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Artistas e boquinha

Artistas e perda de “boquinha”!

(Discussão e fundamento: necessidade)

 

Dia desses compartilhei um post cujo título da matéria dizia: “Artistas e intelectuais lançam manifesto contra 'desmontes de Temer'” (a fonte está indicada abaixo).

Um amigo meu fez um comentário no meu compartilhamento dizendo, simplesmente, algo do tipo: “Reclamam por que [sic] perderam a boquinha”!

Na foto que ilustra o artigo aparecem as fisionomias de: Chico Buarque de Holanda, Maria Rita Kehl, Wagner Moura e Laerte.

Chico não precisaria de explicação sobre quem ele é, não fosse a maldade da qual vem sendo vítima, mas vamos lá: cantor e compositor das mais belas canções brasileiras de todos os tempos; poeta; teatrólogo; escritor premiado; cachê elevado e shows lotados.

Maria Rita Kehl, psicanalista, jornalista, ensaísta, poeta (poetisa, soa tão ‘musical’ e delicado), cronista e crítica literária. Escritora premiada.

Wagner Moura, ator requisitadíssimo e no auge da carreira e da fama, com papéis desempenhados no Brasil e no exterior.

Laerte (Coutinho), um(a) do(a)s cartunistas mais respeitado(a)s em sua área.

Ou seja, artistas com amplas possibilidades de viverem de seus dignos “salários”!

Então, por que falar que os acima nominados defendem suas posições políticas por conta de “boquinhas” (mesada dada a míseros parasitas que defendem pontos de vista políticos por necessidade) que necessitem para sobreviver?

No mínimo uma tremenda injustiça e, mais, uma baita inveja!

Injustiça pelo acima dito (não precisam de “boquinhas” para sobreviverem, e muito bem, obrigado).

Inveja por conta de: são bem melhores que seus detratores, especialmente aqueles que cunharam tal termo, nascido nos últimos meses de ódio que campeia no Brasil, onde pessoas sem o menor talento tentam enxovalhar artistas de primeira grandeza, como são os nominados.

Pedi ao meu amigo: não repita esse mantra idiota!

Depois acrescentei:

A vida sem arte seria uma merda! Arte é cultura, mas poucos sabem o que é isso, daí falarem tamanha besteira!

O museu do Vaticano, do Louvre e tantos outros são formados por obras de "artistas" sustentados por quem sabia o quanto a arte é importante para a vida do ser humano!

Os botos (que participam do folclore da cidade) lá em Maraã, aos quais você (no caso o meu amigo) é tão ligado e gosta tanto, vivem sem o incentivo necessário a que alguns de má-fé chamariam de "boquinha"?

Ao que sei, sem a ajuda do Município, os botos (tucuxi e vermelho) sequer brincam e disputam! Aliás, recentemente, os bois não brincaram porque a “prefeitura” não fez a sua parte!

Chico Buarque, por exemplo, é um patrimônio do Brasil e um homem que deve orgulhar a todos nós brasileiros e seres humanos, daí ser um homem universal!

As posições políticas do Chico são ou podem ou devem ser diferentes de sua arte!

O que a música “O meu amor”, por exemplo, tem a ver com o pensamento político do Chico?

Vejam esta estrofe:

O meu amor tem um jeito manso que é só seu

E que me deixa louca quando me beija a boca

A minha pele toda fica arrepiada

E me beija com calma e fundo

Até minh'alma se sentir beijada”.

Tem algo mais belo? Onde há política partidária na música?

Quem fez melhor? Até agora ninguém!

Vejam quem são os detratores de Chico, por exemplo!

Nem vou citar nomes para não “desabonitar” os daqueles acima citados.

Se eu tivesse condições financeiras, viveria cercado por artistas, como viveram muitos homens de bom gosto! Mas...

Espero que nós, de Maraã, aprendamos a valorizar o belo, pois ele é o remédio para a alma!

Uma bela música, um belo filme faz as pessoas viajarem por horas, esquecendo a vida e seus problemas!

Por isso, te peço: pense nisso!

Ele insistiu, fixando-se apenas no fato de eu ter chamado o “mantra” de idiota (a citação, não ele, por certo) embora sem ponderar minhas considerações acima e eu lhe afirmei e perguntei:

O mantra não é seu! Ou é?”.

Continuei:

Você acha mesmo que é perda de boquinha que leva tais artistas a protestarem?

Repeti: você se fixou apenas no primeiro parágrafo da minha mensagem (quando disse que o mantra é idiota)!

Como sei que meu amigo também é artista, perguntei-lhe:

Sendo artista também, você vive de boquinha?

A coisa fica complicada de discutir – sempre em busca de aprendermos, já que nada sabemos –, sem que exista fundamentação!

Qual sua fundamentação para falar que os artistas estão preocupados apenas com suas boquinhas?

Não houve resposta!

Disse-lhe mais:

O último parágrafo do meu escrito foi um pedido, não uma ordem (até por gostar disso e não ter nenhuma autoridade sobre o amigo) para pararmos a nossa conversa!

O amigo citou dois nomes de outros artistas e eu lhe respondi:

No meio do trigo tem o joio!

Queixou-se de que projetos dele não tinham sido aproveitados, ao que retruquei:

Quem sou eu e você? Muito pouco interessantes para que alguém ouça nossos projetos, mesmo eles sendo, talvez, os melhores! Eu mesmo “banco” um deles (concurso de poesia) com recursos próprios!

Os quatro artistas na foto que abriram este post são tão excepcionais que, certamente, vivem sem ajuda de governos!

Mas todos os governos ajudam alguém, geralmente aqueles que o apoiam!

Lembre-se que são os artistas os aglutinadores de público para que os políticos façam seus comícios!

Se você tivesse fundamentado sua postagem inicial citando o tal Luan Santana, como faz agora, não estaríamos conversando tanto sobre isso! Mas, espero que a conversa tenha sido, de algum modo, proveitosa para você, pois o foi para mim.

Por fim, não sou dono da verdade, caso me sentisse tal, sequer conversava com amigos como você, pois quem faz isso corre um sério risco de mostrar a todos aquilo que é só deles (e meu também), que não sabemos de nada!

Mas, o fundamental, é preciso fundamentar nossos argumentos, até para que nossos interlocutores saibam do que estamos falando.

