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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

120 – Por que alguns tratam os Sofistas como imbecis?

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Entretanto, não é nada assim. Pois tudo se passa como se, por não poder produzir, de dentro do sistema, o topos da exclusão, Rorty reproduzisse, de facto, os mesmos exclusivos, que, conseqüentemente, não mais se impõem a não ser como lugares comuns. De modo que ele se contenta, para retomar os termos de J. Poulain 10, em fazer "a prolepse do sujeito moral". Seu modelo é muito explicitamente Sócrates, e não o Sócrates complexo, chien-loup, dos diálogos platônicos, mas um Sócrates de cartão-postal, opondo-se aos sofistas por demais caricaturais para terem jamais existido. "É a questão da escolha entre Sócrates de um lado e os tiranos do outro — escolha entre os apaixonados pela conversação e os apaixonados pela retórica que engana a si mesma. Para a minha intenção, é a questão de saber se podemos ser pragmatistas sem trair Sócrates, sem cair no irracionalismo" (Conséquences, p. 169).” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 220).

 

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119 – A importância da Sofística.

 

Giovani Reale nas diz da importância da Sofística:

 

Como hoje em dia é reconhecido por muitos, Sócrates seria impensável sem a sofística: ele é, antes, a sua realização verdadeira.” (Fonte: Sofistas, Sócrates e Socráticos Menores, Loyola, São Paulo, p. XIII).

 

Para mim, a Sofística é a Sofística com ou sem Sócrates! Transcrevi o acima apenas para dar uma notícia àqueles que são “cegos” para outros pensadores que não seja Sócrates ou os que o seguem.

Ao que eu acrescento:

a) Ainda não sou um sofista, ainda não adquiri conhecimento para tanto, embora seja meu objetivo estudar muito para chegar lá. Sou apenas um estudante do tema, que reputo de suma importância para quem pensa ou pensa que pensa;

b) Ser sofista, penso, é ter a humildade de não ser (ou querer ser) o dono da verdade! Nem dono dessa própria afirmativa (que não se quer ser o dono da verdade)!

c) Saber que vivermos sob o signo da provisoriedade (ou pensar saber, no momento);

d) Ter consciência (ou pensar tê-la) de que o “melhor” sempre é possível;

e) Trabalhar (pensar/buscar) sempre com a ideia de melhor, nunca de verdade;

f) Aceitar que a pessoa pode ser ateia, sem que isso seja crime. Bem como que tenha fé, sem que isso também implique em crime. Ou seja, não queimar ninguém, nem livro, por suas crenças ou descrenças e seus conteúdos;

g) Não acreditar em nada do que disse acima, nem em nada do que eu poderei dizer abaixo!”.

Então vale tudo?

Sim, desde que o fundamento do “tudo” convença seu auditório, pois assim foi, é e sempre será (ou não!).

 

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118 – Como conciliar as doutrinas de Protágoras e Górgias.

 

Nos diz Aldo Dinucci:

 

Protágoras afirma: “O homem é a medida de todas as coisas”.

 

Dizem que com essa afirmativa ele aboliu qualquer critério de verdade, pois tudo passa a ser verdadeiro. Que é impossível a contradição.

Górgias, por sua vez, apresenta suas três teses: “Nada é." "Se é, é incognoscível" (ou, na versão de Sexto, "não pode ser apreendido pelo homem"). "Se é e se é cognoscível, não pode ser mostrado aos outros" (ou: "formulado e explicado a seu próximo".).

As teses de Górgias tinham um fim específico: combater ou destronar o ensino de Parmênides! Melhor, apenas demonstrar que Parmênides estava equivocado, especificamente quando disse que “pensar e ser é a mesma coisa”!

Não quis Górgias fundar nada, apenas mostrar o equívoco do mestre! (porém, essa cobrança será feita a todos os Sofistas: querem seus adversários, seus deturpadores, que eles expliquem, fundamentem suas razões após mostrar os erros daqueles a quem questionam! Quando o humorista brasileiro Chacrinha diz: “eu não vim para explicar, em vim para confundir”, tal frase o leva e o eleva à condição de Sofista, pois dita frase pode resumir, de certo modo, o que foi o movimento sofístico: explicavam os seus pontos de vistas, mas no ponto de vista dos outros mostravam a confusão que eles continham, pois não resistiam aos questionamentos que sobre eles levantavam os Sofistas.

Mas vamos nos valer de quem sabe para explicar devidamente as três teses de Górgias:

 

[...] Não se propôs a eliminar o pensamento, mas constata sua dissolução [...]. O pensamento inteiro, assim como o ser, é minado por antinomias destrutivas [...]. O Tratado do Não-Ser [...] contém uma impiedosa sucessão de antinomias que destroem todas as doutrinas filosóficas, cada uma delas nadificando a outra e se nadificando por sua vez. (Fonte: Untersteiner citado por Aldo Dinucci em: Análise das Três Teses do Tratado do Não-Ser de Górgias de Leontinos)

 

E prossegue Dinucci:

 

Temos dois argumentos contra o movimento no texto que acabamos de citar do MXG. O primeiro mostra a impossibilidade de que haja um movimento por alteração em algo que seja: pois, ao transformar-se ou alterar-se, deixaria de ser o que é (o ser se transformaria no não-ser), enquanto que o não-ser, pela transformação, viria a ser. O segundo argumento trata da impossibilidade de que algo que seja se mova por translação. A passagem do MXG é bastante truncada, mas Levi (1941, p. 22) interpreta-a sob a luz de um comentário de Aristóteles relativo a Melisso, comentário que citaremos a seguir para tornar mais clara a argumentação do MXG:

 

Alguns dos antigos filósofos [Aristóteles acabara de citar Melisso e Demócrito] sustentam que o ser deve necessariamente ser uno e imóvel; pois eles argumentavam que o vazio não existe, mas que, se não há um vazio existindo separadamente, o ser não poderia ser movido; nem, novamente, poderia haver uma multiplicidade de coisas, já que não há nada que as mantenha separadas; e eles declaram que, se alguém sustenta que o mundo não é contínuo, mas mantém contato em separação, isto não é diferente de dizer que as coisas são muitas (e não uma) e que há um vazio. Pois se o mundo é totalmente divisível, não há nenhum um e por esta razão nenhuma multiplicidade, mas o todo é um vazio. [Por esta razão], eles dizem que é igualmente necessário negar a existência do movimento

 

[...]

Górgias passará a atacar o que hoje chamamos de “teoria do conhecimento”:

 

[...] depois destas mesmas demonstrações, [Górgias] diz que, se é, é incognoscível. Com efeito, é necessário que todas as coisas pensadas sejam, (10) e o não-ser, já que não é, não pode ser pensado. No entanto, sendo assim, ninguém diria nada falso, diz [Górgias], nem mesmo se diz que carros de guerra combatem no mar. Pois neste caso todas as coisas seriam. E, com efeito, por causa disto, as coisas vistas e as coisas ouvidas serão, porque cada uma delas é pensada. Mas, se não é assim, mas, do mesmo modo que as coisas que vemos, em nada mais são onde as vemos, assim as coisas que vemos não mais são pensadas onde as vemos (e, com efeito, do mesmo modo que tanto muitos aí vêem estas coisas quanto muitos estas coisas pensassem), por que, portanto, seria mais evidente que tal coisa é? Mas não é evidente que esse tipo de coisas é verdadeiro. De modo que, se tais coisas também são, para nós seriam incognoscíveis. (MXG, 980a ss.)

 

Neste ponto, é mais uma vez necessário comparar este trecho do MXG com o texto que trata do mesmo tema na paráfrase de Sexto:

 

Se aquilo que pensamos não existe como ser, o ser não é pensado [...] Se, de fato, as coisas pensadas existem como seres, tudo o que se pensa existe, independentemente da forma como for pensado, o que é inverossímil [...] Além disto, se aquilo que pensamos existe como ser, as coisas que não existem não podem ser pensadas. Por conseguinte, a coisas contrárias advém

Se aquilo que pensamos não existe como ser, o ser não é pensado [...] Se, de fato, as coisas pensadas existem como seres, tudo o que se pensa existe, independentemente da forma como for pensado, o que é inverossímil [...] Além disto, se aquilo que pensamos existe como ser, as coisas que não existem não podem ser pensadas. Por conseguinte, a coisas contrárias advém o contrário e o ser é o contrário do não-ser. E assim, pelo menos, se ao ser aconteceu ser pensado, ao não-ser acontecerá não ser pensado. Mas isto é absurdo. Também Cila, Quimera e muitas outras coisas não existentes são pensadas. Portanto, o ser não é pensado. Tal como aquilo que se vê se diz visível por ser visto, o que se ouve torna-se audível por ser ouvido, e não rejeitamos as coisas visíveis por não as ouvirmos, nem repudiamos as audíveis por não serem vistas - pois cada uma dessas coisas deverá ser percebida pelo sentido que lhe é próprio e não por outro - do mesmo modo, aquilo que pensamos, ainda que não seja percebido pela vista nem escutado pelo ouvido, existirá porque é apreendido pelo seu próprio critério. Assim, se alguém pensa que carros de cavalos correm rapidamente sobre o mar, embora não os veja, deverá acreditar na existência de carros correndo rapidamente sobre o mar. Porém isto é absurdo. Logo, o ser não é pensado nem tampouco apreendido.

 

[...]

Górgias trata, na segunda tese, da impossibilidade de se atingir o ser das coisas, “quer elas sejam o efeito da percepção quer elas tenham sido elaboradas pela atividade intelectual”.

[...]

 

Desse modo, cada coisa é percebida pelo sentido que lhe é próprio e não por outro. (3) Entretanto, as coisas pensadas só serão percebidas se apreendidas pelo seu próprio critério, se o ser humano dispuser de alguma faculdade capaz de apreender o ser. (4) Porém, o fato de pensarmos em alguma coisa não contribui para que aceitemos a realidade do ser dela própria. Se, por um lado, contamos entre as coisas do mundo as coisas que vemos sem ter de ouvi-las também, não podemos contar entre as coisas do mundo as coisas que pensamos sem que também a percebamos por algum dos sentidos; não fosse assim, teríamos de crer na realidade de porcos voando a grandes altitudes só pelo simples de fato de pensarmos sobre eles. Porém, o ser das coisas não é apreendido por nenhum sentido específico: o ser humano não dispõe de qualquer faculdade de intuição intelectual.

[...]

A argumentação de Górgias em favor da terceira tese do Tratado (qual seja: ainda que alguma coisa fosse e fosse cognoscível, não seria comunicável a outrem), pode ser dividida em duas partes principais, a primeira demonstrando a heterogeneidade do logos e do real, e a segunda, o caráter relativo, individual e incomunicável de todo conhecimento.

[...]

 

Aqui, todos os comentadores concordam estar implícita a teoria da percepção de Empédocles, segundo a qual diminutas partículas emanam dos corpos, partículas que, de acordo com seu tamanho, penetram nos diferentes sentidos, produzindo as diferentes percepções. O argumento de Górgias pode ser sintetizado da seguinte maneira: (1) Aquilo que vemos é visto, mas não ouvido. Da mesma forma, o que ouvimos é ouvido e não visto, e o mesmo vale para todas as percepções. (2) Não podemos experienciar uma percepção própria de um sentido através de outro sentido. (3) Assim também a palavra não pode comunicar a outro algo que ouvimos ou vemos ou percebemos por qualquer outro sentido. Pois, da mesma forma que o som não pode nos fazer experienciar a cor e o sabor, o logos, enquanto signo, não pode nos fazer experienciar qualquer uma das coisas que apreendemos pelos sentidos. A paráfrase de Sexto confirma essa reconstrução:

 

Se for verdade que há coisas visíveis e audíveis e, na generalidade, perceptíveis aos sentidos ¨C seres estes situados no exterior ¨C e, dentre estes, as visíveis são apreendidas pela vista, enquanto as audíveis o são pelo ouvido, e não de outro modo, como podem então ser comunicados a outrem? Na verdade, é com a palavra que identificamos algo, mas a palavra não é nem aquilo que [é] nem o ser: logo, não comunicamos o ser aos que nos rodeiam, mas sim a palavra, que é diferente das coisas visíveis.

 

[...]

 

A paráfrase de Sexto nos informa a maneira como Górgias concebia o processo pelo qual se dava a formação das palavras:

 

Na verdade, a partir do encontro do sabor, origina-se em nós a palavra produzida de acordo com aquele, e também a partir da impressão da cor nasce a palavra conforme a esta cor. Se for assim, a palavra não é expressão da coisa exterior, mas é a coisa exterior que se torna reveladora da palavra.

(Fonte: http://www.oquenosfazpensar.com/adm/uploads/artigo/analise_das_tres_teses_do_tratado_do_nao-ser_de_gorgias_de_leontinos/1_pensar24_AldoDinucci_pags5-22.pdf, em 15.08.13.)

 

É possível, contudo, conciliar Protágoras e Górgias, já que para Protágoras até o pensamento e doutrina de Parmênides estariam “certos”, seriam “verdadeiros”?

 

Pelo que sabemos, Górgias, ao propor as teses acima, não buscou contradizer Protágoras, por isso poderíamos dizer que entre eles não há conflito. O objetivo de Górgias era apenas mostrar que Parmênides (o homem do “ser é, o não-ser não é” e do “tudo que se diz e pensa é verdadeiro”) estava errado. Entretanto, maliciosamente, os comentadores tentam mostrar que há contradição entre os dois Sofistas, tudo com o intuito desacreditá-los, afirmando que seus pensamentos são incompatíveis, quando, como demonstraremos, não o são.

Não esqueçamos, alerte-se, que os Sofistas eram políticos, ou ensinavam a arte da política, e acabavam por exercê-la por intermédio de seus alunos, discípulos e aconselhados.

Aliás, apenas para ilustrar, um dos grandes aconselhados pelos Sofistas foi o “pai da democracia grega”, Péricles, que passou um dia todo, segundo Plutarco, discutindo com Protágoras um caso sobre responsabilidade. Diz o autor citado:

 

... certo atleta, sem querer feriu e matou com um dardo a Epitimo de Farsalos; Péricles e Protágoras gastaram todo um dia para apurar, de acordo com o raciocínio correto, a quem se atribuiria a culpa do acidente, se ao dardo, se a quem o lançara ou se aos árbitros dos jogos”. (Fonte: Plutarco, Vidas - Péricles, tradução de Jaime Bruna, Cultrix. São Paulo. Sem data, p. 101/102.).

 

Quando Péricles fundou a colônia pan-helênica de Túrio, na Magna Grécia (atual sul da Itália), designou Protágoras como seu legislador, foi ele o homem que deu a primeira “constituição” da cidade.

Duas curiosidades: por que Péricles não se valeu de Sócrates, vivo à época? Por que Tucídides, “o maior dos historiadores”, não dedica uma única palavra a ao “filósofo” Sócrates em sua obra “A história da Guerra do Peloponeso”?

Como poucos dos Sofistas mais conhecidos eram atenienses (apenas Antifonte e Crítias o eram), os estrangeiros não exerciam por eles mesmos a política diretamente nessa cidade, o faziam por intermédio de seus alunos.

Nessa perspectiva (desconstrução do pensamento alheio) e exercício da virtude política, é possível conciliar os ensinamentos de Protágoras com os de Górgias.

 

Para infelicidade dos maledicentes deturpadores dos Sofistas, o próprio Platão (que erro!), foi quem melhor preservou, juntamente com seus fiéis seguidores, o seguinte mito (Mito de Prometeu), que ele, com justa razão, dizem os especialistas, e veremos isso logo mais, atribui a Protágoras, e no qual o Sofista explica a única viabilidade possível para a vida em sociedade. Diz:

 

O MITO DE PROTÁGORAS

 

Houve um tempo em que só havia deuses, sem que ainda existissem criaturas mortais. Quando chegou o momento determinado pelo Destino, para que estas fossem criadas, os deuses as plasmaram nas entranhas da terra, utilizando-se de uma mistura de ferro e de fogo, acrescida dos elementos que ao fogo e à terra se associam. Ao chegar o tempo certo de tirá-los para a luz, incumbiram Prometeu e Epimeteu de provê-los do necessário e de conferir-lhes as qualidades adequadas a cada um. Epimeteu, porém, pediu a Prometeu que deixasse a seu cargo a distribuição. Depois de concluída, disse ele, farás a revisão final. Tendo alcançado o seu assentimento, passou a executar o plano. Nessa tarefa, a alguns ele atribuiu força sem velocidade, dotando de velocidade os mais fracos; a outros deu armas; para os que deixara com natureza desarmada, imaginou diferentes meios de preservação: os que vestiu com pequeno corpo, dotou de asas, para fugirem, ou os proveu de algum refúgio subterrâneo; os corpulentos encontravam salvação nas próprias dimensões. Destarte agiu com todos, aplicando sempre o critério de compensação. Tomou essas precauções, para evitar que alguma espécie viesse a desaparecer. Depois de haver providenciado para que não se destruíssem reciprocamente, excogitou os meios de protegê-los contra as estações de Zeus, dotando-os de pêlos abundantes e pele grossa, suficientes para defendê-los do frio ou adequados para tornar mais suportável o calor, ao mesmo tempo que servissem a cada um descama natural, quando sentissem necessidade de deitar-se. Alguns dotou de cascos nos pés; outros, de garras, e outros, ainda, de peles calosas e desprovidas de sangue. De seguida, determinou para todos eles alimentos variados, de acordo com a constituição de cada um: a estes, erva do solo; a outros, frutos das árvores; a terceiros, raízes, e a alguns, ainda, até mesmo outros animais como alimento, limitando, porém, a capacidade de reprodução daqueles, ao mesmo tempo que deixava prolíficas suas vítimas, para assegurar a conservação da espécie. Como, porém, Epimeteu carecia de reflexão, despendeu, sem o perceber, todas as qualidades de que dispunha, e, tendo ficado sem ser beneficiada a geração dos homens, viu-se, por fim, sem saber o que fazer com ela. Encontrando-se nessa perplexidade, chegou Prometeu para inspecionar a divisão e verificou que os animais se achavam regularmente providos de tudo; somente o homem se encontrava nu, sem calçados, nem coberturas, nem armas, e isso quando estava iminente o dia determinado para que o homem fosse levado da terra para a luz. Não sabendo Prometeu que meio excogitasse para assegurar ao homem a salvação, roubou de Hefesto e de Atena a sabedoria das artes juntamente com o fogo – pois, sem o fogo, além de inúteis as artes, seria impossível o seu aprendizado – e os deu ao homem. Assim, foi dotado o homem com o conhecimento necessário para a vida; mas ficou sem possuir a sabedoria política; esta se encontrava com Zeus, e a Prometeu não era permitido penetrar na acrópole, a morada de Zeus, além de serem por demais terríveis as sentinelas de Zeus. Assim, a ocultas penetrou no compartimento comum em que Atena e Hefesto amavam exercitar suas artes, e roubou de Hefesto a arte de trabalhar com o fogo, e de Atena a que lhe é própria, e as deu aos homens. Desse modo, alcançou o homem condições favoráveis para viver. Quanto a Prometeu, consta que foi posteriormente castigado por esse furto, levado a cabo por culpa de Epimeteu.

