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85 – Verdade, segundo a Sofística.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

85 – Verdade, segundo a Sofística.

 

Nos diz Guthrie:

 

Como Protágoras disse, “Sobre cada tópico há dois argumentos contrários entre si”. Ele visava a treinar seus alunos para elogiar e censurar as mesmas coisas, e em particular escorar o argumento mais fraco para que aparecesse mais forte. O ensino retórico não se restringia à forma e ao estilo, mas lidava também com a substância do que se dizia [Osório diz: este é o meu pensamento! Como falar de um assunto sem conhecê-lo? Falar falsamente sobre um tema é impossível!]. Como se podia deixar de inculcar a crença de que toda verdade era relativa e ninguém conhecia alguma coisa como certa? A verdade era individual e temporária, e não universal e permanente, pois a verdade para o homem era simplesmente aquela de que podia ser persuadido, e era possível persuadir qualquer de que preto era branco. Pode haver crença, mas nunca conhecimento.

O que parece a mim é para mim, e o que parece a ti é para ti”, e que ninguém pode estar numa posição para contradizer a outrem.

 

(...)

 

Uma vez que toda inquirição humana se move no campo da opinião, onde é fácil a decepção, toda persuasão (filosófica, “científica”, legal ou outras) é resultado da força e eloqüência antes que a intuição racional... Se os (p. 170) homens soubessem, haveria grande diferença entre engano e verdade. Assim como é, podemos apenas distinguir entre argumentos com êxito e não-convincentes, persuasivos e infrutíferos. [Osório diz: Verdade e opinião. Perfeita essa colocação de Versényi, Socr. Hum. 47s].

Virando Parmênides de cabeça para baixo, Górgias afirmou que nada existe (ou é real), que, se existisse, não poderíamos conhecê-lo, e, se pudéssemos conhecê-lo, não poderíamos comunicá-lo a outrem. A base filosófica é a mesma que a do dito de Protágoras: “O que parece a cada um é na medida que lhe interessa” [Sicking parece pensar de outra maneira; mas dificilmente se pode negar que nada tem existência real, nem pode ser reconhecido ou comunicado, a única alternativa é que as sensações e crenças particulares de cada homem são as únicas validas, e validas só para ele. Que a polêmica de Górgias não visa somente aos eleatas ("nicht nur", Sicking p. 232, embora na p. 245 insira qualificação) não pode alterar este aspecto. [Osório diz: não! Outros podem aderira a crença um do outro! E é isso que se faz no dia a dia / Guthrie joga a toada para Górgias!]]. “Se”, diz Górgias ...,”fosse possível por meio de palavras (logoi) tornar a verdade sobre a realidade (erga) pura e clara aos ouvintes, o julgamento seria fácil como simplesmente seguindo do que foi dito; mas uma vez que não é assim...”.” [Osório diz: Górgias versus Parmênides / A verdade / semelhança filosófica entre Górgias e Protágoras]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 52, 170-171).

 

Já Gilbert Romeyer-Dherbey diz:

 

