância censurar o louvável e louvar o censurável.

[No proêmio é claramente enunciado o imperativo intelectual e ético de louvar o que é digno de louvor e censurar quem merece censura, cumprindo o dever de “dizer corretamente o que deve ser dito”. Uma mesma ordem (kosmos), simultaneamente ética e estética, se aplica aos diversos pelouros, revestindo o caráter da verdade (aletheia) no que respeita ao discurso, o carácter da beleza (to kallos) no que respeita ao corpo, o caráter da sabedoria (sophia) no que respeita à alma, o caráter da excelência (arete) no que respeita à ação, enquanto os contrários destas coisas (ta enantia touton) são formas de desarmonia (akosmia).]

(2) É dever do mesmo homem dizer corretamente o que é devido e refutar [o que se disse erradamente. Importa refutar] os detratores de Helena, mulher a respeito da qual se tornou uníssono e unânime quer o testemunho dos poetas que falaram das coisas que ouviram quer a fama do seu nome, que se tornou um símbolo de calamidades. Portanto, eu quero, desenvolvendo o discurso segundo um certo raciocínio, libertá-la da acusação que a difamou e, ao demonstrar que os detratores mentem e ao mostrar a verdade, por termo à ignorância.

(3) Não é desconhecido nem para alguns que, pela natureza e pela estirpe, a mulher que é objeto deste discurso sobressaiu entre os primeiros homens e as primeiras mulheres. Com efeito, é sabido que sua mãe foi Leda e seu pai um deus, Zeus, embora alegadamente fosse um mortal, Tíndaro; um teve a reputação de ser, porque o era de facto, e o outro foi contestado, porque dizia-se que era; um foi o mais poderoso dos homens e o outro foi o senhor do Universo.

(4) Nascida de tais pais, herdou uma beleza divina que recebeu e não deixou ficar escondida. Ela despertou, em muitos, muitas paixões; com um só corpo, atraiu inúmeros corpos de homens que alimentavam grandes ideias de grandes feitos. Destes, uns tinham grandeza de bens, outros o prestígio de uma nobreza antiga, outros o vigor da têmpera individual, outros a força da sabedoria adquirida. E todos vinham movidos pelo amor ávido de vitória ou por uma avidez invencível de glória.

(5) Porquê e de que forma alguém satisfez o seu amor com Helena, não o direi. De fato, informar os que sabem credibilidade, mas não traz prazer. Por conseguinte, ultrapassando agora com o discurso o tempo de outrora, avançarei para o princípio do discurso que me proponho fazer e exporei as causas pelas quais se tornou verossímil a viagem de Helena para Tróia.

(6) Com efeito, ela fez o que fez ou por vontade do Destino e pelas decisões dos deuses e pelos decretos da Necessidade ou arrebatada à força ou persuadida pelos discursos [ou submetida pelo amor]. Se foi pela primeira causa, o responsável merece ser responsabilizado, pois é impossível deter a providência divina com a previdência humana. Não é próprio da natureza das coisas que o mais forte seja detido pelo mais fraco, mas que o mais fraco seja governado e conduzido pelo mais forte; que o mais forte chefie e o mais fraco siga. Deus é mais forte do que o homem em força e em sabedoria e noutros aspectos. Se se deve atribuir a culpa ao Destino ou a um deus, deve libertar-se Helena da ignomínia. (as quatro causas)

(7) Se foi arrebatada à força e violentada ilegitimamente e ultrajada com injustiça, é evidente que o raptor, ao ultrajá-la, procedeu injustamente e que a raptada, ao ser ultrajada, sofreu infortúnio. O bárbaro que levou a cabo um empreendimento bárbaro merece ser responsabilizado pelo discurso, pela lei e pela ação: pelo discurso merece a acusação; pela lei, o ostracismo; pela ação, o castigo. Mas a que foi violentada e arrancada à pátria e privada dos amigos não deveria ser mais lamentada do que difamada? De fato, ele fez coisas terríveis e ela sofreu-as. É justo compadecermo-nos dela e detestá-lo a ele.

(8) Mas, se foi o discurso que a persuadiu e enganou a sua alma não será difícil defendê-la em relação a isso e libertá-la desta acusação. O discurso é um tirano poderoso que, com um corpo microscópico e invisível, executa ações divinas. Consegue suprimir o medo e por termo à dor e despertar a alegria e intensificar a paixão. Ora eu vou mostrar que isto é assim.

(A terceira causa hipotética da ida de Helena para Tróia foi a de ter sido coagida pela força persuasiva do discurso; a análise desta hipótese é feita nos §§ 8-14. O logos é descrito como um poderoso soberano que, com um corpo minúsculo e invisível, realiza obras divinas. Essas ações sobre-humanas incidem na alma de quem escuta, produzindo importantes modificações nas representacões e nos estados de ânimo do destinatário. Releva-se o impacto intelectual e afectivo dos efeitos produzidos e, nessa linha de eficácia, o discurso é comparado, por um lado, com a poesia e com a magia e, por outro lado, com os medicamentos, usados no âmbito da medicina.).

(9) É preciso também prová-lo perante os ouvintes. Considero e denomino toda a poesia um discurso com medida. Daqueles que a ouvem apodera-se um arrepio de terror, uma compaixão comovida e uma saudade nostálgica; pelas palavras, a alma experimenta um sofrimento particular em relação aos sucessos e infortúnios de acontecimentos e de pessoas que lhe são alheios. Pois bem, vou passar a um outro argumento.

(10) Os encantamentos inspirados pelas palavras levam ao prazer e libertam da dor. Na verdade, a força do encantamento, misturando-se com a opinião da alma, sedu-la, persuade-a e transforma-a por feitiçaria. Descobriram-se duas artes de feitiçaria e de magia que são, uma os erros da alma e a outra os enganos da opinião.