Uma vez de posse desse lote divino, foi o homem, em virtude de sua afinidade com os deuses, o único dentre os animais a crer na existência deles, tendo logo passado a levantar altares e a fabricar imagens dos deuses. Não demorou, e começaram a coordenar os sons e as palavras, a engenhar casas, vestes, calçados e leitos, e a procurar na terra os alimentos. Providos desse modo, a princípio viviam os homens dispersos; não havia cidades; por isso, eram dizimados pelos animais selvagens, dada a sua inferioridade em relação a estes; as artes mecânicas chegavam para assegurar-lhes os meios de subsistência, porém eram inoperantes na luta contra os animais, visto carecerem eles, ainda, da arte da política, da qual faz parte a arte militar. À vista disso, experimentaram reunir-se, fundando cidades, para poderem sobreviver. Mas, quando se juntavam, justamente par carecerem da arte política, causavam-se danos recíprocos, com o que voltavam a dispersar-se e a serem destruídos como antes. Preocupado Zeus com o futuro de nossa geração, não viesse ela a desaparecer de todo, mandou que Hermes levasse aos homens o Pudor e a Justiça, como princípio ordenador das cidades e laço de aproximação entre os homens. Hermes, então, perguntou a Zeus de que modo deveria dar aos homens pudor e justiça: Distribuí-los-ei como foram distribuídas as artes? Estas foram distribuídas da seguinte maneira: um só homem com o conhecimento da medicina basta para muitos que a ignoram, verificando-se a mesma coisa com todas as outras artes. Devo proceder desse modo com o pudor e a justiça, ou reparti-los entre todos os homens igualmente? Entre todos, disse-lhe Zeus, para que todos participem deles, pois as cidades não poderão subsistir, se o pudor e a justiça forem privilégio de poucos, como se dá com as demais artes. E mais: estabelece em meu nome a seguinte lei: que todo homem incapaz de pudor e de justiça sofrerá a pena capital, por ser considerado flagelo da sociedade.

Dessa maneira, Sócrates, e por tal motivo julgam todos, e também os atenienses, que quando se trata de problemas relativos à virtude da arte de construção, ou de qualquer outra profissão mecânica, somente poucos podem participar de suas deliberações, e se alguém, estranho a esse pequeno número, se aventura a emitir opinião, não o toleram, como disseste, e, com razão, segundo penso. Quando, porém, vão deliberar sobre a virtude política, em que tudo se processa apenas em função da justiça e da temperança, é muito natural que admitam todos os cidadãos, por ser de necessidade que todos participem dessa virtude, sem a qual nenhuma cidade poderia subsistir. Essa é a razão, Sócrates, da diferença assinalada. E para que não penses que foste ludibriado por mim, quando disse que, de fato, todo o mundo está convencido de que os homens, sem exceção, participam da justiça e das demais virtudes políticas, ofereço-te a seguinte prova: em outros casos, como disseste, se alguém se apresenta como ótimo tocador de flauta ou conhecedor de qualquer outra arte, sem que o seja, ou se riem dele ou se mostram revoltados, enquanto os seus familiares o chamam à ordem, por estar ele fora do juízo. Mas, no que respeita à justiça e às demais virtudes políticas, embora todos estejam cientes de que alguém cometeu alguma falta, no caso de querer essa pessoa depor em público contra si própria, a simples confissão da verdade, que nos outros casos seria considerada prova de sensatez, passa agora a ser indício de rematada loucura, por julgarem que todo o mundo tem obrigação de, pelo menos, declarar-se justo, quer o seja, quer não, sendo considerado prova de loucura não procurar passar por justo. Porque, de um jeito ou de outro, é preciso que todos participem dessa virtude, sob pena de ser excluído do convívio dos homens.

Penso haver demonstrado que eles têm razão em aceitar a opinião de qualquer pessoa, a respeito desta virtude, por acreditarem que todos dela participam; agora, que apesar disso não a consideram um dom natural, ou efeito do acaso, porém algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicação, por quantos chegam a alcançá-lo, é o que procurarei demonstrar. Com efeito, ninguém se zanga com quem apresenta algum defeito natural ou acidental, nem repreende, castiga ou procura corrigir o portador desse defeito, para que deixe de ser o que é, mas apenas se acomiseram dele. Com relação aos feios, aos de pequena estatura e aos valetudinários, quem seria tão insensato para proceder dessa maneira? E que todos sabem, quero crer, que em tais coisas, tanto com relação às boas qualidades como aos seus contrários, só influi nos homens a natureza ou o acaso. Mas, quanto aos bens que eles julgam só poder serem adquiridos pelo estudo, aplicação e exercício, se alguém não os possui, porém os vícios seus contrários, aí é que surge a indignação, as repreensões e os castigos, contando-se entre aqueles a injustiça, a impiedade e o conjunto do que se opõe às virtudes políticas. Neste passo, não há quem não se mostre indignado nem se alargue em repreensões, evidentemente, por acreditar que essa virtude se aprende por meio de estudo e aplicação. Se refletires um pouquinho, Sócrates, na força da expressão "Punir os culpados", chegarás à conclusão de que os homens estão convencidos de que essa virtude pode ser ensinada. É certo que ninguém pune os autores de injustiças pela simples consideração ou motivo de haverem cometido injustiça, a menos que se comporte como animal irracional. Mas quem se dispõe a punir judiciosamente, não inflige o castigo por causa de falta cometida no passado – pois não poderá evitar que o que foi feito deixe de estar feito – porém com vistas ao futuro, para que nem o culpado volte a delinquir, nem os que assistem ao castigo venham a cometer falta idêntica. Essa maneira de pensar implica a convicção de que a virtude pode ser ensinada. O castigo é aplicado para a coibição do crime: eis o modo de pensar de todas as pessoas que aplicam penalidades, tanto particularmente como em público. Todos os homens condenam e castigam os que eles consideram criminosos, os atenienses, teus concidadãos, tão bem como os demais. Assim, do que disseste se infere que os próprios atenienses são de parecer que a virtude pode ser adquirida e ensinada. Têm razão os teus concidadãos em admitir que ferreiros e sapateiros participem de suas reuniões para deliberarem sobre matéria política, e que considerem que a virtude pode ser adquirida e ensinada; é o que, Sócrates, se não me iludo, te foi cabalmente demonstrado”. (Fonte: Protágoras, Platão. Tradução de Carlos Alberto Nunes, Universidade Federal do Pará, 2002, p. 64-69.).

 

Acredito que, portanto, temos uma única saída para o impasse entre os dois Sofistas (tudo é verdade versus nada existe...): é a construção de consensos, sempre provisórios, via diálogo (política), obviamente. Nada que vá além disso, como o estabelecimento de verdades prontas e acabadas, por exemplo.

Os consensos serão estáveis até que outros (melhores) os modifiquem ou os revoguem!

Portanto, não estamos num beco sem saída, em uma sinuca de bico!

Temos saída sim, e ela se dá pelo diálogo construtor de consenso. Fora disso, tudo é vão (ou não)!

Portanto, o que Protágoras assevera ao homem é: “construa sua vida a partir do único instrumento de que dispõe, o diálogo, a palavra, o discurso, capaz de estabelecer acordos (consensos, convenções) sempre provisórios, pois algo melhor (não verdadeiro!) pode ocorrer e é possível de ser construído. Não peça, pois não existe outro ser capaz de fazer isso por você, não existe um ser capaz de conduzi-lo pela mão como se você fosse um incapaz de construir o seu próprio destino.

Você é responsável por si mesmo e pelos demais!

Desde que, você e seu interlocutor acordem sobre determinado assunto, este será assim até que vocês o modifiquem ou o revoguem para a construção de outro consenso.

Dito isso, e somado a ele o que propõe Górgias (“o discurso como um grande tirano”) está completo o pensamento/proposta da sofística para o homem traçar o seu destino, com independência de qualquer ente transcendente!

Então o “nada é...” soma-se ao “tudo é verdadeiro” e caminham de mãos dadas como os homens que os protagonizam.

De tudo isso, proponho um “conceito sofístico de verdade”, que é:

Verdadeé o consenso obtido provisoriamente, por falta de outro melhor, sobre uma determinada opinião que critica um pensamento externado. (São Paulo, 24.03.11.).

Portanto, homens, aproveitem e caminhem sem bengala!

O mundo é você, mantenham-no e construam-no e reconstruam-no de forma a obterem entre si a paz necessária a preservação da vida em sociedade.

 

Kerferd sugere a seguinte conciliação:

 

Usamos os termos logos e logoi que não foram traduzidos, ou o foram diversamente por "afirmações", "argumentos" e (no singular) por "fala" ou "discurso" e, pelo menos em uma ocasião, pareceu apropriado falar de um logos como ocorrendo "na estrutura das coisas". Na verdade, uma pesquisa nos dicionários revela imediatamente que a faixa de significados ou aplicações da palavra grega logos é ainda mais larga do que poderia sugerir a variedade de traduções dadas acima. Não é, estritamente falando, com uma palavra com diferentes sentidos que estamos lidando aqui mas, antes, com uma palavra com uma série de aplicações relacionadas, todas, com um único ponto de partida. Esse é um fenômeno que, de acordo com G. E. L. Owen, veio a ser rotulado de "significação focal", embora talvez "referência focal" fosse uma expressão melhor, visto que o que está envolvido é uma referência extra linguística a alguma coisa que se supõe ser fato no mundo à nossa volta. No caso da palavra logos, há três áreas principais de aplicação ou uso, todas relacionadas por uma unidade conceitual subjacente. São elas, em primeiro lugar, a área da linguagem e da formulação linguística, portanto fala, discurso, descrição, declaração, afirmação, prova (quando expressa em palavras) e assim por diante; em segundo lugar, a área do pensamento e dos processos mentais, portanto reflexão, raciocínio, justificação, explicação (cf. orthos logos) etc.; em terceiro lugar, a área do mundo, aquilo sobre o que somos capazes de falar e pensar, portanto princípios estruturais, fórmulas, leis naturais e assim por diante, desde que, em cada caso, sejam considerados realmente presentes e exibidos no processo do mundo.

Embora em qualquer determinado contexto a palavra logos pareça apontar principalmente, ou mesmo exclusivamente, para apenas uma dessas áreas, a significação fundamental, usualmente, talvez sempre, envolve algum grau de referência às duas outras áreas também, e isso, acredito, é verdade tanto para os sofistas como para Heráclito, para Platão e para Aristóteles. Por isso, no que se segue, onde por conveniência o termo "argumento" é usado como tradução, deve-se lembrar que isso será enganoso a menos que seja entendido como normalmente referindo-se, em certo grau, a todas as três áreas mencionadas acima.

Diógenes Laércio inicia o seu breve sumário das doutrinas de Protágoras (DK 80A1) com a afirmação: "Ele foi o primeiro a dizer que há dois logoi [argumentos] concernentes a todas as coisas, sendo opostos um ao outro. Foi por meio desses logoi que passou a propor argumentos envolvendo uma série de estágios, e foi o primeiro a fazer isso". Essa doutrina é firmemente associada a Protágoras em outras fontes também (DK 80A20) e, segundo Sêneca (Ep. 89.43), ele queria dizer, com isso, que se pode tomar qualquer lado de uma questão e debatê-la com igual sucessoaté mesmo a questão se todo assunto pode ser debatido a partir de qualquer um dos pontos de vista. É claro que sempre houve argumentos opostos desde que a raça humana se entreteve em argumentar. Mas o aspecto essencial não era simplesmente a ocorrência de argumentos opostos, mas o fato de que ambos os argumentos opostos pudessem ser expressos por um único orador, como se fosse dentro de um único argumento complexo. [Osório diz: frase de Protágoras].

Essa doutrina, de fato, era bem conhecida na segunda metade do século V a.C., e não estava confinada em Protágoras. Um fragmento da peça Antíope, de Eurípedes, que não pode ser anterior a 411 a.C., diz: "Em todos os casos, se a pessoa for inteligente no falar, poderia estabelecer um debate de argumentos duplos" (fr. 189N2) [Osório diz: Eurípides pode dizer isso sem sofrer as mesmas condenações dirigidas contra Protágoras?]; é interessante notar que, aparentemente, segundo Aristides, era um ator, na peça, que expressava ambos os argumentos. Em As nuvens, de Aristófanes, produzida pela primeira vez em 423 a.C., há um famoso debate entre dois logoi ou argumentos personificados — o Argumento Justo e o Argumento Injusto [Osório diz: aqui começa a inversão! Forte é trocado por justo / fraco é trocado por injusto]. Como já vimos, existe de fato um tratado conhecido como o Dissoi Logoi, ou "Argumentos Duplos" (DK 90), a ser datado provavelmente do início do século IV a.C. Começa declarando "Argumentos duplos concernentes a bons e maus são apresentados, na Grécia, por aqueles que se dedicam à filosofia", e os três parágrafos seguintes começam da mesma forma, mas discutem respectivamente o belo e o feio, o justo e o injusto, o verdadeiro e o falso. Sob cada título são apresentados argumentos opostos ou antitéticos.

O autor do tratado é desconhecido. É, sem dúvida, de caráter sofista, e alguns quiseram atribuí-lo à escola de Protágoras, se é que havia uma. Mas há, aqui, o perigo de circularidade no argumento. A técnica de argumentos opostos é certamente atribuída a Protágoras. Mas, enquanto não ficar estabelecido que estava confinada nele, não se deve concluir que todos os outros exemplos procedam exclusivamente dele. De fato, há testemunhos de que essa maneira de ver as coisas era bem uma característica da época. Além das referências já dadas, eu citaria a passagem em Vida de Péricles 4.3, de Plutarco, segundo a qual

 

Péricles era também aluno de Zenão, o Eleático, que discursava sobre física, como Parmênides, e que aperfeiçoou um tipo de habilidade para questionar adversários, num argumento, que os levava a um estado de aporia através de argumentos opostos [di’antilogias]; assim se expressou Timon de Flius, quando falou do grande poder, cujo efeito jamais falhou, do homem de língua de dois gumes, Zenão, que tinha o domínio de todas as coisas.

 

Aqui, Timon está identificando, corretamente, o procedimento com o método pelo qual Zenão reduzia seus adversários ao silêncio, mostrando-lhes que suas posições preferidas eram contraditórias pelo fato de implicarem também a negação de si mesmas. Como já vimos, esse é o método da antilógica, e talvez seja o aspecto mais característico do pensamento de todo o período sofista.

Depois de mencionar a doutrina dos dois logoi opostos, Diógenes de Laércio prossegue citando a famosa declaração, manifestamente do início de um dos escritos de Protágoras: "O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, quanto a como são, e das coisas que não são, quanto a como não são". O título da obra é dado por Platão (Teeteto 161 c) como sendo Sobre a verdade, ao passo que Sexto Empírico (DK 80A1) diz que ela está no início de Escritos demolidores, possivelmente um outro nome para a mesma obra. A interpretação dessa famosa sentença tem sido tema de discussão desde o tempo de Platão até os nossos dias. Na realidade, não seria exagerado dizer que a compreensão correta de seu sentido nos levará diretamente ao coração de todo o movimento sofista do século V. Alguns pontos que foram temas controvertidos no passado podem agora ser considerados razoavelmente resolvidos [Osório diz: frases de Protágoras]. Proponho simplesmente fazer uma lista deles a fim de guardar lugar para outros temas de controvérsia. O homem que é a medida é cada homem individualmente, como você e eu, e certamente não a raça humana, ou a humanidade tomada como uma entidade em si [Osório diz: o homem individualmente ou toda a humanidade?]. Em segundo lugar, o que é medido nas coisas não é a sua existência e não-existência, mas o modo como são e o modo como não são, ou, em termos mais modernos, quais são os predicados que devem lhes ser atribuídos como sujeitos em sentenças sujeito-predicado [Osório diz: o que o homem mede?]. Diz Platão, no Teeteto, 152a6-9), imediatamente após citar a afirmação, que isso significa que "cada grupo de coisas é para mim tal como me aparece, e é, para você, tal como lhe aparece". O exemplo típico, mais tarde, na Antiguidade é este: se o mel parece doce para alguns e amargo para outros, então ele é doce para aqueles aos quais parece doce e amargo para aqueles aos quais parece amargo.

Mas se isso seria, hoje, provavelmente aceito pela maior parte dos estudiosos, só até aí se pode chegar com segurança — o resto é assunto de debate e de alguma dificuldade. A questão mais controvertida concerne à natureza e à situação das coisas das quais o homem é a medida. Será conveniente resumir a discussão de Platão no Teeteto, onde se dá um exemplo. Protágoras tinha dito que o homem é a medida de todas as coisas, querendo dizer que cada grupo de coisas é para mim tal como me aparece e é para você tal como lhe aparece. Assim, no caso do vento, às vezes quando o mesmo vento está soprando ele é frio para uma pessoa e, para outra, não. Nesse caso, portanto, Protágoras diria que o vento é frio para aquela que sente frio, e não é frio para a outra. Ora, é claro que essa teoria implica a rejeição da percepção cotidiana de que o vento em si mesmo ou é frio, ou não é frio, e uma das pessoas que o sente se engana supondo que o vento é tal como lhe parece e a outra está certa. Mas restam pelo menos três possibilidades: (1) não há um único vento, mas dois ventos particulares, o meu vento que é frio, e o seu vento que não é. (2) Há um vento (público), mas não é nem frio nem quente. A frieza do vento só existe particularmente para mim quando tenho a sensação de frio. O vento mesmo existe independentemente da minha percepção dele, mas a sua frialdade, não. (3) O vento em si mesmo é ao mesmo tempo frio e quente — quente e frio são duas qualidades que podem coexistir no mesmo objeto físico. Eu percebo uma, você percebe a outra.

Todas essas três visões têm seus defensores modernos, embora a divisão maior seja entre os que defendem (2) e os que defendem (3)[Mas Gregory Vlastos sustenta que Platão não estava interessado em se pronunciar sobre a situação do vento não percebido, de modo que sua opinião liga (1) e (2)]. Chamarei a (2) de opinião subjetivista (embora o termo subjetivista pudesse claramente ser aplicado também, em sentido ainda mais forte, a (1)), e de opinião objetivista a (3). Mas é preciso compreender que (2) incluirá a opinião de que a percepção baseia-se, de modo causal, nos aspectos de fato presentes no mundo objetivo. Esses fatores causativos podem bem, numa opinião comumente sustentada, ser a fonte dos conteúdos das percepções de um indivíduo. Mas o que ele percebe são os resultados dessas causas, não os próprios fatores causativos; como esses resultados são determinados pelo impacto dos fatores causativos em si mesmo enquanto sujeito, e vão variar de pessoa a pessoa, de acordo com as diferenças no sujeito, será conveniente e, espero, não muito ilusório continuar a incluir essa teoria sob o título de teorias subjetivistas.