Diógenes Laércio afirma, a propósito de Protágoras, que “é o primeiro a dizer que a respeito de tudo há dois discursos que se contradizem um ao outro”. O tema do duplo discurso era o tema principal das Antilogias, e com ele Protágoras exprime um sentimento profundamente enraizado no helenismo. Este sentimento está relacionado com a natureza da religião grega, que é um politeísmo; ora, o primeiro princípio do politeísmo é o da dispersão do divino, de uma pluralidade de deuses que frequentemente se defrontam e equilibram os seus poderes. A clara individualização de cada um dos deuses revela uma diferenciação das forças do universo; o espírito que pensa um mundo plural e policêntrico ditará, portanto, facilmente a clivagem, a rotura. Assim, o tempo será experimentado como um meio homogêneo, uniformemente fragmentado; ainda não existe o relógio mecânico, que expressará a duração em fragmentos iguais e mensuráveis; o tempo é, pelo contrário, o da ocasião propícia (kaipós), que aparece e desaparece arritmicamente, dado ora a um ora a outro, nunca sendo, por conseguinte, bom para toda a gente. O desequilíbrio do tempo que fere o que vem a tempo e a contratempo agrava-se com uma dispersão dos lugares. O espaço homogêneo não existe como o tempo homogêneo; o mundo político grego é constituído por inúmeras Cidades-Estados, átomos do poder dispersos e que perpetuamente se entrechocam e confrontam. O sofista nómade, ao ir de uma para outra, experimenta uma contínua sensação de descentração; como ser o rapsodo dos seus discursos tão desconexos? Untersteiner, por outro lado, sublinhou profundamente a relação que existe entre o conceito protagórico de antilogia e o clima da tragédia esquiliana. A ação trágica desenvolve-se no interior de uma situação onde o herói se encontra entrincheirado, em que a unilateralidade é impossível porque só as ações que pode escolher são simultaneamente prescritas e proibidas. Assim, nas Coéforas, Orestes, para satisfazer o querer divino, deve ao mesmo tempo cumprir e não cumprir o matricídio; sentindo subir a tensão trágica, grita então: “Que Ares se agarre a Ares, Diké a Diké!”. O sentimento da contradição de que todo o discurso é suscetível ainda pôde ser confortado em Protágoras pela prática da democracia ateniense. Com efeito, a decisão política perante a Assembléia do povo é sempre discutida; assim, reconhece-se sempre como discutível, isto é, reversível e modificável; esta versatilidade será até uma das principais críticas que Aristófanes dirige ao démos. Uma assembléia numerosa raramente é unânime; geralmente, as opiniões dividem-se e o que caracteriza um regime democrático é tolerar uma oposição, isto é, aceitar a legitimidade possível de um discurso contrário ao do poder constituído. O próprio debate político, em que o povo ouve os discursos opostos dos dois partidos que se defrontam, prova que “a respeito de tudo há dois discursos que se contradizem um ao outro.” A origem polêmica e conflitual desta divisão revela-se no fato de Protágoras falar de dois discursos, e não de uma pluralidade de discursos possíveis. Com efeito, toda a guerra não opõe mais que dois campos: bellum = duellum. Este caráter polêmico, aliás, encontra-se na instituição judicial grega, em que todo o processo toma a forma de combate: o espaço judicial é menos um espaço de participação que de luta em que se defrontam as defesas contrárias dos dois partidos; o próprio termo que designa o processo (aywv) significa também batalha. [Osório diz: de onde Protágoras pode ter intuído os duplos discursos!].

O pensamento protagórico da antilogia também se explica pelo fato de se desenvolver em terreno heraclitiano. Da mesma maneira que Heráclito, Protágoras é um Jônio; ora, a visão de um real contraditório e afirmação da imanência recíproca dos contrários constituem o centro do pensamento de Heráclito muito mais seguramente que o da mobilidade, que frequentemente é reduzido. É por isso que, para ele, o próprio âmago do universo é conflito. “O combate é o pai de todas as coisas, de todas é rei.” A relação das doutrinas de Heráclito e de Protágoras foi sublinhada tanto por Platão, no Teeteto, como por Aristóteles, no livro IV da Metafísica. Mas subsiste uma diferença entre eles ao nível do modo de expressão: quando Heráclito, pela supressão do verbo ser, mostra na própria enunciação a contradição interna de toda a realidade, a retórica de Protágoras, renunciando a fornecer a imediatez da contradição, divide-a numa antilogia [Osório diz: conceito de antilogia], isto é, em dois discursos, cada qual coerente em si mesmo, mas incompatíveis entre si. Todo o real, quando se diz corta necessariamente em dois todo o discurso e atinge a própria linguagem com uma insuperável oposição de teses contrárias. Esta cisão da linguagem não cobre por completo a cisão parmenidiana entre a linguagem da oposição e a linguagem da verdade; uma semelhante distinção, dando à verdade a passagem para a opinião, suprime efetivamente toda a cisão da palavra pensante. Protágoras não se pode contentar com a ontologia parmenidiana porque esta, sacrificando o múltiplo, cai na infelicidade da generalidade; o discurso da ontologia torna-se discurso vazio, também Protágoras recusa toda a distinção entre a opinião e a verdade; reabilita a doxa, cujos perpétuos desmentidos constituem a própria lei da vida, e as formas de uma realidade resplandecente. Platão refere-se a esta demonstração de Protágoras a propósito do problema do Bem e fá-lo declarar que “o Bem é qualquer coisa de variegado” [Osório diz: Que apresenta cores ou matizes variados ou diversos.]. Protágoras introduziu, pois, a contradição no Ser de Parménides e, por este motivo, mereceu a admiração de Hegel.

O plano das Antilogias é-nos proporcionado muito verossilmente por uma passagem do Sofista de Platão, em que este define o sofista como sendo essencialmente o malabarista da contradição.

Ontologia (examinava o devir e o ser).

[Osório diz: neste parágrafo dá para questionarmos o seguinte: Se Sócrates, segundo seu criador (Platão), não estudava astronomia, como a discutia com tamanha desenvoltura?]