(11) E quantos, modelando um falso discurso, persuadiram e persuadem tantos a respeito de tantos assuntos! Se, de fato, todos possuíssem a respeito de tudo memória do passado, [conhecimento] do presente e previsão do futuro, o discurso não seria exatamente igual%; mas agora não lhes é fácil nem recordar o passado nem ponderar sobre o presente nem prever o futuro. Deste modo, a maior parte dos homens, sobre a maior parte dos assuntos, oferece à alma a opinião como conselheira. Todavia, a opinião, que é vacilante e insegura, lança em situações vacilantes e inseguras os que dela fazem uso.

(12) Que motivo nos impede de pensar que também Helena terá sido seduzida igualmente pelos discursos, não de sua livre vontade, mas como se tivesse sido raptada pela força de poderosos? É possível ver como a força de persuasão prevalece; a persuasão não tem a aparência de necessidade, mas tem a sua força. O discurso persuasor da alma persuade-a e força-a a acreditar nas coisas ditas e a aprovar o que foi feito. Portanto, quem persuade é quem age mal, porque coage; a persuadida, porque foi coagida pelo discurso, é erradamente difamada.

(13) Para compreender que a persuasão, quando acrescentada ao discurso, molda a alma como quer, é preciso estudar, em primeiro lugar, os discursos dos astrônomos, que, ao substituírem uma opinião por outra ou ao criarem uma nova opinião, fazem o incrível e o obscuro parecerem evidentes aos olhos da opinião; em segundo lugar, os debates compulsórios conduzidos por meio de discursos, em que um único discurso, escrito com arte, mas não inspirado na verdade, encanta e persuade uma grande multidão; em terceiro lugar, os debates filosóficos, nos quais se mostra que a rapidez do pensamento também torna mutável a credibilidade da opinião.

(Que a força persuasiva do discurso molda a alma torna-se evidente nos discursos dos físicos e na ação poderosa que, nos debates filosóficos, um único discurso tem sobre muitos, se for bem elaborado.).

(14) A força do discurso em relação à disposição da alma é comparável às prescrições dos medicamentos em relação à natureza dos corpos. Assim como os diferentes medicamentos expulsam do corpo os diferentes humores e uns põem termo à doença e outros à vida, assim também de entre os discursos uns entristecem e outros alegram, uns amedrontam e outros incutem coragem nos ouvintes, outros há que envenenam e enfeitiçam a alma com uma persuasão perniciosa.

(O símile dos medicamentos elucida, de maneira particularmente feliz, a neutralidade da retórica enquanto techne, sendo as competências ligadas ao domínio da palavra susceptíveis de diferentes usos, consoante as circunstânsias e finalidades a que se subordinam. Assim como o pharmakon [remédio] pode restabelecer a saúde ou causar a morte do paciente, também o discurso é um instrumento polivalente e ambíguo que, em si mesmo, não é bom nem mau, não é verdadeiro nem falso. Por conseguinte, a argumentação relativa à natureza e aos efeitos do discurso conduz ao reconhecimento do poder que lhe cabe no âmbito das relações intersubjetivas, apesar de todas as insuficiências que lhe são inerentes no plano cognitivo da transmissão dos saberes (cf. Tratado do Não Ente, III parte). Acerca da analogia entre os discursos e os medicamentos, veja-se, no diálogo platônico Teeteto, 166 e- 167d, em particular 167 a, a enfatização do respectivo cariz instrumental. Na óptica de Platão, o conhecimento dos meios é sempre imperfeito, se não se dispuser de um esclarecido discernimento dos fins.).

(15) Foi também explicado que, se ela foi persuadida pelo discurso, não agiu erradamente, teve sim uma má sorte. Vou expor a quarta causa com um quarto argumento. Com efeito, se foi o amor quem fez todas essas coisas, não será fácil escapar à acusação da falta que lhe foi imputada. De fato, as coisas que vemos não têm a natureza que nós queremos, mas a que cabe a cada uma102. Através da vista, a alma é moldada até no seu caráter íntimo.

(Se bem que, na representação visual, o sujeito seja “ator” e não mero “espectador”, e o modo de ser daquele que vê influa no modo de ver, acentua-se a receptividade da alma que sofre o impacto das impressões suscitadas pelo visível. Por conseguinte, Górgias ressalta o paralelo da ação do logos e do mundo das percepções sensíveis, exercendo sobre a alma um influxo irresistível, que a modifica interiormente e determina as diversas reações afetivas.).

(16) Por exemplo, sempre que a vista vir formações inimigas e um equipamento inimigo com o armamento inimigo de bronze e de ferro, um de defesa e um outro de ataque, fica imediatamente transtornada e transtorna a alma, a ponto de, muitas vezes, os homens fugirem, em pânico, do perigo futuro [como se ele estivesse] presente. Neste caso, o forte hábito de obediência à lei é destruído pelo medo produzido pela vista, cuja intervenção faz desprezar quer o que é belo, segundo a lei, quer o que a vitória proporciona de bom.

(17) Alguns há que, ao verem coisas temíveis, perdem, nesse preciso momento, a presença de espírito que ainda possuiam; o medo extingue e expulsa assim o pensamento. E muitos caem em sofrimentos vãos, em doenças terríveis e em loucuras insanáveis; deste modo, a vista registra na mente imagens das coisas vistas. E omitem-se muitas impressões terríveis; mas as omitidas são semelhantes às mencionadas.

(18) Além disso, os pintores, quando, a partir de muitas cores e corpos, compõem, de modo perfeito, um só corpo e uma figura, deleitam a vista. A criação de figuras humanas e a cinzelagem de estátuas proporcionam aos olhos uma contemplação agradável. É, pois, natural que a vista se inquiete com umas coias e deseje outras. Muitas coisas despertam, em muitos, amor e desejo de muitas ações e corpos.