Depois de explicar que com a doutrina do homem-medida Protágoras queria dizer que o vento era frio para o homem a quem ele parecia frio e não era frio para o homem a quem não parecia ser frio, Platão continua dizendo, no Teeteto (152b9), que parecer é o mesmo que ser percebido, e conclui que Percepção, então, é sempre daquilo que é, e é infalível, sendo o mesmo que conhecimento. Agora, como a expressão "aquilo que é" é quase regularmente usada em Platão para se referir à realidade objetiva, permanente, enquanto distinta dos padrões mutáveis do mundo das aparências, isso parece favorecer mais a interpretação (3) do que a interpretação (2). Mas essa inferência dificilmente se justifica, no presente caso, visto que a doutrina do homem-medida não é um critério para a existência mas, sim, para determinar como as coisas são, no sentido de quais predicados devem lhes ser aplicados. Em outras palavras, ao dizer que a percepção é sempre daquilo que é, poderíamos entender que isso significa que, para Protágoras, percepção de um objeto branco é sempre a percepção de que ele é branco.

Mais importante para nosso propósito aqui é a afirmação de que percepções como tais são infalíveis. Isso significa que cada percepção individual, em cada pessoa individual e em cada ocasião individual é, estritamente falando, incorrigível — não pode nunca ser corrigida mediante comparação com a percepção de outra pessoa que difere da minha, nem por outro ato de percepção por mim mesmo em outra ocasião, mesmo que seja apenas um instante depois de minha primeira percepção. Se alguma coisa me parece doce, então é doce para mim, e isso não pode ser refutado pela experiência de outra pessoa que a percebe não como doce, mas como amarga, e assim por diante. Essa asserção é de considerável importância filosófica e o fato de ter sido proposta por Protágoras é certamente prova bastante clara de que, ao propô-la, Protágoras estava filosofando. Pois constitui a doutrina de que todas as percepções são verdadeiras. [Osório diz: sendo que a isso pode somar-se as 3 teses de Górgias, fechando a questão!].

Mas as consequências dessa posição filosófica não são insignificantes. Se todas as percepções são verdadeiras, segue-se que não há percepções falsas. Se todas as percepções são incorrigíveis, então não devem ser corrigidas, nem devem ser refutadas mediante a contraposição de outros atos de percepção, seja pela mesma pessoa, seja por outra. Que essas consequências foram de fato tiradas no período sofista, creio que pode agora ser estabelecido da seguinte forma. O ponto de partida deve ser o argumento no Eutidemo 283e-286d, de Platão. Aí se afirma que "não é possível contradizer", querendo dizer, com isso, que não é possível a uma pessoa contradizer a outra (ouk estin antilegein). Essa doutrina paradoxal está baseada numa segunda asserção paradoxal, a saber, que não é possível dizer o que é falso. Este segundo paradoxo é defendido da seguinte maneira.

Quem diz a verdade está falando qual é o caso daquilo que é o caso. A pessoa que fala de maneira inverídica está falando o que não é o caso daquilo que não é o caso. Mas aquilo que não é o caso simplesmente não existe. De modo que uma pessoa que diz o que não é caso não está falando de coisa alguma. Está usando palavras mas elas não se referem a nada porque aquilo ao que elas parecem estar se referindo simplesmente não existe [Osório diz: aquí, a própria atitude do Crático, de apenas mover o dedo, de que tanto fala Barbara Cassin para combater Aristóteles, vem ao caso. Ou seja, crático nem precisava balançar o dedo, mas, se desejasse, simplesmente falar, mas não precisa falar aquilo que Airstóteles quer que ele fale!]. Daí se segue, argumenta-se, que se duas pessoas fazem uma afirmação, ou (1) dizem a mesma coisa, e nesse caso não há contradição, ou (2) uma pessoa está dizendo qual é o caso, isto é, o que é verdadeiro porque a coisa a respeito da qual está falando é tal como ela diz que é, e a outra pessoa está dizendo alguma coisa diferente do que diz a primeira pessoa. Isto também é o caso e, portanto, é verdadeiro, mas, porque é verdadeiro, será sobre alguma coisa diferente daquilo sobre o qual a primeira pessoa estava falando. Portanto as duas pessoas estão falando de coisas diferentes. Suas afirmações aparentemente conflitantes não constituem uma contradição porque não estão falando da mesma coisa, ou (3) uma pessoa está dizendo qual é o caso, isto é, o que é verdadeiro porque a coisa da qual está falando é como ela diz que é. A outra pessoa está dizendo alguma coisa verbalmente diferente, do tipo que geralmente se diz que é inverídico. Mas porque é inverídico não é, absolutamente, sobre alguma coisa e, portanto, não é sobre aquilo a que se referia a afirmação feita pela primeira pessoa. Ela está usando meras palavras que não se referem a nada e, portanto, não está contradizendo a afirmação verdadeira feita pela primeira pessoa.

Este, ou algo parecido com isso, é o argumento desenvolvido no Eutidemo. Ambas as asserções, que não é possível contradizer e que não é possível dizer o que é falso, têm uma longa história subsequente. Aristóteles (Met. 1024b32, Top. 104b21) atribuiu ambas a Antístenes, embora não diga que tiveram sua origem nele. Antístenes aparentemente ainda estava vivo em 366 a.C. e, com base nisso, tem sido comum negar que qualquer uma das doutrinas tivesse alguma coisa a ver com o movimento sofista. Os testemunhos contra essa opinião, entretanto, sempre foram consideráveis. Imediatamente após o relato no Eutidemo, resumido acima, Platão faz Sócrates dizer (286cl) que "tem ouvido esse argumento de várias pessoas em várias ocasiões — pois Protágoras e os que lhe estão associados costumavam fazer grande uso dele, como o fizeram outros ainda antes dele". Se não bastasse isso, temos também uma afirmação, no Crátilo (429c9-d3), de que há muitos, tanto agora como no passado, que dizem que é completamente impossível dizer coisas que são falsas. Certamente baseado em testemunhos como esse, Filopono, no século VI d.C., não tinha dúvida de que a doutrina pertencia de fato a Protágoras (in Cat. 81.6-8).

Mesmo assim, a posição poderia ter parecido a alguns ainda duvidosa, na falta de novos testemunhos. Inesperadamente, surgiu um. Em 1941, descobriu-se parte de um papiro com um comentário sobre o Eclesiastes, provavelmente de autoria de Dídimo o Cego (século IV d.C.). Uma passagem dele, de grande interesse e importância, se tornou acessível em 1966, ao ser publicada por dois especialistas, G. Binder e L. Lisenborghs. O que aí é dito é o seguinte:

 

Uma afirmação paradoxal de Pródicos nos é transmitida no sentido de que não é possível contradizer (ouk estin antilegein)... isto é contrário à ideia e à opinião de todos os homens. Pois todos os homens contradizem tanto nas suas transações cotidianas como em questões de pensamento. Mas ele diz dogmaticamente que não é possível contradizer. Pois, se duas pessoas se contradizem, ambas falam. Mas é impossível que ambas estejam falando com referência à mesma coisa. Pois ele diz que só a que está dizendo a verdade e que proclama as coisas tais como são realmente é que está falando delas. A outra, que está se opondo a ela, não fala da coisa, não fala a verdade. [Osório diz: falar da coisa (dizer a verdade) não contradiz quem não fala da coisa (não diz a verdade), pois ambos os emissores estão a falar de coisas diferentes, um da coisa o outro da “não coisa”! Logo, impossível a contradição]

 

Na tradição doxográfica, Pródicos é mencionado como aluno de Protágoras (DK84A1), e a passagem justifica completamente a atribuição da doutrina segundo a qual não se pode contradizer o período sofista em geral e, em particular, Protágoras e seus discípulos.

Podemos agora voltar à doutrina do homem-medida e ao exemplo dado no Teeteto. No caso de discordâncias de percepção entre duas ou mais pessoas, não é possível que qualquer das afirmações feitas envolva falsas descrições do que está sendo descrito. Para o homem a quem o vento parece frio, ele é frio; e para o homem a quem ele parece quente, ele é quente. Ambas as afirmações são verdadeiras e não há, aqui, possibilidade de falsidade. Mas, da mesma forma, não há contradição — as duas afirmações não são sobre a mesma coisa, visto que cada homem está falando apenas de sua própria experiência, ou daquilo a que se refere a sua própria experiência. Ele não tem acesso à experiência do outro homem ou àquilo a que se está referindo na experiência do outro homem, e não pode fazer sobre isso nenhuma afirmação significativa. [Osório diz: e aí entram as 3 teses de Górgias em apoio a Protágoras].

No caso, então, em que algo assim estivesse envolvido na doutrina da percepção de Protágoras, tal como expresso na sua doutrina do homem-medida, como relacionar isso com a sua afirmação "concernentes a todas as coisas há dois logoi, um oposto ao outro"? Surgem duas dificuldades. Primeiro, se as percepções de cada um deles são verdadeiras, e elas constituem logoi, poderia parecer que concernentes a todas as coisas não haveria dois logoi, mas um número muito maior, a saber, tantos quantos as diferentes percepções de diferentes pessoas, seja agora, ou no passado ou no futuro. A resposta poderia ser que a grande variedade de experiências de percepção se reduzirá sempre a apenas duas, quando se toma uma como ponto de partida. Todas as cores diferentes de vermelho são sempre, necessariamente, não-vermelhas; todos os sabores diferentes do doce serão sempre, necessariamente, não-doces. Portanto, os dois logoi opostos seriam compreendidos, respectivamente, como A e não-A. Mas isso leva a uma objeção mais grave. A e não-A são claramente contraditórios. Se, para Protágoras, há sempre, de fato, dois logoi opostos concernentes a todas as coisas, e todos os logoi são verdadeiros, o que aconteceu com a doutrina segundo a qual é impossível contradizer? Este é um problema que não se colocou tão nitidamente na interpretação mais antiga de Protágoras, porque, na visão mais antiga, ele não sustentava que é impossível contradizer. Mas era um problema que sempre esteve lá, visto que a doutrina do homem-medida parece exigir que não haja nunca logoi opostos sobre a mesma coisa; eles são sempre sobre coisas diferentes; por exemplo, minha experiência e sua experiência são coisas diferentes, não uma e a mesma coisa. Se, como agora vimos razão para supor, há forte indício de que, de fato, Protágoras sustentava que a contradição é impossível, parece que temos um conflito direto com a doutrina dos dois logoi opostos [Osório diz: penso que ele harmoniza isso com o mito de Prometeu! Embora as contradições sejam impossíveis, as opiniões dos homens são sempre verdadeiras, mas para cada um, daí a necessidade de buscarem a harmonia para saber qual debe prevalecer recebendo a aquiescência do outro].

Mas há uma resposta possível. O que é preciso é reconhecer que há dois diferentes níveis envolvidos. Como afirma a passagem de Dídimo, as pessoas de fato se contradizem uma à outra, no sentido de que opõem negativamente uma afirmação à outra, tanto na vida cotidiana como no argumento filosófico. Não há, provavelmente, situação alguma na qual isto seja, pelo menos psicologicamente, impossível, e isso foi reconhecido na citação da Antíope de Eurípides. O que é necessário que se diga é que no nível verbal é possível a contradição, mas que isso não se aplica ao nível das coisas sobre as quais estamos falando. Pois quando estabelecemos aparentes contradições, no nível das palavras, elas são só aparentes, e se ambas as afirmações têm sentido será porque são sobre coisas diferentes, não são sobre a mesma coisa. [Osório diz: Salvando a doutrina de Protágoras].

Esta explicação tem a vantagem de nos permitir entender uma afirmação histórica que, infelizmente, não tem sido regularmente incluída nas coleções de passagens relativas aos sofistas. No início de sua composição sobre Helena, escrita talvez por volta de 370 a.C., Isócrates fala de "homens que envelheceram afirmando que é impossível dizer coisas que são falsas, ou contradizer, ou opor dois argumentos (logoi) concernentes às mesmas coisas", e opõe esses homens, como grupo, a outros (que parecem ser platônicos) que mantêm a unidade das virtudes. E prossegue dizendo que, infelizmente, essa evolução não é apenas recente — todo mundo sabe que Protágoras e os sofistas de seu tempo nos deixaram escritos exibindo coisas desse tipo —, e então menciona Górgias, Zenão e Melissos. Em primeiro lugar, deve-se notar que essa passagem reúne três princípios — a doutrina dos dois logoi, a impossibilidade de falsidade e a impossibilidade de contradição, em relação a um único grupo de homens. Mas fala da impossibilidade da doutrina dos dois logoi, quando a Protágoras se atribuía a sua asserção positiva. Isso significaria que, afinal de contas, não é a Protágoras que se faz referência?

Não é isso. A formulação tradicional da doutrina dos dois logoi dizia que há dois logoi concernentes a todas as coisas. O que Isócrates diz é que "eles" sustentam que é impossível haver dois logoi concernentes às mesmas coisas (no plural). Em outras palavras, quando há dois logoi, eles concernem não a uma mesma coisa, mas a coisas diferentes. Não poderia ser que Isócrates esteja correto por estar preservando a resposta dada, no círculo de Protágoras, exatamente à dificuldade que estávamos discutindo? Nós sabemos que, em certo sentido, Protágoras tinha atacado a doutrina segundo a qual a realidade era Uma (DK 80B2).

Mas, se há dois logoi concernentes a todas as coisas, como é possível manter, ao mesmo tempo, que quando há dois logoi estes não se referem à mesma coisa mas a coisas diferentes? De fato, no Teeteto, não disse Sócrates (152b2) "quando o mesmo vento está soprando, uma pessoa o sente frio e outra não" — sugerindo, assim, que o vento é uma coisa, não duas coisas? A isso a resposta deve ser, obviamente, sim. Mas, nesse caso, o que aconteceu com a sugestão de que há duas coisas envolvidas, em vez de uma? A resposta só pode ser que uma coisa é a que funciona como sujeito, e os dois logoi são o que é expresso por termos predicados aplicados, por exemplo, ao vento, enquanto sujeito. Isso explicaria por que Aristóteles trata habitualmente a doutrina do homem-medida de Protágoras como implicando uma negação da lei da não-contradição. Para Protágoras, o mesmo vento é quente e não-quente (= frio). Isto envolve duas afirmações contraditórias, a saber, "o vento é quente", e "o vento não é quente", e até esse ponto os que fazem essas duas afirmações estão falando da mesma e única coisa. Todavia, na medida em que se considera o vento como contendo, ao mesmo tempo, duas qualidades, ou substâncias, a saber, quente e frio, também é verdade que as afirmações "o vento é quente" e "o vento é frio" se referem a duas coisas diferentes, a saber, o quente no vento e o frio no vento. Ambas as afirmações podem ser verdadeiras, sem contradição, visto que as duas afirmações são afirmações sobre coisas diferentes. Convém, aqui, mencionar a casual sobrevivência de uma passagem do livro de Protágoras, Sobre aquilo que é, citada por Porfírio (DK 80B2), na qual Protágoras argumentava longamente, usando uma série de demonstrações, contra os que apresentavam o ser como um. Podemos inferir que Protágoras insistia em que aquilo que é não é um, mas uma pluralidade em todas as ocasiões. [Osório diz: frase de Protágoras].

Evidentemente algumas das minuciosas interpretações sugeridas aqui estão abertas a contestação. O que quero sugerir é que há dados convincentes em favor da tentativa de interpretar a doutrina de Protágoras como uma contribuição intencional, séria, para um problema filosófico sério. Volto-me, em seguida, para a questão de saber até que ponto isso era algo a ser associado somente com Protágoras, e até que ponto representa uma abordagem partilhada também por outros sofistas, ou até pelo movimento sofista como um todo. Já tivemos ocasião de considerar o surpreendente novo testemunho que deixa claro que Pródicos estava ligado exatamente a esses problemas. Mas e os outros? Aqui, o testemunho disponível não é novo. Mas clama realmente, creio eu, por uma nova abordagem, não obnubilada pelas pressuposições tradicionais como acontece frequentemente no estudo dos sofistas.

O testemunho mais importante se encontra no tratado de Górgias intitulado, segundo Sexto Empírico, Sobre aquilo que não é ou sobre a natureza. Temos dois sumários distintos dessa obra, um preservado por Sexto (ver DK 82B3) e o outro, na terceira seção de um fragmento de texto em estilo doxográfico, erroneamente atribuído a Aristóteles e, por isso, incluído no Corpus de seus escritos sob o título "Sobre Melissos, Xenófanes e Górgias" — ou, abreviadamente, De MXG. Nesse tratado Górgias apresentou o seu argumento em três estágios: (1) nada é, (2) se é, não pode ser conhecido pelos seres humanos, (3) e se é, e é cognoscível, não pode ser indicado e tornado significativo para outra pessoa.

A interpretação do que Górgias está dizendo é difícil, e o certo é que ainda não está à vista uma compreensão unânime do seu sentido geral, sem falar dos seus argumentos detalhados. Contudo, sua importância dificilmente poderá ser superestimada. Afinal de contas, é o que mais próximo temos, ou jamais teremos, de uma apresentação técnica completa de um argumento sofista articulado do século V a.C. É um texto mais técnico e mais organizado do que o Dissoi Logoi, com o qual, sob outros aspectos, pode ser comparado. O seu tratamento pelos estudiosos sintetiza, de várias maneiras, o problema da abordagem erudita do movimento sofista como um todo. Houve basicamente três estágios. Durante muito tempo pensou-se que não tinha intenção séria, mas fora composto simplesmente como uma paródia ou uma pilhéria sobre filósofos, ou, na melhor das hipóteses, um exercício puramente retórico de argumentação [Osório diz: se é destruidor não sendo sério {se fosse o fosse!} é opinião de quem não consegue enfrentá-lo]. De modo geral, é provável que essa visão não mais impere, embora ainda tenha defensores. Por isso Guthrie pôde escrever, a respeito do argumento apresentado na primeira das três seções da obra: "É tudo, claro, uma bobagem interessante" [Osório diz: como diria qualquer bobo sem resposta]. Um segundo estágio é alcançado por aqueles que estão preparados a levá-la a sério e a tomaram como um ataque geral e cuidadosamente orquestrado contra as doutrinas filosóficas dos eleáticos e, por extensão, contra as doutrinas de certos filósofos físicos entre os pré-socráticos. Esse tipo de interpretação toma o verbo "ser", no tratado de Górgias, no sentido de "existir". A primeira parte, então, argumenta que Nada existe, e passa a demonstrar isso argumentando que Não-ser não existe, tampouco Ser existe. Isso é dirigido contra a asserção de Parmênides de que somente o Ser existe e Górgias, com os seus argumentos, chega a uma posição de niilismo filosófico. Parmênides tinha destruído o mundo multiforme das aparências, mas reteve o mundo unitário do Ser Verdadeiro; Górgias apagou a lousa inteira, e ficou com simplesmente — Nada. [Osório diz: Górgias versus Parmênides].

