Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.33 – Gregos versus bárbaros.
Kerferd ensina:
“Muito mais indefinida era a crítica da instituição da escravidão. Na verdade, é de se duvidar que alguém, no século V, tenha ido mais longe do que sugerir que muitos dos escravos existentes o eram apenas por acidente das circunstâncias. Embora Aristóteles aceitasse isso, sua conclusão era que, em um mundo ideal, a escravidão estaria confinada aos "escravos naturais" e todos aqueles que não eram escravos por natureza seriam libertos. Não chegou até nós nenhum texto do século V que de fato condenasse toda escravidão como tal. Que toda escravidão é contrária à natureza pode ser uma consequência da oposição desenvolvida por Antífon entre nomos e physis, mas não temos nenhum registro de que ele a tenha tirado, e não é suficiente argumentar que ele condenou então a escravidão porque "deve ter feito isso". A essa consequência finalmente se chegou e Aristóteles sabia disso quando escreveu Política I, 3.4. Há muitos que gostariam imensamente de poder atribuir essa visão ao século V. Mas, na verdade, a primeira pessoa de que se tem notícia que a defendeu é Alcidamas, um discípulo de Górgias que, no seu Discurso Messeniano, disse: "Deus deixou todos os homens livres, a Natureza não fez ninguém escravo". Mas a data do Discurso pode bem ser 362 a.C., ou mais tardia, e é só com os estóicos que encontramos toda a fundamentação teórica para a doutrina segundo a qual nenhum homem é escravo por natureza. [Osório diz: os sofistas e a escravidão! Vejam de quem Alcidamas era aluno! Se Platão e Aristóteles a defendiam, é por que alguém a condenava! Não se defende aquilo contra o que não existe acusação/oposição! Alcidamas nasceu onde?]
Estamos apenas um pouco melhor situados quanto ao testemunho relativo a gregos e bárbaros. De modo geral, os gregos tinham um forte senso de sua superioridade em relação aos outros homens. Segundo Hermipo, tal como citado por Diógenes Laércio (I, 33), havia alguns que costumavam dizer que Sócrates tinha o hábito de declarar que havia três coisas pelas quais devia agradecer a Fortuna: primeiro, por ter nascido ser humano e não um animal; segundo, por ter nascido homem e não mulher; e terceiro, por ter nascido grego e não bárbaro. O próprio Hermipo supunha que a história realmente se referisse a Tales de Mileto. De qualquer forma, ela corretamente incorporava a tradicional opinião grega sobre bárbaros e mulheres.
Ao discutir primeiro a comparação entre gregos e bárbaros, será conveniente começar com a posição adotada por Platão na República. Ele distingue entre os dois de maneira bem fundamental. O relacionamento natural entre grego e grego é o de parentesco e origem comum. Portanto são, por natureza, amigos. Quando lutam um contra o outro, isso significa que a Grécia está doente e dilacerada por guerra civil [Osório diz: sempre que se fala em guerra civil no século V deve-se entender a guerra do Peloponeso? As guerras que vieram após a derrota de Atenas?]. Portanto deve-se impor limites rigorosos acerca de que coisas podem ser feitas quando estão lutando entre si. De modo particular, é totalmente errado que Estados gregos vendam gregos como escravos. Totalmente ao contrário é o caso de gregos em luta com bárbaros. Pois gregos e bárbaros são inimigos por natureza. Quando lutam, estão envolvidos em guerra, e é adequado, então, que os gregos tratem os bárbaros como os gregos agora (erradamente) tratam outros gregos (Rep. 469b-471c). Daí fica claro que Platão aceita e aprova a instituição da escravidão mesmo no seu Estado ideal [Osório diz: Platão e a escravidão]. A razão disso é a sua crença de que os bárbaros são, por natureza, inferiores aos gregos, os únicos que, por sua inteligência e amor do saber, estão habilitados a ser senhores. Aristóteles está apenas acompanhando Platão quando, na Política (1252b7-9), cita com aprovação a opinião dos poetas segundo a qual está certo que os bárbaros sejam governados pelos gregos, porque os bárbaros são escravos por natureza [Osório diz: Aristóteles e a escravidão].
Os pontos essenciais da posição platônica parecem ter sido antecipados por Górgias (DK 82B5b), que, nos seus esforços para unir os gregos e dirigir suas energias contra os bárbaros, declarou que as vitórias sobre os bárbaros exigiam hinos de louvor, ao passo que as vitórias sobre os gregos exigiam lamentos. Opinião diferente teria sido defendida por Hípias, no Protágoras (337c-d), quando declara aos presentes que os considera como "parentes da mesma classe e como concidadãos por natureza, embora não por nomos. Pois o semelhante é aparentado ao semelhante por natureza, ao passo que a lei, que é tirana sobre os seres humanos, frequentemente impõe repressões que são contrárias à natureza". Todos "os presentes" eram, de fato, gregos [Osório diz: porém estrangeiros em Atenas!], de modo que é possível que ele não queira dizer nada além do que Platão tinha dito na República, a saber, que os gregos constituem uma família e afins. As necessidades do contexto no qual Hípias está falando estariam de fato satisfeitas se ele estivesse afirmando nada além de que há uma afinidade natural entre homens sábios onde quer que se encontrem, gregos ou bárbaros, ou talvez meramente onde quer que se encontrem entre os gregos. Mas a universalidade da segunda sentença citada acima, segundo a qual por natureza o semelhante é aparentado ao semelhante, sugere que provavelmente ele queria ir além e defender o parentesco universal de todos os seres humanos que participam de qualquer semelhança específica, por exemplo todas as crianças, todas as mulheres, todos os sábios ou todos os mendigos, e assim por diante.