Aliás, penso que é por falta de fundamento, que a internet, ou alguns, o que não é o meu caso, passaram a detestar “textões”.

Na verdade não existem “textões”, existe falta de argumento, pois é impossível explicar a obra de Cervantes em três palavras.

Inté,

Osório Barbosa

Fonte: https://www.brasildefato.com.br/2017/04/14/artistas-e-intelectuais-lancam-manifesto-contra-desmontes-de-temer/index.html

Homem e mulher das cavernas

 

Recado machista!

 

O não é como um arame, pode virar um anzol.

 

Sempre, especialmente na época do carnaval, rola aquele meme: "Não, é não"!

 

Também se lê: "Mano respeite as minas"!

 

Etc. e tal.

 

Diz o sábio popular que "o não você já tem"!

 

Costumo dizer que o não de algumas minas é como um arame, pode virar um anzol.

 

Anzol tanto captura para o bem como para o mal, afinal o peixe morre pela boca.

 

Mas, a dica de um cara ex-feio, pobre e chato, para as minas é a seguinte:

 

- Mina não responda, se não estiver a fim, nem sim, nem NÃO!

 

A postura para afastar o inoportuno é a INDIFERENÇA!

 

É que existem uns "não" que são verdadeiros "sim"!

 

A mina diz não, mas suspira fundo!

 

A mina diz não, mas revira os olhos!

 

A mina diz não, mas sorri!

 

A mina diz não e sai olhando para traz sobre os ombros!

 

O inoportuno faz leitura corporal também e entende, então, que aquele "não" está cheio de "não convicção", que é dúbio!

 

Sendo assim, ele investe!

 

E nessa investida, aqueles nãose tornam sim, pois deixaram a porta aberta para um convencimento que acaba por ocorrer.

 

Dobrar um não é possível, tenho visto, já uma indiferença, jamais!

 

Contra a indiferença não tem argumentos!

 

A indiferença deixa o inoportuno sem saber o que fazer, sem saber o que dizer, "perdido de pai e mãe"!

 

Pior, deixa o inoportuno sem saber onde enfiar a cara!

 

É a pior vergonha que um inoportuno pode passar!

 

Com a indiferença, o inoportuno vira um "homem lixo"!

 

Portanto, fica a dica!

 

Inté,

 

Osório Barbosa

 

 

P.S.: o texto arriba se refere ao inoportuno que usa apenas palavras, violência é sempre crime.

 

Fonte da imagem: https://br.depositphotos.com.

 

 

Cosmo Alfarrábio

 

Uma investigação pela saudade!

(procurando um desconhecido: Cosmo!)

 

Meu conhecido Isildo consultava-me sobre sua possível ida à Manaus para conhecer a cidade. Disse-me que gostaria de conhecer suas livrarias e sebos.

 

Respondi-lhe que Manaus tem poucas livrarias e menos sebos ainda! Que, ao que me lembrava, tem dois sebos, um deles, o maior, situado na av. Getúlio Vargas, de nome Alfarrábio.

 

Isildo pulou na cadeira e, apontando para o outro lado da rua, onde localiza-se uma lanchonete, comentou:

 

- Você lembra do Alfarrábio que frequentava o BH?

 

- Quem?!

 

- Um senhor de barbas longas que caminhava com uma bengala e sempre estava ali, apontou novamente.

 

Bingo!

 

O processador entrou em funcionamento e lembrei-me da figura!

 

Um homem baixinho e de cabelos e barbas longas e bigode curto, pois, este, sempre estava aparado. Além de ser mais escuro que o restante de seus pelos.

 

Chamava-me a atenção o fato de ele parecer com a figura de Antônio Conselheiro, o homem de Canudos.

 

Comecei a vê-lo na região da rua Augusta há cerca de quinze anos, mas não o vejo mais na área há cerca de uns oito anos!

 

Nos perguntamos: onde ele está? O que aconteceu com ele?

 

Atravessei a rua e fui até uma banca que fica ao lado da mesa em que o dito homem sempre ocupava e perguntei ao proprietário, o Reinaldo, sobre a dita figura, que apenas descrevi, pois até então não sabia o seu nome. Foi, então, que o Reinaldo me disse que ele se chama Cosmo, mas que também não sabia mais nada sobre ele, apenas que tinha sumido da região.

 

Com esses poucos dados, dois, três dias depois, fui à internet, google, e busquei por “Cosmo Rua Augusta” e tchan, tchan, tchan, aparece-me na tela do celular o “Cosmo em pessoa”!

 

Feliz, no dia seguinte mostrei a foto para o Isildo, Reinaldo e outros que também conhecem o Cosmo.

 

Finalmente tínhamos algo sobre a ilustre figura que enfeitava a esquina das ruas Augusta com Luís Coelho.

 

Alguns dias depois, Reinaldo me chamou e me apresentou a um senhor de nome Canuto, amigo do Cosmo da época em que este trabalhava na rua Augusta.

 

O simpático Canuto disse-me que Cosmo tinha uma loja, de número 16, na Galeria “Augusta Shops”, na própria rua Augusta, e que agora estava internado numa casa para idosos no bairro do Pari.

 

Essas novas informações trouxeram-me à mente o fato de Cosmo, depois de “abandonar” a galeria, ter passado a vender seus livros na esquina das ruas Augusta com Antônio Carlos, e lá cheguei a comprar alguns livros com ele, que sempre estava muito sério. Nenhum mísero sorriso, como a não deixar brecha para o pedido de desconto.

 

No sítio onde encontrei a foto do Cosmo (http://zadoque.com/2011/Prefeitura-contra-as-bancas-01.php), a chamada da matéria na qual ele é entrevistado diz: “Prefeitura contra as bancas de sebos e de revistas usadas”. Então passei a imaginar uma das possíveis causas para a ausências de Cosmo do seu cantinho favorito no final das tardes para seu happy hour!

 

Às segundas-feiras jogo futebol e fico os outros dias da semana mancando, pois aos cinquenta e quatro anos as coisas já não estão tão azeitadas como a gente queria e, foi ao me ver mancando, que Reginaldo, na presença de Canuto, comentou:

 

- Você está igual ao Cosmo, baixinho e mancando!

 

Rimos.

