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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

87.4 – Retórica e Filosofia: a linguagem e seus objetos.

 

Ensina Guthrie:

 

A relação da linguagem com o seu objeto.

 

Antifonte, fr. 1, diz que as artes ou ciências (tchnai) tomam suas terminologias das espécies (eidea) e não vice-versa, pois palavras são uma tentativa de impor legislação sobre a natureza (…) ao passo que as espécies não são convencionalmente impostas, e sim crescimentos naturais.

O Crátilo de Platão mostra que a questão em pauta era se os nomes das coisas tinham uma adequação inerente, ou natural, ou eram meros sinais convencionais. [Osório diz: Aristóteles “detona” essa besteira platônica no livro gama de sua Metafísica ao dizer que “existem mais coisas no mundo do que nomes”!].

Protágoras afirma que o homem educado deve ser qualificado em seu assunto para entender quanto o poeta compõe corretamente e quando não.

Como o estudo da “correção dos nomes" incluía provavelmente especulação sobre a natural adequação dos nomes ao que eles significam, pois Sócrates introduz Homero como autoridade sobre este último assunto, citando antes de tudo sua prática de mencionar dois nomes para uma coisa, um usado pelos homens e outro pelos deuses: "obviamente os deuses devem chamá-los pelos nomes que correta e naturalmente lhes cabem" (Crát. 391d). [Osório diz: Aristóteles “detona” essa besteira platônica no livro gama de sua Metafísica ao dizer que “existem mais coisas no mundo do que nomes”!].

A “correção dos nomes” é o tema de Crátilo, que discute dois modos de ver opostos.

O fato de um grupo de homens concordarem como chamarão uma coisa não faz disso o seu nome: na verdade, uma palavra que não tem nenhuma garantia interior não é nome absolutamente. Há um nome natural e próprio pertencente a cada coisa, o mesmo para gregos e estrangeiros igualmente. Deve-se supor que tenha sido dado por original dador-de-nomes ou legislador que tenha completa intuição sobre a natureza mesma da coisa, sem dúvida como resultado de poderes supra-humanos. [Osório diz: a besteira só supra-humano!]

A esta tese de Crátilo Hermógenes opõe a sua segundo a qual a correção dos nomes é determinada unicamente por convenção e acordo, e diferem para povos diferentes. Tendo-se-lhe perguntado por sua própria opinião, Sócrates, de início, apóia Crátilo. Sustentar o caráter completamente arbitrário dos nomes leva inevitavelmente a aceitar a tese de Protágoras para quem não há nenhuma realidade objetiva e também as coisas são diferentes para cada indivíduo, ou então a de Epidemo para o qual todas as coisas possuem todos os atributos juntos e ao mesmo tempo. Isso, concordam eles, está errado. Colocando-o em seus próprios termos teleológicos, Sócrates argumenta que as ações (praxeis) e as coisas (pragmata) têm a natureza fixa e devem ser tratadas com o instrumento próprio, como cortar com uma faca. Isso inclui o discurso cujos instrumentos, ou seja, palavras e nomes (onomata), têm a função de ensinara sobre as essências de coisas reais e distingui-las. Eles são dados pelo nomos, e daí por um legislador ou fazedor-de-palavras que (em analogia com outras habilidades, por exemplo, o fabricador de máquina de tecer que subserve ao trabalho de tecelão) deve produzir o nome naturalmente adequado para o seu objeto, trabalhando sob a direção de usuário habilitado, isto é, o dialético ou experto em discussão.

[Osório diz: o Crátilo é um exemplo de que Platão, mais uma vez, se apropria de tese sofista sem querer dar o crédito, aliás, falando contra ela!] Daí eu pensar que ele é um tirador de sarro. Primeiro fala de “convenção/acordo” para os nomes, ou seja, que os nomes seriam dados por nomos, depois diz que eles provêm da natureza, ou seja, seriam dados pela phýsis!]

Em que consiste então a correção dos nomes? Sócrates nega conhecimento – esta é a província dos sofistas e poetas – mas é induzido a expor uma teoria. Um nome é uma imitação vocal de um objeto – não no sentido cru em que alguém imita uma vaca dizendo “mu”, mas comunicando a natureza da coisa, como se não tivéssemos nenhum discurso, poderíamos comunicar a natureza do peso por um movimento de cima para baixo da mão. Sendo as palavras compostas ou simples, isto se aplica mais diretamente às simples, e ainda mais diretamente às letras e sílabas de que são compostas. Estas são como os pigmentos que o pintor pode usar em separado ou em combinação para construir sua pintura. A forma da palavra às vezes o mostrará de maneira óbvia, por exemplo, a letra r imita moção ou ação violenta, l lisura; mas muitas palavras tornaram-se tão batidas e tão distorcidas no decorrer da história que a intuição do original dador-de-nome não mais é reconhecível. Sócrates passa depois a ilustrar este ponto por uma série de etimologias cuja maioria são obviamente fantasiosas, tornando evidente sua própria atitude cética para elas por várias observações irônicas. Ele parodia uma prática corrente e guarda para si sua opinião pessoal. [Osório diz: os gracejos de Sócrates são permitidos, já os de Górgias...].

Nomes não são, pois, rótulos arbitrários, e sim forma de imitação de seus objetos. Todavia (voltando para Crátilo) deve-se dizer que, como no caso dos pintores, alguns serão melhores imitadores do que os outros, e assim serão seus produtos, os nomes. Ou os nomes são corretos, ou não são nada, simplesmente barulhos sem sentido como o bater de um gongo. (É em referência a isto que Crátilo se confessa um dos que sustentam que é impossível falar falsamente) [Osório diz: aqui, e por isso, Platão se mete num beco sem saída! Daí, ao final, ele, e seu personagem Sócrates não concluírem nada!]. Sócrates responde que uma imitação nunca pode ser exatamente igual ao original em todos os aspectos, ou seria o original, mas Crátilo fica sem se convencer, e volta para o poder de super-homem do inventor original dos nomes [Aristóteles, nos primeiros capítulos de De interpr., obviamente, tem os olhos em Crátilo. Ele se coloca ao lado de Hermógenes sustentando (16 a 19) que um nome é uma phone semantike kata syntheken e que isto significa (a27) hoti physei ton onomaton ouden estin, all' hotan genetai symbolon. Ele distingue entre sons inarticulados, comuns a homens primitivos e animais, que são naturais e comunicam sentido, mas ainda não são linguagem, "nomes" que são convencionais (a28, delousi ge ti kai kw hoi agra at. psophoi, hoion therion, hon ouden estin onoma).]. [Osório diz: Platão e as ideais e os pintores. Embrião.]

Estas teorias lingüísticas têm conexão com teorias correntes do conhecimento e da realidade [Osório diz: nomos versus phýsis. Os nomes são dados por nomos ou pela natureza?]. A tese de Hermógenes, segundo a qual palavras são de origem convencional meramente arbitrária, encontra acordo no diálogo para levar à doutrina de Pitágoras de que não há realidade atrás das aparências. O modo de ver oposto de Crátilo deixa espaço para uma realidade (physis) à qual o nome está essencialmente unido (…) de sorte que “o que conhece os nomes conhece também as coisas”. Opinião ou afirmação falsa é impossível, mas pela razão oposta à dada por Protágoras. Ao passo que ele dissolveu a realidade na aparência, esta teoria mais paradoxal (que, como veremos logo, era a de Antístenes) sustenta que há uma physis para tudo e não há nenhuma possibilidade de denominá-la ou descrevê-la erroneamente [Osório diz: aquilo que tento dizer: a linguagem, por si só, ao tentar-se casá-la com a realidade leva a paradoxo, como é o caso! A mesma teoria aplica a coisas totalmente distintas, até opostas]. Aplicar-lhe o que outros chamariam de nome ou logos errado é pronunciar nome algum, mas apenas ruídos sem significado (…) Somente Sócrates apresenta explicação da linguagem baseada na antítese comumente chamada sofista, e sustentada de modo sobretudo claro por Demócrito e Antífon, entre physis e nomos [Osório diz: se ele era um deles, nada mais natural! Mas qual a explicação?]. As coisas têm natureza fixa, e as palavras são a tentativa de reproduzir aquela natureza pelo meio do som; mas esta imitação nunca perfeita, e em alguns casos muito imperfeita, mesmo desde o início, além de as palavras se corromperem através do uso e com a passagem do tempo (…) Também não são as mesmas as imitações tentadas em diferentes partes do mundo. (A possibilidade de origem não-grega para algumas palavras é mencionada em 409d-e, 416a, 425e). Ademais, assim como o retrato de Smith por ser erroneamente identificado como retrato de Jones, também uma palavra pode ser erroneamente identificada com algo diverso do que aquilo de que ela é a imagem (…) Com base nesta teoria poderia bem ser verdade, como Antífon disse, que pessoas usual ou convencionalmente apliquem a palavra “justiça” ao que não é verdadeira, correta e naturalmente justo. O final do Crátilo permite outro rápido olhar fascinante (…) sobre o modo como Sócrates virava argumentos sofísticos para seus próprios objetivos [Osório diz: o que prova que ele era um deles, como demostra Aristófanes, que, no caso, não se enganou!]. Pergunta de repente a Crátilo se, concedido que palavras são imagens de coisas, não é melhor aprender da realidade que a imagem expressa antes do que somente da imagem. Crátilo não pode negá-lo, Sócrates o leva daí ao seu próprio “sonho” de formas absolutas e imutáveis de beleza, bondade e o resto, que só se pode dizer ser real e louvável, e são diferentes de suas representações fugazes num rosto ou numa boa ação. Crátilo ainda está inclinado a se fixar em sua própria posição heracliteana, e o diálogo termina, como tantos outros, num acordo de pensar mais sobre o tema depois [Osório diz: somente dos sofistas são exigidas explicações completas, conclusivas. Platão/Sócrates nunca concluem nada e ninguém lhes pede mais do que dizem! E a isonomia?]. Mas na mente do leitor foi semeada a semente. [Osório diz: Infelizmente, ou felizmente, o leitor Aristóteles resolveu o problema ao dizer, no livro Gama de sua Metafísica, que “existem mais coisas no mundo do que nomes para designá-las”! Aliás, toda a exposição sobre o tema já devia iniciar-se assim: “Leia se quiser esse diálogo, mas ele está superado pelo ensinamento de Aristóteles que diz: '...'”. O que fazem os autores é encher linguiça!]

Antístenes, discípulo de Sócrates que esteve entre o círculo íntimo presente em sua morte, mostrou sua percepção da importância da linguagem ao intitular uma obra “Sobre a educação, ou sobre os nomes” e declarar que o “fundamento da educação é o estudo dos nomes”.

 

O ensinamento de Antístenes.