Um dos atrativos desse segundo estágio na interpretação do tratado de Górgias era o fato de colocar Górgias firmemente, mesmo se um tanto destrutivamente, dentro da corrente principal da história da filosofia. Creio que isso permanece como requisito para uma interpretação correta. Mas, entrementes, houve algumas mudanças algo radicais em consequência das quais talvez estejamos à vista de uma melhor compreensão do curso geral da história da filosofia grega. Resumindo, nossa abordagem de Parmênides e dos eleáticos tende a ser, agora, um tanto diferente do que era há um século ou mesmo há meio século. Isso resulta, em parte, de um exame mais atento dos fragmentos existentes e da tradição doxográfica, no caso de Parmênides, e em parte de uma reavaliação mais geral da interpretação filosófica do verbo "ser" no grego, tanto antes como depois dos sofistas. Numa importante pesquisa começando por Homero, Charles Kahn notou a dificuldade de fazer qualquer distinção sintática firme entre o uso do verbo de forma absoluta, isto é, sem nenhum predicado, como em "X é", e a sua construção predicativa, como em "X é Y". E contestou o uso do primeiro, ou o uso absoluto, como "existencial". De fato, ele tende a tratar ambos os usos basicamente como sinais de asserção, reduzindo ambos, o uso "existencial" e o uso "predicativo", a um uso mais fundamental que está muito mais próximo do "predicativo" do que do "existencial". Depois, num artigo de importância fundamental, G. E. L. Owen argumentou que no diálogo Sofista de Platão, a discussão não inclui, nem obriga nenhum isolamento de um verbo existencial, e que ele se revela como sendo primariamente um ensaio em problemas de referência e predicação. Em terceiro lugar, essa nova abordagem foi aplicada diretamente a Parmênides, sobretudo por A. P. D. Mourelatos, com a conclusão de que Parmênides não estava interessado diretamente na existência e não-existência, mas antes em distinguir, entre duas vias, uma positiva na qual dizemos "x é F", e uma negativa na qual dizemos "x não é F". É a segunda via que Parmênides está condenando em favor da primeira como a única via possível.

Tudo isso importa em uma enorme mudança de ênfase. Da opinião de que boa parte da filosofia grega se preocupava primariamente com problemas de existência, passa-se para a opinião de que a preocupação, nesses casos, era mais com o que chamaríamos de problemas de predicação, que eles tendiam a tratar mais como problemas da inerência de qualidades e características dos objetos no mundo real à nossa volta. Isso me leva ao que eu gostaria de considerar o terceiro estágio na abordagem do tratado de Górgias, a saber, sua interpretação à luz dos problemas de predicação. Essa abordagem é relativamente nova, e é controvertida. Não posso tentar justificá-la, aqui, com análise e argumentação detalhada. Mas após alguma reflexão concluí que seria melhor apresentar simplesmente minha interpretação do tratado como um todo, sem mais explicações, mesmo que não tenha valor. Direi simplesmente que, mesmo que venha a ser julgado totalmente errado nessa questão, não estaria, de forma alguma, em conflito com o caráter antilógico do tratado. A discordância não seria sobre a questão do argumento de Górgias ser construído sobre contradições inferidas e logoi opostos — de fato é, claramente — mas somente sobre a natureza e as aplicações dos logoi opostos.

Nessa opinião, é principalmente no uso predicativo do verbo "ser" que Górgias está interessado, e com as contradições que isso parece gerar. Ele está argumentando que não há como aplicar o verbo "ser" a um sujeito sem que surjam contradições, e está pensando principalmente nas declarações acerca de fenômenos. Essas contradições, os eleáticos tinham identificado no caso de declarações negativas; para Górgias elas também se verificam nas declarações positivas [Osório diz: com o que está preocupado Górgias quando trata do verbo ser].

Para a primeira parte do tratado, é provável que o texto do De MXG seja uma representação mais fiel do original do que a versão dada por Sexto. Nas duas versões, a primeira parte se iniciava com a afirmação de que nada é. No De MXG é dado um argumento especial para estabelecer isso, imaginado pelo próprio Górgias — não é possível a qualquer coisa ser ou não ser. Suponha que algo seja capaz de não ser, o fato de que é (capaz disso) significa que é. Mas se é (tomado como uma alternativa à suposição de que é capaz de não ser), aí nos defrontaremos com uma série de opções — ou é um, ou é muitos, ou é não-gerado ou é alguma coisa que foi gerada. Argumentos derivados, em parte, de Zenão e Melissos, são aduzidos para mostrar que nenhuma dessas quatro opções é possível. Se não é nenhuma das alternativas emparelhadas, também certamente não são ambas as alternativas juntas. Se não é nenhuma dessas três possibilidades, não é absolutamente nada, visto que só há essas três possibilidades. [Osório diz: Romilly].

O que é isso de que se está falando aqui? Parece-me haver claras indicações de que Górgias está interessado em cada uma e todas as coisas, não importa o que, incluindo-se, acima de tudo, os objetos fenomenais. Isso é fortemente sugerido pelo uso da palavra pragmata ("coisas") no plural (979a27-28), apoiado por mais duas referências gerais em Isócrates, que diz, no Helena (X, 3): "Pois poderia alguém superar Górgias, que ousava declarar que nenhuma das coisas que são é", e no Antidosis (XV, 268), onde menciona Górgias como o último de toda uma série de "velhos sofistas, dos quais um disse que a soma das coisas é feita de um número infinito de elementos, Empédocles de quatro... Parmênides e Melissos de um, e Górgias de nenhum" (ambas as passagens em DK 80B1). Esta última passagem, especialmente, fortalece a opinião segundo a qual Górgias estava interessado não só em atacar os eleáticos mas também os pluralistas entre os pré-socráticos.

A segunda parte do tratado argumenta que, mesmo que disséssemos de alguma coisa que ela é, ela seria incognoscível e impensável por qualquer ser humano. A maneira como isso é discutido é, filosoficamente, de considerável interesse e a questão de sua real validade é apenas parte desse interesse, talvez uma parte relativamente pequena. Não podemos dizer que as coisas sendo pensadas são — se disséssemos isso teríamos de dizer que todas as coisas sendo pensadas são, e que são tal como são pensadas, isto é, possuem as qualidades presentes a elas no pensamento. Assim, se pensarmos em um homem voando, ou em carros apostando corridas no mar, seguir-se-ia que um homem está de fato voando ou que carros estão de fato apostando corrida no mar. Assim, de modo geral, se supomos que qualquer coisa que alguém pense é, então não haveria mentira. Portanto, concluímos, não se pode dizer que o que um homem pensa é. A partir disso se argumenta que o que é não é capaz de ser pensado. Portanto, se alguma coisa é, não será pensável.

Talvez o principal interesse desse argumento seja a maneira como ele abre um contraste, de fato um fosso, entre atos mentais cognitivos (pensamentos, percepções etc.) e os objetos que eles conhecem ou pretendem conhecer. Parece que se está dizendo que para que qualquer coisa seja conhecida ou pensada a mente deve ter (isto é, repetir ou reproduzir e, portanto, ela mesma possuir) as características próprias do objeto conhecido. Objetos brancos, se pensados, requerem pensamentos brancos e objetos que são requerem, se pensados, pensamentos que são. As implicações dessa opinião e as objeções a ela são de considerável interesse, mas este não é o lugar para discuti-las. O que é mais relevante para a minha argumentação são algumas outras considerações. Foi argumentado, na Parte I do tratado, que nada é. Agora, hipoteticamente, somos solicitados a considerar as consequências de supor que, de fato, as coisas são. Essas consequências são declaradas inaceitáveis por causa do que se seguiria em relação às coisas e ao nosso pensamento sobre elas. Não há nenhuma tentativa de abolir o pensamento; somente se nega que possamos dizer dos pensamentos que eles são — assim como não há tentativa de abolir as coisas. De fato, o argumento todo depende completamente da retenção de ambos, pensamento e coisas. Além disso, está até implícito que pensamentos podem ser verdadeiros (assim como falsos). Isso significa que Górgias não está aceitando a opinião que eu, antes, atribuí a Protágoras, segundo a qual não é possível dizer o que é falso. Em segundo lugar, toda a Parte II do tratado se ocupa do pensamento sobre os fenômenos. Começa supondo que os fenômenos são. Isso confirma a sugestão feita anteriormente de que a Parte I também se ocupa dos fenômenos.

A opinião segundo a qual deve haver uma correspondência entre as características do pensamento e as características dos objetos de pensamento é repetida e desenvolvida mais nas implicações da Parte III do argumento de Górgias. Aqui se argumenta que mesmo se alguma coisa é, e é cognoscível, não pode ser comunicada a outra pessoa. O único método de comunicação preferido para a discussão é o discurso (logos). O método de transmissão do logos de uma pessoa para outra é por sons vocais ou fala. Claramente audíveis e, também, claramente não-visíveis. Portanto, se estamos interessados na comunicação concernente a coisas visíveis, por exemplo, cores, essas coisas não podem ser transmitidas por sons incolores e não-visíveis. Há, portanto, um fosso fundamental entre o logos e as coisas, ou pragmata, que vêm a nós de fora de nós mesmos. Esse fosso não deve ser visto como transposto pelo fato de o logos, pelo menos quando expresso em sons vocais, audíveis, ser ele mesmo algo da mesma categoria das pragmata — ele vem a nós de fora de nós mesmos, é verdade, mas através de um órgão do sentido diferente daquele através do qual recebemos impressões visuais.

Mas talvez o fosso deva ser transposto de outra maneira. Há um sentido pelo qual o logos vem a nós das pragmata fora de nós. Pois o logos é formado a partir delas quando são percebidas por nós — assim, do nosso encontro com o sabor surge em nós o logos que é a expressão que corresponde a essa qualidade, e da incidência da cor o logos que corresponde à cor. Mas isso também não resolve a questão. O logos não tem a função de exibir o objeto externo, é o objeto externo que nos fornece informação acerca do (a significação do) logos. Aqui parece que temos o início de dois diferentes sentidos para logos: (1) como algo gerado em nossas mentes, resultante de nossas percepções, e (2) como um som fonético audível, isto é, uma palavra "falada". Que uma distinção desse tipo estava sendo feita é confirmado pela linguagem usada em De MXG, onde nos é dito que é impossível a uma pessoa transmitir à outra, por palavras ou outros sinais, alguma coisa que ela mesma não possui no seu próprio pensamento. Isso sugere uma análise em três estágios — o próprio objeto com suas qualidades, o que obtemos desse objeto, e as palavras faladas com as quais tentamos, inevitavelmente falhando, segundo Górgias, passar adiante (o conhecimento de) um tal objeto para mais alguém.

Deve-se enfatuar que o relato do tratado de Górgias, dado acima, está sujeito a discussão em muitos de seus detalhes, embora represente razoavelmente bem o que eu mesmo creio que Górgias estava dizendo. Mas as condições do texto, especialmente na versão De MXG, são tão más e as dificuldades de interpretação, tanto no caso da versão de Sexto como na De MXG, tão grandes que há muito trabalho a ser feito antes que possamos esperar chegar a qualquer compreensão detalhada segura. Mas isso não tem muita importância para meus atuais propósitos. Pois quaisquer que sejam as correções e os refinamentos, ou mesmo alterações fundamentais do relato acima que estejam ainda por serem feitas, a importância e o interesse filosófico do que Górgias tinha a dizer já estão suficientemente enfatizados. Primeiro, olhando para trás no tempo, é claro que ele está dividindo e separando três coisas que Parmênides tinha identificado no seu fragmento 8.34-36, a saber, ser, pensar e dizer. Na interpretação tradicional de Parmênides essas linhas podem ser entendidas assim: "O pensar e o pensamento que ele é são um e o mesmo. Pois você não encontrará o pensar sem o ser no qual ele é expresso". Na primeira parte de seu tratado, Górgias tinha negado o ser aos fenômenos; na segunda e na terceira partes ele tinha argumentado que, mesmo que se concedesse o ser aos fenômenos, ainda se deveria separar o ser do pensar e das palavras nas quais o pensar é expresso, seja para si mesmo ou para um outro. [Osório diz: Górgias versus Parmênides].

Isso basta quanto à importância retrospectiva da doutrina de Górgias. Muito maior é a sua importância prospectiva, pois Górgias está suscitando, por implicação e, diria eu, em boa parte conscientemente, todo o problema de significação e referência. Não vamos nos preocupar demais com as inadequações de seu tratamento da questão, o importante é que ele estava começando a ver que há um problema, e problema muito sério. Se as palavras são usadas para se referir às coisas, e parece óbvio que essa é a função primordial para a qual são usadas, como é que uma palavra é aceita como se referindo às coisas às quais dizemos que ela se refere, e não às outras coisas às quais dizemos que ela não se refere? Seria conveniente que pudéssemos dizer que é devido a alguma coisa em relação com a própria palavra, e seria mais simples se houvesse alguma coisa na palavra que espelhasse ou reproduzisse dentro da própria palavra os aspectos distintivos das coisas às quais ela se refere. Mas, exceto talvez para as palavras que são especificamente onomatopaicas e que, pelos seus próprios sons, reproduzem os sons das coisas às quais se referem, esses aspectos não são aparentes nas palavras. Somos levados a tentar desenvolver uma doutrina da significação vinculada às palavras, de forma que, em virtude dessa significação, elas possam então ser entendidas como se referindo às coisas às quais supomos que elas se refiram. Mas essa significação terá de ser alguma coisa distinta dos meros sons das palavras em questão. Esse é o ponto de partida de Platão em Crátilo e, diriam alguns, de toda a sua carreira filosófica. Questão semelhante se levanta em relação aos atos cognitivos, aos pensamentos e às percepções que, dizemos, expressamos em palavras. Palavras, pensamentos e coisas, qual é a relação entre eles? [Osório diz: Górgias matando a pau! Criação ou mostra do problema significação e referência]

Mas não é só isso. Uma vez separadas essas três coisas [Osório diz: palavras, pensamentos e coisas] umas das outras, embora insistindo ainda que deve haver algum tipo de correspondência entre todas as três como requisito para verdade e conhecimento, nos defrontamos com o problema da melhor maneira de entender logos em relação justamente a essas três coisas. Pois, como foi dito no início deste capítulo, logos parece ter, de fato deve ter, uma espécie de pé plantado em cada uma dessas três áreas. O logos de uma coisa é: (1) o princípio, ou a natureza, ou a marca distintiva, ou elementos constituintes da própria coisa; (2) o que nós entendemos que ela é; e, finalmente, (3) a descrição (verbal), relato, ou definição correta da coisa. Todas as três levantam a questão do ser. Pois o logos da coisa sob o título (1) é o que a coisa é; sob (2) é o que nós entendemos que ela é; e sob (3) é o que dizemos que ela é.

Até aqui vimos que, na esfera da percepção, Protágoras tinha argumentado que todas as percepções são verdadeiras e, portanto, são de coisas que são, como são; ao passo que Górgias mantinha que não devemos dizer, de coisa alguma, que ela é. Nem Górgias nem Protágoras fizeram, então, qualquer distinção entre percepções conflitantes que pretendiam ser da mesma coisa? Contrariamente ao que se poderia esperar dele, Górgias reteve, sim, claramente, uma distinção entre pensamentos verdadeiros e falsos, embora não nos diga como é que analisava a diferença entre eles; ele parece ter suposto que a percepção envolve a recepção de "eflúvios" próprios dos objetos físicos (DK80B4). Para Protágoras, não pode haver distinção em termos de verdade entre percepções diversas e conflitantes. Mas para ele também havia, claramente, distinções que precisam ser, agora, consideradas.

Será conveniente começar com o testemunho de uma importante passagem de Aristóteles em Retórica, B, 24.l0-11 (1402a5-28, da qual apenas um pequeno extrato é dado no DK80A21):

 

Na Dialética, argumenta-se que o que não é é, pois o que não é é aquilo que não é; e também que o desconhecido pode ser conhecido, pois pode-se conhecer do desconhecido que ele é desconhecido. Da mesma forma, na Retórica, um aparente entimema pode surgir daquilo que não é absolutamente provável senão apenas em casos particulares. Mas isso não deve ser entendido de modo absoluto, como diz Agatão: "poderíamos talvez dizer que essa coisa mesma é provável: que muitas coisas acontecem aos homens que não são prováveis", pois aquilo que é contrário à probabilidade no entanto acontece. Sendo assim, aquilo que é improvável será provável... [mais exemplos] ... Aqui ambas as alternativas aparecem igualmente prováveis, mas uma é realmente, a outra não é provável de modo absoluto, mas apenas nas condições mencionadas. E isso é o que significa "fazer com que o pior pareça o melhor argumento". Por essa razão os homens estavam, com razão, desgostosos com a promessa de Protágoras; porque é uma mentira, não uma probabilidade real, mas aparente, que não se encontra em nenhuma arte exceto na Retórica e na Sofística [da trad. ingl. de Freese].

 

A promessa de Protágoras de "tornar mais forte o argumento [logos] mais fraco" ficou célebre com os autores posteriores. Mas deve haver já uma referência a essa doutrina em As nuvens (DK C2) de Aristófanes, onde ele faz Estrepsíades declarar que na casa de Sócrates "eles guardam ambos os logoi, o mais forte, não importa o que seja, e o mais fraco, e desses dois eles dizem que o mais fraco é o vitorioso embora expresse o que é mais injusto". Parece que Aristóteles também nos está dando exemplos reais do século V — especialmente o argumento "não é é" que foi usado por Górgias, e a citação de Agatão, cuja primeira vitória foi conquistada num concurso trágico em 416 a.C.; de modo que o que ele diz a respeito do provável poderia concebivelmente ser tirado dos próprios escritos de Protágoras. A aplicação retórica de uma doutrina concernente a transformar o argumento mais fraco em mais forte é óbvia, e é às vezes tratada como se tivesse uma aplicação apenas puramente retórica. Assim, segundo Eudoxo (80A21), como exercício da sua aplicação, Protágoras ensinava seus alunos a louvar e condenar o mesmo argumento. Mas Aristóteles, que naturalmente considera esses argumentos apenas retóricos e sofísticos, diz que as pessoas estão desgostosas com a promessa de Protágoras "porque é falsa". Isso pode sugerir que Protágoras afirmava que sua doutrina não era meramente retórica, mas envolvia, de alguma forma, um grau de validade ou verdade. Como vimos (acima, p. 147), o tratado no qual ele expressou a sua doutrina do homem-medida era aparentemente conhecido sob os dois títulos: Sobre a verdade ou Escritos demolidores. [Osório diz: além de Aristófanes, Xenofonte, no Econômico, também fala do argumento forte e fraco].