 

O INVISÍVEL - As Antilogias começavam...

 

O agnosticismo de Protágoras é talvez disto resultante, o ponto neutro entre os dois discursos opostos que, a propósito dos deuses, se confrontam, o da crença e o da descrença. Se os dois discursos aqui se anulam em vez de deixar um sobrepor-se ao outro, é porque se trata do domínio do invisível e do escondido; o sofista guarda a sua resposta, ou adia-a, na impossibilidade de poder levar a cabo uma fenomenologia do divino, ou de querer elaborar uma teologia do obscuro. Em todo o caso, este agnosticismo prepara e permite o momento seguinte do pensamento de Protágoras, a afirmação do homem-medida: se os deuses não se deixam afirmar, então fica o homem. A prova está em que Platão, nas Leis, substituirá a fórmula protagórica de ánthropos métron por esta: “o deus é a medida de todas as coisas.” [Osório diz: Platão joga a toalha!]

Protágoras prepara, assim, pela negação de todo o recurso ao absoluto, um humanismo radical.

Protágoras, sem negar radicalmente toda a possibilidade de uma imortalidade da alma, devia sublinhar a nossa total impotência para conhecer, com certeza, o que acontece ao homem no além. A presença tutelar do deus desaprece, portanto, no horizonte do homem, antes do nascimento deste como depois da morte. O homem encontrar-se-á num mundo errado. [Osório diz: que religião prestigiará um homem desses?].

 

O VISÍVEL – A) As ...

 

Esta refutação da ontologia eleática era, evidentemente, a condição sine qua non da visão antilógica do mundo, para a qual o real é bilateral e a palavra reversível. A própria ontologia não deixa de cair em contradição que quer evitar, uma vez que, ao lado do discurso da verdade, é obrigada a tolerar a existência do discurso da opinião e a dar-lhe lugar, como se pode ver no poema de Parménides; não pode chegar ao monismo completo da verdade. [Osório diz: Verdade – sua impossibilidade]

A política e o direito constituem um campo privilegiado para a visão antilógica das coisas. A ambiguidade reina no domínio antropológico e é nesta seção das Antilogias que devia ter lugar a discussão sobre a morte de Epitímio de Farsália evocada por Plutarco: “Com efeito, em virtude de alguém, no pentatlo, ter atingido, sem querer, com um dardo, Epitímio de Farsália e o ter morto, Péricles consagrou um dia inteiro a interrogar-se se era, de acordo com a argumentação mais correta, o dardo, ou antes aquele que o lançara, ou os organismos dos Jogos, que haveria que considerar como causas do drama.” [Osório diz: A antilogia no Direito e na Política]

Esta discussão não visava instaurar uma hierarquia nos níveis da responsabilidade (fez-se saber que, para o direito arcaico, um objeto pode ser declarado culpável), mas segundo interpretação de G. Rensi, devia mostrar a impossibilidade em que se estava para a determinar, a não ser arbitrariamente. Três causas da morte de Epitímio podem ser invocadas, e igualmente legítimas segundo o ponto de vista adotado: para o médico, foi o dardo que causou a morte; para o juiz, foi quem o lançou; para a autoridade política, foi o organizador dos Jogos. A lição deste fragmento é, portanto, a de um perspectivismo que tende a provar que não existe um perfeito absoluto e em si, permitindo discernir ao vivo e certeiramente, nos casos jurídicos concretos. [Osório diz: por que Péricles passou um dia discutindo com Protágoras]

Se há uma disciplina que não se adapta ao perspectivismo é a matemática, que, aos olhos de Protágoras, é uma arte (techné). Também procura demonstrar que é igualmente antilógica e, como as outras artes, se contradiz. Com efeito, a geometria ensina-nos que a reta tangente ao círculo toca este círculo em um ponto, mas se traçamos o círculo e a reta perceptíveis, apercebemo-nos de que a reta toca sempre o círculo em vários pontos e que nunca poderemos obter uma figura conforme com as definições matemáticas. Ora, a geometria não pode, para raciocinar, dispensar a consideração das figuras, cujo traçado desmente o discurso que o matemático elabora a seu respeito: “Com efeito, o círculo toca a tangente não apenas num ponto, mas como disse Protágoras na sua refutação dos geómetras.” Se a matemática é antilógica, a fortiori também o serão as outras artes. No final das Antilogias põe-se, portanto, de maneira premente, o problema da verdade.” [Osório diz: os matemáticos serem mais uns “inimigos” do Sofista). (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 17, 18, 19, 20, 21, 22).