 

Como vimos (…) a ele, como a Protágoras, foi creditada a tese de que é impossível contradizer ou falar falsamente, e se pensa comumente que ele era um dos que sustentaram que predicar uma coisa de outra era errôneo: não é admissível dizer “o homem é bom”, mas só “o homem é homem” e “bom é bom”. Com efeito sustenta-se que as duas doutrinas são inseparáveis, mas obra recente mostrou que não precisa necessariamente ser assim [Grote: “'O homem é bom' era uma proposição inadmissível: afirmar que diferentes coisas é a mesma [Osório diz: por exemplo: o homem é bom e o vinho é bom. Duas coisas diferentes (homem e vinho) é a mesma coisa (bom). É isso?], ou que uma coisa é muitas [Osório diz: por exemplo: o homem é bom e o homem é mau. A mesma coisa (o homem) é muitas (bom e mau). É isso?]. Segundo isto, era impossível que dois locutores se contradissessem entre si" (Plato, 111. 521).]. [Osório diz: qual é a obra recente Guthrie não diz! Acho que é Caizzi, vide nota 77].

A tese da impossibilidade da contradição: “Todo logos (afirmação) é verdadeiro, pois aquele que fala diz alguma coisa, aquele que fala alguma coisa diz o que é, e aquele que diz o que é fala a verdade”. Falando absolutamente (“qua falso”), diz Aristóteles, um logos falso é do que não é, e, portanto, na prática quando falamos de logos falso queremos dizer um que pertence a alguma coisa outra que aquela à qual se aplica, por exemplo, o logos do círculo é falso se aplicado ao triângulo. (Um triângulo em que todo ponto é eqüidistante de um dado ponto não existe, todavia o logos “figura plana em que todo ponto é eqüidistante de um dado ponto” existe; isto é, descreve alguma coisa que é; só foi mal aplicada). Ademais, embora haja num sentido apenas um logos de cada coisa, a saber, o que descreve sua essência [Osório diz: o cara já dá como certo algo que ainda procura!], em outro sentido há muitos, uma vez que a própria coisa e [Osório diz: creio que é “é” e não “e) a coisa [Osório diz: Sócrates, por exemplo] mais certos atributos não-essenciais [Osório diz: sujo, por exemplo] são de certa forma o mesmo, por exemplo, Sócrates e o Sócrates educado (ou Sócrates e o homem educado). Esta é a razão, continua ele, por que foi tolice da parte de Antístenes supor que só se pode falar de uma coisa por seu próprio logos, um por um; do que seguia que é impossível contradizer, e praticamente impossível falar falsamente.

O sentido de logos aqui emerge do contexto. Foi entendido como uma simples palavra ou termo, mas claramente significa uma descrição, ou afirmação do que uma coisa é.

Antístenes disse “um logos é aquilo que manifesta o que uma coisa era ou é”. A “tolice” de Antístenes é alargada mais pelo pseudo-Alexandre em seu comentário (Antist. Fr. 44 B), que explica como a asserção de que cada coisa só tem um logos levou à impossibilidade de falar falsamente ou de duas pessoas se contradizerem entre si. Para se contradizer, eles devem dizer coisas diferentes sobre a mesma coisa, mas uma vez que cada coisa tem apenas um logos (que afinal, em adição a qualquer uso mais especializado, significa simplesmente ”uma coisa que pode ser dita – legesthai – sobre ela”) isto é impossível. Se elas dizem coisas diferentes, devem falar sobre diferentes coisas e daí não se contradizendo entre si. Nenhuma de nossas autoridades dá exemplos, e estudiosos modernos foram de modo semelhante reticentes [Todavia exemplos mais concretos também teriam sido bem-vindos aí, especialmente na exposição da essência e dos atributos acidentais nas pp. 33s. Para Antístenes (diz o autor), dizer "Sócrates é preto" seria não dizer nada absolutamente, ao passo que para Aristóteles é dizer Sócrates com um predicado não-verdadeiro. Seria bem-vinda uma ilustração semelhante de um logos da essência de Sócrates que mantivesse a diferença entre os dois filósofos. Field dá o exemplo de um triângulo (P. ano Contemps. 166). Isso é valioso, mas definições matemáticas são um caso especial, e a aplicação da teoria a objetos naturais não é tão óbvia para nós.]. Presumivelmente Antístenes teria afirmado que “não se pode dizer” que “um homem é animal de asas e penas”, pois isto é dizer o que não é, isto é, dizer nada (ouden legein). Aquele que não diz nada não pode ser contraditório ou contradizer, e a única alternativa é que, embora pronunciando o som “homem”, o locutor esteja falando realmente de pássaros e assim, uma vez mais, não contradiz a outrem que dá um logos diferente de homem.

Tais teorias da linguagem tornam-se mais compreensíveis pela probabilidade de que devem sua origem ao prestígio fruído pela retórica, a arte da persuasão.

Para Górgias, a persuasão era soberana, porque não havia nenhuma verdade acima do que um homem podia ser persuadido a crer, e Protágoras já ensinaria a seus discípulos que sobre cada assunto se podia argumentar posições contrárias com igual validade, o que um homem cria era verdadeiro para ele, e nenhum homem podia contradizer a outro no sentido de opor visão verdadeira a falsa. Antístenes pode ter ido mais longe do que Protágoras ao tentar uma explicação filosófica de como podia ser assim.

Em conexão com o último parágrafo, é interessante que Platão (Fedro 260b) examina os efeitos de aplicar o nome "cavalo" ao logos do burro ("animal manso com orelhas longas"), e persuadir alguém de que a criatura significada por este logos possui as virtudes geralmente atribuídas a cavalos, para compará-los com o mal feito pelos retóricos que, ignorando, eles mesmos a natureza de bem e mal, advogam o mal como sendo realmente bem. [Osório diz: Onde os retóricos fazem tal? Cite exemplos?] O próprio Antístenes escreveu exercícios retóricos, dos quais possuímos ainda discursos de Ulisses e Ajax, disputando as armas de Aquiles [Osório diz: e daí? Qual a importância ou a conclusão?].

Mas como podemos pretender ter definido ou explicado o ser de alguma coisa se simplesmente o descrevemos como composto de elementos que são eles mesmos indefiníveis? [Osório diz: grande pregunta?!].

Platão no Teeteto (201ss) descreve semelhante doutrina anonimamente. Não pode haver nenhum logos dos primeiros elementos de que nós e todas as coisas mais consistimos; apenas podem ser nomeados. Mas os compostos feitos deles, sendo complexos por sua vez, podem ter os nomes pertencentes a eles combinados para fazer um logos, pois isto é precisamente o que um logos é, uma combinação de nomes. Elementos são, pois, inexplicáveis e incognoscíveis, mas podem ser percebidos, considerando que complexos são conhecíveis, explicáveis e compreensíveis por uma verdadeira opinião. [Osório diz: isto é, Protágoras e Górgias, juntos! Ou seja, não é possível conhecer, mas é possível uma opinião a quem muitos podem aderir!].

Enquanto se pode julgar de relatos hostis e de segunda mão, não parece provável que Antístenes tenha sustentado a doutrina de que não seja possível nenhuma predicação a não ser a idêntica. Platão se refere com desprezo a isso no Sofista (251b) como algo a que aderem "jovens e velhos de inteligência retardada", "que objetam que é impossível que muitas coisas sejam um e um muitas coisas, e gostam de insistir que não devemos dizer que um homem é bom, mas apenas que homem é homem e bom é bom". Alguns identificaram isto com a tese atribuída a Antístenes por Aristóteles segundo a qual "só se pode falar de uma coisa por seu próprio logos, um a um", mas à luz de outra documentação, inclusive a do próprio Aristóteles, fica claro que logos aí não se restringe a termo singular. Não é a mesma coisa que onoma (nome) [Grote foi um que pensou que Aristóteles creditava a Antístenes a proposição de que nenhuma proposição a não ser proposições idênticas eram admissíveis, mas teve que admitir (na p. 526) que neste caso a doutrina que Aristóteles atribui a hoi Antistheneioi em Metaf. em harmonia com a que ele adscreve ao próprio Antístenes. Ele também pensou que era provável (p. 507, n. X) que, no Sofista, Platão tem a intenção de designar Antístenes como geron opsimathes. (Ele deve ter sido cerca de 20 anos mais velho do que Platão) (Plato, III, 521). Além do plural, tais comentadores ignoram o fato de que a teoria é atribuída a hoi neoi. Compare Campbell, Theaet. xxxix: a doutrina de Teet. 201d ss (que vimos ser a mesma que atribuída a Antístenes em Metaf. 1043b23ss) "é com certeza muito diferente de um nominalismo rude como este [sc. como a descrito no Sof.]... A opinião citada, se examinada adequadamente, não é negação da predicação, mas antes negação de que algo possa ser predicado dos primeiros elementos... que não é de maneira alguma a mesma coisa".] que em vista dos usos correntes de logos seria em todo caso improvável.

Se é verdade que Antístenes disse que “um logos é o que expressa o que uma coisa era ou é”, ele evidentemente continuaria a afirmar que tal logos só poderia substituir pelo nome da coisa uma coleção dos nomes de seus elementos, que por sua vez poderiam ser nomeados. Grote o chamou de o primeiro nominalista, porque negava a existência das formas e essência (eide ou ousiai) [Osório diz: a cavalidade! “Eu vejo um cavalo, mas não vejo a cavalidade”!] de coisas particulares, que Sócrates tentou definir e Platão já proclamava como realidades independentes.

(Antístenes viveu até cerca de 360). A rivalidade entre as duas filosofias é sugerida pela anedota segundo a qual Antístenes disse a Platão: “Eu vejo um cavalo, mas não vejo a cavalidade”, a que Platão replicou: “Não, pois tens o olho pelo qual um cavalo é visto, mas ainda não adquiriste o olho para ver a cavalidade”. Isso é contado por Simplício, cujo mestre Amônio citou o dito de Antístenes como ilustração de sua idéia de que “as espécies ou formas só existiam em nossos pensamentos” (em psilais epinoiais) [A estória é contada de forma um pouco diferente de Diógenes, o Cínico, naturalmente considerando bem que ele foi aluno de Antístenes e o próprio Antístenes veio a ser considerado o fundador da escola cínica. Quer seja, quer não historicamente verdadeiro, por certo é bien trouvé [Osório diz: bem escolhido ou adequado]. Outras estórias também eram correntes e atestavam o desafeto entre ele e Platão, contra o qual escreveu um diálogo sob o nome injurioso de Sathon, (V. 286, n. 97 abaixo). (Sathon, aplicado aos nenês, era diminutivo de sathe significando pênis.)]. [Osório diz: Platão e suas ideias].