 

- Mas, no meu caso, mancar vem de eu ser um craque do e no futebol.

 

- Melhor assim, disse Reginaldo, pois no caso dele é gota.

 

Com mais uma informação sobre o prontuário de Cosmo, fui conhecer o Pari à procura da tal casa para idosos.

 

Antes de ir ao Pari, perguntei a um conhecido, o chileno Ludwig, que vende periscópio na Rua Augusta, se ele conhecia o Cosmo. Ele disse que sim e que tinha estado com ele fazia poucos dias!

 

Fiquei feliz e combinamos uma visita ao Cosmo, já que o meu informante disse que sabia chegar ao local, mas não sabia dizer o nome da rua, pois não sabia, acrescentando que também era difícil chegar lá.

 

Marcamos para uma manhã de segunda-feira, mas, por um motivo qualquer, não fomos. Além do mais, nossos horários não combinam. Estou na região da rua Augusta durante o dia e o Ludwig à noite.

 

Pedi ajuda ao senhor Nardinho, que tem uma oficina que conserta radiadores no Pari, onde já levei um de meus carros. Ele me disse que não conhecia nenhum abrigo na área, mas ficou com meu telefone e disse que se soubesse de algo me avisaria. Não avisou.

 

No bar Monarca, em 06.05.14, eu e Isildo fomos acompanhados por um parceiro, o professor Jair, que estava, por sua vez, acompanhado de um amigo. Na hora que esse amigou foi se despedir de todos, disse, não lembro a razão, que morava no Pari.

 

Perguntei, imediatamente, se ele conhecia alguma casa de acolhimento de idosos no bairro. Ele disse que tinham várias! Acrescentou que um deles era mantido pelo poder público. Ele, então, me disse que sabia onde tinha um desses abrigos:

 

- Na praça Cantuta, tem o IFESP e, ao lado dele, tem um abrigo.

 

- Como faço para chegar lá?

 

- Do que você vai?

 

- De metrô.

 

- Desça na estação Armênia e pegue a avenida Cruzeiro do Sul, que fica a esquerda de quem desce da estação e vá em frente. No final dela está a praça. É onde se reúnem os bolivianos para venderem coisas da sua terra e conversarem.

 

Agradeci e ele se foi.

 

Num sábado, 17.05.14, depois de ter procurado sem sucesso na internet os abrigos públicos para idosos no Pari e não ter conseguido, munido da fotografia do Cosmo baixada da internet, me aventurei na empreitada investigativa.

 

Desci na estação Armênia do metrô. Segui, a pé, pela avenida Cruzeiro do Sul, que é a principal. Andei bastante, pois a praça fica bem distante da estação. Cheguei ao IFESP e uma moça foi até o portão e, gentilmente, tentou me ajudar. Disse-me que eu tinha passado em frente a um abrigo, que ficava na mesma calçada.

 

Agradeci e voltei.

 

Dois homens, conversavam no portão. Pelo teor da conversa percebi que eram moradores de rua. Um deles dizia que estava querendo voltar para aquele abrigo, já que aquele em que ele estava dormindo era muito ruim, “tem um cara lá que é muito chato!”, disse.

 

Esperei, sentido o cheiro forte de álcool que eles exalavam, que parassem por um instante a conversa entre eles para que eu pudesse perguntar como fazia para me informar sobre um possível morador do local. Aberta a brecha, perguntei e um deles indicou-me a campainha. Toquei e logo em seguida veio um homem de cerca de 30 anos me atender.

 

Um dos homens se antecipou e perguntou se podia passar a noite ali. O rapaz disse que ele voltasse depois das 19 horas.

 

Perguntei, então, mostrando a foto, se Cosmo morava ali. O rapaz respondeu negativamente. Indaguei-lhe se existiam outros abrigos na região. Ele disse que sim. Na mesma calçada, depois da praça tinham mais dois abrigos. Rumei para lá. Parei em um boteco e perguntei a um garçom, mostrando-lhe a foto, se ele conhecia aquele homem. Ele respondeu que não, mas que eu podia ser informado no abrigo ao qual eu tinha visitado a pouco. Agradeci e caminhei.

 

Já estava escuro. A noite chegou mais cedo!

 

No outro abrigo, que fica na mesma rua, só que bem distante do primeiro, fui atendido por uma jovem senhora, que me disse não conhecer o homem da foto, portanto, que Cosmo não estava lá. Um jovem, cerca de 18 anos, morador do abrigo e engraxate, vi pela caixa pendurada em seu ombro, aproximou-se de nós e disse-nos que já tinha visto aquela pessoa nas redondezas, só não lembrava onde. Perguntei onde era o terceiro abrigo. “O senhor sai e vira a esquerda, depois esquerda de novo. Fica atrás deste aqui, só que não tem passagem de um para o outro”. Agradeci e fui para lá.

 

Pessoas dormiam sobre colchões e catres jogados pelas calçadas. Fumavam e bebiam. Alguns acendiam seus cachimbos para fumar “crack”. Fiquei com medo, mas não fui incomodado, sequer por um pedido do que quer que seja.

 

No abrigo fui atendido por um casal de funcionários que ao olharem a foto disseram-me que ali não morava tal pessoa. Antes, contudo, quiseram saber qual o motivo da minha busca por aquela pessoa, especialmente quando eu disse que não era parente do Cosmo.

 

Respondi rapidamente e saí.

 

A escuridão da rua era quase total. Fiz o percurso inverso: direita e direita e cheguei novamente à avenida Cruzeiro do Sul, mais iluminada, porém deserta! Também não fui incomodado no meu regresso, apesar das muitas pessoas que eu supus serem moradoras de rua.

 

Voltei ao segundo abrigo que visitara.

 

Disse ao jovem engraxate que o recompensaria se ele localizasse o Cosme.

 

... continua em: https://www.youtube.com/watch?v=rPo_CVn5zZA&t=135s.

 

Obs.: ainda devo o passeio ao Cosmo, o qual, após meus guere-gueres de saúde, espero pagar este ano, com a ajudado do Ludwig Henriquez Ravest!

 

Inté,

 

Osório Barbosa

 

P.S.: o escrito acima foi publicado, inicialmente, em 16 de janeiro de 2017, recentemente o amigo Sebastian Moraes me disse que o Cosmo faleceu. Infelizmente não paguei minha promessa para com ele!