Mas se todas as percepções e todos os julgamentos morais devem ser aceitos como igualmente verdadeiros, como é possível que um logos qualquer que expresse julgamentos morais e perceptivos possa jamais ser descrito como superior a um outro logos? Não são todas as verdades simplesmente iguais quanto à sua verdade? Talvez, mas pode ser que haja outros modos pelos quais logoi possam ser classificados como superiores ou inferiores. Um modo óbvio é em termos de sua relativa capacidade de persuasão, e a bem elaborada doutrina da persuasão desenvolvida por Górgias já foi considerada. Mas persuasão consiste em fazer com que uma opinião pareça preferível a outra, pelo menos em algum aspecto. Um modo era classificar o argumento preferido como orthos "justo", "reto", certo" — ou orthoteros "mais justo", "mais correto", e assim por diante, e é claro que o conceito de orthotés e de um ortho logos era importante. Assim, conta-se que quando Péricles passou um dia inteiro discutindo com Protágoras o caso de um atleta acidentalmente morto por um dardo nos jogos atléticos, o argumento girou em torno de saber se era o dardo, ou o homem que o atirou, ou os organizadores dos jogos que deviam ser julgados culpados "segundo o argumento mais correto" — o orthotatos logos (DK80A10J, isto é, o mais correto dos três logoi mencionados. Quando Antífon quer rejeitar a opinião segundo a qual as coisas dolorosas são mais benéficas para a natureza do que as coisas prazerosas, ele defende sua opinião como sendo de acordo com o orthos logos (Dl 87B44 Fr. A Gol 4). [Osório diz: eles, os sofistas, trabalhavam com a ideia de melhor, e não de correto e/ou verdadeiro!]

Essa maneira de falar sobre as coisas era familiar, ao que parece tanto a Sócrates como a Platão. No Críton, quando Críton roga a Sócrates que se salve fugindo da prisão, Sócrates responde (46b):

 

Meu caro Críton, seu interesse é valiosíssimo se for acompanhado pela orthotés; se não, quanto maior for ele, mais difícil de suportar. De modo que devemos examinar a questão se devemos fazer isso, ou não. Pois sou, não somente agora, mas sempre, um homem que só segue o logos que, após consideração, me parece o melhor [beltistos]. E não posso, agora, jogar fora o logoi que usei anteriormente. [Osório diz: Sócrates e o discurso melhor! O discurso e a coerência]

 

Tomada isoladamente, a referência à necessidade de seguir o beltistos logos pode parecer meramente casual e formulada de modo geral, embora eu suspeite que têm razão os que supõem que, por trás de seu caráter geral, haja, pelo menos, uma referência bem específica à terminologia que era sofista. [Osório diz: eu também! Sócrates era um dos sofistas]

Seja como for, não deveria haver muita dúvida quanto a uma discussão mais detalhada do problema posta na boca de Sócrates, no Fédon. É a famosa discussão do "novo método", que ocupa a seção toda de 89c11-102a1. Apenas alguns pontos podem ser selecionados aqui, visto que a nossa preocupação imediata não é com a interpretação de Platão, nem tampouco a relação com a teoria das Formas platônicas, mas com a relação entre o que Sócrates está dizendo e o debate sofista com o qual ele está intimamente envolvido na passagem toda. A parte inicial da passagem já foi resumida na nossa discussão anterior do antilogikoi. Recapitulando: Sócrates se distingue daqueles que simplesmente opõem um argumento a outro — isso leva à misologia, um ódio de todos os logoi — embora, ao mesmo tempo, ele aceite que, no nível fenomenal, não há, de fato, nada sólido ou seguro, mas que todas as coisas estão em processo de ser reviradas para cima e para baixo, como no Euripo, e não subsistam em coisa alguma por qualquer duração de tempo. [Osório diz: Sócrates e o fluir heraclitiano!]

O que é necessário, diz Sócrates, é a habilidade adequada para lidar com logoi (90b7). Pois pode ser que nem todos logoi sejam do tipo flutuante, incapazes de serem apreendidos intelectualmente (90c8-d7). Faltando-lhe essa habilidade, no período em que se interessava pela ciência física, Sócrates se viu movendo-se para baixo e para cima (96bl) exatamente como os fenômenos. Depois que todas as tentativas de alcançar a verdade pela contemplação direta dos fenômenos falharam, ele decidiu refugiar-se nos logoi e, neles, examinar a verdade das coisas que são (99e4-6). Assim prosseguiu por essa via [Osório diz: Sócrates e sua fuga no logos]. Estabelecia sempre, como ponto de partida (o grego diz "fazia uma hipótese"), o logos que julgava ser o mais forte e postulava, como verdade, as coisas que lhe pareciam estar de acordo com esse logos. O que ele tinha em mente é explicado por uma série de exemplos. No caso das coisas que são belas devemos levantar a hipótese da existência da Forma da Beleza como a fonte, explicação e causa dos vários belos. Esse procedimento é o caminho seguro que uma pessoa inexperiente deve seguir; isso evita a confusão na qual se envolvem os antilogikoi. O erro deles é tentar discutir sem distinguir entre a fonte e as consequências que procedem da fonte (101el-3 cf. Rep. 476d2-3). O que os antilogikoi fazem, na opinião de Sócrates, é misturar "causas" com efeitos, ao confundir Formas com fenômenos, e Formas “mais altas" com Formas "mais baixas". Ao fazer isso eles geram uma pluralidade de logoi, cada um oposto ao resto. O caminho seguro evita as contradições envolvidas na doutrina dos dois logoi opostos, a qual, é preciso sublinhar, na opinião de Platão se aplica somente aos fenômenos. As contradições não se aplicam às Formas, e as contradições encontradas nos fenômenos desaparecem quando passamos dos fenômenos para as Formas. [Osório diz: isso só no mundo de e criado por Platão! Kant também ficou com os fenômenos e a impossibilidade do conhecimento das coisas em si!]

Essa, então, é a resposta de Platão aos antilogikoi, para a questão da doutrina dos dois-logoi-opostos. Como é expressa em termos da teoria das Formas, não é provável que tenha sido expressa pelo próprio Sócrates, pelo menos em nada parecido com esse modo mais desenvolvido. Mas a frase "o logos tido como o mais forte" (100a4) nos faz lembrar do logos melhor ou mais correto das discussões sofistas. Platão representa Sócrates como sempre buscando relatos ou logoi satisfatórios, sobretudo das várias virtudes; e, como já vimos, Aristóteles atribui especificamente ao Sócrates histórico a busca pelos logoi epactic. Sem dúvida ele participava ativamente, podemos razoavelmente concluir, da busca sofista pelo logos melhor ou mais forte, nos casos de um conflito de logoi. [Osório diz: Sócrates e o logos melhor!].

Mas é tempo de voltar para as doutrinas de Protágoras, visto que ele, de várias maneiras, não só estava expressando suas próprias opiniões, como também agindo como líder para o movimento sofista como um todo. Voltando ao Teeteto, descobrimos que sua doutrina do homem-medida tem de enfrentar uma objeção extremamente interessante. Como observa Sócrates (161d3-e3):

 

Se seja o que for que qualquer homem suponha, baseado na percepção, deve ser, de fato, verdadeiro para ele; se assim como ninguém há de ser melhor juiz da experiência do outro, também ninguém tem mais autoridade para investigar se a opinião do outro é certa ou falsa mas, como temos dito mais de uma vez, cada homem terá suas próprias crenças só para si mesmo, e todas elas são certas e verdadeiras, então, meu amigo, onde está a sabedoria de Protágoras, que o faz pensar que está habilitado para ser mestre de outros e ser regiamente pago por isso, e onde está nossa comparativa tamanha ignorância que precisamos ir a ele para instrução, quando cada um de nós é a medida de sua própria sabedoria?

 

A esse ataque Protágoras responde, no devido tempo, pela boca de Sócrates (166dl-8):

 

Mantenho que a verdade é como escrevi. Cada um de nós é a medida das coisas que são e das coisas que não são; mas há um mundo de diferença entre um homem e outro exatamente nisto, que o que é e aparece para um é diferente do que é e aparece para o outro. Quanto à sabedoria e o sábio, longe de mim dizer que não há tal coisa. Por sábio designo precisamente o homem que opera uma mudança e onde coisas más são e aparecem para qualquer pessoa faz coisas boas aparecerem e serem para si.

 

[Osório diz: HIPÓTESE: Platão, para não condenar o sofista Sócrates diretamente (seu ódio era a traição amorosa) condena os outros sofistas, tentando, contudo, do rol deles excluir Sócrates]

 

A isso se segue um exemplo: para o doente, a comida parece e é amarga, para o homem saudável ela é e parece o oposto. Ambas as condições são igualmente verdadeiras, mas a segunda condição é melhor do que a primeira, e o médico muda a primeira condição para a segunda, de modo que a comida que anteriormente parecia e era amarga agora parece e é doce. Na educação, o sofista faz com palavras o que o médico faz com remédios, e substitui não o falso pelo verdadeiro, más opiniões piores por melhores. Aqui, o exemplo dado são coisas más que parecem e, portanto, são justas, que precisam ser substituídas por coisas boas que, então, parecerão e serão realmente boas. Isso se aplica não só ao indivíduo mas também a comunidades inteiras — para elas também a função educativa do sofista pode ser extremamente útil e benéfica (l 67c4-7). Uma pilhéria feita por Sócrates deixa claro que Platão estava bem consciente de que a substituição de uma experiência por outra era considerada, por Protágoras, uma substituição de um logos por outro: de fato o logos que tinha sido mais fraco tornou-se, agora, mais forte (172b8-9).

Essa maneira de olhar as coisas tem, contudo, implicações consideráveis para a doutrina do homem-medida. Na sua forma irrestrita, a doutrina do homem-medida parecia implicar que, se alguma coisa parecesse F para alguém, então é F para ele e o caso é o mesmo para todos os valores de F. É-nos dito agora, contudo, que algumas pessoas são mais sábias do que outras na questão de saber o que é melhor ou pior, e isso, por sua vez, leva a uma outra inevitável proposição: a de que pelo menos alguns julgamentos são falsos, a saber, os julgamentos a respeito do que é vantajoso e não vantajoso. A necessidade dessa modificação da generalidade da posição original atribuída a Protágoras é plenamente reconhecida por Sócrates (172a5-b2) e é apresentada, por ele, como o tipo de coisa que o próprio Protágoras poderia ter dito se fosse capaz de voltar da região dos mortos, esticar de repente a cabeça para fora da terra até o pescoço e falar antes de afundar e desaparecer outra vez. Não tenho nenhuma dúvida de que essa defesa deve ser levada a sério — até onde ela era justificada pelo que Protágoras tinha de fato escrito pode permanecer questionável, mas acredito que seja uma indicação clara de que isso era o que Platão considerava ser a interpretação historicamente correta da doutrina de Protágoras.

Seja como for, a doutrina modificada é de considerável interesse. A famosa história contada por Heródoto (III.38) mostra que algo parecido com o que chamaríamos de um tipo de sociologia do conhecimento estava já começando a ser aplicado a valores morais: se fosse perguntado a todos os homens quais as melhores leis e os melhores costumes, cada um escolheria os seus próprios. Eurípides (fr. 19) fez um seu personagem dizer que nenhum comportamento é vergonhoso se não parece vergonhoso para aqueles que o praticam. Para muitos, nos nossos dias, opiniões sobre valores não são questões de fato objetivo como as opiniões sobre o mundo físico, e o que a doutrina (na forma modificada) de Protágoras provê é um modo de comparar julgamentos sobre questões de valor, não em termos de sua própria verdade ou falsidade, mas em termos de suas conseqüências sociais. Que essa opinião não estava confinada em Protágoras, mas era muito mais amplamente sustentada, presumivelmente dentro do movimento sofista, torna-se evidente pela afirmação de Platão de que era também sustentada por aqueles que não estavam completamente de acordo com a doutrina de Protágoras (Teeteto 172b6-7).

Mas a aceitação da opinião modificada suscita outras questões. Até aqui, poderíamos dizer que a fórmula "se alguma coisa parece F para alguém, então é F para essa pessoa" aplica-se em casos em que F é interpretado como significando "quente", "doce", "justo", "bonito" etc.; mas não se aplica quando F é interpretado como significando "bom", "saudável" ou "vantajoso". E os outros casos? Se Protágoras diz que o que quer que pareça a uma pessoa é isso mesmo para essa pessoa, isso pode bem ser entendido como significando que qualquer julgamento é verdade para a pessoa que o faz, não só os juízos sobre qualidades morais e de percepção. Exatamente essa irrestrita interpretação da doutrina do homem-medida era atribuída a Protágoras por aqueles que, entre os seus críticos, a usavam como base para o contra-ataque, conhecido depois como peritropê, a virada-da-mesa. Isso já era bem conhecido quando Platão escreveu o Teeteto, pois nos é dito que fora usado contra Protágoras também por Demócrito (DK 68A114).

A objeção é mais ou menos assim (171a6-9): Protágoras, ao admitir que a opinião de cada um é verdadeira, deve reconhecer a verdade da crença de seus adversários a respeito de sua própria crença, quando eles pensam que ele está errado. É imediatamente em resposta a esse argumento, de fato, que Sócrates sugere que Protágoras haveria de esticar sua cabeça para fora do chão, se pudesse. Mas Platão, na realidade, não dá essa resposta, infelizmente. Pois a aplicação do peritropê implica a declaração de que há uma contradição interna na posição de Protágoras, e a natureza dessa suposta contradição interna é importante para a interpretação da doutrina do homem-medida. Conforme uma formulação dessa doutrina, Protágoras tinha mantido, por exemplo, que quando o vento parece frio para Protágoras é frio para ele. Quando o (mesmo) vento parece quente para o seu adversário, então é quente para esse adversário. Mas, desde que as frases qualificativas em itálico sejam retidas em cada caso, não há, de fato, nenhuma contradição entre as duas afirmações — a declaração de que alguma coisa parece ser o caso para uma pessoa claramente não é contraditada pela declaração de que a mesma coisa parece não ser o caso para uma outra pessoa. Se "parece" for substituído por "é", ainda não há contradição, desde que forem mantidas as frases qualificativas "é para a" e "não é para b”. Se Protágoras sustentava a opinião de que o vento, em si mesmo, existe independentemente de minha percepção dele, mas que sua frialdade só existe privadamente para mim quando tenho a sensação de frio, e seu calor só existe privadamente para o outro quando esse outro tem a sensação de calor, não há nenhuma contradição, e a peritropê fracassa.

Essa pode ter sido a resposta que Sócrates supõe que Protágoras teria dado se tivesse podido esticar sua cabeça para fora do chão. Mas há inúmeras objeções a essa opinião. Primeiro, a resposta é tão óbvia que seria de esperar que ela impedisse a formulação mesma da objeção peritropê logo de início. A objeção peritropê seria plausível, ao que parece, se as frases qualificadoras fossem removidas ou desconsideradas e a posição de Protágoras fosse entendida como envolvendo a afirmação de que o vento em si mesmo é e não é frio, e isso objetivamente, e não apenas como uma questão de como ele é sentido por diferentes observadores. Segundo, virtualmente, toda a tradição posterior, concernente ao sentido da doutrina do homem-medida de Protágoras, de fato a interpreta objetivamente, isto é, como envolvendo a opinião de que o vento em si mesmo é ao mesmo tempo frio e quente — quente e frio são duas qualidades que podem co-existir no mesmo objeto físico. Eu percebo uma, você percebe a outra. Isso torna a objeção peritropê totalmente compreensível. Terceiro, nessa tradição mais tardia, a objeção peritropê, na sua forma objetivista, é atribuída a ambos, Demócrito e Platão. Assim escreve Sexto Empírico (DK68A114): "Não se pode dizer que toda representação seja verdadeira, porque isso se refuta a si mesmo, como ensinaram Demócrito e Platão ao se oporem a Protágoras; pois, se toda representação é verdadeira, o juízo segundo o qual nem toda representação é verdadeira, sendo baseado numa representação, será também verdadeiro e, portanto, o juízo de que toda representação é verdadeira se tornará falso" (da trad. ingl. de Bury). Isso se enquadra exatamente na opinião objetivista da doutrina de Protágoras, que se encontra, em outro lugar, em Sexto Empírico (DK80A14):

 

Ele diz que os logoi de todas as aparências subsistem na matéria, de modo que a matéria, na medida em que depende de si mesma, é capaz de ser todas essas coisas que aparecem a todos. E os homens, diz ele, apreendem coisas diferentes em tempos diferentes devido às suas diferentes disposições; pois aquele que está num estado natural apreende aquelas coisas subsistentes na matéria [itálicos meus] que são aptas a aparecer àqueles em estado natural, e os que estão em um estado não-natural apreendem as coisas que podem aparecer àqueles em um estado não-natural. Além disso, precisamente a mesma explicação se aplica às variações devidas à idade, e ao estado de sono ou de acordado, e a cada um dos diversos tipos de situação. Portanto, segundo ele, o Homem se torna o critério das coisas que são; pois todas as coisas que aparecem aos homens também são, e coisas que aparecem a homem nenhum também são sem ser.

 

Se a interpretação objetivista nos possibilita entender o sentido da objeção peritropê, como devemos supor que Protágoras teria respondido a ela, se tivesse podido esticar a cabeça para fora do chão? Lamentavelmente, não nos disseram. Mas podemos presumir que sua resposta poderia ter consistido de duas partes. Primeiro, no caso de qualidades percebidas, tomadas aqui como incluindo qualidades estéticas e morais, bem como as qualidades normais percebidas pelos vários sentidos. Aqui sua resposta seria admitir que está colocando situações contraditórias. O mesmo vento é ambos, quente e frio, e isso porque é capaz de possuir qualidades contraditórias simultaneamente. É exatamente assim que as coisas são. Platão estava preparado para aceitar isso como uma descrição correta dos fenômenos, mas supunha que essa situação só é possível se, para além e acima dos fenômenos, houver também outras entidades, as Formas, que estão isentas da penosa situação contraditória que ocorre com os fenômenos. Protágoras, por outro lado, não estava preparado para supor quaisquer outras entidades além das fenomenais. Segundo, no caso de características tais como bom, mau, vantajoso e não-vantajoso, prudente e não-prudente, Protágoras simplesmente mantinha que essas características não estavam sujeitas à doutrina do homem-medida. Aqui há apenas uma verdade, não os dois logoi que se aplicam no caso anterior. De fato, há um sentido no qual Protágoras mantinha que a segunda classe de características, bom, mau, vantajoso etc., se aplica à primeira classe de características onde a doutrina dos dois logoi funciona plenamente. Pois enquanto duas pessoas podem ter sensações opostas, uma percebendo o vento como quente, a outra como frio, e essas duas qualidades estão em pé de igualdade quanto à sua verdade, contudo não estão em pé de igualdade quanto ao seu valor. Como deixa claro a citação de Sexto, uma percepção será a de um homem num estado natural ou saudável, e o uso do termo "estado natural" implica que essa percepção será, por conseguinte, preferível à outra percepção ocorrida, por exemplo, em caso de uma doença ou de um estado não-natural de quem percebe.

