Sofística
(uma biografia do conhecimento)
116 - O ser como efeito do dizer.
É Barbara Cassin a seguinte doutrina:
“Face à ontologia, a tese sofística e a tese lacaniana são apenas uma: o ser é um "efeito de dizer", "um fato de dito" (Encore, 107). É exatamente sobre esse ponto, nesse posicionamento, que Lacan me parece dever ser chamado sofista. Bem entendido, os sofistas, à diferença de Lacan, foram bem mais exclusivamente práticos, pedagogos e oradores, não deixando reflexões sobre a sua prática. Por outro lado, já se percebeu isso, é sempre também com pesar que Lacan constata que não é parmenideano, platônico, aristotélico, heideggeriano, filósofo. Enfim, é evidente, Lacan dispõe de outros conceitos, em particular os da subjetividade e os da linguística. Mas se os dois mundos são, apesar de tudo, comparáveis, é exatamente e para resumir, porque os sofistas e Lacan têm o mesmo outro, o regime filosófico “normal” do discurso. Indiquemos simplesmente que a definição mais adequada desse regime normal deve ser construída a partir o libro Gama da Metafísica de Aristóteles, onde a demonstração do princípio de não-contradição só se sustenta pela confusão expressar entre "dizer" e "significar alguma coisa que tenha o mesmo sentido para si mesmo e para outrem". Essa identificação é explicitamente elaborada por Aristóteles como um contragolpe à sofística. É então menos plausível que um regime antearistotélico e um regime pós-aristotélico como a psicanálise possam se comunicar em seu não, e mesmo seu anti, aristotelismo.
(...)
O ser é um fato de dito: isso significa simplesmente que não há nenhuma realidade pré-discursiva. Cada realidade se funda e se define por um discurso" (Encore, 33). É preciso inverter o sentido do sentido, que não vai do ser ao dizer, mas do dizer ao ser, ou, nos termos do Tratado do não-ser de Górgias: "Não é o discurso que indica o exterior, mas o exterior que vem revelar o discurso" (Sextus Empiricus, Adv. Math., VII, 85). Assim, "a realidade", "o exterior", em uma palavra o ser, longe de ser anterior, se conforma, sempre posteriormente, ao discurso que efetuou sua predição, e tem sua existência, assim como Helena, essa concreção fetichizada de sopro, apenas por ter sido discursado. [Osório diz: texto maravilhoso. O ser como efeito do dizer!]
Que o ser seja um fato de dito convida a tomar precauções no que concerne à significação. A precaução elementar que levaria a refletir sobre a especificidade do escritor é, sem dúvida, a de "distinguir a dimensão do significante". "Distinguir a dimensão do significante só tem importância por formular que, aquilo que vocês ouvem, no sentido auditivo do termo, não tem nenhuma relação com o que isso significa" (Encore, 31). E assim como a logologia não procede do ser ao dizer mas do dizer ao ser, não se irá do significado ao significante, mas inversamente: “o significado não é o que se ouve. O que se ouve é o significante. O significado é o efeito do significante” (p. 34).
Os sofistas não utilizaram, como os estóicos, esse tipo de terminologia. Por outro lado, é manifesto que sua crítica da ontologia se apoia na autonomia de um discurso definido como som, em termos de ouvir e de escutar — a voz de Helena:
Da mesma forma que a vista não conhece os sons da voz, o ouvido não ouve cores mas sons, e aquele que diz diz mas não uma cor nem uma coisa... Pois, para começar, ele não diz uma cor, mas um dizer. De modo que não existe nem conceber nem ver cor, não há mais do que ruído, há apenas ouvir (Tratado do não-ser, 10).
A psicanálise, como a sofística, faz soar o significante, é por isso que Lacan lacaniza e Górgias, seus contemporâneos diziam com não menos odioamoração, "gorgianiza". Com efeito, o grande recurso do significante é o de baralhar a certeza do sentido — desde Aristóteles, sentido único, "o um sentido" — jogando com o equívoco: "A interpretação... não é interpretação de sentido, mas jogo com o equívoco. É por isso que coloquei ênfase sobre o significante na língua (Roma, 552). Poder-se-ia reler, para censurar L'Etourdit, as Refutações sofísticas de Aristóteles onde, após ter deplorado o pecado original da língua — há menos palavras do que coisas e falamos, em suma, como com as pedrinhas utilizadas para fazer cálculos —, ele acua o equívoco característico dos sofismas. Os sofismas que dizem respeito a confusões no pensamento são fáceis de refutar, utilizando as características ontológicas, lógicas e físicas para definir; mas contra os que dizem respeito apenas à elocução (léxis), por exemplo, ao acento, ao encadeamento e à divisão das sílabas e das palavras, à cadência da voz, logo, aos puros jogos de significante, Aristóteles pode fazer apenas um simples retorno ao emissor e um banimento para, exatamente, a insignificância. Insignificância que entretanto o chiste sabe bem tornar falante.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 304-307).