(19) Se o olhar de Helena, deleitado com a figura de Alexandre, despertou na sua alma desejo e combate amoroso, será de admirar? Se o amor, sendo um deus [tem] a força divina dos deuses, como poderia um ser inferior repeli-lo e resistir-lhe? E, se é uma doença humana e uma ignorância da alma, não é de censurar como culpa, mas de considerar como uma desventura. De facto, vem como vem, pela armadilha da sorte e não pela deliberação da mente, pelos constrangimentos do amor e não pelos preparativos da arte.

(20) Como, por conseguinte, se deve julgar justa a censura de Helena que, em todos os casos, está isenta de culpa, se fez o que fez dominada pelo amor ou persuadida pelo discurso ou arrebatada à força ou constrangida pela necessidade divina? (as quatro causas para a fuga de Helena).

(21) Com este discurso, afastei a má reputação de uma mulher, e respeitei o procedimento que me propus no início do discurso. Procurei por termo à injustiça da difamação e à ignorância da opinião; quis escrever um discurso que fosse um encômio de Helena e uma diversão para mim.

 

A defesa de Palamedes:

 

Qual a razão dessa defesa: “Ulisses acusou Palamedes de ter traído os Gregos, o que está na origem do processo a que se reporta a Defesa de Palamedes. Os pormenores da acusação não são objeto de exposição, considerando-se conhecidos por todos: baseava-se numa carta que Palamades teria dirigido a Príamo e na descoberta de uma avultada soma de dinheiro, escondida nas suas instalações (cf. Apolodoro, Epitome, 3, 8, 10). No começo do exórdio (§§1-5), o acusado contrapõe a morte a que, por natureza, estão voltados todos os seres humanos e aquela que pode atingir um inocente com uma desonra imerecida. Perante a inevitabilidade da morte, a alternativa põe-se entre dikaios apothanein, “morrer segundo a ordem natural das coisas”, ou biaios aponthanein, “morrer por violência”. (...)”

(1) A acusação e a defesa não [se tornam] um juízo sobre a morte. A natureza decretou a morte com um voto manifesto a todos os mortais, no dia em que surgiu. O perigo existe em relação à desonra e à honra, se é necessário que eu morra segundo a justiça ou que eu morra violentamente, com os maiores ultrajes e sob a mais vergonhosa acusação.

(2) Existindo estas duas possibilidades, uma tende-la vós em vosso poder, a outra, tenho-a eu: do meu lado, está a justiça; do vosso, a força. Se quiserdes, podereis facilmente matar-me, pois tendes poder sobre estas questões, em relação às quais me encontro sem poder algum.

((...) a antítese entre a justiça (dike) e a força (bia) (...)).

(3) Se o acusador Ulisses tivesse feito a acusação por amor à Grécia ou por saber claramente que eu tinha traído a Grécia junto dos bárbaros ou por calcular de algum modo que as coisas se passavam assim, ele seria o melhor dos homens; e como não, se ele salva a pátria, os pais e toda a Grécia e, além disso, castiga o culpado? Mas, se foi por inveja ou por fraude ou por perfídia que inventou esta acusação, do mesmo modo que, por causa daqueles motivos, seria o melhor dos homens, assim também por causa destes será o pior.

(Se Ulisses tivesse acusado Palamedes de boa-fé e com motivos patrióticos, baseado no conhecimento claro (saphos episthamenos) ou na mera presunção (doxamenos), seria merecedor de elogio. Mas, se inventou a acusação por motivos indignos, deve ser justamente censurado.).

(4) Ao falar sobre estas coisas, por onde começarei? O que dizer em primeiro lugar? Para onde hei-de dirigir a defesa? A acusação não demonstrada produz o aturdimento evidente e, por causa do aturdimento, é forçoso que me sinta embaraçado no meu discurso, a não ser que depreenda alguma coisa a partir da própria verdade e da necessidade presente, tendo-me encontrado com mestres mais perigosos do que providos de recursos.

(A perturbação provocada pela falsa acusação deixa Palamedes sem palavras, num duplo embaraço: o que dizer e como dizer o que tem a dizer e aponta como únicos guias, possíveis para si, a verdade (aletheia) e a necessidade presente (tes parouses anankes), que está próxima do momento oportuno ou ocasião, com todos os factores variáveis, associados ao concreto e ao contingente. Por isso, Palamedes acentua que tais “mestres” envolvem “perigos”, não facultando, desde logo, todos os recursos precisos para uma defesa eficaz.).

(5) De facto, sei com clareza que o acusador me acusou sem [conhecer] o assunto com clareza; sei, com clareza para mim mesmo, que não fiz tal coisa. Nem sei como alguém poderia saber o que não aconteceu. Mas, se fez a acusação presumindo que as coisas eram assim, demonstrar-vos-ei de duas maneiras que não diz a verdade, pois eu nem, mesmo que quisesse, teria podido nem, mesmo que pudesse, teria querido empreender tais ações.

(Depois de sublinhar, retoricamente, as dificuldades da defesa, o acusado enuncia as linhas mestras da estratégia argumentativa que vai ser realizada. A acusação foi pronunciada com base no conhecimento (episteme ) ou com base na opinião (doxa). De fato, Palamedes sabe que o acusador não conhece aquilo de que o acusa, pois ele próprio tem consciência de que não cometeu o crime que lhe é atribuído. O argumento tira partido da força lógica inerente ao conhecimento e da impossibilidade de alguém conhecer algo que não existe. A não ocorrência do fato de que é acusado justifica a consciência clara que Palamedes tem da sua inocência e, simultaneamente, inviabiliza a alegada consciência clara do acusador para estabelecer a culpa. Afastada a hipótese de a acusação se basear no conhecimento, resta a hipótese de a mesma se basear numa crença assente em conjecturas, no âmbito da opinião. Assim, o acusado argumenta seguindo uma dupla estratégia: no plano das ações, não podia ter praticado o ato em questão, mesmo que tivesse querido fazê-lo (§§6-12); no plano dos motivos, não teria razões para cometer tal crime, mesmo que tivesse podido fazê-lo (§§13-21). Palamedes irá mostrar a falsidade da crença referida na acusação, acumulando as impossibilidades decorrentes do plano dos fatos e do plano dos motivos.).