 

Mãe negra meu guri

Olhando o guri Chico Buarque!

 

Quem tem por ofício o de escrever, especialmente o de poetar, sabe como as Musas são, muitas vezes, algozes de seus servos!

 

Luís Fernando Veríssimo já escreveu sobre aqueles dias em que o escritor olha para o papel, o papel olha para o escritor e este tem que, digamos, tirar leite de pedra, pois a inspiração está de mal humor, portanto, para pouca ou nenhuma conversa.

 

Porém, pelo conhecimento que tenho, foi Paulo César Pinheiro, poetando em “O poder da criação” quem melhor explicou o processo criacional do escritor ao desvelar:

 

“Não, ninguém faz samba só porque prefere

Força nenhuma no mundo interfere

Sobre o poder da criação

Não, não precisa se estar nem feliz nem aflito

Nem se refugiar em lugar mais bonito

Em busca da inspiração

 

Não, ela é uma luz que chega de repente

Com a rapidez de uma estrela cadente

E acende a mente e o coração

É, faz pensar

Que existe uma força maior que nos guia

Que está no ar

Vem no meio da noite ou no claro do dia

Chega a nos angustiar

E o poeta se deixa levar por essa magia.”

 

Tendo essas lições como Norte, me perguntei: será que Chico sabia, antecipadamente, tudo o que disse na letra da música “O meu guri”, especificamente?

 

Me veio tal pergunta enquanto chorava ouvindo a música na voz inconfundível, pela doçura cortante, de Elza Soares.

 

Mas quero mostrar-lhes algumas coisas que tirei, nessa interpretação, da memorável letra musical, antes esclarecendo que, embora todos saibamos, “depois de publicado o texto não mais pertence ao seu autor” nas hermenêuticas que sobre ele venham a fazer seus leitores.

 

Inicio com o papel da mãe, e Chico, mais uma vez, se coloca como homem/poeta algum jamais conseguiu fazê-lo no papel “siamês de um só coração” da mulher!

 

Assim é que ele, no caso ela, a mãe, louva o filho independentemente do que quer que ele tenha feito, faça ou venha a fazer!

 

Amor de mãe é tão amor que a cegueira chega a grau tão elevado que a cega para a verdade, seja ela qual for.

 

Mas vamos à letra parida em 1981:

 

O meu guri.

 

O pronome possessivo já informa ao (à) leitor@/ouvinte sobre quem a “narradorA”, em primeira pessoa, irá falar.

 

Não é sobre o filho desta, daquela ou de qualquer outra, mas sobre o filho dela (o “meu” guri). Portanto, não esperemos dessa mãe a tão difícil e quimérica imparcialidade, conceito tão maleável como os são todos os acontecimentos da vida, pois eles estão sujeitos “ao tempo, ao local e às circunstâncias”.

 

A vida é feita no e pelo seu fluir.

 

Então, não sejamos cruéis a ponto de exigir, sempre dos outros, a imparcialidade que não temos quando julgamos o sangue do nosso sangue.

 

Concedamos, sejamos benevolentes.

 

“Quando, seu moço, nasceu meu rebento

Não era o momento dele rebentar.”

 

Era prematuro o rebento?

 

A mãe não estava ainda preparada para a maternidade? Era muito jovem ou a instabilidade econômica, em especial, a impedia de partejar como planejava?

 

“Já foi nascendo com cara de fome.”

 

Cara de fome já indica as condições sociais da mãe. Seria ela aquele ser humano que chamamos de pobre, vindo daí decorrências nefastas que, de outro modo e condição, poderiam suprir ou minorar muitas das dores futuras.

 

“E eu não tinha nem nome pra lhe dar.”

 

É peculiar entre pobres e iletrados não escolherem com antecedência os nomes dos seus filhos. Inúmeras vezes se socorrem dos padres para por-lhes nomes, daí algumas dessas famílias serem compostas por Heráclitos, Péricles, Horácios e outros gregos ou latinos famosos.

 

Mas, também, pelo “ainda não tinha”, a significar que, pelo menos, esperançava um dia ter, podemos voltar à questão do guri ser prematuro! Será?

 

“Como fui levando, não sei lhe explicar

Fui assim levando ele a me levar

E na sua meninice ele um dia me disse

Que chegava lá

Olha aí

Olha aí

Olha aí, ai o meu guri, olha aí

Olha aí, é o meu guri.”

 

Sim! A arte de viver dos pobres é inexplicável.

 

Como uma família consegue sobreviver ganhando um salário-mínimo? As vezes com menos de um salário-mínimo? E outras tantas sem salário algum?

 

E em 1981, “tempo da maldade” a humana bolsa-família “nem tinha nascido”!

 

Mas o guri já tinha sonhos, como sonham todos os meninos, pois “todo menino é um rei”, como disse outro poeta.

 

Que sonhos eram esses? Quais os motivos que o faziam sonhar? Estudar? Trabalhar? Ter um “tênis conga” como tinham os guris ricos da televisão?

 

“E ele chega

Chega suado e veloz do batente.”

 

Houve um pequeno salto e já vemos o guri no batente! Já trabalhando e, como todo trabalhador, chegando suado em sua casa, casebre ou barraco.

 

A velocidade seria para o banho reconfortante a limpar o suor vindo da labuta?

 

Que mãe não veria, ou queria ver assim?

 

“E traz sempre um presente pra me encabular.”

 

É um filho carinhoso, cativante, embora, para as mães, muitos filhos pensem que disso elas não precisam e com eles elas concordam!

 

“Não precisava se importar”, dizem com extrema sinceridade.

 

Os presentes entre os pobres é fator de encabulamento sim! Talvez pela falta de hábito em receber mimos!

 

“Tanta corrente de ouro, seu moço

Que haja pescoço pra enfiar.”

 

Ouro! Mesmo o pobre sabe que este metal custa caro.

 

Os presentes caros são mais encabuladores ainda.

 

“Não! É muito caro, eu não mereço”, é uma das frases corriqueiras no mundo dos miseráveis.

 

“Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro

Chave, caderneta, terço e patuá

Um lenço e uma penca de documentos

Pra finalmente eu me identificar, olha aí

Olha aí, ai o meu guri, olha aí

Olha aí, é o meu guri

E ele chega.”