Que Protágoras reduz a realidade à realidade perceptível pelos sentidos, vê-se não só na última sentença do relato de Sexto Empírico que acaba de ser citada, mas também na interessante afirmação preservada por Aristóteles na Metafísica B (DK 80B7) onde ele diz:

 

Não é verdade que a medida da terra trata com magnitudes perceptíveis e perecíveis; porque, então, ela teria perecido quando elas pereceram. E da mesma forma não se dirá que a astronomia trata com magnitudes perceptíveis, nem com este céu acima de nós. Porque linhas perceptíveis não são o tipo de linhas de que fala o geômetra, pois nenhuma coisa perceptível é reta ou redonda da maneira como ele fala do reto e do redondo. Pois um círculo perceptível não toca a reta em um ponto, mas a toca da forma como Protágoras costumava dizer que toca, na sua refutação dos geômetras.

 

Em outras palavras, segundo Protágoras, a tangente toca um círculo não em um ponto geométrico, mas da forma como o faz no mundo visível, que é sobre um segmento de uma certa dimensão. Simplício (DK 29A29) preserva o que parece ser uma passagem de um diálogo entre Zenão e Protágoras. Não importa, para a nossa finalidade, saber se o diálogo é inteiramente fictício, como é provável que seja, visto que certamente apresenta uma correta aplicação da doutrina de Protágoras. Zenão pergunta a Protágoras se um único grão de painço ou a décima milésima parte de um grão de painço produz algum som ao cair. Protágoras responde que não, mas admite que um alqueire (medimnos) de sementes de painço produz som. Zenão então conclui que um único grão deve produzir uma fração adequada do som produzido pelo alqueire. O ponto importante, aqui, no que concerne a Zenão, pode bem estar relacionado com o problema dos infinitesimais. Mas para Protágoras o importante é muito mais provável que tenha sido simplesmente a negação de sons não ouvidos, isto é, a negação de qualquer outra coisa que não sejam sons que são fenômenos reais porque são audíveis. Pelo menos neste ponto ele teve Aristóteles do seu lado, o qual argumentou que não havia razão pela qual essa parte do alqueire não devesse, não importa por que lapso de tempo, simplesmente deixar de mover o ar que o alqueire todo move ao cair.

A doutrina segundo a qual não há outras entidades além das entidades perceptíveis pelos sentidos envolve a negação de que haja quaisquer objetos não-fenomenais para o entendimento. Assim, nos é dito, por Diógenes Laércio, no seu sumário das doutrinas de Protágoras, que Protágoras deixou de lado a dianoia ("entendimento", aqui presumivelmente no sentido da significação ou sentido da palavra) e só deu atenção à enunciação, ou nome, o onoma (IX, 52 = DK80A1). Mas, se não há nenhum objeto para o entendimento, então, poder-se-ia argumentar, o entendimento não tem nenhuma função distinta na alma. E é esta presumivelmente a explicação para a notável afirmação feita por Diógenes Laércio, no parágrafo imediatamente precedente ao que acabamos de citar, de que a alma não era nada separada de suas sensações. Sabemos que Protágoras tinha uma doutrina física da alma e que a situava no peito (DK80A18), de modo que é improvável que ele quisesse dizer que a alma não tinha existência à parte do conteúdo de suas sensações. Antes, é provável que ele quisesse dizer que ela não tinha função a desempenhar à parte dessa de perceber, uma doutrina que aparentemente se encontra também em Demócrito (DK 68A112) e, subsequentemente, em Estrato e Enesídemo, embora eles identificassem entendimento com percepção e não negassem a existência da inteligência (Sexto Empírico, Adv. Mathematicos VII, 350)”. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 143-188).

 

Arremata Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

As Antilogias mostraram-nos uma natureza instável, indecisa, desempenhando sempre um duplo papel; ora, uma medida surgiu que vai travar este movimento da balança, decidir um sentido e anunciar a cor. Esta medida é o homem. É por isso que o escrito sobre A Verdade começava pela célebre fórmula:

O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são”. [Osório diz: frase de Protágoras].

Notemos, antes de mais, que Protágoras não utiliza, para designar a coisa de que o homem é medida, o termo pragma, mas chrema, que significa mais particularmente uma coisa de que nos servimos, uma coisa útil.

Falta o problema da extensão a dar à palavra homem (ánthropos), problema posto, pela primeira vez – parece-nos – por Hegel. Os Antigos, na esteira de Platão, entenderam a palavra homem na fórmula de Protágoras como designando o homem singular, o indivíduo com as suas particularidades específicas. Mas pode alargar-se a extensão da palavra homem e compreender que significa não a singularidade contingente, mas o universal, a humanidade, cuja essência pertence a todo homem. Homem significa então a natureza humana; tal é a interpretação que se dá no séc. XIX. Mas, depois de ter distinguido estes dois sentidos possíveis da fórmula protagórica, Hegel pensa que esta distinção de sentidos ainda não tinha sido feita por Protágoras, que mistura os dois significados sem separar um do outro. Com efeito, escreve Hegel: “Para eles (os Sofistas), o interesse do sujeito na sua particularidade não se distingue ainda do interesse do sujeito na sua racionalidade substancial”.

Encontramo-nos, portanto, perante três interpretações possíveis. A primeira leva-nos diretamente, como reconheceu Platão, ao relativismo cético, doutrina que se destrói a si própria reduzindo todos os seus testemunhos ao mesmo plano: com efeito, Protágoras deveria confessar que não é superior em juízo “não digo apenas a qualquer outro homem, mas mesmo até a um peixe-cabeçudo” [Osório diz: idiotice platônica, já que peixe não emite juízo! O mau dele de misturar as coisas!]. O ensino torna-se inútil “se verdadeira é a Verdade de Protágoras” [Osório diz: não é “verdade”, é que a afirmação é apenas uma parte do ensino. O mito de Prometeu dá a outra parte!], porque a opinião do mestre não tem nenhuma precedência sobre a do aluno. Segundo esta primeira interpretação, Protágoras teria, portanto, afirmado de alguma maneira muito antes de Pirandello: “A cada um a sua verdade.” – A sorte desta leitura, que não conta sequer com as retificações de Platão na continuação do Teeteto, explica-se, sem dúvida, pela coincidência com a imagem desfavorável que se fizera dos Sofistas, que tradicionalmente só existem para servir de alavanca fácil.

A segunda interpretação é preferível e permite deixar continuar, no seio do fenomenismo, uma objetividade científica; uma convergência dos juízos é possível na aparência e, por conseguinte, na separação entre a verdade e o erro. Assim se fez mergulhar o pensamento de Protágoras no individualismo e no ceticismo quando, precisamente, o que pretende é sair deles; passados séculos ainda se interpretam em sentido contrário as intenções do seu autor. [Osório diz: Protágoras e o ceticismo. Ver Barbara Cassin, também]

A terceira leitura – O homem individual e o homem universal são, escreve Untersteiner, “dois momentos de um processo diatético”; a verdade está precisamente na passagem do primeiro ao segundo sentido: a opinião pessoal verifica-se pelo seu acordo com as opiniões dos outros. A opinião singular fortalece-se com o contributo de outras opiniões que lhe são adequadas; o seu encontro forma a verdade. Se a opinião singular não é reforçada por qualquer outra, ou por demasiado poucas, desaparece e não pode aspirar ao verdadeiro, pelo menos enquanto permanecer marginal [Osório diz: como se forma a verdade/O Professor Tercio usa isso quando fala de Hermenêutica]. O conceito de homem, uma vez que é, se se pode dizer, de extensão variável, entra em tensão consigo próprio: opõe-se a si quando as opiniões particulares divergem, e readquire a sua unidade quando as particularidades se conciliam. O momento da particularidade, ainda que real, permanece um momento negativo, que tende a mergulhar de novo, no terreno das antilogias; o momento da universalidade é o positivo e constitui o fundamento daquilo que Protágoras chama o discurso forte. Somos assim levados à análise da terceira tese de Protágoras.

 

IV - O discurso forte

 

Cada indivíduo é, certamente, a medida de todas as coisas, mas é uma medida muito fraca se permanece só com a sua opinião. O discurso não partilhado constitui o discurso fraco (hettón logos); aliás, mal chega a ser um discurso porque dizer é comunicar, e toda a comunicação supõe algo de comum. Quando um discurso pessoal, pelo contrário, encontra a adesão de outros discursos pessoais, este discurso, reforçando-se com todos os outros, torna-se discurso forte (kreitón logos) e constitui a verdade. [Osório diz: como se produz a verdade].

[…]

Portanto, a teoria do discurso fraco e do discurso forte não constitui, de modo nenhum, o ato de nascimento da erística, como afirma Aristóteles; não consiste em fazer viajar a evidência ao gosto da eloquência de um hábil advogado, de acordo com as necessidades da causa e o interesse da sua parte, como fez crer uma tradição obstinada. Na realidade, esta teoria parece estar em estreita relação com uma certa prática política, precisamente a da democracia ateniense. Certos indícios podem, antes de mais, encaminhar-nos para semelhante interpretação. Vimos Platão sublinhar que, aos olhos de Protágoras, o Bem não pode existir só e único como deve existir o Bem em si; Protágoras só pode pensar um Bem com facetas, disperso, multicolor, em síntese, um “Bem variegado”. Ora, esta palavra poikilon é retomada por Platão em A República para caracterizar a democracia: a constituição democrática é “como um manto multicolor”. Outro indício. No Protágoras de Platão, Protágoras mostra que a lei da cidade se aplica a todos, “obriga os que mandam e os que obedecem a conformar-se-lhe”. Ora, esta expressão é utilizada por Aristóteles para caracterizar a democracia. Este regime pensa assegurar a liberdade dos cidadãos pela alternância do poder: o cidadão é, com efeito, “alternadamente governado e governante”. É pela alternância do poder, característica da democracia, que a lei da cidade pode efetivamente aplicar-se indistintamente a todos, e tanto aos governantes como aos governados. Evocamos agora o terceiro argumento, que é mais um indício. No mito de Epitemeu e de Prometeu, Protágoras estabelece uma clara diferença entre a arte política e as restantes; uma vez que estas últimas são da alçada de especialistas, Hermes, pelo conselho de Zeus, distribuiu entre todos os homens a virtude política, cujas duas componentes são a justiça e o respeito. “Que todos dela partilhem, diz Zeus; com efeito, as Cidades não poderiam crescer se apenas uns tantos delas partilhassem, como é o caso das outras artes.” É por isso, conclui Protágoras, que os atenienses e as outras cidades democráticas estabelecem uma diferença entre os problemas técnicos e problemas políticos: para os primeiros, só admitem a opinião dos especialistas; para os segundos, pensam que todo o homem se pode pronunciar validamente. Sem a posse unânime da virtude política, as cidades não poderiam existir. A afirmação da competência política partilhada por todos caracteriza o regime democrático; será – não nos esqueçamos – recusada por Platão que, precisamente por isso, estabelecerá a arte política acima das outras e dela fará um assunto de especialistas. [Osório diz: muito boa esta explicação em especial por mostrar o espírito antidemocrático de Platão e Aristóteles!].

Ora, se cada um é capaz de possuir a virtude política, isso significa que na cidade se pode constituir um discurso unânime ou, pelo menos, maioritário, que constitui o discurso forte, representando então o discurso isolado e marginal o discurso fraco. A concepção do discurso forte tem pois, como fundamento, uma experiência política, e esta experiência, longe de ser a do despotismo ou da ditadura, é a da democracia; o que dá ao discurso a sua força é o consensus que provoca. A verdade da pessoa privada é então o cidadão, e na igualdade democrática não se pesam as vozes, contam-se. É por isso que, num primeiro tempo pelo menos, a constituição do discurso forte é uma tarefa essencialmente coletiva; cada qual privilegia dele o que há de comum com outrem, o que é universalizável. A educação é, então, coeducação; se a virtude política é, de fato, a tarefa de todos, é porque vem de todos, e Protágoras, para convencer Sócrates, lança mão de uma comparação esclarecedora:

 

Toda a gente ensina a virtude o melhor que pode, e não te parece que haja alguém para a ensinar; é como se procurasses o mestre que nos ensinou a falar grego: não o encontrarias.”.

 

Portanto, a virtude política é, na cidade, a coisa mais bem distribuída: o discurso tirânico é um discurso violento, mas não um discurso forte; também a dimensão propriamente “política” desaparece com a submissão.

Vendo no homem essencialmente um cidadão que, em relação ao Poder, é parte beneficiada, não há dúvida que Protágoras é, realmente, o criador da cultura geral [Osório diz: afirmativa poderosa e desconsertante!]. A divisão do trabalho não permite a constituição do discurso forte porque destrói todo o espaço de troca [Osório diz: o trabalho como impeditivo do discurso]; compreende-se então, a razão da desconfiança de Protágoras perante as diversas técnicas (téchnai) que opõe à política. A condição de possibilidade da virtude política será um conjunto de conhecimentos possuídos por todos os cidadãos, permitindo-lhes encontrar-se numa plataforma comum, ou antes, na praça-forte do discurso partilhado. Compreende-se também que Protágoras tenha dedicado a sua existência à educação do cidadão, e que a seus olhos toda a educação seja educação política [Osório diz: que governo o adotaria?]. É que a paideia tem como efeito substituir os desvios particulares por um modelo cultural consistente, que engloba os indivíduos não apenas no espaço, geograficamente, mas também no tempo, historicamente. A cultura é um discurso forte porque a História a reforça com toda a unanimidade das gerações passadas. Nesta época, é normal que Protágoras tenha tido – como Aristóteles nos explica – grande preocupação pela gramática. Com efeito, a gramática regula a língua para a fazer linguagem de todos; as suas regras universalizam o emprego dos signos. Portanto, é por ela que a palavra ganha força, ao passo que o grito é o discurso fraco, sendo radicalmente individual.

Apesar disso, se o discurso forte extrai, de fato, a sua força da massa dos sufrágios que granjeia, isto não significa que Protágoras professe uma igualdade radical de todas as opiniões e uma identidade de sabedoria em todos os indivíduos. Com efeito, os homens melhores sabem propor aos outros os discursos capazes de captar a sua adesão; o discurso de um só torna-se então discurso forte a par da sua capacidade intrínseca de universalização. A sabedoria consiste em saber substituir, pela persuasão e argumentação, um discurso inconsistente, porque local, por um discurso mais pleno, porque global. O espírito superior sabe, pois, substituir uma aparência pobre, cujo impacto é limitado, por uma aparência rica, isto é, capaz de estreitar os consentimentos e de construir uma república dos espíritos. A educação é, portanto, possível e legítima, já que é o resultado deste espírito superior que sabe fazer a separação entre a opinião que vale menos e a que vale mais, e sabe levar a partilhar a segunda e deixar de lado a primeira, tal como o médico, com os seus remédios, substitui os sintomas da doença pelos sintomas da saúde. Assim também, há em política governos mais ou menos sábios; o mais sábio é o que, por meio do seu discurso, leva a adotar pelos seus concidadãos – isto é, universaliza – as disposições mais úteis à comunidade. O líder politico, polarizando os votos à volta do seu nome, cria o discurso forte da cidade e dá-lhe, com isso, a verdade e a justiça, já que o seu discurso livremente partilhado se torna o discurso comum. O discurso em questão pode, por outro lado, ser tanto mais eloquente porque mudo, e consistir numa simples atitude significativa, um comportamento cujo exemplo é contagioso; tal parece ser o sentido de um fragmento, referido por Plutarco, em que Protágoras faz referência à atitude de Péricles depois da morte dos seus dois filhos Paralos e Xantipos, mortos havia oito dias, não deixando o pai transparecer a sua dor:

 

Com efeito, todos os que o viam suportar com coragem os seus lutos pessoais julgavam que era magnânimo e corajoso e mais forte que eles, conhecendo apesar de tudo o desapontamento que era o seu em tais provas.”.

 

Assim, se para medir o discurso forte se contam mais as vozes que o seu peso, não é menos verdade que certas vozes pesam mais que outras na medida em que são capazes de juntar as outras à sua volta, isto é, ao fim e ao cabo, de conter afirmações e decisões generalizáveis. A teoria do discurso forte em Protágoras parece-nos, por conseguinte, apresentar uma inspiração política correta, e esta inspiração não é a do maquiavelismo, é a da democracia, tal como Atenas a conheceu na brilhante época de Péricles. [Osório diz: a melhor explicação que li sobre o discurso forte e o fraco!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 23-29).

 

Fausto dos Santos ensina:

 

Negado ao lógos a possibilidade de remeter-se ao ser, resta à linguagem gorgiana a, não por isso inferior, tarefa de ser um instrumento que possibilita e facilita o relacionamento humano* [Osório diz: eis o abraço harmonizador entre Protágoras e Górgias]. Portanto, fica claro que para Górgias a linguagem é, como nos diz Aubenque, "[...] somente o instrumento de relações existenciais (persuasão, ameaça, sugestão, etc.) entre os homens" . Hoje, usando os termos da teoria dos atos de fala de Autin, poder-se-ia dizer que Górgias privilegia o aspecto perlocucionário da linguagem. (fls. 74/75)

(...) Algo que possibilite à linguagem cumprir o seu papel de instrumento nas relações humanas. Ao que tudo indica, a convenção. Que seria, neste caso, "[...] a codificação, por parte do homem, dessas relações existenciais cujo instrumento, segundo Górgias, é o discurso" (AUBENQUE, 1987, p. 102). (fl. 75).” (Fonte: Filosofia Aristotélica da Linguagem, Fausto dos Santos, Ed. Universitária Argos. Capecó-SC, 2002, p. 74-75).

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

A sofística desconstruiu a identidade do ser e da natureza, a imediaticidade de sua presença e, com elas, a evidência de uma fala que teria por tarefa dizê-los adequadamente. Desde então a identidade não pode mais aparecer senão como o resultado de um procedimento, quer se trate da quadratura do círculo ou desse substituto do kósmos que é a cidade: ao físico que a fala descobre, se substitui o político que o discurso cria.

Essa nova identidade não constitui uma unidade de unicidade, sobre o modelo da esfera de Parmênides; ela não hierarquiza as diferenças como na reública platônica estruturada como um organismo, nem as reduz à indistinção de uma simpatia entre amigos, como na ética aristotélica; é, ao contrário, o resultado sempre precário de uma operação retórica de persuasão, que produz para a ocasião uma unidade inteiramente feita de diferenças.

O discurso sofístico, na verdade, está para a alma assim como o phármakon, remédio/veneno, está para o corpo: induz uma mudança de estado para o melhor ou para o pior. Mas o sofista, como o médico, sabe utilizar o phármakon e pode transmitir esse saber; sabe e ensina como fazer passar, não, segundo a bivalência do princípio de não-contradição, do erro à verdade ou da ignorância à sabedoria, mas, segundo a pluralidade inerente ao comparativo, de um estado menos bom a um estado melhor [Osório diz: o que os sofistas propõem-se a fazer]. Protágoras, que professa a virtude, o diz pela boca de Sócrates que, então, o defende: "É de uma disposição à disposição que vale mais que deve se fazer a passagem, mas o médico produz essa passagem através das drogas, o sofista através dos discursos" (Teeteto, 167a).