Se, porém, o nominalismo é a doutrina que admite, como uma recente definição o quer, “que a linguagem impõem sua própria estrutura a uma realidade que por si não tem qualquer destas distinções[Eles mesmos acrescentam (p. 5) que realismo e nominalismo podem-se considerar variantes da teoria da natureza e da teoria da convenção do Crátilo. Poderia ser interessante comparar a última com a teoria convencionalista da verdade necessária como aparece em Hobbes, que, como os filósofos do séc. V, viu estreita conexão entre nomes e verdade: "as primeiras verdades foram arbitrariamente feitas pelos que foram os primeiros a impor nomes às coisas".], não parece que Antístenes foi seu advogado. O seu ensino não se assemelha à teoria da convenção de nomes sustentadas por Hermógenes no Crátilo de Platão, tanto como a teoria da natureza de Crátilo [A conclusão semelhante chegou von Fritz em Hermes, 1927: é doutrina de Antístenes, "gleichgültig, ob dort Antisthenes persõnlich oder allein gemeint ist oder nicht" (p. 462). V. também Dümmler, Mad. 5. Field, porém, em avaliação cuidadosamente arrazoada, concluiu que "não há nenhuma prova real para associá-lo com um ou outro modo de ver" (P. and Contemps. 168).] segundo a qual os nomes têm afinidade natural com seus objetos (ou se eles não a têm, não são nomes, e o homem que os pronuncia “não diz nada”, 429ss): eles “revelam as coisas” (433d), e aquele que sabe dos nomes sabe das coisas também (435d). Um objeto complexo pode ser analisado nomeando seus elementos, mas os elementos só podem ser nomeados ou descritos analogicamente (prata como estanho). São apreendidos por intuição ou percepção (“Eu vejo um cavalo”; ...), mas não podem ser explicados, ou sabidos tal como Sócrates e Platão entenderam o conhecimento, para os quais significava a capacidade de dar um logos da essência da coisa conhecida. Se pudermos julgar pelas críticas de Platão e Aristóteles, Caizzi está certo em dizer que a teoria de Antístenes de “um só logos próprio para cada coisa“ baseia-se numa falta da distinção entre predicação essencial e acidental mais uma confusão entre nomes próprios e comuns [A confusão seria facilitada pelo fato de que nesta fase primitiva do estudo gramatical a única palavra onoma tinha de cumprir a função tanto do "nome" como do "substantivo" (Stud. Urb. 34).]. A predicação não é impossível, mas se deve admitir que o que quer que siga a cópula é essencial ao sujeito (uma parte de “o que é”), e se algum dos elementos nomeados é inaplicável ao sujeito deve-se descartar todo logos como sem sentido. (Ele se desviou, diz pseudo-Alexandre, In Metaph, 435, 1, pelo fato de que um logos não é absoluta e primariamente (me haplos mede Kyrios) o logos de alguma coisa, dizendo que não era nada em absoluto).

Sobre os que negavam a possibilidade de predicar uma coisa de outra, Aristóteles tem o seguinte a dizer:

 

Os mais recentes dos filósofos anteriores ficaram perturbados pelo pensamento de fazer da mesma coisa uma e muitas. Por esta razão alguns aboliram a palavra "é", como fez Licófron, ao passo que outros alteraram a forma da expressão, dizendo não "o homem é branco", mas "o homem foi embranquecido" [leleukotai, uma só palavra em grego], não "está andando", mas "anda", com receio de que, acrescentando "é" fizessem do um muitos, como se "um" e "ser" tivessem só um sentido?

 

Se [de] Licófron (…) a única outra coisa conhecida sobre sua teoria do conhecimento é que ele descreveu o conhecimento como "intercurso (synousia) da psyche com o ato de conhecer". Assim o apresenta Aristóteles (Metaf. 1045ss), e o pseudo-Alexandre explica (563,21; DK, 83,1): "Licófron, se lhe perguntassem o que fazia com que o conhecimento e a alma se tornem um, responderia que era seu intercurso". Este "intercurso" ou "coexistência[Na linguagem comum synousia significava intercurso ou associação, mas também se podia, e mais literalmente, entender como "co-ser". Nos comentadores tardios, o verbo synousioomai é usado para expressar a idéia de estar essencialmente unido. V. LSJ s. v.] da mente com o conhecimento sugere um modo de ver como o de Antístenes, não ceticismo, mas crença no conhecimento por direta afinidade. Não se pode dizer "Sócrates é branco" (ele mesmo mais brancura) a não ser que se experimente "Sócrates branco" como uma essência unitária.

Eretrianos. [Poderia ser interessante comparar a doutrina deles com a que se derivou em tempos modernos da interpretação estrita do dito do bispo Butler: "Tudo é o que é e não outra coisa", citado por Moore como a divisa dos Principia ethica. Isso, afirmou-se, parece eliminar não só uma definição de "bem" (a "falácia naturalista") [Osório diz: bem! Bem! Bem! Bom! Bom! Bom! Alguém viu Platão pro aí?], mas todas as definições de qualquer termo que seja, pelo motivo de que devem ser o resultado de confundir duas propriedades, definindo uma pela outra.]

Uma doutrina que poderia levar à mesma conclusão como a que no Sofista se atribui a eles por Simplício (Phys. 120). Depois de citar de Eudemo que os erros de Parmênides eram escusáveis devido ao estado inicial da filosofia em sua época, quando ninguém teria sugerido que uma palavra pudesse ter mais de um sentido ou teria distinguido essência de acidente, ele continua: [Osório diz: veja como, aqui, o autor dá o benefício do “estado inicial da filosofia”, benefício que não aproveita os sofistas!]

Por ignorância disto mesmo os filósofos conhecidos como megarianos admitiram como premissa óbvia que coisas tendo um logos diferente eram diferentes, e que coisas diferentes estavam divididas uma das outras, e assim pensaram provar que todas as coisas estavam divididas umas das outras, por exemplo, o logos "Sócrates educado" é diferente do logos "Sócrates branco", e, por isso, Sócrates está dividido em si mesmo.

À mesma doutrina se opõe no Soph. el. de Aristóteles (166b 28ss) sem atribuição: "Corisco é um homem [mas note que o grego não tem artigo indefinido], 'homem' é diferente de 'Corisco', e, portanto, Corisco é diferente de si mesmo". Tem semelhança ao dito "um logos para cada coisa" de Antístenes, mas foi levado a conclusão mais radical. [Osório diz: esse é um dos absurdos que a lógica é capaz de fazer!]

O pensamento de Sócrates e Platão, cuja influência na história posterior da filosofia foi profunda, deve-se ver neste contexto como parte integral do debate e tentativa de achar solução definitiva a seus problemas. [Osório diz: tentativa não é solução, como muitos querem crer].

Sumário dos resultados. Durante a vida de Sócrates e Platão, sustentaram-se as seguintes posições. Nomes de alguns que as defenderam são dados entre parênteses quando são certos ou prováveis.

1. É impossível falar falsamente, pois isto é dizer o que não é, e o que não é não pode ser pronunciado. (Protágoras, Antístenes. A tese depende de Parm. Fr. 2.7-8). [Osório diz: até para citar a idiotisse de Parmênides, Guthrie, filhadaputamente, abrevia o nome do cara!].

2. Como corolário [Osório diz: consequência], ninguém tem direito de contradizer a outrem. (Protágoras, Antístenes).

3. A verdade é relativa ao indivíduo. (Protágoras e Górgias).

4. Usamos palavras inconscientemente e sem nenhuma correspondência à realidade. Isso está errado, pois há uma realidade (on, physis) e há espécies (eide) naturais, às quais nossos termos devem corresponder univocamente. (Sócrates, Antífon, o tratado hipocrático De arte).

5. A definição da essência de uma coisa é impossível, pois só se pode listar seus elementos e estes, não estando sujeitos a ulterior analise, são indefiníveis, e só se podem descrever analogicamente. (Antístenes, provavelmente Licófron).

6. A todo objeto cabe um só e só um logos próprio, que diz o que ele é nomeando os elementos de que está composto. Se algum deles não se lhe aplica, não há nenhum logos. (Antístenes).

7. Nomes têm afinidade natural com seus objetos, que são conhecidos por contato direto da mente com o objeto como na percepção sensorial (aisthesis). Um nome que não tem tal afinidade não é errado, mas não é nenhum nome absolutamente. (Antístenes, Licófron, “Crátilo” em Platão).

8. Nomes são rótulos arbitrariamente escolhidos, não tendo conexão natural com os objetos a que se aplicam. (Demócrito, “Hermógenes” em Platão [Osório diz: no Crátilo).

9. O uso de “é” para ligar sujeito e predicado é ilegítimo porque faz de uma coisa muitas, embora se possa perceber e falar de um sujeito e de seu atributo (por exemplo, Sócrates branco) como uma unidade. (Licófron).

10. Pelos mesmos motivos eleatas de que uma coisa não pode ser uma e muitas, só é possível predicação idêntica. (Megarianos, e provavelmente outros). (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 191-204).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

87.3 – Retórica boa ou má, “duplo discurso” confirma a tese protagórica.

 

Barbara Cassin ensina:

 

Como a segunda taxinomia não coincide com a primeira, não nos espantaremos de encontrar o sofisma tanto do lado “inofensivo” quanto do lado "tendencioso". Além disso, à parte analítica se sucede uma parte sintética onde Freud, reagrupando todas as suas indicações taxinômicas, se interroga sobre "o mecanismo do prazer" produzido pelo chiste: como a problemática desses dois capítuloTse completa, eu os utilizarei simultaneamente. "Em que os chistes sofísticos podem ser inofensivos e qual prazer engendram então?” [Osório diz: pelo acima, o sofisma também admite um “duplo” discurso sobre ele ou sobre o que ele pode “fazer”: ser inofensivo ou ser tendencioso. Isso me remeteu para a Retórica, segundo a visão de Platão/Aristóteles, pode ser boa ou má, o só vem confirmar a tese protagórica! (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 288).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

87.2 – Retórica boa e retórica má, para Aristóteles.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Aristóteles acaba de enfatizar que a retórica "não tem como tarefa persuadir, mas ver o que se pode encontrar de persuasivo a cada vez". Também é manifesto, acrescenta ele, que:

 

Texto 2 (Retórica, I, l, 1355b 15-21):

 

Pertence à mesma disciplina ver o persuasivo e o persuasivo aparente, assim como é do domínio da dialética o raciocínio e o raciocínio aparente, pois a sofística não está no poder, mas na intenção; com a única diferença que, do ponto de vista da retórica, seremos oradores ora por nossa ciência, ora por nossa intenção, enquanto do ponto de vista da dialética, seremos sofistas por nossa intenção e dialéticos não por nossa intenção, mas por nosso poder.

O texto se esclarece quando compreendemos que ele versa sobre o estatuto do "aparente". Desde que dizemos phainómenon, do Sofista de Platão à Metafísica de Aristóteles e, ainda mais além, pensamos: sofística. Ora, trata-se de mostrar que essa combinação tão impertinente, aparência-universalidade, não faz entretanto da retórica, tampouco da dialética, uma sofística. Contudo, retórica e dialética não diferem da sofística da mesma maneira: é aliás por isso que elas são "semelhantes" ou "substituíveis" (em relação à ciência, por exemplo), mas não idênticas.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 119).

 

2

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

87.1 - Retórica e Platão.