(6) Abordarei, em primeiro lugar, este argumento de que me é impossível fazer isso. Com efeito, era preciso que surgisse algum princípio de traição, e o princípio poderia ser uma conversa, pois, antes de haver a acção, é necessário que primeiro haja conversações. E como poderia ter havido conversações sem um encontro? E como poderia ter havido um encontro, sem que aquele tivesse enviado alguém até mim ou que da minha parte alguém tivesse ido ao seu encontro? Uma mensagem escrita não chegaria sem um portador.

(Na primeira parte da argumentação (§§ 6-12), ao estabelecer a impossibilidade de, no plano dos fatos, Palamedes ter alguma ocasião de trair os Gregos, é desenvolvido um esquema que, na sua forma sistemática, poderá ser uma invenção gorgiana. O autor parte do hipotético ato de traição, divide-o numa sequência de estádios necessários e prova que cada um destes, a começar pelo primeiro, não tinha possibilidade de se verificar. Dada a sequência existente entre os diversos casos e a dependência dos fatos subsequentes em relação aos antecedentes, a impossibilidade destes trazia como consequência a impossibilidade daqueles; mas, ao mesmo tempo, era mostrada a impossibilidade de cada um dos casos, por si, mesmo que os demais fossem suscetíveis de ter ocorrido, o que redundava numa acumulação de impossibilidades. Logicamente, recorria-se a alternativas mutuamente exclusivas entre si e à aplicação do princípio do meio excluído.).

(7) Mas isto pode suceder pela conversa. E, nesse caso, ele ter-se-ia encontrado comigo e eu com ele. De que modo sucedeu? Quem foi ter com quem? Um grego encontra-se com um bárbaro. Como nos entendemos e como falávamos? Sozinhos? Mas não compreenderíamos as palavras um do outro. Com um intérprete? Então uma terceira pessoa tornar-se-ia testemunha de coisas que tinham de ser secretas.

(8) Mas, admitimos também que isso aconteceu, embora não tenha acontecido. Era preciso, depois disto, dar e receber mútuas garantias. Qual seria a garantia? Um juramento? Quem estaria disposto a confiar em mim, um traidor? Mas se fossem reféns? Quais? Por exemplo, eu poderia ter dado o meu irmão (não tenho, na verdade, outro) e o bárbaro poderia ter dado um dos seus filhos. A garantia seria assim muito segura, tanto da parte dele em relação a mim, como da minha parte em relação a ele. Mas isto, se tivesse sucedido, ter-se-ia tornado evidente para todos vós.

(9) Alguém dirá que concluímos o pacto mediante pagamento em dinheiro, aquele dando-o e eu recebendo-o. Porventura por pouco dinheiro? Mas não é verosímil receber pouco dinheiro por importantes serviços prestados. Ou por muito dinheiro? Mas qual foi o transporte? Como poderia um só transportá-lo? E muitos? Se tivessem sido muitos, muitas seriam as testemunhas da traição, mas se foi um só, não seria muito o dinheiro transportado.

(10) Transportaram-no de dia ou de noite? Mas os guardas são muitos e densamente colocados e não seria possível passar despercebido por eles. Então de dia? A luz certamente é inimiga de tais empreendimentos. Seja. Fui eu que saí e recebi o dinheiro ou aquele que chegou que o transportava? Efetivamente, em ambos os casos existem dificuldades. Se eu o tivesse recebido, como o poderia ter escondido dos de dentro e dos de fora? Onde o teria posto? Como o teria guardado? Ao servir-me dele, ter-se-ia tornado evidente, se não me servisse, que proveito tiraria desse dinheiro?

(11) Pois bem, admitamos que aconteceu o que não aconteceu. Encontramo-nos, falámos, entendemo-nos, recebi o dinheiro da parte deles, passei despercebido com ele, escondi-o. Era preciso, sem dúvida, fazer aquelas coisas por causa das quais isso aconteceu. Isso é ainda mais impraticável do que as coisas referidas. Ao fazê-lo, atuei sozinho ou com outros. Mas a ação não foi obra de um só. Foi todavia com outros? Com quais? É evidente que com os que se encontram comigo. Homens livres ou escravos? Vós, entre os quais me encontro, sois homens livres. Quem é que, de entre vós, sabe alguma coisa? Que fale. Quanto aos escravos, como seria verosímil que recorresse a ele? Estes acusam deliberadamente com vista à liberdade ou por necessidade, quando pressionados.

(12) E quanto à ação, como teria ocorrido? Era preciso ter introduzido forças inimigas evidentemente mais fortes do que vós, o que era impossível. Como é que eu as introduziria? Através das portas? Mas não me cabia a mim nem fechá-las nem abri-las, mas cabia aos guardas que têm essa incumbência. Porventura por cima dessas muralhas, por meio de uma escada? Não [teria eu sido visto]? Na verdade, está tudo cheio de guardas. Através de uma brecha na muralha? Ter-se-ia tornado evidente para todos. Com efeito, a vida militar é ao ar livre; são acampamentos, em que [todos] vêem tudo e todos são vistos por todos. Era-me totalmente impossível, sob todos os pontos de vista, fazer isso.

(13) Examinai em conjunto também isto: por que motivo me conviria querer fazer estas coisas, mesmo que, em absoluto, as pudesse fazer? Ninguém quer com certeza correr os maiores perigos gratuitamente nem ser o mais pérfido em questões da maior perfídia. Então por que razão? Volto de novo a esta questão. Talvez para exercer um poder absoluto? Sobre vós ou sobre bárbaros? Mas sobre vós seria impossível, pois vós sois tantos e de tal índole que os maiores dons são vosso apanágio: as virtudes dos antepassados, a copiosidade de riquezas, os altos feitos, a força de alma, o governo de cidades.