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

O lógos diz o fenômeno como ele aparece, e é por isso que a definição corrente da verdade pode se prender à conformidade do enunciado à coisa, à adaequatio rei et intellectus. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 230).

 

Ora, à diferença da acolhida estética, a acolhida noética é caracterizada como thigeîn kaì phánai (24) 4, "tocar e enunciar", “emitir”, como se o espírito afetado pudesse então expressar em som o contato que experimenta.

O grego é difícil e suscetível de várias construções: ésti tò mén '14-1hés e Pseúdos, tò mèn thigem kai pUnai aléthés ( ... ) tò d'agnoem M,' Ilângánein. Compararemos a construção de … e a de Trieot : "Eis o que é então o verdadeiro ou o falso: o verdadeiro é apreender e enunciar o que se apreende (...) ignorar é não apreender". (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 227).

 

É ainda Barbara Cassin quem afirma:

 

O discurso sofístico, na verdade, está para a alma assim como o phármakon, remédio/veneno, está para o corpo: induz uma mudança de estado para o melhor ou para o pior. Mas o sofista, como o médico, sabe utilizar o phármakon e pode transmitir esse saber; sabe e ensina como fazer passar, não, segundo a bivalência do princípio de não-contradição, do erro à verdade ou da ignorância à sabedoria, mas, segundo a pluralidade inerente ao comparativo, de um estado menos bom a um estado melhor [Osório diz: o que os sofistas propõem-se a fazer]. Protágoras, que professa a virtude, o diz pela boca de Sócrates que, então, o defende: "É de uma disposição à disposição que vale mais que deve se fazer a passagem, mas o médico produz essa passagem através das drogas, o sofista através dos discursos" (Teeteto, 167a).

Diante do cálculo do melhor, do mais útil, "a fronteira entre bem e mal se apaga: aí está o sofista" (Nietzsche, Fragments postumes, 87-88, 343ss.,11 [375]), É assim que podemos explicar o paradoxo de uma sofística ora tirânica e ora democrata, ora cínica, sadísta, revolucionária, e ora conformista e conservadora [Osório diz: isso explicaria Protágoras democrata e Antifonte junto aos aristocratas].

À destituição da identidade ontológica se sucede, com a prática retórica, a construção de uma identidade política que leva em consideração a diversidade das opiniões. Simultaneamente, a moral fundada sobre uma virtude ou um bem únicos como a verdade é substituída pela consideração das condutas efetivas e a preocupação com o melhor, que leva a marca de uma vivência da finitude. [Osório diz: o que a sofística propõe em substituição à verdade]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990,p. 12, 13).

 

E Barbara Cassin prossegue:

 

Mas eu seria tentada por uma outra abordagem, que partiria dessa vez do Acheminement vers Ia parole. "Nosso pensamento atual, diz Heidegger, tem como tarefa tomar o que foi pensado de maneira grega para pensá-lo de uma maneira ainda mais grega" (trad. Beaufret, Brokmeier, Fédier, p. 125). Deve então haver uma maneira possível de ser pré-socrático de outra forma: sendo, como Heidegger, ainda mais pré-socrático. Gostaria de propor ler em conjunto alguns fragmentos sofísticos e trechos do Acheminement, sem esconder nem por um instante a unilateralidade das minhas escolhas: trata-se simplesmente de sugerir que uma certa linha mais pré-socrática de Heidegger é de tipo sofístico.

Com o mais matinal daquilo que, através do pensamento ocidental, chegou a se fazer ouvir, há a relação da coisa e da palavra, e a verdade sob a figura da relação do ser e do dizer. Essa relação assalta o pensamento de uma maneira tão desconcertante que se anuncia em uma só palavra: lógos. Essa palavra fala simultaneamente como nome do ser e como nome do dizer. Contudo, ainda mais desconcertante para nós é o fato de que, apesar disso, nenhuma experiência com a fala é feita —nenhuma experiência onde a própria fala viesse propriamente à fala na medida dessa relação (p. 169).

Podemos adiantar entretanto que é essa experiência cuja impossibilidade, o "interdito", faz parte da própria fala, que tentam, como dois extremos que aí se encontrassem, tanto a sofística quanto o Acheminement. Ambos praticam a palavra não enquanto ela expressa ou significa, maneira moderna e redução do aristotelismo, tampouco a palavra na medida em que o ser nela se diz na co-filiação que abrigaria precisamente o Poema e de onde deverá se seguir a adequação: eles praticam "a palavra pela palavra". Légein lógou chárin, bastião da resistância sofística contra Aristóteles; ora, diz Heidegger, a propósito do poema de Stefan George,

 

a palavra pela palavra não se deixa encontrar em nenhum lugar onde o destino concede ao ente a fala que o nomeia e o institui, a fim de que ele seja e, sendo, brilhe e desabroche. A palavra pela palavra — um tesouro, na verdade... (p. 176).