 

Ensina Kerferd:

 

Alguns aspectos da vida em Atenas, na segunda metade do século V a.C., poderiam sugerir que o que estava acontecendo era uma mudança bastante fundamental em direção a uma sociedade na qual o que as pessoas pensavam e diziam começava a ser mais importante do que os fatos reais [Osório diz: algo parecido com o moderno “o que importa é a versão, não os fatos”]. Na sua forma moderna extrema, isso leva à doutrina de que não há fatos, nem verdade, apenas ideologias e modelos conceituais; e a escolha entre eles é uma questão individual, talvez dependente das necessidades ou preferências pessoais, ou talvez influenciada pelo pensamento dos grupos sociais tratados como unidades, mas de forma alguma estabelecida por outros meios além desses. O que aconteceu no século V a.C. dificilmente chegou a isto. Mas o que emergiu, de fato, foi a compreensão de que a relação entre discurso e fato real está longe de ser simples [Osório diz: não existem fatos, mas apenas versões deles]. Embora seja provável que os pensadores do século V estivessem, todos, preparados para aceitar que há e deve haver sempre uma relação entre os dois, havia uma crescente compreensão de que o que está frequentemente envolvido não é simplesmente a apresentação do fato em palavras mas, antes, uma representação que envolve, no processo, considerável grau de reorganização. Esse despertar do que foi chamado de autoconsciência retórica é uma característica tanto da literatura contemporânea como da discussão teórica no século V. Foi esse alargamento do fosso entre retórica e realidade que levou Platão, no Górgias, a contrastar retórica e filosofia, e a condenar a prática da primeira; e, depois, no Fedro, a argumentar a favor de uma retórica reformada, baseada na dialética e na psicologia, como uma possível servidora da filosofia [Osório diz: as razões de Platão contra a retórica].

O poder da retórica não foi, é claro, uma descoberta da geração dos sofistas. Sua importância era já conhecida de Homero e provavelmente nenhum dos primeiros poetas subestimava a importância de sua própria atividade no uso das palavras. Mas a teoria da literatura e a arte da retórica foram, em grande parte, criação do período sofista. Nossa melhor informação se encontra nas duas obras existentes de Górgias, escritas em forma de declamações retóricas, mas que têm certamente propósitos mais sérios, o Elogio de Helena (DK 82B11) e o Palamedes (DK82B11a). O propósito do Helena é declarado: libertar Helena da culpa por ter feito o que fez ao deixar seu lar e seu marido para ir para Tróia com Páris; mostrar que os que a condenam estão falando falsamente e, ao indicar a verdade, pôr fim à ignorância deles (par. 2). O acento na verdade, aqui, é enfático, e mostra que não há, em Górgias, a intenção de negar a existência do fato. Com efeito, só é possível engano em relação ao que é realmente verdade [Osório diz: Górgias e a verdade]. São consideradas, a seguir, quatro possíveis explicações para o comportamento de Helena: (1) que foi por decreto dos deuses e da Necessidade, (2) que ela foi levada à força, (3) que foi persuadida pelo poder do discurso (logos) e (4) que foi tudo obra do Amor. No primeiro caso, deus é uma força mais forte que o homem, seguindo-se, daí, que deus é que é o culpado, não o ser humano mais fraco. No segundo caso, deve-se ter pena da mulher em vez de condená-la, e é o bárbaro que a sequestrou que merece palavras de condenação, perda de direitos civis por lei (nomos), e punição de fato.

Algumas dificuldades, contudo, podem ser levantadas no terceiro caso, quando é o logos que persuade, e a resposta é desenvolvida, um tanto longamente, por Górgias. Como é que a persuasão livra de culpa a pessoa que foi persuadida a fazer o que quer que seja que tenha feito? A réplica de Górgias parece ser dupla. Em primeiro lugar (pars. 8-10), é dada ênfase ao enorme poder do logos. Isso se vê nas experiências emocionais, tanto as bem-vindas como as indesejáveis, produzidas tanto pela poesia como pela maestria da prosa. Mas há uma segunda maneira também pela qual o logos age sobre a alma humana (pars. 10-14). A maioria dos homens é incapaz de recordar o que de fato aconteceu, ou de investigar o presente, ou de adivinhar o futuro. De modo que, na maioria das questões, eles usam a Opinião (Doxa) como um conselheiro para suas almas. Essa opinião, contudo, não é confiável e pode fazer a pessoa tropeçar e cair, com consequências infelizes para si mesma. O logos é capaz de agir persuasivamente nessa opinião porque a opinião não é conhecimento e, por isso, é fácil de mudar. Isso se pode ver em três exemplos. Primeiro, o caso dos que discutem os corpos celestes, os meteorologoi. Estes substituem uma opinião por outra, removendo uma e formando outra em seu lugar, e fazem com que as coisas que não se vêem, e às quais falta credibilidade, se tornem aparentes aos olhos da opinião. O segundo é o caso em que logos está em peremptório debate com logos — como numa disputa em tribunais: aqui, um discurso, pela habilidade de sua composição, não pela verdade de suas afirmações, ao mesmo tempo delicia e persuade uma grande multidão. O terceiro caso é aquele em que um filósofo disputa com outro filósofo. Aqui, a rapidez do pensamento obviamente facilita alterar a credibilidade da opinião em questão[Osório diz: este talvez seja o motivo da rejeição platônica: domínio da multidão! Mas se todos estiverem preparados, a “ilusão” não será tão fácil! Mas aí o grande problema: Platão não queria a multidão esclarecida!].

O resultado é que o poder do logos em relação à condição da alma é comparável ao das drogas. Pois diferentes drogas têm diferentes efeitos no corpo: algumas curam doenças, e outras põem fim à vida. Assim também com logoi — alguns causam sofrimento, outros prazer e outros medo; alguns instilam confiança e coragem nos ouvintes, enquanto outros envenenam e seduzem a alma com uma espécie de persuasão perversa. A comparação da persuasão com as drogas sugere que Górgias deseja distinguir dois tipos de persuasão, uma boa e outra má [Osório diz: exatamente igual ao que Platão diz sobre a Retórica!]. Será, então, a segunda persuasão que operou no caso de Helena. Isto se ajusta bem com a aposição atribuída a Górgias no diálogo de Platão que leva o seu nome (449d-457c): retórica, em si mesma, é, para Górgias, simplesmente uma técnica. Como tal, pode ser usada para produzir tanto crença falsa como crença verdadeira, embora Górgias, e seus defensores no diálogo, mantenham todos que ela deve, de fato, ser usada moralmente e não para propósitos imorais. Mas há um problema particular em Helena. No início do Elogio, como vimos, Górgias declara que era sua intenção indicar a verdade (par. 2). Entretanto, ao longo da discussão de logos (nos pars. 8-14), ele fala do logos que persuade produzindo engano (apaté), e da persuasão que é bem-sucedida porque moldou, primeiro, um logos falso. Isso levou à sugestão de que, para Górgias, a única maneira pela qual a persuasão age na opinião é por engano [Osório diz: Górgias e o irracional?] [Osório diz: ao contrário! Górgias mostrou os dois lados, quando, se fosse seu desejo mostrar apenas o engano, teria omitido a opinião sobre ele!].

Este é um assunto que já foi extensamente discutido, mas que não foi ainda totalmente elucidado. É preciso, primeiro, ver a doutrina em relação com o que é dito na segunda e na terceira partes do tratado de Górgias Sobre a natureza (DK 82B3). Temos aí, na segunda parte, a asserção de que, mesmo se as coisas são, não podem ser conhecidas, pensadas ou apreendidas por seres humanos; e, na terceira parte, o argumento segundo o qual, mesmo que pudessem ser apreendidas, ainda assim não poderiam ser comunicadas a uma outra pessoa. Isso acontece porque o meio pelo qual comunicamos é o discurso ou logos, e esse logos não é, e jamais poderá ser, os objetos externamente subsistentes que realmente são. O que comunicamos ao nosso próximo nunca é "essas coisas reais", mas apenas um logos que é sempre outra coisa diferente das coisas em si mesmas. Nem é mesmo o discurso, diz Górgias, que revela a realidade externa: é o objeto externo que fornece informação sobre o logos. Conclui-se, daí, que Górgias está introduzindo um fosso radical entre o logos e as coisas às quais ele se refere. Uma vez reconhecido esse fosso, podemos compreender muito facilmente o sentido em que todo logos envolve uma falsificação da coisa à qual se refere — ele jamais conseguirá, segundo Górgias, reproduzir, em si mesmo, por assim dizer, aquela realidade que está irreparavelmente fora dele [Osório diz: eis por que Górgias nos prendeu no irracional!]. Na medida em que afirma reproduzir fielmente a realidade, não passa de engano ou apatê. Todavia, essa é a afirmação que todo logos parece fazer. Portanto, todo logos é, nessa medida, Engano; e no caso da literatura, como na tragédia, por exemplo, tirou-se a interessante conclusão de que o homem que engana é melhor do que o homem que não consegue enganar (DK 82B23). Essa doutrina explica a afirmação no par. 11 do Helena, que se os homens possuíssem mesmo conhecimento, o logos não seria (visivelmente) similar (àquilo do qual eles possuem o conhecimento). No início do Elogio, o que parece que Górgias está dizendo é que para se chegar à verdade é necessário indicar a verdade ou a realidade mesma e não o logos, e isso só pode ser feito mediante a aplicação de algum tipo de processo de raciocínio ao lagos em questão (par. 2). [Osório diz: resposta a irracionalidade de Francisco Rodriguez Adrados?].

Um pouco mais de luz pode resultar da consideração do segundo dos dois discursos retóricos de Górgias, Defesa de Palamedes (DK 82b11a). De novo nos é dito (par. 35) que se fosse possível que a verdade sobre as coisas se fizesse pura e clara, por meio dos logoi, para aqueles que ouvem, o julgamento seria fácil, pois se seguiria diretamente das coisas que foram ditas. Mas não é esse o caso. O que é preciso é prestar atenção, não aos logoi, mas aos fatos reais. Antes, no discurso. Conhecimento do que é Verdadeiro é contraposto à Opinião (par. 24), e se diz que o logos por si mesmo é inconclusivo a menos que se aprenda também da própria Verdade mesma (par. 4). Finalmente (par. 33) Palamedes declara sua intenção de expor o que é verdadeiro e de evitar engano no processo.

Com base nessas indicações, é possível discernir um modelo conceitual comum subjacente ao argumento, tanto no Helena como no Palamedes. De um lado está o mundo real, rotulado como verdade ou aquilo que é verdadeiro. A cognição desse mundo real é conhecimento. Mas o estado cognitivo mais comum é opinião, não conhecimento, e o logos, que é mais poderoso que a opinião, age sobre a opinião. Ambos são falsos, em contraste com verdade e conhecimento. Mas é possível apelar dos enganos do logos e da opinião, para o conhecimento e a verdade. O efeito desse apelo, embora providencie conhecimento, não remove o incurável caráter falso do logos, visto que o logos não pode nunca ser a realidade que pretende expor. Todavia, dois tipos de logoi — um melhor, e um pior do que o outro [Osório diz: Resposta a “irracionalidade” de Adrados?].