(Na segunda parte da argumentação (§§13-21), elenca-se uma série de motivos susceptíveis de justificar a ação de que Palamedes é acusado e refuta-se cada um desses motivos, independentemente dos demais. Partindo do princípio de que tais motivos esgotam a totalidade dos motivos possíveis, demonstra-se que, mesmo que Palamedes tivesse podido trair os Gregos, não teria quaisquer razões para o fazer. É de realçar o repositório de finas análises psicológicas utilizado na argumentação, assim como o conjunto de reflexões morais particularmente significativas das formas de pensar e de sentir correntes.).

(14) Sobre os [bárbaros] então? Mas quem haveria de o permitir? Com que poder, eu, um grego, me apoderarei de bárbaros, sendo eu um só e eles muitos? Persuadindo ou usando a força? Com efeito, nem eles quereriam ser persuadidos nem eu os poderia forçar. Talvez estivessem dispostos a entregar-se a quem está disposto a aceitá-los, dando-me isso como recompensa pela minha traição? Mas tanto acreditar como aceitar isto seria uma grande loucura. Quem, de fato, escolheria a escravidão em vez da realeza, o pior em vez do melhor?

(15) Alguém poderá dizer que, desejando dinheiro e riquezas, eu empreendera tais atos. Acontece que possuo uma fortuna satisfatória e não preciso de mais. Os que precisam de muitas riquezas são os que gastam muito, são não aqueles que dominam os prazeres da natureza, mas os que são escravos dos prazeres e procuram adquirir honras a partir da riqueza e da magnificência. Mas nada disto se aplica a mim. Apresentarei a minha vida passada como testemunho fidedigno de que falo a verdade; vós sois testemunhas deste meu testemunho. De fato, convivestes comigo e por isso sabeis estas coisas.

(16) E um homem medianamente prudente não empreenderia tais atos por causa das honras. As honras provêm da virtude e não da perfídia. E que honra poderia existir para o homem que traísse a Grécia? Além disso, acontece que a mim não me faltam honras, pois eu era honrado por causa dos méritos mais honrosos pelos homens mais honrados e honrado por vós por causa da minha sabedoria.

(17) Por segurança também ninguém cometeria tais atos. O traidor é inimigo de tudo, da lei, da justiça, dos deuses, do conjunto dos homens; de fato, transgride a lei, subverte a justiça, corrompe as massas, ultraja o sagrado e não goza de segurança aquele cuja vida decorre entre os maiores perigos.

(18) Seria, então, por querer auxiliar os amigos ou prejudicar os inimigos? Por essas razões uma pessoa poderia cometer uma injustiça. Mas a mim tudo sucedeu ao contrário: fiz mal aos amigos, auxiliei os inimigos. Por conseguinte, a ação não envolvia qualquer aquisição de bens, nem existe ninguém que trame algum malefício pelo desejo de sofrer prejuízos.

(19) Resta saber se eu atuei para fugir a um temor ou a um trabalho penoso ou a um perigo. Ninguém poderia dizer em que é que isto me diz respeito. São, pois, duas as razões pelas quais todos fazem tudo o que fazem: para conseguir um lucro ou para evitar uma perda; e tudo o que se maquina de mau, para lá destas razões [costuma envolver o que atua em grandes males. Que eu] terei feito mal a mim mesmo, atuando assim, está fora de dúvida. Com efeito, ao trair a Grécia, traía-me a mim mesmo, traía os pais, os amigos, a honra dos antepassados, os templos ancestrais, as sepulturas, a pátria, a maior da Grécia. E teria entregue nas mãos dos que me tinham prejudicado aquilo que para todos está acima de tudo.

(20) Examinai também isto. Não se tornaria insuportável a minha vida, se tivesse feito tais ações? Para onde me havia de dirigir? Talvez para Hélade? Para ser castigado por aqueles que foram injustiçados por mim? E quem, dos que tinham suportado injustiças, me pouparia? Mas, e se permanecesse entre os bárbaros, descurando tudo quanto há de mais importante, privado da mais bela honra, constrangido a viver na mais ignominiosa infâmia, abandonando os esforços feitos na minha vida passada pela virtude? E isto, por minha própria culpa, o que é precisamente o mais ignominioso para um homem: ser infeliz por sua própria culpa.

(21) Mas não teria podido viver de modo tranquilo entre os bárbaros, pois eles sabiam que eu tinha cometido a maior deslealdade ao entregar os amigos aos inimigos. E, privada de lealdade, a vida não é suportável. Quem tenha perdido as riquezas ou tenha sido derrubado do poder ou tenha fugido da pátria poderia recuperar tudo isto; mas quem perca o sentimento de lealdade não poderá jamais readquiri-lo. A partir do que foi dito, fica demonstrado que, [mesmo podendo], não quereria, [e que, mesmo querendo, não poderia] trair a Grécia.

(22) Quero, depois disto, dirigir-me ao acusador. Em quem é que confiaste, sendo tu quem és, ao acusares-me a mim, sendo eu quem sou? Vale a pena examinar com cuidado que tipo de homem és e que coisas tu dizes, como uma pessoa indigna contra alguém que não é digno de ser acusado. Porventura me acusas com um conhecimento preciso ou baseado em conjecturas? Se é com um conhecimento preciso, sabes, por teres visto ou por teres participado ou por te teres informado junto a alguém que participou? Se foi por teres visto, diz a estes juízes [a maneira], o lugar, a altura, quando e onde e como viste; se foi por teres participado, estás sujeito às mesmas acusações; se foi por teres ouvido de quem participou, que essa pessoa avance, se mostre, testemunhe, seja ela quem for, pois a acusação baseada num testemunho é, assim, mais digna de crédito; mas, até agora, nenhum de nós está a apresentar testemunhos.