 

A palavra, o dizer, não tem ser: "ela dá" (es gibi) e "ela é". "A palavra: o que dá. Dá o quê? Segundo a experiência poética e segundo a mais antiga tradição do pensamento, a palavra dá: o ser" (p. 178). Essa supremacia do lógos que faz com que ele ocupe o lugar do ser na medida em que ele se apaga ou se nega, face ao ente que corre o risco de se tornar o ser ao qual dá lugar, essa potência poética na qual Heidegger insiste, não estaria mais próxima de uma demiurgia discursiva à moda de Górgias ("o lógos é um grande soberano que com o corpo mais minúsculo e o mais imperceptível finaliza os atos mais divinos", Elogio de Helena, 8, 82b, 11D.K. II, 190) do que da mesmidade parmenideana? Bem entendido, podemos ao final, como logo de início, alegar a diferença de intenção, tanto mais que ela é muito precisamente — e é mais do que nunca de primeiríssima importância — diferença de linguagem: entre efeito e dispensa, discurso e fala. Mas para concluir sobre o caráter perpetuamente equívoco da própria estrutura, basta ler por inteiro o fragmento de Novalis intitulado "Monólogo", de onde parte e para onde volta Heidegger em sua última conferência, "O Caminho para a fala" (1959). Por inteiro ou quase, para contextualizar também como sofística a única frase que apoia aqui a meditação de Heidegger:

 

É no fundo uma coisa engraçada falar e escrever; a verdadeira conversação, o diálogo autêntico, é um puro jogo de palavras. Pura e simplesmente assombroso é o erro ridículo das pessoas que pensam falar pelas próprias coisas. Mas o próprio da linguagem, a saber, que ela só se ocupa simplesmente de si mesma, todos ignoram [Precisamente o que a fala tem de próprio, a saber, que ela só se preocupa com ela mesma, ninguém o sabe (trad. de Acheminement, p. 227 e 253)]. É por isso que a linguagem é um mistério tão mara - vilhoso e tão fecundo: é justamente quando alguém fala simplesmente por falar que realmente exprime as mais magníficas verdades. Mas que queira ao contrário falar de alguma coisa de preciso, eis logo a língua maliciosa que lhe faz dizer os piores absurdos, as patranhas mais grotescas. Também é daí que vem o ódio que tantas pessoas sérias têm da linguagem. Sua petulância e sua traquinice elas notam; mas o que elas não notam é que a tagarelice atabalhoada e seu desleixo tão desdenhoso são justamente o lado infinitamente sério da língua... (Oeuvres Completes, trad. Guerne, II, p. 86).

 

Assim sendo, talvez não fosse errado propor, para caracterizar ao mesmo tempo o último Heidegger e a sofística, o nome comum de "logologia" ousado por Novalis. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 70-72).

 

Diz mais Barbara Cassin:

 

Assim, a oposição do verdadeiro e do falso toma lugar no registro fenomenológico da alétheia como desvelamento. "'Ser-falso', pseúdesthai, quer dizer enganar, no sentido de encobrir: colocar diante de alguma coisa alguma outra coisa que se faça ver, e assim fazer passar a coisa encoberta pelo que ela não é" (p. 51 = 33).” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 228-229).

 

Ora, à diferença da acolhida estética, a acolhida noética é caracterizada como thigeîn kaì phánai (24) 4, "tocar e enunciar", “emitir”, como se o espírito afetado pudesse então expressar em som o contato que experimenta.

 

O grego é difícil e suscetível de várias construções: ésti tò mén '14-1hés e Pseúdos, tò mèn thigem kai pUnai aléthés ( ... ) tò d'agnoem M,' Ilângánein. Compararemos a construção de … e a de Trieot : "Eis o que é então o verdadeiro ou o falso: o verdadeiro é apreender e enunciar o que se apreende (...) ignorar é não apreender". (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 227).