 

“Terço e patuá” é bem a cara do brasileiro em seu sincretismo religioso.

 

Aqui comprovamos que a mãe era, além de pobre, analfabeta, pois com a “penca de documentos” ela, finalmente, irá se identificar!

 

Podemos até imaginar, diante do preconceito racial que ainda assola o Brasil, que essa mãe era negra também, e, na visão da repressão abusiva estatal, sendo os negros “todos iguais”, “sempre suspeitos”, essa mãe parece não se importar com as fotos apostas nos documentos, pois, se ditos documentos, para ela tinham importância, na visão repressora eles não fariam a mínima diferença, com eles ou sem eles ela já é culpada. Será?

 

“Chega no morro com o carregamento

Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador.”

 

Esses objetos são adquiridos com o fruto do suor do rosto do seu filho, claro, pois ele os trazia quando voltava do batente.

 

“Rezo até ele chegar cá no alto.”

 

Para as mães não basta serem boas, elas buscam sempre ajudas a fim de serem melhores ainda para com as suas proles, invocando a tudo e a todos para despejarem suas proteções extras sobre os seus rebentos.

 

“Essa onda de assaltos tá um horror.”

 

Pois não é?!

 

Imaginem se seu precioso filho tem o produto do seu trabalho levado em um assalto?!

 

Os presentes, o carregamento?

 

O prejuízo seria irreparável!

 

Tanto tempo de trabalho e tudo ir embora em um segundo!

 

Então, melhor rezar para que isso não aconteça mesmo.

 

“Eu consolo ele, ele me consola

Boto ele no colo pra ele me ninar.”

 

Os filhos não crescem jamais!

 

Mas esse filho vai além, pois consegue consolar quem o consola!

 

É meloso, é dengoso, pois ainda se deixa ninar.

 

Como é bom o colo de uma mãe!

 

“De repente acordo, olho pro lado

E o danado já foi trabalhar, olha aí

Olha aí, ai o meu guri, olha aí

Olha aí, é o meu guri

E ele chega.”

 

Além de bom filho, é trabalhador e responsável!

 

Consegue levantar-se cedo, antes da mãe, quando a regra é o contrário e, é tão delicado que sai sem sequer acordá-la, e olhem que as mães têm sono levíssimo quando se trata de suas crias!

 

“Chega estampado, manchete, retrato

Com venda nos olhos, legenda e as iniciais

Eu não entendo essa gente, seu moço

Fazendo alvoroço demais

O guri no mato, acho que rindo

Acho que lindo de papo pro ar

Desde o começo, eu não disse, seu moço

Ele disse que chegava lá

Olha aí, olha aí

Olha aí, ai o meu guri, olha aí

Olha aí, é o meu guri.”

 

A foto do guri no jornal!

 

O que pode isso significar para a mãe?

 

O cumprimento da promessa de chegar lá?

 

O desespero a cegou para a realidade?

 

A dor a transtornou de tal modo que ela não consegue acreditar em seus próprios olhos?

 

Mas ela acha que o filho rindo” acha que “tá lindo de papo pro ar.”

 

Como somente os bacanas ficam rindo de “papo pro ar”, e isso está fazendo o filho dela parece ser um bom sinal, porém temos o “mato”!

 

Como explicar?

 

Creio que não há explicação para o amor incondicional de uma mãe pelos filhos, independentemente do que eles sejam, do que eles façam!

 

Embora digamos que elas erram, quando defendem os filhos que agem como o guri, a pergunta que fica é: que mãe não erra em relação aos filhos e que filho não erra e, o fundamental, que filho não veio de uma mãe?

 

Até “Gesù Bambino”, com todo o poder de seu pai, precisou de uma mãe para vir ao mundo, e era ela quem estava ao seu lado quando ele se foi e, me digo: se ela tivesse o poder que dizem ter o seu pai, seu filho jamais teria sido coroado com espinhos e sido pregado em uma cruz!

 

Mas, em 1981, Chico ainda não era avô, mas vendo, hoje, seu amor pelos netos, creio que ele chega a ser maior que a sua personagem mãe do guri, pois ama incondicionalmente as suas filhas e os seus netos e, então, pode errar ou acertar em dobro, se comparado com a infeliz mãe, tão retrato de todas as mães no quesito amor aos filhos.

 

Inté,

 

Osório Barbosa

 

Fonte da imagem: www.recantodasletras.com.br

 

Sugestões de leituras que podem torná-lo um homem.

 

Caro amigo leitor e companheiro de jornada de e na vida,

 

antigamente eu acreditei que podia mudar o mundo, ou melhor, contribuir para que ele melhorasse em alguns aspectos, mas, com a idade, vejo esse meu projeto cada vez mais distante.

 

Cada vez mais me convenço que cada homem é uma ilha, ao contrário do que dizem muitos, pois cada um de nós tem milhões de pensar sobre um mesmo assunto, tudo a depender da hora e do local!

 

Hoje, acredito, devemos nos dar por satisfeitos se obtivermos um mínimo de consenso sobre algo. Consenso que não deve ir além de uns 10% (dez por cento), no casamento, por exemplo, se chegarmos a esse nível ele já pode ser considerado um sucesso.

 

Pois bem, isso me levou, durante alguns anos a saudar meus novos colegas que chegavam ao Ministério Público Federal com o meu texto abaixo e com os textos que o acompanham!

 

Leiam e comprovem que, um dia, eu também fui um crente, pois acreditava no homem coletivamente, hoje duvido até do homem individualmente, capaz, pela somatória, de formar uma sociedade em que o próprio homem seja capaz de viver melhor!

 

Espero, estar errado, mas, enquanto não me convenço do contrário, compartilho com vocês algo de que agora, não pelos textos, mas pelo resultado, quase chego a ter vergonha.

 

Inté,

 

Osório Barbosa.

 

Eis:

 

“Prezado(a) colega, especialmente os recém chegados (exemplo: E‑PRAM, P‑PRMT, José, Antonio, estes últimos da PR‑RR e todos os demais),

 

Um dia (que não me lembro mais qual foi) alguém (que também ignoro) me disse algo, que, no momento, não me pareceu importante, ou melhor, me pareceu pouco edificador.