(Segue-se uma interpelação direta do adversário (§§22-26). Contesta-se a idoneidade do acusador, para pôr em causa a reputação do acusado, bem como o valor da acusação a partir da discussão das hipotéticas bases de apoio da mesma. De fato, se o acusador tivesse sido testemunha presencial do ocorrido, deveria indicar todos os pormenores relativos ao tempo, ao lugar e às diversas circunstâncias do ato praticado e essa prova teria um peso decisivo no processo. Dessa forma, a ausência de testemunhas remete as intervenções das partes para o plano dos discursos proferidos e é em face destes que o tribunal deve deliberar.).

(23) Dirás talvez que o não apresentares tu testemunhos de coisas que, em tua opinião, aconteceram equivale ao fato de não os apresentar eu, relativamente a coisas que não aconteceram. Mas não é o mesmo. É, de certo modo, impossível testemunhas acerca do que não aconteceu; mas, sobre o que aconteceu, não só é possível, como é fácil, e não só é fácil, [mas também indispensável]. [Mas] tu não conseguiste encontrar um único testemunho, nem sequer falsos testemunhos; quanto a mim, não me é possível encontrar qualquer um, nem de uns nem de outros.

(A incapacidade, por parte da acusação, de apresentar quaisquer testemunhas não pode ser equiparada à da defesa, pois, no caso desta, tal impossibilidade radica na própria inexistência do ato em litígio.).

(24) É claro que tu não conheces com precisão aquilo de que me acusas; resta, portanto, que tu, sem saber nada ao certo, te baseias em conjecturas. Tu, o mais audacioso de todos os homens, confiando numa opinião (a coisa menos fiável), ousas acusar um homem de um delito suscetível de pena de morte. Que delito desse gênero te consta que ele tenha cometido? De fato, fazer suposições é comum a todos, sobre todas as matérias, e nisto tu não és, em nada, mais sábio do que os outros. Mas não se deve confiar nos que se fundamentam em suposições, mas nos que sabem; nem se deve considerar a opinião mais digna de crédito do que a verdade; pelo contrário, há que se considerar a verdade muito mais digna de crédito do que a opinião.

(Salienta-se, mais uma vez, a antítese entre “a verdade”, baseada no conhecimento preciso, e “a opinião”, assente em suposições, censurando-se a temeridade de um homem com fama de sábio de fundamentar uma acusação tão grave com conjecturas tão falíveis.).

(25) Acusaste-me, nas palavras que proferiste, de duas características opostas, sabedoria e loucura, que o mesmo homem não consegue ter. Assim, quando dizes que sou engenhoso, hábil e rico em recursos, acusas-me de sabedoria; quando dizes que eu traí a Grécia, acusas-me de loucura. Loucura é tentar empreender ações impossíveis, inúteis e desonrosas, a partir das quais uma pessoa prejudicará os amigos, será útil aos inimigos e tornará a sua própria vida censurável e perigosa. E, na verdade, como se deverá confiar num homem que, no mesmo discurso, ao falar aos mesmos homens sobre as mesmas coisas, diz coisas totalmente contrárias?

(A acusação, além de falsa, incorre formalmente em contradição, pois, no mesmo discurso, ao mesmo tempo, dirigindo-se aos mesmo homens, sobre as mesmas coisas, imputa ao réu atributos tão contrários como “sabedoria” (sophia) e “loucura” (mania). De fato, a referida traição de que Palamedes é acusado constitui um ato de loucura, já que vai contra tudo o que é tido por sensato, segundo o ponto de vista do homem comum.).

(26) Gostaria que me informasse se consideras os homens sábios insensatos ou dotados de senso. Se os consideras insensatos, o discurso é novo, mas não é verdadeiro; se os consideras dotados de senso, não é próprio de pessoas sensatas cometer os maiores erros e preferir o mal aos bens presentes. Se, portanto, sou sábio, não errei; se errei, não sou sábio. [E, assim], em ambos os casos, tu serás mentiroso.

(Ulisses, ao afirmar que Palamades é “sábio” (sophos), admite as premissas de um dilema que, seja qual for a opção do acusador, conduz à conclusão negativa de este último ser um “mentiroso” (pseudes).).

(27) Ora, embora te possa acusar de teres sido antes tu a praticar muitas e graves ações, antigas e recentes, não quero fazê-lo, pois [quero] ser absolvido desta acusação não graças à tua má conduta, mas graças à minha boa conduta. Para ti, era isto.

(O acusado renuncia a mover uma contra-acusação, na sequência da intenção expressa de conseguir a absolvição com base na sua boa conduta, e passa a expor aos juízes o que considera abonatório a seu favor (§§ 28-32).).

(28) A vós, senhores juízes, quero falar-vos de mim, dizer-vos algo detestável, mas verdadeiro, não apropriado a quem não foi acusado, mas conveniente a quem foi acusado. Vou agora dar-vos conta da minha vida passada e da sua razão de ser. Peço-vos, portanto, se eu vos recordar algumas boas ações realizadas por mim, que ninguém leve a mal as minhas palavras, mas que considereis necessário que quem foi acusado de modo terrível e falsamente diga também coisas verdadeiras e boas, diante de vós que as conheceis. E isto é o mais agradável para mim.

(29) A primeira coisa e a segunda e a mais importante é que, absolutamente, a minha vida passada, desde o princípio ao fim, é irrepreensível, isenta de toda a culpa. Ninguém poderia, diante de vós, proferir a meu respeito uma acusação verdadeira de perfídia. Nem o próprio acusador forneceu qualquer prova do que disse. Assim, o seu discurso tem o impacto de uma difamação sem prova.