A superioridade de um logos sobre outro não é acidental; depende da presença de características específicas. O estudo delas é o estudo da arte da retórica, e seu bom desenvolvimento é a fonte do poder do logos sobre as almas, que se intitula Psychagogia, ou a conquista das almas dos homens [Osório diz: dicionário], no Fedro (261a) de Platão. Logo depois, no Fedro (267a), nos é dito que o poder do logos faz as coisas pequenas parecerem grandes, e as grandes parecerem pequenas; que pode apresentar as coisas de data recente numa forma antiga, ou contar coisas antigas de maneira nova [Osório diz: é o que faz a Inglaterra, segundo...]. Ambos, Tísias e Górgias, tinham argumentado que as coisas que são prováveis merecem mais respeito do que as coisas que são verdade, e é essa capacidade de promover probabilidades que é parte do poder que se encontra no logos. Muito do que é dito aqui, por Platão, é declarado também por Isócrates, no seu Panegírico 7-9; e acrescenta ele que é importante, na oratória, ser capaz de fazer uso adequado dos eventos do passado, e no tempo adequado ou Kairos. Um bom número de referências em outras obras acentua a importância do kairos, ou a escolha do tempo adequado, na retórica; e Dionísio de Halicarnasso não só nos diz que Górgias foi o primeiro a escrever sobre o kairos, mas acrescenta a declaração, infelizmente não incluída no DK, que kairos não é algo a ser alcançado pelo conhecimento — é mais próprio da opinião. Uma referência em Diógenes Laércio (IX, 52) deixa claro que Protágoras também tinha escrito a respeito do kairos. Quando juntamos as doutrinas do Provável ou Plausível e do momento Certo no Tempo e as relacionamos com Opinião (o que os homens pensam ou crêem), fica claro que já temos os elementos de uma teoria da retórica que pode ser comparada com as modernas descrições da técnica da propaganda. De fato, talvez se compreenda melhor a Retórica, que é agora um termo fora de moda, se a descrevermos como cobrindo, na Antiguidade, toda a arte de relações públicas e apresentação de imagens. Foi a teoria dessa arte que os sofistas inauguraram.” (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 135-142).

7

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

87 – Retórica, segundo a Sofística.

 

Ensina Guthrie:

 

Hoje em dia, as palavras "sucesso" ou "homem bem sucedido" sugerem mais imediatamente o mundo de negócios, e só secundariamente o da política. Na Grécia, o sucesso que contava era primeiramente político e em segundo lugar forense, e sua arma era a retórica, a arte da persuasão.

Seguindo a analogia, pode-se atribuir à retórica o lugar agora ocupado pela propaganda. Com certeza, a arte da persuasão, amiúde por meios dúbios, não era menos poderosa então, e, assim como temos nossas escolas de negócios e escolas de propaganda, assim também os gregos tinham seus mestres de política e retórica: os sofistas. Peitho, Persuasão, era para eles uma poderosa deusa; "a feiticeira à qual nada se nega", assim Ésquilo a chamou (Suppl. 1039s)"

Górgias em seu Encômio de Helena — um exercício escolar de retórica, sofístico em todo sentido.

[Em Ésquilo, de outro lado, é Páris cuja mão é forçada por Persuassão, “a filha inseparável da ruína” (Ag. 385s). Píndaro fal do “chicote da Persuasão” (Pit. 4.219). ]

(...)

Como Protágoras disse, “Sobre cada tópico há dois argumentos contrários entre si”. Ele visava a treinar seus alunos para elogiar e censurar as mesmas coisas, e em particular escorar o argumento mais fraco para que aparecesse mais forte. O ensino retórico não se restringia à forma e ao estilo, mas lidava também com a substância do que se dizia [Osório diz: este é o meu pensamento! Como falar de um assunto sem conhecê-lo? Falar falsamente sobre um tema é impossível!]. Como se podia deixar de inculcar a crença de que toda verdade era relativa e ninguém conhecia alguma coisa como certa? A verdade era individual e temporária, e não universal e permanente, pois a verdade para o homem era simplesmente aquela de que podia ser persuadido, e era possível persuadir qualquer de que preto era branco. Pode haver crença, mas nunca conhecimento.

...a persuasão aliada a palavra modela as mentes dos homens como quiser”. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 51, 52).

 

Prossegue Guthrier:

 

E argumentou-se (da parte de Heinrich Gomperz) que todo o ensino dos sofistas se resume na arte da retórica. É considerável exagero; a arete que Protágoras pretendia comunicar consistia em mais do que isso. Mas alguém dentre eles, Górgias, mofou dos professores profissionais de virtude cívica. [Osório diz: existiam?]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 24-25).

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

A retórica com efeito, em sua definição aristotélica, é “a capacidade de fazer em cada caso a teoria do que convém para persuadir" (dvnamis peri haston to theoresai to endechenon pithan, Ret., I, 2. 1355b 25s.).

(...)

Bem antes de Aristóteles, é a sofística que elabora a primeira retórica: "Górgias foi o primeiro a dar ao gênero retórico força educativa e sua técnica de expressão, utilizou tropos, metáforas, alegorias, hipálages, catacreses, hipérbatos, repetições, retomadas, reviravoltas e correspondências sonoras" (Suidas = JICA2 D.K., II, p. 272, 28-31). Mesmo se o testemunho é tardio, e certo que essa retórica siciliana, que utiliza não somente as figuras de sentido mas joga com os próprios significantes, é uma trópica generalizada, para a qual a metáfora só representa um tropo dentre muitos outros.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 235, 243).

 

3

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

86 – Opinião – valor, segundo a Sofística.

 

Ensina Kerferd:

 

Mas nesse estágio, no Mênon (96d), Sócrates pensa melhor. Não é só sob a orientação do conhecimento que as ações humanas são bem e corretamente feitas. Virtude pode, realmente, ser dirigida pelo conhecimento, mas essa não é a única maneira. Opinião correta (orthê doxa) pode ser tão bom guia quanto o conhecimento para a finalidade de agir corretamente. Ambos, conhecimento e opinião correta, são adquiridos e não vêm pela natureza. Tanto os estadistas como outros homens agem baseados na opinião, não no conhecimento, quando agem corretamente; e a própria expressão orthê para correta, no caso da opinião, sugere pelo menos uma consciência da doutrina sofista do orthos logos, expressão também usada, ocasionalmente, pelo próprio Platão (cf. don 73alO, Leis 890d7, Crítias 109b2). A conclusão que seria de esperar é que, visto que opinião correta se adquire, ela é também adquirida pelo ensino, e parece provável que Platão estava bem consciente de que essa seria a conclusão sofista normal. Mas ele não aceita essa conclusão. Opinião correta se adquire, sim, mas não por ensino, visto que ensino se refere apenas ao conhecimento. Resta que a posição dos estadistas que agem orientados pela opinião correta não deve ser diferente da dos profetas e dos que proferem oráculos, que sob a inspiração divina dizem muitas coisas verdadeiras, mas não têm conhecimento do que estão dizendo. Platão, naturalmente, não pode dizer que os sofistas estão agindo sob inspiração divina, mas o que se infere da discussão, no non, é que, na medida em que possuem opinião correta, se é que, a seu ver, realmente a possuem, eles adquiriram, de algum modo, certo grau de percepção. Na medida em que fossem capazes de comunicar essa percepção estariam, por consequência, desempenhando uma função de valor para a comunidade. [Osório diz: as voltas de Platão]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 233-234).

 

2

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

85 – Verdade, segundo a Sofística.

 

Nos diz Guthrie:

 

Como Protágoras disse, “Sobre cada tópico há dois argumentos contrários entre si”. Ele visava a treinar seus alunos para elogiar e censurar as mesmas coisas, e em particular escorar o argumento mais fraco para que aparecesse mais forte. O ensino retórico não se restringia à forma e ao estilo, mas lidava também com a substância do que se dizia [Osório diz: este é o meu pensamento! Como falar de um assunto sem conhecê-lo? Falar falsamente sobre um tema é impossível!]. Como se podia deixar de inculcar a crença de que toda verdade era relativa e ninguém conhecia alguma coisa como certa? A verdade era individual e temporária, e não universal e permanente, pois a verdade para o homem era simplesmente aquela de que podia ser persuadido, e era possível persuadir qualquer de que preto era branco. Pode haver crença, mas nunca conhecimento.

O que parece a mim é para mim, e o que parece a ti é para ti”, e que ninguém pode estar numa posição para contradizer a outrem.

 

(...)

 

Uma vez que toda inquirição humana se move no campo da opinião, onde é fácil a decepção, toda persuasão (filosófica, “científica”, legal ou outras) é resultado da força e eloqüência antes que a intuição racional... Se os (p. 170) homens soubessem, haveria grande diferença entre engano e verdade. Assim como é, podemos apenas distinguir entre argumentos com êxito e não-convincentes, persuasivos e infrutíferos. [Osório diz: Verdade e opinião. Perfeita essa colocação de Versényi, Socr. Hum. 47s].

Virando Parmênides de cabeça para baixo, Górgias afirmou que nada existe (ou é real), que, se existisse, não poderíamos conhecê-lo, e, se pudéssemos conhecê-lo, não poderíamos comunicá-lo a outrem. A base filosófica é a mesma que a do dito de Protágoras: “O que parece a cada um é na medida que lhe interessa” [Sicking parece pensar de outra maneira; mas dificilmente se pode negar que nada tem existência real, nem pode ser reconhecido ou comunicado, a única alternativa é que as sensações e crenças particulares de cada homem são as únicas validas, e validas só para ele. Que a polêmica de Górgias não visa somente aos eleatas ("nicht nur", Sicking p. 232, embora na p. 245 insira qualificação) não pode alterar este aspecto. [Osório diz: não! Outros podem aderira a crença um do outro! E é isso que se faz no dia a dia / Guthrie joga a toada para Górgias!]]. “Se”, diz Górgias ...,”fosse possível por meio de palavras (logoi) tornar a verdade sobre a realidade (erga) pura e clara aos ouvintes, o julgamento seria fácil como simplesmente seguindo do que foi dito; mas uma vez que não é assim...”.” [Osório diz: Górgias versus Parmênides / A verdade / semelhança filosófica entre Górgias e Protágoras]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 52, 170-171).

 

Já Gilbert Romeyer-Dherbey diz:

 

Diógenes Laércio afirma, a propósito de Protágoras, que “é o primeiro a dizer que a respeito de tudo há dois discursos que se contradizem um ao outro”. O tema do duplo discurso era o tema principal das Antilogias, e com ele Protágoras exprime um sentimento profundamente enraizado no helenismo. Este sentimento está relacionado com a natureza da religião grega, que é um politeísmo; ora, o primeiro princípio do politeísmo é o da dispersão do divino, de uma pluralidade de deuses que frequentemente se defrontam e equilibram os seus poderes. A clara individualização de cada um dos deuses revela uma diferenciação das forças do universo; o espírito que pensa um mundo plural e policêntrico ditará, portanto, facilmente a clivagem, a rotura. Assim, o tempo será experimentado como um meio homogêneo, uniformemente fragmentado; ainda não existe o relógio mecânico, que expressará a duração em fragmentos iguais e mensuráveis; o tempo é, pelo contrário, o da ocasião propícia (kaipós), que aparece e desaparece arritmicamente, dado ora a um ora a outro, nunca sendo, por conseguinte, bom para toda a gente. O desequilíbrio do tempo que fere o que vem a tempo e a contratempo agrava-se com uma dispersão dos lugares. O espaço homogêneo não existe como o tempo homogêneo; o mundo político grego é constituído por inúmeras Cidades-Estados, átomos do poder dispersos e que perpetuamente se entrechocam e confrontam. O sofista nómade, ao ir de uma para outra, experimenta uma contínua sensação de descentração; como ser o rapsodo dos seus discursos tão desconexos? Untersteiner, por outro lado, sublinhou profundamente a relação que existe entre o conceito protagórico de antilogia e o clima da tragédia esquiliana. A ação trágica desenvolve-se no interior de uma situação onde o herói se encontra entrincheirado, em que a unilateralidade é impossível porque só as ações que pode escolher são simultaneamente prescritas e proibidas. Assim, nas Coéforas, Orestes, para satisfazer o querer divino, deve ao mesmo tempo cumprir e não cumprir o matricídio; sentindo subir a tensão trágica, grita então: “Que Ares se agarre a Ares, Diké a Diké!”. O sentimento da contradição de que todo o discurso é suscetível ainda pôde ser confortado em Protágoras pela prática da democracia ateniense. Com efeito, a decisão política perante a Assembléia do povo é sempre discutida; assim, reconhece-se sempre como discutível, isto é, reversível e modificável; esta versatilidade será até uma das principais críticas que Aristófanes dirige ao démos. Uma assembléia numerosa raramente é unânime; geralmente, as opiniões dividem-se e o que caracteriza um regime democrático é tolerar uma oposição, isto é, aceitar a legitimidade possível de um discurso contrário ao do poder constituído. O próprio debate político, em que o povo ouve os discursos opostos dos dois partidos que se defrontam, prova que “a respeito de tudo há dois discursos que se contradizem um ao outro.” A origem polêmica e conflitual desta divisão revela-se no fato de Protágoras falar de dois discursos, e não de uma pluralidade de discursos possíveis. Com efeito, toda a guerra não opõe mais que dois campos: bellum = duellum. Este caráter polêmico, aliás, encontra-se na instituição judicial grega, em que todo o processo toma a forma de combate: o espaço judicial é menos um espaço de participação que de luta em que se defrontam as defesas contrárias dos dois partidos; o próprio termo que designa o processo (aywv) significa também batalha. [Osório diz: de onde Protágoras pode ter intuído os duplos discursos!].