 

Kerferd ensina:

 

Alguns aspectos da vida em Atenas, na segunda metade do século V a.C., poderiam sugerir que o que estava acontecendo era uma mudança bastante fundamental em direção a uma sociedade na qual o que as pessoas pensavam e diziam começava a ser mais importante do que os fatos reais [Osório diz: algo parecido com o moderno “o que importa é a versão, não os fatos”]. Na sua forma moderna extrema, isso leva à doutrina de que não há fatos, nem verdade, apenas ideologias e modelos conceituais; e a escolha entre eles é uma questão individual, talvez dependente das necessidades ou preferências pessoais, ou talvez influenciada pelo pensamento dos grupos sociais tratados como unidades, mas de forma alguma estabelecida por outros meios além desses. O que aconteceu no século V a.C. dificilmente chegou a isto. Mas o que emergiu, de fato, foi a compreensão de que a relação entre discurso e fato real está longe de ser simples [Osório diz: não existem fatos, mas apenas versões deles]. Embora seja provável que os pensadores do século V estivessem, todos, preparados para aceitar que há e deve haver sempre uma relação entre os dois, havia uma crescente compreensão de que o que está frequentemente envolvido não é simplesmente a apresentação do fato em palavras mas, antes, uma representação que envolve, no processo, considerável grau de reorganização. Esse despertar do que foi chamado de autoconsciência retórica é uma característica tanto da literatura contemporânea como da discussão teórica no século V. Foi esse alargamento do fosso entre retórica e realidade que levou Platão, no Górgias, a contrastar retórica e filosofia, e a condenar a prática da primeira; e, depois, no Fedro, a argumentar a favor de uma retórica reformada, baseada na dialética e na psicologia, como uma possível servidora da filosofia [Osório diz: as razões de Platão contra a retórica].

O poder da retórica não foi, é claro, uma descoberta da geração dos sofistas. Sua importância era já conhecida de Homero e provavelmente nenhum dos primeiros poetas subestimava a importância de sua própria atividade no uso das palavras. Mas a teoria da literatura e a arte da retórica foram, em grande parte, criação do período sofista. Nossa melhor informação se encontra nas duas obras existentes de Górgias, escritas em forma de declamações retóricas, mas que têm certamente propósitos mais sérios, o Elogio de Helena (DK 82B11) e o Palamedes (DK82B11a). O propósito do Helena é declarado: libertar Helena da culpa por ter feito o que fez ao deixar seu lar e seu marido para ir para Tróia com Páris; mostrar que os que a condenam estão falando falsamente e, ao indicar a verdade, pôr fim à ignorância deles (par. 2). O acento na verdade, aqui, é enfático, e mostra que não há, em Górgias, a intenção de negar a existência do fato. Com efeito, só é [136] possível engano em relação ao que é realmente verdade [Osório diz: Górgias e a verdade]. São consideradas, a seguir, quatro possíveis explicações para o comportamento de Helena: (1) que foi por decreto dos deuses e da Necessidade, (2) que ela foi levada à força, (3) que foi persuadida pelo poder do discurso (logos) e (4) que foi tudo obra do Amor. No primeiro caso, deus é uma força mais forte que o homem, seguindo-se, daí, que deus é que é o culpado, não o ser humano mais fraco. No segundo caso, deve-se ter pena da mulher em vez de condená-la, e é o bárbaro que a sequestrou que merece palavras de condenação, perda de direitos civis por lei (nomos), e punição de fato.

Algumas dificuldades, contudo, podem ser levantadas no terceiro caso, quando é o logos que persuade, e a resposta é desenvolvida, um tanto longamente, por Górgias. Como é que a persuasão livra de culpa a pessoa que foi persuadida a fazer o que quer que seja que tenha feito? A réplica de Górgias parece ser dupla. Em primeiro lugar (pars. 8-10), é dada ênfase ao enorme poder do logos. Isso se vê nas experiências emocionais, tanto as bem-vindas como as indesejáveis, produzidas tanto pela poesia como pela maestria da prosa. Mas há uma segunda maneira também pela qual o logos age sobre a alma humana (pars. 10-14). A maioria dos homens é incapaz de recordar o que de fato aconteceu, ou de investigar o presente, ou de adivinhar o futuro. De modo que, na maioria das questões, eles usam a Opinião (Doxa) como um conselheiro para suas almas. Essa opinião, contudo, não é confiável e pode fazer a pessoa tropeçar e cair, com consequências infelizes para si mesma. O logos é capaz de agir persuasivamente nessa opinião porque a opinião não é conhecimento e, por isso, é fácil de mudar. Isso se pode ver em três exemplos. Primeiro, o caso dos que discutem os corpos celestes, os meteorologoi. Estes substituem uma opinião por outra, removendo uma e formando outra em seu lugar, e fazem com que as coisas que não se vêem, e às quais falta credibilidade, se tornem aparentes aos olhos da opinião. O segundo é o caso em que logos está em peremptório debate com logos — como numa disputa em tribunais: aqui, um discurso, pela habilidade de sua composição, não pela verdade de suas afirmações, ao mesmo tempo delicia e persuade uma grande multidão. O terceiro caso é aquele em que um filósofo disputa com outro filósofo. Aqui, a rapidez do pensamento obviamente facilita alterar a credibilidade da opinião em questão[Osório diz: este talvez seja o motivo da rejeição platônica: domínio da multidão! Mas se todos estiverem preparados, a “ilusão” não será tão fácil! Mas aí o grande problema: Platão não queria a multidão esclarecida!].