(30) E poderia também afirmar e, tendo-o afirmado, não mentiria nem seria contestado que sou não só irrepreensível como também um grande benfeitor vosso, dos Gregos e de todos os homens, dos contemporâneos e dos vindouros. De fato, quem teria tornado a vida humana bem provida de recursos, em vez de desprovida, e ordenada, em vez de desordenada, inventado tácticas de guerra, aspecto muito importante para a superioridade militar, e leis escritas, guardiãs da justiça, caracteres escritos, instrumento da memória, medidas e pesos, meios eficazes de trocas comerciais, o número, guardião dos bens, os sinais luminosos, mensageiros muito poderosos e muito rápidos, e o jogo dos dados, inofensivo passatempo dos tempos livres? Por que razão vos recordei tudo isto?

(31) Para vos fazer ver, [por um lado] que dedico a minha atenção a este tipo de coisas; para fornecer uma prova, por outro lado, de que me mantenho afastado de ações vergonhosas e perversas. É impossível que quem entretém o espírito com isto se dedique a esse tipo de atos. E julgo que é justo que eu não seja prejudicado por vós, já que eu não vos prejudico.

(Depois de ter invocado uma reputação impoluta, Palamedes enumera alguns dos benefícios que trouxe aos seus concidadãos e aos demais homens em geral, reafirmando a sua inteira inocência em relação a quaisquer atos condenáveis. Assim, fundamenta o seu apelo a que lhe seja feita justiça, de acordo com os princípios da justiça comum, uma vez que esta implica que quem não prejudicou os outros não sofra prejuízo por parte destes.).

(32) Nem mesmo mereço um mau tratamento por causa de outros atos, nem por parte dos mais novos nem por parte dos mais velhos. Não sou motivo de desgosto para os mais velhos, não sou inútil aos mais novos, não invejo os afortunados, compadeço-me dos infelizes. Não desprezo a pobreza, nem prefiro a riqueza à virtude, mas a virtude à riqueza. Não sou sem préstimo nas assembleias, nem inativo nos combates, faço o que me está destinado e obedeço aos chefes. Não me cabe a mim louvar-me; no entanto, a presente ocasião constrange-me a defender-me com todos os meios, acusado como sou de tais culpas. {Osório diz: é o elogio em boca própria = vitupério}.

(A gravidade das presentes circunstâncias iliba Palamedes da eventual censura por proceder ao seu próprio elogio.).

(33) Resta-me dirigir-vos uma palavra a vosso respeito; dita esta, porei termo à defesa. A compaixão, as súplicas, os pedidos dos amigos são imprescindíveis, quando o juízo depende da multidão. Perante vós, que sois e tendes a fama de ser os primeiros de entre os Gregos, não é preciso que vos persuada, nem com pedidos de ajuda aos amigos nem com súplicas nem com palavras que movem à piedade; mas preciso de me libertar desta acusação pela máxima evidência do justo, informando-vos da verdade e não vos enganando.

(Palamedes dirige-se, por fim, aos juízes. Justifica não recorrer, na situação em causa, a um discurso que visasse exaltar o pathos dos ouvintes, dado que os seus destinatários são reputados de “os primeiros de entre os Gregos”, pelo que lhes dirá a verdade, sem usar quaisquer expedientes retóricos.).

(34) É preciso que não presteis mais atenção às palavras do que aos fatos, nem preferirais as acusações às contestações nem considereis que o tempo breve é um juiz mais sábio do que o tempo longo nem julgueis mais fiável a calúnia do que a experiência. Em todos os assuntos, os homens bons têm a grande preocupação de não errar, mais ainda nas coisas irreparáveis do que nas reparáveis: estas podem evitar-se com a previsão, mas são irremediáveis com o arrependimento. Verifica-se uma questão deste gênero, sempre que se julga um homem por um delito capital, como é o caso agora diante de vós.

(35) Se, por meio das palavras, fosse possível a verdade dos fatos tornar-se pura e manifesta aos ouvintes, seria fácil a sentença a partir do que já foi dito. Mas, como não é esse o caso, protegei a minha pessoa, aguardai mais tempo; decretai, no entanto, a sentença segundo a verdade. Ao mostrar-vos injustos, correis um grande risco de destruir uma reputação e adquirir outra. Para os homens bons, a morte é preferível a uma reputação desonrosa: aquela é o fim natural da vida, esta é a doença em vida.

(Depois de ter insistido, no parágrafo anterior, na necessidade de os juízes não prestarem mais atenção às palavras do que aos fatos, acentua que a situação delicada dos juízes advém da impossibilidade de apurar a verdade dos fatos, a não ser por meio de palavras. Daí a dificuldade da sentença e os riscos de uma tal decisão, quando está em causa um crime punível com pena de morte. Cf., acerca das limitações dos discursos na transmissão dos conhecimentos, o tratado gorgiano, Tratado do Não Ente, III parte.).

(36) Se me condenardes à morte injustamente, isso tornar-se-á evidente para muitos, pois eu não sou um desconhecido e a vossa perversidade tornar-se-á conhecida e manifesta para todos os Gregos. Sereis vós e não o acusador que recebereis a responsabilidade da injustiça, manifesta a todos, pois que em vós está a decisão final do julgamento. Maior erro do que este não poderia existir. Ao decidirdes injustamente, não só cometereis um erro em relação a mim e a meus pais, mas também ficareis vós próprios com a consciência de ter levado a cabo um ato terrível, ímpio, injusto e contrário às leis, por condernardes à morte um homem que é vosso companheiro de luta, útil a vós, benfeitor da Grécia (Gregos contra um grego), sem terdes provado contra ele uma injustiça manifesta ou culpa credível.

(Um veredito injusto por parte dos juízes tem efeitos terríveis que recaem, em primeiro lugar, sobre eles próprios, enquanto responsáveis pela decisão final, e só indiretamente e em segundo lugar, sobre o acusador. (Osório pergunta: quem foi o acusador dos irmãos Naves? Famoso caro de erro judicial no Brasil)).