O pensamento protagórico da antilogia também se explica pelo fato de se desenvolver em terreno heraclitiano. Da mesma maneira que Heráclito, Protágoras é um Jônio; ora, a visão de um real contraditório e afirmação da imanência recíproca dos contrários constituem o centro do pensamento de Heráclito muito mais seguramente que o da mobilidade, que frequentemente é reduzido. É por isso que, para ele, o próprio âmago do universo é conflito. “O combate é o pai de todas as coisas, de todas é rei.” A relação das doutrinas de Heráclito e de Protágoras foi sublinhada tanto por Platão, no Teeteto, como por Aristóteles, no livro IV da Metafísica. Mas subsiste uma diferença entre eles ao nível do modo de expressão: quando Heráclito, pela supressão do verbo ser, mostra na própria enunciação a contradição interna de toda a realidade, a retórica de Protágoras, renunciando a fornecer a imediatez da contradição, divide-a numa antilogia [Osório diz: conceito de antilogia], isto é, em dois discursos, cada qual coerente em si mesmo, mas incompatíveis entre si. Todo o real, quando se diz corta necessariamente em dois todo o discurso e atinge a própria linguagem com uma insuperável oposição de teses contrárias. Esta cisão da linguagem não cobre por completo a cisão parmenidiana entre a linguagem da oposição e a linguagem da verdade; uma semelhante distinção, dando à verdade a passagem para a opinião, suprime efetivamente toda a cisão da palavra pensante. Protágoras não se pode contentar com a ontologia parmenidiana porque esta, sacrificando o múltiplo, cai na infelicidade da generalidade; o discurso da ontologia torna-se discurso vazio, também Protágoras recusa toda a distinção entre a opinião e a verdade; reabilita a doxa, cujos perpétuos desmentidos constituem a própria lei da vida, e as formas de uma realidade resplandecente. Platão refere-se a esta demonstração de Protágoras a propósito do problema do Bem e fá-lo declarar que “o Bem é qualquer coisa de variegado” [Osório diz: Que apresenta cores ou matizes variados ou diversos.]. Protágoras introduziu, pois, a contradição no Ser de Parménides e, por este motivo, mereceu a admiração de Hegel.

O plano das Antilogias é-nos proporcionado muito verossilmente por uma passagem do Sofista de Platão, em que este define o sofista como sendo essencialmente o malabarista da contradição.

Ontologia (examinava o devir e o ser).

[Osório diz: neste parágrafo dá para questionarmos o seguinte: Se Sócrates, segundo seu criador (Platão), não estudava astronomia, como a discutia com tamanha desenvoltura?]

 

O INVISÍVEL - As Antilogias começavam...

 

O agnosticismo de Protágoras é talvez disto resultante, o ponto neutro entre os dois discursos opostos que, a propósito dos deuses, se confrontam, o da crença e o da descrença. Se os dois discursos aqui se anulam em vez de deixar um sobrepor-se ao outro, é porque se trata do domínio do invisível e do escondido; o sofista guarda a sua resposta, ou adia-a, na impossibilidade de poder levar a cabo uma fenomenologia do divino, ou de querer elaborar uma teologia do obscuro. Em todo o caso, este agnosticismo prepara e permite o momento seguinte do pensamento de Protágoras, a afirmação do homem-medida: se os deuses não se deixam afirmar, então fica o homem. A prova está em que Platão, nas Leis, substituirá a fórmula protagórica de ánthropos métron por esta: “o deus é a medida de todas as coisas.” [Osório diz: Platão joga a toalha!]

Protágoras prepara, assim, pela negação de todo o recurso ao absoluto, um humanismo radical.

Protágoras, sem negar radicalmente toda a possibilidade de uma imortalidade da alma, devia sublinhar a nossa total impotência para conhecer, com certeza, o que acontece ao homem no além. A presença tutelar do deus desaprece, portanto, no horizonte do homem, antes do nascimento deste como depois da morte. O homem encontrar-se-á num mundo errado. [Osório diz: que religião prestigiará um homem desses?].

 

O VISÍVEL – A) As ...

 

Esta refutação da ontologia eleática era, evidentemente, a condição sine qua non da visão antilógica do mundo, para a qual o real é bilateral e a palavra reversível. A própria ontologia não deixa de cair em contradição que quer evitar, uma vez que, ao lado do discurso da verdade, é obrigada a tolerar a existência do discurso da opinião e a dar-lhe lugar, como se pode ver no poema de Parménides; não pode chegar ao monismo completo da verdade. [Osório diz: Verdade – sua impossibilidade]

A política e o direito constituem um campo privilegiado para a visão antilógica das coisas. A ambiguidade reina no domínio antropológico e é nesta seção das Antilogias que devia ter lugar a discussão sobre a morte de Epitímio de Farsália evocada por Plutarco: “Com efeito, em virtude de alguém, no pentatlo, ter atingido, sem querer, com um dardo, Epitímio de Farsália e o ter morto, Péricles consagrou um dia inteiro a interrogar-se se era, de acordo com a argumentação mais correta, o dardo, ou antes aquele que o lançara, ou os organismos dos Jogos, que haveria que considerar como causas do drama.” [Osório diz: A antilogia no Direito e na Política]

Esta discussão não visava instaurar uma hierarquia nos níveis da responsabilidade (fez-se saber que, para o direito arcaico, um objeto pode ser declarado culpável), mas segundo interpretação de G. Rensi, devia mostrar a impossibilidade em que se estava para a determinar, a não ser arbitrariamente. Três causas da morte de Epitímio podem ser invocadas, e igualmente legítimas segundo o ponto de vista adotado: para o médico, foi o dardo que causou a morte; para o juiz, foi quem o lançou; para a autoridade política, foi o organizador dos Jogos. A lição deste fragmento é, portanto, a de um perspectivismo que tende a provar que não existe um perfeito absoluto e em si, permitindo discernir ao vivo e certeiramente, nos casos jurídicos concretos. [Osório diz: por que Péricles passou um dia discutindo com Protágoras]

Se há uma disciplina que não se adapta ao perspectivismo é a matemática, que, aos olhos de Protágoras, é uma arte (techné). Também procura demonstrar que é igualmente antilógica e, como as outras artes, se contradiz. Com efeito, a geometria ensina-nos que a reta tangente ao círculo toca este círculo em um ponto, mas se traçamos o círculo e a reta perceptíveis, apercebemo-nos de que a reta toca sempre o círculo em vários pontos e que nunca poderemos obter uma figura conforme com as definições matemáticas. Ora, a geometria não pode, para raciocinar, dispensar a consideração das figuras, cujo traçado desmente o discurso que o matemático elabora a seu respeito: “Com efeito, o círculo toca a tangente não apenas num ponto, mas como disse Protágoras na sua refutação dos geómetras.” Se a matemática é antilógica, a fortiori também o serão as outras artes. No final das Antilogias põe-se, portanto, de maneira premente, o problema da verdade.” [Osório diz: os matemáticos serem mais uns “inimigos” do Sofista). (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 17, 18, 19, 20, 21, 22).

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

O lógos diz o fenômeno como ele aparece, e é por isso que a definição corrente da verdade pode se prender à conformidade do enunciado à coisa, à adaequatio rei et intellectus. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 230).

 

Ora, à diferença da acolhida estética, a acolhida noética é caracterizada como thigeîn kaì phánai (24) 4, "tocar e enunciar", “emitir”, como se o espírito afetado pudesse então expressar em som o contato que experimenta.

O grego é difícil e suscetível de várias construções: ésti tò mén '14-1hés e Pseúdos, tò mèn thigem kai pUnai aléthés ( ... ) tò d'agnoem M,' Ilângánein. Compararemos a construção de … e a de Trieot : "Eis o que é então o verdadeiro ou o falso: o verdadeiro é apreender e enunciar o que se apreende (...) ignorar é não apreender". (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 227).

 

É ainda Barbara Cassin quem afirma:

 

O discurso sofístico, na verdade, está para a alma assim como o phármakon, remédio/veneno, está para o corpo: induz uma mudança de estado para o melhor ou para o pior. Mas o sofista, como o médico, sabe utilizar o phármakon e pode transmitir esse saber; sabe e ensina como fazer passar, não, segundo a bivalência do princípio de não-contradição, do erro à verdade ou da ignorância à sabedoria, mas, segundo a pluralidade inerente ao comparativo, de um estado menos bom a um estado melhor [Osório diz: o que os sofistas propõem-se a fazer]. Protágoras, que professa a virtude, o diz pela boca de Sócrates que, então, o defende: "É de uma disposição à disposição que vale mais que deve se fazer a passagem, mas o médico produz essa passagem através das drogas, o sofista através dos discursos" (Teeteto, 167a).

Diante do cálculo do melhor, do mais útil, "a fronteira entre bem e mal se apaga: aí está o sofista" (Nietzsche, Fragments postumes, 87-88, 343ss.,11 [375]), É assim que podemos explicar o paradoxo de uma sofística ora tirânica e ora democrata, ora cínica, sadísta, revolucionária, e ora conformista e conservadora [Osório diz: isso explicaria Protágoras democrata e Antifonte junto aos aristocratas].

À destituição da identidade ontológica se sucede, com a prática retórica, a construção de uma identidade política que leva em consideração a diversidade das opiniões. Simultaneamente, a moral fundada sobre uma virtude ou um bem únicos como a verdade é substituída pela consideração das condutas efetivas e a preocupação com o melhor, que leva a marca de uma vivência da finitude. [Osório diz: o que a sofística propõe em substituição à verdade]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990,p. 12, 13).