Uma declaração mais explícita, ainda que infelizmente difícil de interpretar de maneira exata, encontra-se no fragmento de papiro de Antífon (DK 87B44, II, pp. 352-3), cuja primeira sentença já foi citada em conexão com a questão do respeito que advém aos homens de nascimento superior.
Respeitamos e admiramos os filhos de pais ilustres, mas os que vêm de lares não-ilustres, não respeitamos nem admiramos. Nisso nos barbarizamos em relação uns aos outros. Pois somos todos, por natureza, da mesma maneira plenamente adaptados para ser bárbaros ou helenos. Isso se pode ver pelas coisas que são, por natureza, necessárias a todos os seres humanos. Elas estão abertas para todos para serem obtidas da mesma maneira, e em todas elas nenhum de nós é distinguido como bárbaro ou grego. Pois todos nós respiramos o ar com nossas bocas e narizes, e todos comemos com nossas mãos. [Osório diz: sofistas contra a escravidão].
Aqui há incertezas a respeito de algumas das reais palavras do texto grego traduzidas nas duas últimas sentenças. Mas não há dúvida quanto ao sentido geral da passagem. O que ele está dizendo é que não há diferença fundamental, fixada pela natureza, entre gregos e bárbaros, ou entre bem-nascidos e mal-nascidos. Menos clara é a sequência do argumento e a conclusão particular que Antífon deseja alcançar. Na tradução usualmente adotada para a terceira sentença da passagem acima, no lugar das palavras em itálico temos alguma coisa como: "Pois por natureza somos feitos para ser iguais sob todos aspectos, tanto os bárbaros quanto os gregos". Aí temos, então, uma sequência lógica muito estranha, como observa Guthrie, a saber: "Damos muita atenção a nascimento nobre, mas isso é se comportar como os bárbaros, pois na realidade não há diferença entre bárbaros e gregos" [Osório diz: será que ele não queria dizer que os bárbaros dão especial importância ao nascimento nobre, e que os helenos não deveriam segui-los, quanto a isso? Em seguida afirma que não há diferença entre eles, logo, todos são iguais, não quanto a costumes (nascimentos nobres), mas quanto a natureza “humana”]. Isso simplesmente não tem sentido, nem é uma tradução acurada. O que é preciso, diz Guthrie, é voltar à tradução usada pelos primeiros editores do papiro, Grenfell e Hunt, que é a das palavras acima em itálico: Pois somos todos, por natureza, da mesma maneira plenamente adaptados para ser bárbaros ou helenos [Osório diz: não é Heródoto que nos conta a história de um rei que mandou uma criança ir viver entre outro povo que não aquele onde nascera e lá passou a falar a língua onde foi criada, que era diversa da do seu lugar de nascimento?]. Com esta tradução, muda-se a interpretação global da sequência do argumento, e a não-compreensão disso é, sem dúvida, a razão pela qual esta tradução foi substituída por outra menos acurada e menos plausível.
Creio que uma chave para a correta interpretação pode ser encontrada em uma passagem do tratado de Hipócrates Sobre ares, águas e lugares, cap. 12. O tratado como um todo diz respeito aos efeitos das diferenças de clima e meio ambiente sobre a saúde e o caráter. No capítulo 12, a comparação é entre a Ásia Menor e a Europa (isto é, a Grécia), e é dito que as condições na Ásia Menor são tais que coragem, indústria e o impulso para a ação não poderiam manifestar-se lá, seja entre os nativos, seja entre os imigrantes. Lá, o prazer reina de modo absoluto. O contraste é claramente com os gregos, que vivem no continente e que de fato possuem essas qualidades. Mas, se eles emigram para a Ásia Menor, tornam-se como os nativos lídios asiáticos, que os atenienses consideravam incapazes e voluptuosos em comparação consigo mesmos.
Tomando-se por base esse texto, que pertence ao século V, é possível sugerir a seguinte interpretação do que Antífon está dizendo. Fisicamente, e por natureza, não há diferença entre os seres humanos — nossas necessidades e nosso equipamento são os mesmos em todos os casos. Mas somos capazes de nos desenvolver de diferentes maneiras devido a influências subsequentes — podemos, então, ser ou gregos ou bárbaros, ou inteligentes e civilizados, ou amantes do prazer e estúpidos. Ao admirar estupidamente os filhos de pais nobres e classificá-los acima dos que se originam de famílias humildes, nós nos comportamos à maneira [Osório diz: que atribuímos aos] dos bárbaros, como se nós mesmos tivéssemos nos tornado [Osório diz: o que condenamos nos] bárbaros e perdido a inteligência apropriada [Osório diz: que atribuímos] a nós, os gregos. Isso resolve o problema da sequência do pensamento na passagem e tem a vantagem de nos autorizar a manter a tradução mais acurada da sentença em itálico. Devido à falta do resto da passagem no papiro, não se pode, naturalmente, afirmar que esta interpretação esteja absolutamente certa. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 265-270).