O resultado é que o poder do logos em relação à condição da alma é comparável ao das drogas. Pois diferentes drogas têm diferentes efeitos no corpo: algumas curam doenças, e outras põem fim à vida. Assim também com logoi — alguns causam sofrimento, outros prazer e outros medo; alguns instilam confiança e coragem nos ouvintes, enquanto outros envenenam e seduzem a alma com uma espécie de persuasão perversa. A comparação da persuasão com as drogas sugere que Górgias deseja distinguir dois tipos de persuasão, uma boa e outra má [Osório diz: exatemente igual ao que Platão diz sobre a Retórica!]. Será, então, a segunda persuasão que operou no caso de Helena. Isto se ajusta bem com a aposição atribuída a Górgias no diálogo de Platão que leva o seu nome (449d-457c): retórica, em si mesma, é, para Górgias, simplesmente uma técnica. Como tal, pode ser usada para produzir tanto crença falsa como crença verdadeira, embora Górgias, e seus defensores no diálogo, mantenham todos que ela deve, de fato, ser usada moralmente e não para propósitos imorais. Mas há um problema particular em Helena. No início do Elogio, como vimos, Górgias declara que era sua intenção indicar a verdade (par. 2). Entretanto, ao longo da discussão de logos (nos pars. 8-14), ele fala do logos que persuade produzindo engano (apaté), e da persuasão que é bem-sucedida porque moldou, primeiro, um logos falso. Isso levou à sugestão de que, para Górgias, a única maneira pela qual a persuasão age na opinião é por engano [Osório diz: Górgias e o irracional?] [Osório diz: ao contrário! Górgias mostrou os dois lados, quando, se fosse seu desejo mostrar apenas o engano, teria omitido a opinião sobre ele!].

Este é um assunto que já foi extensamente discutido, mas que não foi ainda totalmente elucidado. É preciso, primeiro, ver a doutrina em relação com o que é dito na segunda e na terceira partes do tratado de Górgias Sobre a natureza (DK 82B3). Temos aí, na segunda parte, a asserção de que, mesmo se as coisas são, não podem ser conhecidas, pensadas ou apreendidas por seres humanos; e, na terceira parte, o argumento segundo o qual, mesmo que pudessem ser apreendidas, ainda assim não poderiam ser comunicadas a uma outra pessoa. Isso acontece porque o meio pelo qual comunicamos é o discurso ou logos, e esse logos não é, e jamais poderá ser, os objetos externamente subsistentes que realmente são. O que comunicamos ao nosso próximo nunca é "essas coisas reais", mas apenas um logos que é sempre outra coisa diferente das coisas em si mesmas. Nem é mesmo o discurso, diz Górgias, que revela a realidade externa: é o objeto externo que fornece informação sobre o logos.

Conclui-se, daí, que Górgias está introduzindo um fosso radical entre o logos e as coisas às quais ele se refere. Uma vez reconhecido esse fosso, podemos compreender muito facilmente o sentido em que todo logos envolve uma falsificação da coisa à qual se refere — ele jamais conseguirá, segundo Górgias, reproduzir, em si mesmo, por assim dizer, aquela realidade que está irreparavelmente fora dele [Osório diz: eis por que Górgias nos prendeu no irracional!]. Na medida em que afirma reproduzir fielmente a realidade, não passa de engano ou apatê. Todavia, essa é a afirmação que todo logos parece fazer. Portanto, todo logos é, nessa medida, Engano; e no caso da literatura, como na tragédia, por exemplo, tirou-se a interessante conclusão de que o homem que engana é melhor do que o homem que não consegue enganar (DK 82B23). Essa doutrina explica a afirmação no par. 11 do Helena, que se os homens possuíssem mesmo conhecimento, o logos não seria (visivelmente) similar (àquilo do qual eles possuem o conhecimento). No início do Elogio, o que parece que Górgias está dizendo é que para se chegar à verdade é necessário indicar a verdade ou a realidade mesma e não o logos, e isso só pode ser feito mediante a aplicação de algum tipo de processo de raciocínio ao lagos em questão (par. 2). [Osório diz: resposta a irracionalidade de Francisco Rodriguez Adrados?].