 

E Barbara Cassin prossegue:

 

Mas eu seria tentada por uma outra abordagem, que partiria dessa vez do Acheminement vers Ia parole. "Nosso pensamento atual, diz Heidegger, tem como tarefa tomar o que foi pensado de maneira grega para pensá-lo de uma maneira ainda mais grega" (trad. Beaufret, Brokmeier, Fédier, p. 125). Deve então haver uma maneira possível de ser pré-socrático de outra forma: sendo, como Heidegger, ainda mais pré-socrático. Gostaria de propor ler em conjunto alguns fragmentos sofísticos e trechos do Acheminement, sem esconder nem por um instante a unilateralidade das minhas escolhas: trata-se simplesmente de sugerir que uma certa linha mais pré-socrática de Heidegger é de tipo sofístico.

Com o mais matinal daquilo que, através do pensamento ocidental, chegou a se fazer ouvir, há a relação da coisa e da palavra, e a verdade sob a figura da relação do ser e do dizer. Essa relação assalta o pensamento de uma maneira tão desconcertante que se anuncia em uma só palavra: lógos. Essa palavra fala simultaneamente como nome do ser e como nome do dizer. Contudo, ainda mais desconcertante para nós é o fato de que, apesar disso, nenhuma experiência com a fala é feita —nenhuma experiência onde a própria fala viesse propriamente à fala na medida dessa relação (p. 169).

Podemos adiantar entretanto que é essa experiência cuja impossibilidade, o "interdito", faz parte da própria fala, que tentam, como dois extremos que aí se encontrassem, tanto a sofística quanto o Acheminement. Ambos praticam a palavra não enquanto ela expressa ou significa, maneira moderna e redução do aristotelismo, tampouco a palavra na medida em que o ser nela se diz na co-filiação que abrigaria precisamente o Poema e de onde deverá se seguir a adequação: eles praticam "a palavra pela palavra". Légein lógou chárin, bastião da resistância sofística contra Aristóteles; ora, diz Heidegger, a propósito do poema de Stefan George,

 

a palavra pela palavra não se deixa encontrar em nenhum lugar onde o destino concede ao ente a fala que o nomeia e o institui, a fim de que ele seja e, sendo, brilhe e desabroche. A palavra pela palavra — um tesouro, na verdade... (p. 176).

 

A palavra, o dizer, não tem ser: "ela dá" (es gibi) e "ela é". "A palavra: o que dá. Dá o quê? Segundo a experiência poética e segundo a mais antiga tradição do pensamento, a palavra dá: o ser" (p. 178). Essa supremacia do lógos que faz com que ele ocupe o lugar do ser na medida em que ele se apaga ou se nega, face ao ente que corre o risco de se tornar o ser ao qual dá lugar, essa potência poética na qual Heidegger insiste, não estaria mais próxima de uma demiurgia discursiva à moda de Górgias ("o lógos é um grande soberano que com o corpo mais minúsculo e o mais imperceptível finaliza os atos mais divinos", Elogio de Helena, 8, 82b, 11D.K. II, 190) do que da mesmidade parmenideana? Bem entendido, podemos ao final, como logo de início, alegar a diferença de intenção, tanto mais que ela é muito precisamente — e é mais do que nunca de primeiríssima importância — diferença de linguagem: entre efeito e dispensa, discurso e fala. Mas para concluir sobre o caráter perpetuamente equívoco da própria estrutura, basta ler por inteiro o fragmento de Novalis intitulado "Monólogo", de onde parte e para onde volta Heidegger em sua última conferência, "O Caminho para a fala" (1959). Por inteiro ou quase, para contextualizar também como sofística a única frase que apoia aqui a meditação de Heidegger:

 

É no fundo uma coisa engraçada falar e escrever; a verdadeira conversação, o diálogo autêntico, é um puro jogo de palavras. Pura e simplesmente assombroso é o erro ridículo das pessoas que pensam falar pelas próprias coisas. Mas o próprio da linguagem, a saber, que ela só se ocupa simplesmente de si mesma, todos ignoram [Precisamente o que a fala tem de próprio, a saber, que ela só se preocupa com ela mesma, ninguém o sabe (trad. de Acheminement, p. 227 e 253)]. É por isso que a linguagem é um mistério tão mara - vilhoso e tão fecundo: é justamente quando alguém fala simplesmente por falar que realmente exprime as mais magníficas verdades. Mas que queira ao contrário falar de alguma coisa de preciso, eis logo a língua maliciosa que lhe faz dizer os piores absurdos, as patranhas mais grotescas. Também é daí que vem o ódio que tantas pessoas sérias têm da linguagem. Sua petulância e sua traquinice elas notam; mas o que elas não notam é que a tagarelice atabalhoada e seu desleixo tão desdenhoso são justamente o lado infinitamente sério da língua... (Oeuvres Completes, trad. Guerne, II, p. 86).

 

Assim sendo, talvez não fosse errado propor, para caracterizar ao mesmo tempo o último Heidegger e a sofística, o nome comum de "logologia" ousado por Novalis. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 70-72).

 

Diz mais Barbara Cassin:

 

Assim, a oposição do verdadeiro e do falso toma lugar no registro fenomenológico da alétheia como desvelamento. "'Ser-falso', pseúdesthai, quer dizer enganar, no sentido de encobrir: colocar diante de alguma coisa alguma outra coisa que se faça ver, e assim fazer passar a coisa encoberta pelo que ela não é" (p. 51 = 33).” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 228-229).

 

Ora, à diferença da acolhida estética, a acolhida noética é caracterizada como thigeîn kaì phánai (24) 4, "tocar e enunciar", “emitir”, como se o espírito afetado pudesse então expressar em som o contato que experimenta.

 

O grego é difícil e suscetível de várias construções: ésti tò mén '14-1hés e Pseúdos, tò mèn thigem kai pUnai aléthés ( ... ) tò d'agnoem M,' Ilângánein. Compararemos a construção de … e a de Trieot : "Eis o que é então o verdadeiro ou o falso: o verdadeiro é apreender e enunciar o que se apreende (...) ignorar é não apreender". (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 227).

 

Kerferd ensina:

 

Alguns aspectos da vida em Atenas, na segunda metade do século V a.C., poderiam sugerir que o que estava acontecendo era uma mudança bastante fundamental em direção a uma sociedade na qual o que as pessoas pensavam e diziam começava a ser mais importante do que os fatos reais [Osório diz: algo parecido com o moderno “o que importa é a versão, não os fatos”]. Na sua forma moderna extrema, isso leva à doutrina de que não há fatos, nem verdade, apenas ideologias e modelos conceituais; e a escolha entre eles é uma questão individual, talvez dependente das necessidades ou preferências pessoais, ou talvez influenciada pelo pensamento dos grupos sociais tratados como unidades, mas de forma alguma estabelecida por outros meios além desses. O que aconteceu no século V a.C. dificilmente chegou a isto. Mas o que emergiu, de fato, foi a compreensão de que a relação entre discurso e fato real está longe de ser simples [Osório diz: não existem fatos, mas apenas versões deles]. Embora seja provável que os pensadores do século V estivessem, todos, preparados para aceitar que há e deve haver sempre uma relação entre os dois, havia uma crescente compreensão de que o que está frequentemente envolvido não é simplesmente a apresentação do fato em palavras mas, antes, uma representação que envolve, no processo, considerável grau de reorganização. Esse despertar do que foi chamado de autoconsciência retórica é uma característica tanto da literatura contemporânea como da discussão teórica no século V. Foi esse alargamento do fosso entre retórica e realidade que levou Platão, no Górgias, a contrastar retórica e filosofia, e a condenar a prática da primeira; e, depois, no Fedro, a argumentar a favor de uma retórica reformada, baseada na dialética e na psicologia, como uma possível servidora da filosofia [Osório diz: as razões de Platão contra a retórica].

O poder da retórica não foi, é claro, uma descoberta da geração dos sofistas. Sua importância era já conhecida de Homero e provavelmente nenhum dos primeiros poetas subestimava a importância de sua própria atividade no uso das palavras. Mas a teoria da literatura e a arte da retórica foram, em grande parte, criação do período sofista. Nossa melhor informação se encontra nas duas obras existentes de Górgias, escritas em forma de declamações retóricas, mas que têm certamente propósitos mais sérios, o Elogio de Helena (DK 82B11) e o Palamedes (DK82B11a). O propósito do Helena é declarado: libertar Helena da culpa por ter feito o que fez ao deixar seu lar e seu marido para ir para Tróia com Páris; mostrar que os que a condenam estão falando falsamente e, ao indicar a verdade, pôr fim à ignorância deles (par. 2). O acento na verdade, aqui, é enfático, e mostra que não há, em Górgias, a intenção de negar a existência do fato. Com efeito, só é [136] possível engano em relação ao que é realmente verdade [Osório diz: Górgias e a verdade]. São consideradas, a seguir, quatro possíveis explicações para o comportamento de Helena: (1) que foi por decreto dos deuses e da Necessidade, (2) que ela foi levada à força, (3) que foi persuadida pelo poder do discurso (logos) e (4) que foi tudo obra do Amor. No primeiro caso, deus é uma força mais forte que o homem, seguindo-se, daí, que deus é que é o culpado, não o ser humano mais fraco. No segundo caso, deve-se ter pena da mulher em vez de condená-la, e é o bárbaro que a sequestrou que merece palavras de condenação, perda de direitos civis por lei (nomos), e punição de fato.

Algumas dificuldades, contudo, podem ser levantadas no terceiro caso, quando é o logos que persuade, e a resposta é desenvolvida, um tanto longamente, por Górgias. Como é que a persuasão livra de culpa a pessoa que foi persuadida a fazer o que quer que seja que tenha feito? A réplica de Górgias parece ser dupla. Em primeiro lugar (pars. 8-10), é dada ênfase ao enorme poder do logos. Isso se vê nas experiências emocionais, tanto as bem-vindas como as indesejáveis, produzidas tanto pela poesia como pela maestria da prosa. Mas há uma segunda maneira também pela qual o logos age sobre a alma humana (pars. 10-14). A maioria dos homens é incapaz de recordar o que de fato aconteceu, ou de investigar o presente, ou de adivinhar o futuro. De modo que, na maioria das questões, eles usam a Opinião (Doxa) como um conselheiro para suas almas. Essa opinião, contudo, não é confiável e pode fazer a pessoa tropeçar e cair, com consequências infelizes para si mesma. O logos é capaz de agir persuasivamente nessa opinião porque a opinião não é conhecimento e, por isso, é fácil de mudar. Isso se pode ver em três exemplos. Primeiro, o caso dos que discutem os corpos celestes, os meteorologoi. Estes substituem uma opinião por outra, removendo uma e formando outra em seu lugar, e fazem com que as coisas que não se vêem, e às quais falta credibilidade, se tornem aparentes aos olhos da opinião. O segundo é o caso em que logos está em peremptório debate com logos — como numa disputa em tribunais: aqui, um discurso, pela habilidade de sua composição, não pela verdade de suas afirmações, ao mesmo tempo delicia e persuade uma grande multidão. O terceiro caso é aquele em que um filósofo disputa com outro filósofo. Aqui, a rapidez do pensamento obviamente facilita alterar a credibilidade da opinião em questão[Osório diz: este talvez seja o motivo da rejeição platônica: domínio da multidão! Mas se todos estiverem preparados, a “ilusão” não será tão fácil! Mas aí o grande problema: Platão não queria a multidão esclarecida!].