Assim, pode-se a cada vez discursivamente alcançar aquilo que Górgias, e sobretudo Ântifon, nomeiam homología, ou homónoia, ao mesmo tempo acordo, consenso e concórdia [Osório diz: o que é possível obter entre os homens]. É antes de mais nada a própria lei, por diferença com a natureza, que é por essência um tal acordo (Ântifon, B44D.K.) e, quanto à Grécia, ela se distingue pela lei que prescreve aos cidadãos de prestar o juramento de concordância, quer dizer, o juramento de obediência às leis (B 44a). Essa reunião que reduz os dissensos constitui explicitamente não apenas o modelo das relações entre cidades, e da relação entre cidadãos de uma mesma cidade, mas serve para pensar até a harmonia, conflitual e temporalizada, constitutiva de cada indivíduo.

(...)

À destituição da identidade ontológica se sucede, com a prática retórica, a construção de uma identidade política que leva em consideração a diversidade das opiniões. Simultaneamente, a moral fundada sobre uma virtude ou um bem únicos como a verdade é substituída pela consideração das condutas efetivas e a preocupação com o melhor, que leva a marca de uma vivência da finitude. [Osório diz: o que a sofística propõe em substituição à verdade].

Harmonia entre Protágoras e Górgias.

A primeira sofística, face à filosofia, prefere ao discurso conforme ao ente, ou ao ser do ente, um discurso criador de consenso. É esse deslocamento mesmo, da adequação ao consenso político e cultural, que se repercute no deslocamento da oposição pertinente: história, e não mais filosofia, face à segunda sofística. Passa-se assim da ontologia às ciências humanas, e da sofística à literatura. [Osório diz: ser do ente: “ser daquilo que cresce e vem à presença”] e [Osório diz: tudo que tratam a primeira e a segunda sofística]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 11-12 e 13).

 

58

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

117 – Mnemotécnica.

 

Doutrina Untersteiner:

 

A mnemotécnica dos sofistas quis dar preceitos sobre a arte de lembrar as argumentações concernentes aos problemas capitais.” (Fonte: A obra dos sofistas: uma interpretação filosófica, Mario Untersteiner, tradução: Renato Ambrósio, Paulus, São Paulo, 2012, p. 65).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

116 - O ser como efeito do dizer.

 

É Barbara Cassin a seguinte doutrina:

 

Face à ontologia, a tese sofística e a tese lacaniana são apenas uma: o ser é um "efeito de dizer", "um fato de dito" (Encore, 107). É exatamente sobre esse ponto, nesse posicionamento, que Lacan me parece dever ser chamado sofista. Bem entendido, os sofistas, à diferença de Lacan, foram bem mais exclusivamente práticos, pedagogos e oradores, não deixando reflexões sobre a sua prática. Por outro lado, já se percebeu isso, é sempre também com pesar que Lacan constata que não é parmenideano, platônico, aristotélico, heideggeriano, filósofo. Enfim, é evidente, Lacan dispõe de outros conceitos, em particular os da subjetividade e os da linguística. Mas se os dois mundos são, apesar de tudo, comparáveis, é exatamente e para resumir, porque os sofistas e Lacan têm o mesmo outro, o regime filosófico “normal” do discurso. Indiquemos simplesmente que a definição mais adequada desse regime normal deve ser construída a partir o libro Gama da Metafísica de Aristóteles, onde a demonstração do princípio de não-contradição só se sustenta pela confusão expressar entre "dizer" e "significar alguma coisa que tenha o mesmo sentido para si mesmo e para outrem". Essa identificação é explicitamente elaborada por Aristóteles como um contragolpe à sofística. É então menos plausível que um regime antearistotélico e um regime pós-aristotélico como a psicanálise possam se comunicar em seu não, e mesmo seu anti, aristotelismo.

(...)

O ser é um fato de dito: isso significa simplesmente que não há nenhuma realidade pré-discursiva. Cada realidade se funda e se define por um discurso" (Encore, 33). É preciso inverter o sentido do sentido, que não vai do ser ao dizer, mas do dizer ao ser, ou, nos termos do Tratado do não-ser de Górgias: "Não é o discurso que indica o exterior, mas o exterior que vem revelar o discurso" (Sextus Empiricus, Adv. Math., VII, 85). Assim, "a realidade", "o exterior", em uma palavra o ser, longe de ser anterior, se conforma, sempre posteriormente, ao discurso que efetuou sua predição, e tem sua existência, assim como Helena, essa concreção fetichizada de sopro, apenas por ter sido discursado. [Osório diz: texto maravilhoso. O ser como efeito do dizer!]

 

Que o ser seja um fato de dito convida a tomar precauções no que concerne à significação. A precaução elementar que levaria a refletir sobre a especificidade do escritor é, sem dúvida, a de "distinguir a dimensão do significante". "Distinguir a dimensão do significante só tem importância por formular que, aquilo que vocês ouvem, no sentido auditivo do termo, não tem nenhuma relação com o que isso significa" (Encore, 31). E assim como a logologia não procede do ser ao dizer mas do dizer ao ser, não se irá do significado ao significante, mas inversamente: “o significado não é o que se ouve. O que se ouve é o significante. O significado é o efeito do significante” (p. 34).

 

Os sofistas não utilizaram, como os estóicos, esse tipo de terminologia. Por outro lado, é manifesto que sua crítica da ontologia se apoia na autonomia de um discurso definido como som, em termos de ouvir e de escutar — a voz de Helena:

 

Da mesma forma que a vista não conhece os sons da voz, o ouvido não ouve cores mas sons, e aquele que diz diz mas não uma cor nem uma coisa... Pois, para começar, ele não diz uma cor, mas um dizer. De modo que não existe nem conceber nem ver cor, não há mais do que ruído, há apenas ouvir (Tratado do não-ser, 10).

 

A psicanálise, como a sofística, faz soar o significante, é por isso que Lacan lacaniza e Górgias, seus contemporâneos diziam com não menos odioamoração, "gorgianiza". Com efeito, o grande recurso do significante é o de baralhar a certeza do sentido — desde Aristóteles, sentido único, "o um sentido" — jogando com o equívoco: "A interpretação... não é interpretação de sentido, mas jogo com o equívoco. É por isso que coloquei ênfase sobre o significante na língua (Roma, 552). Poder-se-ia reler, para censurar L'Etourdit, as Refutações sofísticas de Aristóteles onde, após ter deplorado o pecado original da língua há menos palavras do que coisas e falamos, em suma, como com as pedrinhas utilizadas para fazer cálculos —, ele acua o equívoco característico dos sofismas. Os sofismas que dizem respeito a confusões no pensamento são fáceis de refutar, utilizando as características ontológicas, lógicas e físicas para definir; mas contra os que dizem respeito apenas à elocução (léxis), por exemplo, ao acento, ao encadeamento e à divisão das sílabas e das palavras, à cadência da voz, logo, aos puros jogos de significante, Aristóteles pode fazer apenas um simples retorno ao emissor e um banimento para, exatamente, a insignificância. Insignificância que entretanto o chiste sabe bem tornar falante.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 304-307).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

115 – Metáfora - definição e paradoxo.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

A fim de melhor explicitar essa clareza original da metáfora, convém retomar a questão a partir da definição canônica dada pela Poética: "A metáfora é a aplicação de um nome impróprio (ti(jmatos allotríou epiphorá) por deslocamento, seja do gênero a espécie, seja da espécie ao gênero, seja da espécie à espécie, seja segundo uma relação de analogia". (…) Essa é exatamente a virtude das analogias, que são, entre todas as metáforas, "as mais reputadas" (Ret., 141als.).

(…)

Bem antes de Aristóteles, é a sofística que elabora a primeira retórica: "Górgias foi o primeiro a dar ao gênero retórico força educativa e sua técnica de expressão, utilizou tropos, metáforas, alegorias, hipálages, catacreses, hipérbatos, repetições, retomadas, reviravoltas e correspondências sonoras" (Suidas = JICA2 D.K., II, p. 272, 28-31). Mesmo se o testemunho é tardio, e certo que essa retórica siciliana, que utiliza não somente as figuras de sentido mas joga com os próprios significantes, é uma trópica generalizada, para a qual a metáfora só representa um tropo dentre muitos outros.

(…)

A conclusão da Poética sobre a metáfora reúne todos esses traços: "O mais importante, de longe, é saber fazer metáforas; pois só isso não pode ser retomado de um outro e é o signo de uma natureza bem-dotada. Fazer bem as metáforas é ver o semelhante" (22, 1059a 5-9).

(…)

Aristóteles precisa (…) o sentido dessa expressão: "Digo que as palavras colocam diante dos olhos as coisas a cada vez que elas as significam em ato" (hósa energoúnta semaínei, 1411b24s.). Os exemplos mais extremos são tirados de Homero, que diz em ato não somente os seres animados, mas chega a animar o próprio inanimado: “'as vagas abauladas, galhadas de espuma, umas à frente, outras atrás'” — essas palavras transformam tudo em movimento e em vida, e o movimento é o ato" (141a9s.). Já que a enérgeia, o "ato", é, como nos ensinam a Metafísica e a Física, o que há de mais ente para Aristóteles, ao mesmo tempo ser do ente e ente por excelência, deus mesmo, é preciso convir que a metáfora, em sua melhor forma, faz ver as coisas em seu máximo de ser, faz com que se assemelhem ao que são.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 241, 242, 243).

 

Metáfora – paradoxo.

 

Um dos paradoxos da fenomenologia prende-se ao fato de que seu discurso, impregnado pela metáfora do visível e da luz, deva entretanto ser não metafórico.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 239).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

114Homonoia, segundo a Sofística.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Vemos que é finalmente o modelo orgânico, mesmo se não é nem o mais explícito nem detalhado em sua totalidade, que triunfa: a cidade/a alma funciona como o corpo. A diferença entre as partes é necessária pela mesma razão que aquela entre as mãos e os olhos. Aliás, a cidade está doente do cidadão como o homem está doente do dedo (IV, 462cd); e, mais geralmente, a justiça é saúde da alma como da cidade (444c-e), da mesma maneira que as formas desviantes de constituições são doenças, segundo a metáfora que desenvolve o livro VIII. A homónoia descreve a maneira pela qual as partes concorrem para o todo. Bem entendido, desde que uma parte pretenda a autonomia, só pode se tratar de uma perversão stricto sensu, ao mesmo tempo perigosa e culpável. À diferença do todo sofístico, o todo platônico não sabe ou não quer tratar a livre concorrência das singularidades que o constituem” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 87).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

113 – Helena – uma sofística do gozo.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Ainda Helena: uma sofística do gozo

 

"Esfalfei-me, durante essas pseudoférias, com o Sofista. Devo ser bastante sofista, provavelmente, para que isso me interesse" J. Lacan, Congresso de Roma, 1-11-74 (Lettres de l'E.F.P.. n. 16).

Conta-se às vezes que Górgias o siciliano, enviado em embaixada a Atenas por sua cidade natal, Leôncio, conseguiu não apenas obter ajuda contra Siracusa, mas maravilhar os atenienses com seu discurso desconcertante; persuadiu a agora um dia de que Helena era a mais culpada das mulheres e, no dia seguinte, de que Helena era a própria inocência. Essa história, nem verdadeira nem falsa, é plena de sentido, quanto a Helena e quanto à sofística, talvez quanto à psicanálise.

A personagem de Helena, em primeiro lugar, tal como foi elaborada por uma tradição ininterrupta que vai de Homero, Górgias, Eurípedes e Isócrates até Goethe, Hofmannsthal (libretista de Strauss), Offenbach, Claudel ou Giraudoux, é a meu ver um paradigma do objeto de odioamoração. Ele "nos incita à lembrança de que não se conhece amor sem ódio" (Encore, p, 84, [Osório diz: de Lacan]). Com efeito, Helena parece não, por um lado, um objeto de amor e por outro lado, para outros ou por outras razões, um objeto de ódio, mas — como a língua com a qual, nós o veremos, não deixa de se relacionar — indissoluvelmente a melhor e a pior das coisas, o objeto-de-ódio-e-de-amor: quanto mais Helena é culpada, acusada, odiada, mais Helena é inocente, louvada, amada.

Em seguida Helena, que tornou Górgias célebre, é uma heroína sofística. Seu nome, onde se enlaçam os temas do amor e da linguagem, parece-me poder servir de emblema para uma posição sofística do discurso, por contraste com uma posição filosófica ou ontológica. Ora, em Encore, onde se trata também de amor (não: de odioamoração e de gozo) e de discurso, Lacan se explica por meio da filosofia, especialmente Parmênides e Aristóteles, e esboça para a psicanálise, exatamente face à filosofia, um lugar análogo ao que ocupa a sofística, um estatuto de discurso igualmente heterodoxo: ele fala, poder-se-ia dizer, como sofista.

 

Helena Odiamada

 

"Muito louvada e muito acusada, eu Helena", assim ela apresenta a si mesma no Segundo Fausto (8488). Sua história é entretanto bem banal, um mexerico de alcova: ela enganou seu marido, abandonou-o para seguir seu amante. Nada de que acusá-la e nada de que, certamente, felicitá-la. É verdade que os deuses, ou antes as deusas, se imiscuíram no início (o concurso de beleza, o pastor, a maçã: a mais bela das mulheres, prêmio da escolha de Afrodite, é de início apenas a gorjeta de Páris [Osório diz: o primeiro caso de corrupção registrado]) e que os gregos entraram no jogo em seguida, obstinando-se em morrer diante de Tróia — é a Ilíada e se daí voltam, encontram suas terras sem cultivo e seu leito tomado — é a Odisseia. Então: culpada ou não culpada, malfeitora ou benfeitora? O mais notável é que seja imperativo, no caso de Helena, manter os dois discursos ao mesmo tempo e que não haja um só fato, um só argumento, que não se deixe duplicar em seu contrário.

Não, não podemos nos aborrecer com os troianos nem com os aqueus de belas grevas se por uma tal mulher sofrem tão longos males. Ela se assemelha terrivelmente, quando olhamos seu rosto, às deusas imortais. Mas, malgrado tudo, tal como ela é, quer ela embarque ou que ela parta, que não a deixemos aqui como flagelo para nós e nossos filhos mais tarde. (Ilíada, III, 154-160).

 

E esse rosto de deusa que os anos não alteram não cessará mais de ser, para a própria Helena, uma" face de cadela"4.

Mas é o sofista Górgias e Isócrates, o orador inclassificável, que fazem verdadeiramente entender a que ponto a inocência de Helena não é nada além de sua própria culpabilidade e que enquanto benfeitora ela é calamidade. Em seu Elogio, Górgias considera quatro casos: Helena é inocente "certamente, sê "ela fez o que fez", pelos desígnios da fortuna, as vontades dos deuses e os decretos da Necessidade — "a Fatalidade", dirá ela por volta de 1900 —; inocente ainda "se ela foi raptada por violência". Admitamos, então, que a mulher seja impotente face ao destino e diante da força viril. Mas Górgias acrescenta que ela é inocente se, terceira hipótese, foi persuadida por palavras, ou se, quarto caso, simplesmente ela amou. Como seu erro mesmo se deixar seduzir, ceder ao destino — poderia inocentá-la? É simplesmente porque Helena não pode fazer nada se tem ouvidos e olhos. Seus ouvidos ouviram os discursos de Paris, ora "o discurso é um grande mestre, que perfaz, com o mais minúsculo e o mais imperceptível dos corpos, os atos mais divinos"(8): Helena faz apenas parte das “inumeráveis pessoas que sobre inumeráveis assuntos foram e são persuadidas por inumeráveis fabricantes de um discurso de aparência”(11). E, não mais responsável pelo que ouviu, é ela responsável pelo que viu, pois "o que vemos tem uma natureza que não é a que nós queremos, mas a que ele mesmo tem"(15); ora, o belo Páris apresentou-se a seus olhos: "se o olho de Helena pelo corpo de Alexandre [Outro nome de Páris] deu o desejo e transmitiu à alma a avidez do amor, o que há aí de surpreendente?"(19). De todas essas formas, Helena é inocente de ter esse corpo que a faz culpada.

Independentemente das artes, dos estudos filosóficos e de outras vantagens que podemos fazer remontar até ela e até a guerra de Tróia, podemos pensar com razão que ela é causa do fato de que não nos tenhamos tornado escravos dos bárbaros. Vemos os gregos se unir, graças a ela, em um mesmo sentimento, constituir um exército comum contra os bárbaros e a Europa pela primeira vez erguer então um troféu de vitória sobre a Ásia.

Foi assim, traindo Esparta pelos belos olhos de um bárbaro, que Helena fez a Grécia, dando-lhe essa homónoia, "consenso" e “concórdia” necessárias a toda consistência política.

 

A sombra e o nome

 

Helena é a tal ponto dupla que se quis acreditar desde Este-su-orv que houvesse duas Helenas A primeira é Helena ae corpo r alma, a esposa muito fiel de Menelau, que jamais entrou em l mia mas que Hermes transportou sobre uma margem do Egito cuide a proteção do rei — que certamente não podia evitar de lhe propor um casamento regular após uma viuve/ decente — lho permitiu conservar sua virtude: Helena a egípcia, a de Eurípedes, depois de Hofmannsthal e de Claudel. A segunda é a Helena de Tróia, um "simulacro animado" (eídolon, Eurípedes. Helena, 34, 683), feito de um pouco de “vento”, de "sopro" ou de "céu", "um funesto ágalma [Osório diz: adorno, enfeite, ornato] feito de nuvem" (705), que foi arrebatado por Páris e partilhou seu leito, por quem sozinhos gregos e troianos se mataram, que Menelau após dez anos de assédio conseguiu reconquistar e que uma bela manhã “se dissipou” no éter (605-606).

 

Ouvir em Helena todas as mulheres

 

Helena nomeia então esse desdobramento da coisa e do nome que dá ao nome uma realidade mais tenaz e mais eficaz que a da coisa: a própria mola do nominalismo — digam o nome e terão a coisa, mais coisa do que a coisa. Mas pode-se ir mais longe. Helena encarna a onipotência do discurso e, no discurso, a onipotência dos sons da voz, da phone puramente sensível, audível, em sua diferença com o sentido trazido pelas palavras ligadas a uma referência preexistente e sintaticamente agenciadas.

 

colchetes que são a guilhotina filológica...

 

Ulisses, perito em astúcia e em discursos, ...