Um pouco mais de luz pode resultar da consideração do segundo dos dois discursos retóricos de Górgias, Defesa de Palamedes (DK 82b11a). De novo nos é dito (par. 35) que se fosse possível que a verdade sobre as coisas se fizesse pura e clara, por meio dos logoi, para aqueles que ouvem, o julgamento seria fácil, pois se seguiria diretamente das coisas que foram ditas. Mas não é esse o caso. O que é preciso é prestar atenção, não aos logoi, mas aos fatos reais. Antes, no discurso. Conhecimento do que é Verdadeiro é contraposto à Opinião (par. 24), e se diz que o logos por si mesmo é inconclusivo a menos que se aprenda também da própria Verdade mesma (par. 4). Finalmente (par. 33) Palamedes declara sua intenção de expor o que é verdadeiro e de evitar engano no processo.

Com base nessas indicações, é possível discernir um modelo conceitual comum subjacente ao argumento, tanto no Helena como no Palamedes. De um lado está o mundo real, rotulado como verdade ou aquilo que é verdadeiro. A cognição desse mundo real é conhecimento. Mas o estado cognitivo mais comum é opinião, não conhecimento, e o logos, que é mais poderoso que a opinião, age sobre a opinião. Ambos são falsos, em contraste com verdade e conhecimento. Mas é possível apelar dos enganos do logos e da opinião, para o conhecimento e a verdade. O efeito desse apelo, embora providencie conhecimento, não remove o incurável caráter falso do logos, visto que o logos não pode nunca ser a realidade que pretende expor. Todavia, dois tipos de logoi — um melhor, e um pior do que o outro [Osório diz: Resposta a “irracionalidade” de Adrados?].

A superioridade de um logos sobre outro não é acidental; depende da presença de características específicas. O estudo delas é o estudo da arte da retórica, e seu bom desenvolvimento é a fonte do poder do logos sobre as almas, que se intitula Psychagogia, ou a conquista das almas dos homens [Osório diz: dicionário], no Fedro (261a) de Platão. Logo depois, no Fedro (267a), nos é dito que o poder do logos faz as coisas pequenas parecerem grandes, e as grandes parecerem pequenas; que pode apresentar as coisas de data recente numa forma antiga, ou contar coisas antigas de maneira nova [Osório diz: é o que faz a Inglaterra, segundo...]. Ambos, Tísias e Górgias, tinham argumentado que as coisas que são prováveis merecem mais respeito do que as coisas que são verdade, e é essa capacidade de promover probabilidades que é parte do poder que se encontra no logos. Muito do que é dito aqui, por Platão, é declarado também por Isócrates, no seu Panegírico 7-9; e acrescenta ele que é importante, na oratória, ser capaz de fazer uso adequado dos eventos do passado, e no tempo adequado ou Kairos. Um bom número de referências em outras obras acentua a importância do kairos, ou a escolha do tempo adequado, na retórica; e Dionísio de Halicarnasso não só nos diz que Górgias foi o primeiro a escrever sobre o kairos, mas acrescenta a declaração, infelizmente não incluída no DK, que kairos não é algo a ser alcançado pelo conhecimento — é mais próprio da opinião. Uma referência em Diógenes Laércio (IX, 52) deixa claro que Protágoras também tinha escrito a respeito do kairos. Quando juntamos as doutrinas do Provável ou Plausível e do momento Certo no Tempo e as relacionamos com Opinião (o que os homens pensam ou crêem), fica claro que já temos os elementos de uma teoria da retórica que pode ser comparada com as modernas descrições da técnica da propaganda. De fato, talvez se compreenda melhor a Retórica, que é agora um termo fora de moda, se a descrevermos como cobrindo, na Antiguidade, toda a arte de relações públicas e apresentação de imagens. Foi a teoria dessa arte que os sofistas inauguraram.” (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 135-142).

 

Diz Martin Burckherdt:

 

Porém, isso deve significar que a verdade não é criada, mas recorrente e eterna”. (Pequena história das grandes ideias, Martin Burckhardt, tradução de Petê Rissatti, Tinta Negra: 2011, p. 41).

 

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