(37) Estão ditas as ideias. Pela minha parte, termino. Recapitular brevemente o que longamente se expôs só se justifica diante de juízes medíocres. Mas não é justo pensar que os Gregos, que são os primeiros de entre os primeiros, não prestem atenção, nem recordem o que foi dito.

(O acusado prescinde da recapitulação final e não usou os procedimentos habituais baseados na súplica e no apelo a fatores emocionais, reafirmando a confiança nas qualidades superiores dos membros do tribunal, o que continuava, no entanto, a ser um expediente bem integrado no perfeito domínio da arte retórica.).

 

Górgias atuou, também, no campo da Arte.

 

Diz Aristóteles, na sua Retórica, 3, 18, 1419 b 3, que “Górgias disse que ‘se tem de destruir a seriedade dos adversários com o gracejo e o gracejo com a seriedade’ e tinha razão”

 

Platão lhe faz coro: no seu “Górgias, 473 e. Por vezes, a refutação pode ser feita pelo ridículo e não pela lógica do argumento. Sublinha-se a importância do conhecimento da disposição daquele que escuta, a fim de desarmar, no momento oportuno, a tensão pressuposta. Desta maneira, em vez de mobilizar o eikos, “o que dizer”, privilegia-se o kairos, “como e quando” intervir.

 

Sobre o estilo poético de Górgias, diz Aristóteles, Retórica, 3, 1406 b 4. “E ainda a quarta forma de frieza do estilo encontra-se no uso da metáfora. Por exemplo, Górgias fala em ‘assuntos pálidos (trêmulos) e exangues’. Diz: ‘Semeaste isto vergonhosamente e colheste-o miseravelmente.’ Este estilo é demasiado poético”.

 

No que concerne ao gênero epidítico, é ainda Aristóteles, na Retórica, 3, 17, 1418 a 32., quem nos informa: “No gênero epidítico, convém que o discurso introduza elogios episódicos como faz Isócrates, que sempre introduz algum. E o que Górgias dizia, que a palavra nunca o abandona, é o mesmo. De fato, se fala de Aquiles, faz o elogio de Peleu, depois o de Éaco, depois o da divindade, do mesmo modo, o da coragem que faz realizar isto ou que é de tal natureza.”

 

Informa-nos Plutarco, em Das Virtudes das Mulheres, p. 262 a., que “Górgias afigura-se-nos mais refinado, ao exigir que deve ser conhecida por muitos não a beleza, mas a reputação das mulheres”.

 

É ainda o mesmo Plutarco, em Da Glória dos Atenienses, 5, p. 348 c., quem registrou: “A tragédia floresceu e ficou célebre, tornando-se um admirável recital e um espetáculo para os homens de então e proporcionando, com os seus mitos e afetos, uma ilusão; como diz Górgias, aquele que iludiu é mais justo do que aquele que não iludiu e aquele que é iludido é mais sábio do que aquele que não foi iludido. Quem iludiu é mais justo, porque fez o que prometeu. Quem é iludido é mais sábio, pois quem se deixa impressionar pelo prazer das palavras não é insensível.

 

(O elogio gorgiano da dikaia apate, “justa ilusão”, retoma o uso da mesma expressão no contexto da arte dramática, em que o mais sábio e talentoso é aquele que consegue, pelo seu engenho produzir nos espectadores o engano que os leva a sentir como seus os enredos representados no palco. Cf. Elogio de Helena, § 9. Desta forma, aquele que iludiu é mais justo do que aquele que não iludiu e o que se deixa iludir é mais sábio do que aquele que não foi iludido. O que é avaliado no discurso não é o seu valor de verdade no plano gnosiológico tradicional, tendo em vista a sua adequação a uma realidade previamente dada, mas a eficácia na produção dos efeitos pretendidos na alma do destinatário. Na perspectiva de Górgias, elogia-se a inteligência e a sensibilidade que tornam os destinatários receptivos à força modeladora das palavras e às emoções transmitidas.).

Nos Textos Greco-Siríacos, trad. por Ryssel. Górgias disse:

 

“Uma eminente beleza derivada de alguma qualidade oculta é detectada, se os bons pintores não são capazes de a pintar com as suas cores habituais.”

 

O seu longo trabalho e o seu grande esforço constituem um maravilhoso testemunho de como é grande a beleza que se oculta. E, quando as sucessivas etapas do seu trabalho alcançam o termo, pelo seu silêncio dão-lhe a coroa da vitória. Mas como pode a língua exprimir e o ouvido do auditor aprender o que nenhuma mão agarra e nenhum olhar vê?

 

Na Gnomonologia Caticana, 743 n. 166. Górgias dizia que os retores são semelhantes às rãs: estas coaxam na água, aqueles diante da clepsidra.

 

[Retor: Mestre de Retórica; aquele que nas civilizações antigas, como a grega ou a latina, ensinavam a arte de persuadir por palavras; aquele que se ocupa da retórica.].

 

[Clepsidra - Relógio antigo, de origem egípcia, que media o tempo pelo escoamento de água num recipiente graduado].

 

Górgias incursionou pela astronomia ao dizer, segundo Sópatro, na Retórica Grega, 8, 23 Walz., que

 

“o sol é uma massa de ferro incandescente...”.

 

Licínio de Quios cultivou a enepeia (eloquência) e levou a consequências extremas a preocupação gorgiana com a musicalidade das palavras, ocupando-se da fisiologia dos sons que, na Antiguidade, dependia da retórica. Confira em Aristóteles, Retórica, 3, 2, 13 e 13, 5.

 

Fonte: todas as informações acima sobre Górgias foram retiradas de: SOFISTAS – testemunhos e fragmentos, tradução e notas: Ana Alexandre Alves de Sousa e Maria José Vaz Pinto, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2005, a qual, portanto, deve ser consultada.

 

 
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