O resultado é que o poder do logos em relação à condição da alma é comparável ao das drogas. Pois diferentes drogas têm diferentes efeitos no corpo: algumas curam doenças, e outras põem fim à vida. Assim também com logoi — alguns causam sofrimento, outros prazer e outros medo; alguns instilam confiança e coragem nos ouvintes, enquanto outros envenenam e seduzem a alma com uma espécie de persuasão perversa. A comparação da persuasão com as drogas sugere que Górgias deseja distinguir dois tipos de persuasão, uma boa e outra má [Osório diz: exatemente igual ao que Platão diz sobre a Retórica!]. Será, então, a segunda persuasão que operou no caso de Helena. Isto se ajusta bem com a aposição atribuída a Górgias no diálogo de Platão que leva o seu nome (449d-457c): retórica, em si mesma, é, para Górgias, simplesmente uma técnica. Como tal, pode ser usada para produzir tanto crença falsa como crença verdadeira, embora Górgias, e seus defensores no diálogo, mantenham todos que ela deve, de fato, ser usada moralmente e não para propósitos imorais. Mas há um problema particular em Helena. No início do Elogio, como vimos, Górgias declara que era sua intenção indicar a verdade (par. 2). Entretanto, ao longo da discussão de logos (nos pars. 8-14), ele fala do logos que persuade produzindo engano (apaté), e da persuasão que é bem-sucedida porque moldou, primeiro, um logos falso. Isso levou à sugestão de que, para Górgias, a única maneira pela qual a persuasão age na opinião é por engano [Osório diz: Górgias e o irracional?] [Osório diz: ao contrário! Górgias mostrou os dois lados, quando, se fosse seu desejo mostrar apenas o engano, teria omitido a opinião sobre ele!].

Este é um assunto que já foi extensamente discutido, mas que não foi ainda totalmente elucidado. É preciso, primeiro, ver a doutrina em relação com o que é dito na segunda e na terceira partes do tratado de Górgias Sobre a natureza (DK 82B3). Temos aí, na segunda parte, a asserção de que, mesmo se as coisas são, não podem ser conhecidas, pensadas ou apreendidas por seres humanos; e, na terceira parte, o argumento segundo o qual, mesmo que pudessem ser apreendidas, ainda assim não poderiam ser comunicadas a uma outra pessoa. Isso acontece porque o meio pelo qual comunicamos é o discurso ou logos, e esse logos não é, e jamais poderá ser, os objetos externamente subsistentes que realmente são. O que comunicamos ao nosso próximo nunca é "essas coisas reais", mas apenas um logos que é sempre outra coisa diferente das coisas em si mesmas. Nem é mesmo o discurso, diz Górgias, que revela a realidade externa: é o objeto externo que fornece informação sobre o logos.

Conclui-se, daí, que Górgias está introduzindo um fosso radical entre o logos e as coisas às quais ele se refere. Uma vez reconhecido esse fosso, podemos compreender muito facilmente o sentido em que todo logos envolve uma falsificação da coisa à qual se refere — ele jamais conseguirá, segundo Górgias, reproduzir, em si mesmo, por assim dizer, aquela realidade que está irreparavelmente fora dele [Osório diz: eis por que Górgias nos prendeu no irracional!]. Na medida em que afirma reproduzir fielmente a realidade, não passa de engano ou apatê. Todavia, essa é a afirmação que todo logos parece fazer. Portanto, todo logos é, nessa medida, Engano; e no caso da literatura, como na tragédia, por exemplo, tirou-se a interessante conclusão de que o homem que engana é melhor do que o homem que não consegue enganar (DK 82B23). Essa doutrina explica a afirmação no par. 11 do Helena, que se os homens possuíssem mesmo conhecimento, o logos não seria (visivelmente) similar (àquilo do qual eles possuem o conhecimento). No início do Elogio, o que parece que Górgias está dizendo é que para se chegar à verdade é necessário indicar a verdade ou a realidade mesma e não o logos, e isso só pode ser feito mediante a aplicação de algum tipo de processo de raciocínio ao lagos em questão (par. 2). [Osório diz: resposta a irracionalidade de Francisco Rodriguez Adrados?].

Um pouco mais de luz pode resultar da consideração do segundo dos dois discursos retóricos de Górgias, Defesa de Palamedes (DK 82b11a). De novo nos é dito (par. 35) que se fosse possível que a verdade sobre as coisas se fizesse pura e clara, por meio dos logoi, para aqueles que ouvem, o julgamento seria fácil, pois se seguiria diretamente das coisas que foram ditas. Mas não é esse o caso. O que é preciso é prestar atenção, não aos logoi, mas aos fatos reais. Antes, no discurso. Conhecimento do que é Verdadeiro é contraposto à Opinião (par. 24), e se diz que o logos por si mesmo é inconclusivo a menos que se aprenda também da própria Verdade mesma (par. 4). Finalmente (par. 33) Palamedes declara sua intenção de expor o que é verdadeiro e de evitar engano no processo.

Com base nessas indicações, é possível discernir um modelo conceitual comum subjacente ao argumento, tanto no Helena como no Palamedes. De um lado está o mundo real, rotulado como verdade ou aquilo que é verdadeiro. A cognição desse mundo real é conhecimento. Mas o estado cognitivo mais comum é opinião, não conhecimento, e o logos, que é mais poderoso que a opinião, age sobre a opinião. Ambos são falsos, em contraste com verdade e conhecimento. Mas é possível apelar dos enganos do logos e da opinião, para o conhecimento e a verdade. O efeito desse apelo, embora providencie conhecimento, não remove o incurável caráter falso do logos, visto que o logos não pode nunca ser a realidade que pretende expor. Todavia, dois tipos de logoi — um melhor, e um pior do que o outro [Osório diz: Resposta a “irracionalidade” de Adrados?].

A superioridade de um logos sobre outro não é acidental; depende da presença de características específicas. O estudo delas é o estudo da arte da retórica, e seu bom desenvolvimento é a fonte do poder do logos sobre as almas, que se intitula Psychagogia, ou a conquista das almas dos homens [Osório diz: dicionário], no Fedro (261a) de Platão. Logo depois, no Fedro (267a), nos é dito que o poder do logos faz as coisas pequenas parecerem grandes, e as grandes parecerem pequenas; que pode apresentar as coisas de data recente numa forma antiga, ou contar coisas antigas de maneira nova [Osório diz: é o que faz a Inglaterra, segundo...]. Ambos, Tísias e Górgias, tinham argumentado que as coisas que são prováveis merecem mais respeito do que as coisas que são verdade, e é essa capacidade de promover probabilidades que é parte do poder que se encontra no logos. Muito do que é dito aqui, por Platão, é declarado também por Isócrates, no seu Panegírico 7-9; e acrescenta ele que é importante, na oratória, ser capaz de fazer uso adequado dos eventos do passado, e no tempo adequado ou Kairos. Um bom número de referências em outras obras acentua a importância do kairos, ou a escolha do tempo adequado, na retórica; e Dionísio de Halicarnasso não só nos diz que Górgias foi o primeiro a escrever sobre o kairos, mas acrescenta a declaração, infelizmente não incluída no DK, que kairos não é algo a ser alcançado pelo conhecimento — é mais próprio da opinião. Uma referência em Diógenes Laércio (IX, 52) deixa claro que Protágoras também tinha escrito a respeito do kairos. Quando juntamos as doutrinas do Provável ou Plausível e do momento Certo no Tempo e as relacionamos com Opinião (o que os homens pensam ou crêem), fica claro que já temos os elementos de uma teoria da retórica que pode ser comparada com as modernas descrições da técnica da propaganda. De fato, talvez se compreenda melhor a Retórica, que é agora um termo fora de moda, se a descrevermos como cobrindo, na Antiguidade, toda a arte de relações públicas e apresentação de imagens. Foi a teoria dessa arte que os sofistas inauguraram.” (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 135-142).

 

Diz Martin Burckherdt:

 

Porém, isso deve significar que a verdade não é criada, mas recorrente e eterna”. (Pequena história das grandes ideias, Martin Burckhardt, tradução de Petê Rissatti, Tinta Negra: 2011, p. 41).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

84.4 – Moral, segundo os sofistas.

 

Nos diz Guthrie:

 

Para um contemporâneo hostil como Aristófanes, as ideias sofistas eram sintoma de declínio. Os grandes dias da Grécia foram os das guerras persas, quando homens eram homens. Coragem e dureza, simplicidade de vida, altos padrões morais foram todos atribuídos a esta geração imediatamente anterior. Agora, lamentava ele, todos os padrões estão sendo abandonados e ninguém pode distinguir certo de errado, ou, se podem, espalhafatosamente acolhem o errado e desprezam o certo. A geração jovem é amante da luxúria, efeminada, imoral e covarde. Basta ver os dramas: os escritos teatrais não mais escolhem temas elevados e nobres como Esquilo o fez. Em vez disso, temos Eurípedes com seus teatros de adultério, incesto e velhacaria, seu alarde do baixo e sórdido, sua conversa de trocadilhos e jogos de palavras sem fim. Tudo isso, pensava Aristófanes, vinha do seguimento da nova ciência ateia e a nova moralidade dos sofistas.” (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 50).

 

Ensina Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Nietzsche: “nunca se insistirá suficientemente nisto: os grandes filósofos gregos representam a decadência de todo o valor grego inato (...) . O momento é muito singular: os Sofistas afloram a primeira crítica da moral, o primeiro olhar penetrante sobre a moral.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 16).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

84.3 – Moral de situação.

 

Ensina Gutrhie:

 

"Ética de situação" de hoje. [Time Magazine (22 de abril de 1966): “Os valores tradicionais estão abrindo caminho para uma ‘ética de situação’ - que diz que nada é intrinsecamente certo ou errado, mas deve ser julgado no contexto pelo impulso do momento”.]

Moral de situação", a ênfase no imediatamente prático e a desconfiança em regras e princípios gerais e permanentes.

Ética de situação: é aquela que diz que nada é intrinsecamente certo ou errado, mas deve ser julgado no contexto pelo impulso do momento”. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 61).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

84.2 – Moral e guerra.

 

Doutrina Guthrie:

 

Tucídides (p. 83)

 

O filósofo historiador Tucídides.

 

A guerra, destruindo o conforto da vida diária, é mestre-escola violento, e assimila a maioria das disposições dos homens às condições a seu redor... Mudam-se os valores correntes das palavras à medida que os homens pretendem o direito de usá-las como lhes aprouver para justificar suas ações: uma ousadia irracional chamou-se de coragem e lealdade ao partido, um prudente adiamento, plausível covardia; moderação e autocontrole veio a se considerar manto da timidez, ter uma compreensão do todo, ser por inteiro relutante em agir... Aplauso, em suma, voltava-se para quem incorrera em algum ato mau, e quem encorajava outrem era acusado de tentar crime que não estava em suas intenções.” (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 83).

 

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