 

Disse‑me o mestre (hoje o reconheço assim):

 

‑ Existe quatro obras que não podem deixar de ser lida por nenhum ser humano.

 

Sem que eu perguntasse quais eram, ele concluiu:

 

‑ São elas: os DEZ MANDAMENTOS, O SERMÃO DA MONTANHA, O MANIFESTO COMUNISTA e a DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM.

 

Como disse, a princípio, não dei muita importância.

 

Passaram‑se os anos e li a bibliografia indicada. Hoje, não só concordo integramente com o que disse meu interlocutor, como acrescento à sua indicação, três artigos que os tenho por fundamentais para entender a aplicação daqueles ensinamentos. Indico‑os:

 

‑ "Manuscrito de lkonnikov" ‑ Vassili Grossman;

 

‑ Reflexões desabusadas sobre o abuso do poder político ‑ Fábio Konder Comparato;

 

‑ O estado constitucional de direito hoje: o modelo e a sua discrepância com a realidade - Luigi Ferrajoli.

 

Os dois primeiros artigos me foram apresentados por dois colegas procuradores da República, Sady d’Assumpção Torres Filho e Sergio Gardenghi Suiama, respectivamente, aos quais serei eternamente grato.

 

O outro “garimpei’ na internet.

 

Leiam e depois me digam.

 

Abraços,

 

Osório Barbosa.”

 

Os artigos estão a seguir, os demais textos indicados são facilmente localizados na internet:

 

"Manuscrito de lkonnikov"

Vassili Grossman

 

"La mayoría de los seres que habitan la tierra no tienen como objetivo definir el 'bien'. ¿En qué consiste el bien? ¿El bien para quién? ¿El bien de quién? ¿Existe un bien en general, que se aplique a todos los seres, a todos los pueblos y en todas las circunstancias? ¿O tal vez tú propio bien se base en el mal de otro, el bien de mi pueblo en el mal de tu pueblo? ¿El bien es eterno e inmutable, o a lo mejor el bien de ayer es hoy un vicio y el mal de ayer es hoy el bien?

 

"El Juicio final une, los filósofos y los teólogos ya no son los únicos en plantearse el problema del mal, éste se le plantea a todos los hombres, ya sean cultos o analfabetos.

 

" ¿Han progresado los hombres en la imagen que a través de los milenios se hicieron del bien? ¿Es una noción común a todos los hombres y por lo tanto 'no existe diferencia -entre el Judío y el Griego', tal como decía el apóstol? ¿O tal vez sea una noción más amplia, común también a los animales, a los árboles, a los líquenes, de una amplitud como la que se le otorga a la noción de bien en Buda y sus discípulos? De Buda, quien para incluir el mundo en el amor y el bien tuvo finalmente que negarlo.

 

"Lo entiendo: la sucesión, en el curso de los rnilenios, de los diferentes sistemas morales y filosóficos de quienes fueron los guías de la humanidad, condujo a una limitación del concepto de bien.

 

"Las ideas cristianas, a las que cinco siglos separan del budismo, reducen el mundo viviente al que se aplica las nociones de bien y de mal: ya no se trata del mundo viviente en su totalidad sino sólo el de los hombres.

 

"Al bien de todos los hombres de los primeros cristianos le ha sucedido el bien únicamente para los cristianos, y lo mismo ocurre con el bien de los musulmanes.

 

"Transcunieron siglos y el bien de los cristianos se dividió en el bien de los católicos, en el de los protestantes y en el de los ortodoxos. Después, del bien de los ortodoxos nació el bien de la nueva y de la antigua fe.

 

"Y viviendo uno al lado del otro está'el bien de los ricos y el bien de los pobres, y el bien de los Amarillos, de los Negros y de los Blancos.

 

"Y así, fragmentándose cada vez más, aparece el bien de una secta, de una raza, de una clase; a todos los que se encuentran más allá de este círculo estrecho no les concierne el bien.

 

"Y los hombres vieron que se había derramado mucha sangre por ese pequeño, por ese maligno bien, en nombre de la lucha de ese bien contra todos los que él consideraba, el pequeño bien, como el mal.

 

"Y a veces la noción de semejante bien se volvía siniestra, se convertía en un mal más grande que el mal.

 

"Un bien así es como un fardo del que se cae el grano. ¿Quién le devolverá el grano a los hombres?.

 

"¿Qué es el bien entonces? Se dice que es un proyecto, y que, ligado a ese proyecto, es una acción que conduce al triunfo de la humanidad, o de una familia, de una nación, de un Estado, de una clase o de una creencia.

 

"Aquellos que luchan por el bien de un grupo se esfuerzan en hacerlo pasar por el bien general. Proclaman: mi bien coincide con el bien general; mi bien do sólo es indispensable para mí sino que es indispensable para todos. Buscando mi propio bien sirvo al bien general.

 

"De esta forma, habiendo perdido su universalidad, el bien de una secta, de una clase, de una nación, de un Estado, pretende esa universalidad para justificar su lucha contra todo aquello que considere que es el mal.

 

"Incluso Herodes no derramaba sangre en nombre del mal sino que la derramaba por su propio bien, pues había nacido un nuevo poder que amenazaba a su familia, a sus anúgos, y a sus favoritos, a su reino, a su ejército.

 

"Lo que había nacido no era un mal sino el cristianismo. Nunca antes la humanidad había escuchado estas palabras: 'No juzguéis si no queréis ser juzgados, pues así como juzguéis seréis juzgados; y con la misma medida con la que midáis seréis medidos...Amad a vuestros enemigos; haced el bien a los que os odian; bendecid a los que os maldicen; rogad por los que os insultan ... Todo lo que deseáis que os hagan los hombres, hacedlo por ellos; pues esta es la ley y el decir de los profetas'.

 

"¿Qué le aportó a la humanidad esta doctaa de paz y de amor?

 

"Las torturas de la Inquisición, la lucha contra las herejías en Francia, en Italia, en Flandes, en Alemania, la guerra entre los protestantes y los católicos, la crueldad de las órdenes monásticas, la lucha entre Avakum y Nikon, las persecuciones seculares contra la ciencia y la libertad, el genocidio de pueblos enteros, los criminales quemando los pueblos negros del África. Todo esto produjo más sufrimiento que las matanzas de los

asaltantes y de los asesinos haciendo el mal por el mal ...