 

A voz de Helena tem todo o poder sobre os guerreiros não iipi-iiiis porque ela os atinge no âmago de sua singularidade, no-iiR-aiulo-os, mas também porque, enquanto som, sabe fazer ser o que não é. O som, "o mais imperceptível dos corpos" de que falava Górgias no Elogio, é o que há de mais demiúrgico no discurso, o que tem verdadeiramente efeito, eficácia, o que produz a ficção ou, segundo a muito criteriosa ortografia lacaniana, a . "fixão". Helena é o equivalente geral de todas as mulheres, assim como o discurso é o equivalente geral de todas as coisas; [Osóio diz: mas não é a coisa! Se não é a coisa não é a verdade!].

(…)

 

O sofisma do gozo

 

Helena é assim um objeto que informa profundamente sobre o objeto: que é um efeito, um perdido (rate), uma aparência. É esse tipo de constituição da objetividade que me parece ligar rigorosamente sofística e análise, em todo caso lacaniana.

 

O preço do phármakon

 

Da sofística à psicanálise, a semelhança exterior é por demais impressionante. O mais escandaloso, aos olhos da filosofia como da opinião pública, é que sofistas ou psicanalistas vendem, e sempre caro demais, seu savoir-faire discursivo.

 

Eles comerciam, como as "putas" a quem os compara Aristófanes, o que não deveria sê-lo e que, em sendo-o, se torna completamente diferente, não mais sabedoria e saber, mas habilidades e oportunismos.

 

O pagamento e a eficácia se garantem um ao outro e garantem que não se trata de dizer a verdade, impagável em todos os sentidos do termo, nem de fazer passar o outro de uma opinião falsa a uma opinião verdadeira, pois, como diz Protágoras pela boca de Sócrates que faz sua apologia, isso não é "nem para ser feito, nem exequível". Mas se trata de substituir "um estado menos bom por um estado melhor" (Teeteto; 166e-167a), de modo que falar, — e atualmente, ainda mais forte: calar-se apresenta-se explicitamente como o análogo de uma prática médica: esse tipo de discurso tem o estatuto de um phármakon, remédio ou veneno; sua eficácia é estritamente ad hominem; ele só poderia funcionar apreendendo o kairós, essa "ocasião" tão careca por detrás, e ele trabalhou mesmo, historicamente, de Ântifon a Élio Aristides, para decifrar essa ocasião propícia, praticando a interpretação dos sonhos.

 

A tolice do discurso m'être*

 

A pista terapêutica e mundana parece-me remeter a uma posição, digamos teórica, que a leitura de Encore permite explicitar. “De um modo geral, escreve Lacan, a linguagem se revela ser um campo muito mais rico de recursos do que o de ser simplesmente aquele em que se inscreveu, ao longo do tempo, o discurso filosófico" (Encore, 33). Só por uma vez trata-se de “passar alguma coisa para a metafísica” ao invés de "comer em sua manjedoura" (p. 56). Qual é esse mais? Benveniste o enuncia com a maior simplicidade: estamos em uma "linguagem que age tanto quanto exprime" ("Remarques sur la fonction du langage dans la découverte freudienne", in Problèmes de linguistique géneral,77). Não apenas a linguagem "exprime": diz o que vejo, diz o que é (fenomenologia, ontologia), mas ela "age": é capaz, como bom phármakon, de transformar o outro ou eu mesmo e é capaz também, como a personagem e o estratagema de Helena nos fizeram compreender, de criar, de produzir um efeito-mundo.

 

*Literalmente "me ser". A expressão francesa remete à palavra homófona maítre. Em sua múltipla acepção (mestre, dono, patrão) compreendida nas oposições mestre/escravo, mestre/discípulo, dono/objeto possuído, patrão/empregado. (N. das T.)

 

15. A formulação parmenidiana, poética, das duas vias de pensamento é: "Uma que é e que não é (possível de) não ser... A outra que não é e que é necessário que não seja" (28 B2 D.K.);

A segunda é a identidade ou o co-pertencimento do ser e do pensado: "penso, logo existo... É mesmo melhor do que o que diz Parmênides. A opacidade da conjunção do noeîn e do einai, daí não sai o pobre Platão" (Roma, 546). E a propósito de Aristóteles; "Seu erro é implicar que o pensado é à imagem do pensamento, quer dizer, que o ser pensa" (Encore, 96). Essas duas teses juntas fazem com que seja impossível dizer e pensar o que não é e a ontologia se autodefine aí como o dizer do que é; ela aparece assim simplesmente como uma petição de princípio: "O discurso do ser supõe que o ser seja e é isso que o mantém" (Encore, 108).

Esse é exatamente, exceto a denegação do agrado em dizê-lo, o ponto de partida do Tratado do não-ser de Górgias. Górgias mostra aí que a ontologia de Parmênides, quando aplicamos a ela mesma seus próprios princípios, que se tornarão os da identidade e da não-contradição, produz sua própria reversão. Por exemplo, se não se pode dizer nem pensar o que não é, então basta que eu diga e que pense que "carros combatem em pleno mar para que carros, efetivamente, combatam em pleno mar" (9). Apenas a ontologia funda o lugar comum sofístico da impossibilidade da mentira e do falso. A ontologia age como se o ser que ela tivesse que dizer já estivesse presente e assim não tem mais que se preocupar, a não ser com a adequação. Górgias faz compreender que ela só pode manter sua posição e ocupar assim toda a cena porque esquece, não o ser, mas que ela mesma é um discurso. [Osório diz: trecho muito bom, pois explica muito bem Górgias e a impossibilidade do falso]

 

O ser é um fato de dito

 

Face à ontologia, a tese sofística e a tese lacaniana são apenas uma: o ser é um "efeito de dizer", "um fato de dito" (Encore, 107). É exatamente sobre esse ponto, nesse posicionamento, que Lacan me parece dever ser chamado sofista. Bem entendido, os sofistas, à diferença de Lacan, foram bem mais exclusivamente práticos, pedagogos e oradores, não deixando reflexões sobre a sua prática. Por outro lado, já se percebeu isso, é sempre também com pesar que Lacan constata que não é parmenideano, platônico, aristotélico, heideggeriano, filósofo. Enfim, é evidente, Lacan dispõe de outros conceitos, em particular os da subjetividade e os da linguística. Mas se os dois mundos são, apesar de tudo, comparáveis, é exatamente e para resumir, porque os sofistas e Lacan têm o mesmo outro, o regime filosófico “normal” do discurso. Indiquemos simplesmente que a definição mais adequada desse regime normal deve ser construída a partir o libro Gama da Metafísica de Aristóteles, onde a demonstração do princípio de não-contradição só se sustenta pela confusão expressar entre "dizer" e "significar alguma coisa que tenha o mesmo sentido para si mesmo e para outrem". Essa identificação é explicitamente elaborada por Aristóteles como um contragolpe à sofística. É então menos plausível que um regime antearistotélico e um regime pós-aristotélico como a psicanálise possam se comunicar em seu não, e mesmo seu anti, aristotelismo.

 

Para explicitar essa posição que se pode nomear, com um termo de Novalis, "logológica", tentarei colocar lado a lado citação lacaniana supostamente mais familiar ao leitor analista e citação sofística.

 

O ser é um fato de dito: isso significa simplesmente que não há nenhuma realidade pré-discursiva. Cada realidade se funda e se define por um discurso" (Encore, 33). É preciso inverter o sentido do sentido, que não vai do ser ao dizer, mas do dizer ao ser, ou, nos termos do Tratado do não-ser de Górgias: "Não é o discurso que indica o exterior, mas o exterior que vem revelar o discurso" (Sextus Empiricus, Adv. Math., VII, 85). Assim, "a realidade", "o exterior", em uma palavra o ser, longe de ser anterior, se conforma, sempre posteriormente, ao discurso que efetuou sua predição, e tem sua existência, assim como Helena, essa concreção fetichizada de sopro, apenas por ter sido discursado. [Osório diz: texto maravilhoso. O ser como efeito do dizer!]

 

Segue-se uma série de proposições negativas, que guarnecem de ingenuidade os discursos científicos tradicionais. Por exemplo, a "cosmologia": "será que não há no discurso analítico como nos introduzir ao fato de que toda subsistência, toda persistência do mundo como tal deve ser abandonada" (Encore, 43); a "física": "em que essa nova ciência concerne ao real?" (Encore, 96) e, no mesmo saco aristotélico, o "behaviorismo" (p. 96); enfim, a "história" que se pode extrapolar de "história do cristianismo", onde "não há um só fato que não possa ser contestado" e onde toda a verdade é a de ser "dito-menção (dit-mention), a menção do dito" (p, 97): em suma, para minorizar a verdade como ela o merece, é preciso ter entrado no "discurso analítico" (p. 96). Essa série de negações culmina na fórmula: "não há linguagem do ser" e Lacan pode enfim desativar a proposição ontológica fundamental, guarnecendo-a com um índice de enunciação, característico do procedimento doxográfico: "o ser é, como se diz, e o não-ser não é". Concluir-se-á sobre a potência da própria logologia: "Distingo-me da linguagem do ser. Isso implica que possa haver aí ficção de palavra. Quero dizer a partir da palavra" (p. 107).

 

Essas poucas citações poderiam também servir para descrever a heterodoxia sofística através da série de recusas que a constituíram. O sofista se ocupa do não-ser; pretende saber tudo — conhece melhor o mundo, a natureza, a história do que os próprios especialistas; enfim, não se preocupa com a verdade, mas seu domínio é o pseûdos, a mentira, o falso, a ficção. Aqui seria necessário, para agir corretamente, incluir no dossiê todo Platão e muito de Aristóteles. Mas também, para poder perceber a eficácia dessa logologia assim determinada como que em negativo, seria preciso, positivamente dessa vez, considerar todo um conjunto de doutrinas e de práticas que só tomam, parece-me, todo seu sentido, nessa perspectiva. Assim, essa outra física, perfeitamente escandalosa aos olhos de Aristóteles, que foi o atomismo e que deveria ser interpretada, com seu modelo da letra, como uma "colocação em mundo" do discurso; em seguida a própria história que, através de Heródoto e Tucídides, se apresentou em primeiro lugar não como a descrição da realidade passada, mas como uma reunião de opiniões e de discursos; enfim, muito mais tarde, a ficção romanesca, tal como foi elaborada, após o triunfo da educação retórica, no momento da segunda sofística. Tudo isso só poderia estar aqui apenas sugerido.

 

O significado é o efeito do significante

 

Que o ser seja um fato de dito convida a tomar precauções no que concerne à significação. A precaução elementar que levaria a refletir sobre a especificidade do escritor é, sem dúvida, a de "distinguir a dimensão do significante". "Distinguir a dimensão do significante só tem importância por formular que, aquilo que vocês ouvem, no sentido auditivo do termo, não tem nenhuma relação com o que isso significa" (Encore, 31). E assim como a logologia não procede do ser ao dizer mas do dizer ao ser, não se irá do significado ao significante, mas inversamente: “o significado não é o que se ouve. O que se ouve é o significante. O significado é o efeito do significante” (p. 34).

 

Os sofistas não utilizaram, como os estóicos, esse tipo de terminologia. Por outro lado, é manifesto que sua crítica da ontologia se apoia na autonomia de um discurso definido como som, em termos de ouvir e de escutar — a voz de Helena:

 

Da mesma forma que a vista não conhece os sons da voz, o ouvido não ouve cores mas sons, e aquele que diz diz mas não uma cor nem uma coisa... Pois, para começar, ele não diz uma cor, mas um dizer. De modo que não existe nem conceber nem ver cor, não há mais do que ruído, há apenas ouvir (Tratado do não-ser, 10).

 

A psicanálise, como a sofística, faz soar o significante, é por isso que Lacan lacaniza e Górgias, seus contemporâneos diziam com não menos odioamoração, "gorgianiza". Com efeito, o grande recurso do significante é o de baralhar a certeza do sentido — desde Aristóteles, sentido único, "o um sentido" — jogando com o equívoco: "A interpretação... não é interpretação de sentido, mas jogo com o equívoco. É por isso que coloquei ênfase sobre o significante na língua (Roma, 552). Poder-se-ia reler, para censurar L'Etourdit, as Refutações sofísticas de Aristóteles onde, após ter deplorado o pecado original da língua há menos palavras do que coisas e falamos, em suma, como com as pedrinhas utilizadas para fazer cálculos —, ele acua o equívoco característico dos sofismas. Os sofismas que dizem respeito a confusões no pensamento são fáceis de refutar, utilizando as características ontológicas, lógicas e físicas para definir; mas contra os que dizem respeito apenas à elocução (léxis), por exemplo, ao acento, ao encadeamento e à divisão das sílabas e das palavras, à cadência da voz, logo, aos puros jogos de significante, Aristóteles pode fazer apenas um simples retorno ao emissor e um banimento para, exatamente, a insignificância. Insignificância que entretanto o chiste sabe bem tornar falante.

 

Compreendamos a que ponto todas essas teses estão ligadas. A ficção da palavra assinala a ruptura com a filosofia ("Como vos tirar dá cabeça o emprego filosófico de meus termos, quer dizer, o emprego sujo?" Roma, 544

 

Para o prazer/em pura perda

 

É preciso refletir ainda sobre a ficção de palavra, creio, para levantar um último problema: o da ética. Lacan o assinala em Encore: "A ficção a partir da palavra... foi daí que parti quando falei da ética" (p. 107). Em sua intervenção de Roma, ele esboça uma bipartição entre a posição que se deve, em virtude de seu próprio nome, qualificar de filosoficamente moral: a do Da-Sein, que ele mesmo ocupava então; e a do analisando, que se define por ter a dizer seja o que for: "Ele se regozija com alguma coisa... porque tudo indica, tudo deve mesmo lhes indicar que vocês não lhe pedem de forma alguma apenas para "daisenar", para estar aí como eu estou agora, mas antes e bem ao contrário, para experimentar essa liberdade de ficção de dizer seja o que for" (p. 558). De um lado então o "o ser aí", "o aí do ser", seu "pastor", o homem de Parmênides a Heidegger via Aristóteles; do outro, o discurso puro, embriagado, "hibrístico", sobre o qual Aristóteles não sabe se ele caracteriza uma planta (aliás: que faz exatamente o lírio do campo? se pergunta Lacan, 556), ou bem um deus, mas que em todo caso bane o sofista, e seria necessário acrescentar, o analisando, fora da comunidade filosófico-humana [Osório diz: mas ele pertence a essa comunidade! Falta recurso para caracterizá-lo? Classificá-lo?]. Por não poder descrever aqui a Metafísica de Aristóteles, contentar-me-ei em citar a condenação de Heidegger quando comenta "o princípio de contradição [Osório diz: “o ser é, o não-ser não é” - Parmênides. “O ser não pode ser e não ser - Aristóteles] enquanto princípio do ser": "Ao sabor de afirmações contraditórias que o homem é capaz de de produzir à vontade sobre uma só e mesma coisa, ele mesmo sai de sua própria essência para entrar na não-essência: rompe toda relação com o ente enquanto tal"' (Nietzsche, l, 468, trad. Klossowski). Aí se vê o motivo das reticências de Lucan que, por ser analisando, não é por isso menos homem. Mas não se poderia duvidar que ele tome mais frequentemente o partido de "alíngua onde o gozo se deposita" 556) e não participe por esse fato da presunção dos primeiros sofistas: "Gabo-me por ser capaz de fazer, em uma frase, qualquer palavra dizer qualquer sentido" (p. 55). Mais uma vez com o remorso que faz com que, gozando, não se tenha o coração alegre:

 

Tenho a impressão de que a linguagem é verdadeiramente o que só pode avançar torcendo-se e enrolando-se, deformando-se de um modo do qual não posso dizer que eu não dê aqui o exemplo. Não se deve acreditar que, para aceitar seu desafio, para marcar em tudo que nos concerne a que ponto dependemos dela, não se deve acreditar que eu faça isso com muita alegria no coração. Preferia que isso fosse menos tortuoso (p. 560). (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 293299, 302-308).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

112 – Epídeixis – significado.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Pois a epídeixis é o nome mesmo que a tradição atribui, por excelência, à discursividade sofística. O termo é consagrado por Platão (por exemplo Hípias maior, 282c, 286a; Hípias menor, 363c; Górgias, 447c), onde ele designa o discurso contínuo de Pródicos, de Hípias e de Górgias, em oposição ao diálogo por perguntas e respostas ao gosto de Sócrates. A melhor tradução seria sem dúvida "conferência", e mais exatamente lecture, no sentido anglo-saxônico do termo, pois ó sofista, vindo freqüentemente da Sicília ou da Grande-Grécia, faz com efeito turriês de conferências no estrangeiro, quer dizer, nas grandes cidades gregas, Atenas, Esparta, assim como célebres professores americanos atravessam o Atlântico para assombrar a velha Europa.

Como em seguida na Retórica aristotélica, o modelo da epídeixis/conferência é, de fato, a epíeixis/elogio. E o próprio modelo do elogio, o mais antigo que chegou até nós, não é outro senão o Elogio de Helena composto por Ggias. A natureza paradoxal do elogio aí se revela plenamente: Helena é a mais culpada das mulheres, já que coloca a Grécia inteira a ferro e fogo, entretanto Górgias nos convence de que Helena é a própria inocência.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 238-239).

 

1

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

111 – Sofistas e o aprofundamento nos estudos (sem promessa de verdade).

 

Ensina Kerferd:

 

Os testemunhos citados até aqui indicariam que o contraste entre Protágoras e Hípias pode não ter sido tão grande como é sugerido pela declaração que Platão põe na boca de Protágoas. Essa declaração tem, na verdade, probabilidade de ser essencialmente correta naquilo que realmente diz. Mas há, entre as duas abordagens, uma diferença que, historicamente, é de considerável importância. Protágoras, na sua crítica de Hípias e de outros como ele, está levantando uma questão de relevância ao sugerir que ele, Protágoras, ensinará o que o estudante realmente quer aprender como preparação para a vida que está pretendendo levar. Associada a essa, há uma outra questão também. Heráclito tinha atacado Hesíodo, Pitágoras, Xenófanes e Hecateu, alegando que polimatia ou aprendizagem em muitos assuntos não produzia compreensão (DK 22B40), sem dúvida porque isso não tinha levado os homens a uma compreensão do que ele considerava sua própria especial percepção da natureza do universo. Daí em diante, o valor de polimatia foi uma questão discutida, e encontramos Demócrito dizendo (DK 68B65) que o que é preciso não é polimatia no sentido de aprender muitas coisas mas, antes, no de compreensão de muitas coisas. Essa era a questão entre Protágoras e Hípias, não a da série de coisas que precisamos compreender. É provável que a posição de Protágoras esteja resumida na declaração atribuída a ele (DK 8DB11): educação não brota na alma, a menos que se vá a uma profundidade maior. É possível que isso signifique que não basta ficar no nível dos fenômenos, que são a matéria da polimatia mas que precisamos prosseguir para o que é hoje chamado de estudo em profundidade, numa tentativa de compreender os princípios subjacentes comuns a todos os assuntos que devem ser estudados.” [Osório diz: frase de Protágoras]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 72-72).

 

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