 

"Tal es el terrible destino, que hunde al espíritu en cenizas, de la doctrina más humana de la humanidad; el cristianismo no escapó a la suerte común y también él se dividió en un conjunto de pequeños 'bienes' privados. La crueldad de la vida hizo nacer el bien en los grandes corazones que llevaron ese bien en sus vidas, ardiendo en el deseo de transformnar el mundo según la imagen del bien que vivía en ellos. Pero no es la vida la que se transforma según la imagen del bien, es la idea del bien la que, tragada por la ciénaga de la vida, se fragmenta, pierde su universalidad, se pone al servicio del presente y ya no intenta modelar la vida de acuerdo con su maravillosa pero inmaterial imagen.

 

"El hombre siempre entendió la vida como una lucha entre el bien y el mal. Pero no es así. Los hombres que quieren el bien de la humanidad son impotentes para reducir el mal que hay sobre la tierra.

 

"Las grandes ideas son necesarias para abrir nuevos caminos, para mover las rocas y destrozar los acantilados; los sueños de un bien universal para que las fuentes pueden encauzarse en una única corriente. Si el mar pudiese pensar, la idea y la esperanza de felicidad nacerían en sus aguas en ocasión de cada tonnenta; y la ola, quebrándose contra las rocas pensaría que muere por el bien de las aguas del mar; no se le ocurriría que es levantada por la fuerza del viento, que el viento la ha levantado de la misma manera como levantó a miles antes que a ella y como levantará a míles depués de ella.

 

"Millares de libros fueron escritos para enseñar como combatir el mal, para definir lo que son, el bien y el mal.

 

"Pero lo triste de todo esto es el siguiente e indiscutible hecho: allí donde cornienza el alba del bien, que es eterno pero que no vencerá nunca al mal, que también es eterno y que nunca vencerá al bien, allí donde Coinienza el alba del bien mueren los niños y los ancianos y la sangre corre. No únicamente los hombres sino que también Dios carecen de poder como para reducir el mal sobre la tierra.

 

"Una sola voz fue escuchada por Rama, los lamentos, los sollozos y los infinitos gemidos. Raquel lloró a sus hijos y no quiso ser consolada, porque ellos ya no existían. A la madre que ha perdido sus hijos le importa poco lo que los sabios piensan que es el bien y lo que es el mal.

 

"¿Pero puede ser que la vida sea el mal?

 

"Yo he podido ver en acción la fuerza implacable de la idea del bien social que nació en nuestro país. Lo he visto en el transcurso de la colectivización total. Incluso lo vi una vez en 1937. Vi cómo en nombre de una idea del bien, tan hennosa y humana como la del cristianismo, se exterminaba a los hombres. Vi ciudades íntegras muriendo de hambre. En Siberia vi a los hijos de los campesinos deportados que morían en la nieve. Vi los trenes que trasladaban a Siberia centenares de miles de gente de Moscú, de Leningrado, de todas las ciudades de Rusia. Gente de las que se había dicho que eran los enemigos de la inmensa y luminosa idea del bien social. Esta inmensa y luminosa idea mataba sin piedad a unos, quebraba la vida de otros, separaba a las mujeres de sus maridos y a los padres de su hijos.

 

"Hoy el horror del fascismo alemán está suspendido sobre el mundo. Los gritos y los llantos de los agonizantes llenan el aire. El cielo está negro, el humo de los hornos crematorios ha cubierto el sol.

 

"Pero todos estos crímenes inauditos, jamás vistos en el universo entero, incluso jamás visto por el hombre sobre la tierra, son cometidos en nombre del bien.

 

"Hace ya mucho tiempo, cuando vivía en los bosques del Norte, me imaginé que el bien no se encontraba en el hombre, ni en el mundo de los animales y de los insectos, sino en el reino silencioso de los árboles. ¡Pero no era así! Vi la vida del bosque, la lucha cruel de los árboles contra las hierbas y los arbustos por el dominio de la tierra. Miles de semillas, al crecer, ahogan la hierba, hacen cortes entre las matas; miles de brotes luchan unos contra otros. Y sólo aquellos que triunfan en la lucha forman un fronda donde dominan las especies que necesitan luz. Y éstas forman un monte alto, una alianza entre iguales. Los abetos y las hayas vegetan en un encierro crepuscular, a la sombra de la cúpula que forman los árboles que reciben la luz. Pero también para éstos llega el tiempo de la vejez y entonces los abetos suben hacia la luz matando a los abedules.

"Así el bosque vive en una perpetua lucha de todos contra todos. únicamente los ciegos pueden creer que el bosque es el reino del bien. ¿Es posible entonces que la vida sea el mal?

 

"El bien no se encuentra en la naturaleza, ni tampoco en la prédica de los profetas, ni en las grandes teorías sociales, ni en la ética de los filósofos ... Pero la gente común lleva en su corazón el amor hacia todo lo viviente, aman y protegen naturalmente la vida; después de un día de trabajo se reúnen al calor del hogar y no van por los campos encendiendo hogueras y produciendo incendios.

 

"Junto a ese bien tan terrible existe -la bondad humana en la vida cotidiana. Es la bondad de una anciana que junto al camino le da un trozo de pan a un presidiario que pasa; es la bondad de un soldado que le tiende su cantimplora a un eneraigo herido, la bondad del joven que se apiada de la vejez, la bondad de un campesino que oculta en su granero a un viejo judío. Es la bondad de los carceleros que arriesgando su propia libertad transmiten las cartas que los detenidos le envían a sus mujeres y a sus madres.

 

"Esta bondad privada, de un individuo frente a otro individuo, es una bondad sin testigos, una pequeña bondad sin ideología. Se la podría llamar bondad sin pensamiento. La bondad de los hombres al margen del bien religioso o social.

 

"Si reflexionamos sobre esta bondad privada vemos que ella, ocasional y sin ideología, es eterna. Que se extiende sobre todo lo que vive, hasta sobre las ratas, hasta sobre la rama quebrada que alguien, deteniéndose un instante, endereza para que pueda cicatrizar y revivir.

 

"En los tiempos terribles en que reina la demencia en nombre de la gloria de los Estados, de las naciones y del bien universal, en los tiempos en que los hombres no se parecen más a hombres, cuando no hacen sino agitarse como las ramas de los árboles y rodar como piedras que, arrastrándose unas a otras, cubren las hondonadas y las fosas, en esos tiempos de terror y de locura la pobre bondad sin ideas tadavía no ha desaparecido.

 

"Si reflexionamos sobre esta bondad privada vemos que ella, ocasional y sin ideología, es eterna. Que se extiende sobre todo lo que vive, hasta sobre las ratas, hasta sobre la rama quebrada que alguien, deteniéndose un instante, endereza para que pueda cicatrizar y revivir.

 

"En los tiempos terribles en que reina la demencia en nombre de la gloria de  los Estados, de las naciones y del bien universal, en los tiempos en que los hombres no se parecen más a hombres, cuando no hacen sino agitarse como las ramas de los árboles y rodar como piedras que, arrastrándose unas a otras, cubren las hondonadas y las fosas, en esos tiempos de terror y de locura la pobre bondad sin ideas tadavía no ha desaparecido.

 

"Los alemanes de un destacamento punitivo entran en un pueblo. Algunos de ellos habían sido muertos el día anterior en el camino. Por la, tarde reunieron a las mujeres del pueblo  y les ordenaron que cavasen una fosa en el límite del bosque. Varios soldados se instalaron en la isba de una vieja campesina. Su marido fue llevado por un politsaï al sitio donde ya estaban reunidas unos veinte campesinos. La anciana permaneció despierta toda la noche: los alemanes habían encontrado en el sótano una canasta con huevos y una botella de miel, ellos nismos encendieron un fuego para cocinar una tortilla y bebieron vodka. Después, el de más edad, tocó la armónica mientras los otros, marcando el ritmo con el pie, cantaban. Ninguno miró a la dueña de casa, como si ella fuera un gato y no un ser humano. Al alba  levantaron sus metralletas y el de más edad, por descuido, apretó el gatillo y recibió una  ráfaga en el vientre. Los demás gritaron y comeron por la casa. Lo alzaron y lo depositaron  en la cama. En ese momento se los llamó a todos afuera. Mediante signos dieron órdenes de  cuidar al herido. La mujer se dió cuenta de que podía estrangularlo fácilmente: el herido pronunciaba palabras informes, luego cerró los ojos, lloró, hizo chsquear los labios y después, abriendo repentinamente los ojos, pídió con una voz clara: 'Madre, deme de beber'.  'Maldito, le dijo la mujer, yo tendría que  estrangularte'. Y le dió de beber.  Él la tomó de la mano y le indicó que quería sentarse. La sangre le impedía respirar. Ella lo solivió y él se apovó en el codo. En ese instante se oyó la descarga. La mujer fue sacudida por un estremecimiento.

 

"Posteriormente contó lo que le había pasado, pero nadie llegó a comprenderla y ella no pudo explicarlo.

 

"Es esta especie de bondad la que condena comoo absurda la fábula del heremita que calienta a una serpiente en su seno. Es la bondad que perdona a la araña que acaba de picar a un niño. ¡Una bondad ciega, insensata, peligrosa!

 

"A los hombres les agrada representarse por medio de fábulas o de relatos el mal que provoca esta bondad insensata. ¡No hay que temerle! Temerle sería como temerle a un pez de agua dulce accidentalmente llevado por la corriente a las aguas salobres del océano.

 

"El mal que a veces le puede aportar a la sociedad, a una clase o a un Estado, esta bondad insensata, palidece si se lo compara con la luz que irradian los hombres que están dotados de ella.

 

"Esta bondad loca es lo que existe de humano en el hombre, es lo que define al hombre, es el punto más alto alcanzado por el espíritu humano. Ella nos dice que la vida no es el mal.

 

"Esta bondad carece de discurso y de sentido. Es instintiva y ciega. Cuando el cristianismo le da una fonna a través de la enseñanza de los Padres de la Iglesia, ella se empaña, el grano se convierte en paja. Es fuerte en tanto es muda e inconciente, en tanto que vive en la oscuridad del corazón humano, en tánto no es instrumento y mercancía de los predicadores, en tanto la pepita de oro no sirve para acuñar la moneda de la santidad. Es simple como la vida. Incluso la enseñanza de Cristo la ha privado de su fuerza: su fuerza reside en el silencio del corazón del hombre.

 

"Pero al haber perdido la fe en el bien he dudado de la bondad. ¡Hablo de su impotencia! ¿Para qué sirve, entonces, si no es contagiosa?

 

"Me dije: ella es impotente, es hermosa e impotente como el rocío.

 

"¿Cómo hacer de ella una fuerza sin perderla, sin secarla, como hizo la: Iglesia? ¡La bondad es fuerte en tanto carece de fuerza! Cuando el hombre: quiere convertirla en una fuerza se pierde, se ensucia, desaparece.

 

"Ahora comprendo lo que es la fuerza real del mal. Los cielos están vacíos. Sobre la tierra sólo queda el hombre. ¿Con la ayuda de quién puede extinguirse el mal? ¿Con la ayuda de las gotas de rocío? ¿Con la ayuda de la bondad humana? Este incendio no puede apagarse ni con el agua de todos los mares y de todas las nubes, no puede apagarse ni con todas las gotas de rocío juntas desde el tiempo dé los Evangelios hasta nuestra época de hierro.

 

"De esta manera, al perder la esperanza de encontrar el bien en Dios y en la naturaleza, comence a perder la fe en la bondad.

 

"Pero a medida en que las tinieblas del fascismo se abren delante mío y mientras más claramente veo que lo humano continúa viviendo invencibiemente en el hombre, incluso al borde de la fosa ensangrentada, incluso ante la cámara de gas.

 

"Bañé mi fe en el infierno. Mi fe salió del fuego de los hornos crematorios, atravesó el hormigón de las cámaras de gas. Vi que no era el hombre el impotene en su lucha contra el mal, vi que era el mal el impotente en su lucha contra el hombre. El secreto de la inmortalidad de la bondad está en su, impotencia. Ella es invencible. Mientras más insensata, mientras más absurda e impotente, ella es más  grande. ¡El mal no puede hacer nada contra ella! Los profetas, los dueños de la fe, los reformadores, los líderes y los guías, no pueden nada contra ella! El amor ciego y mudo es el sentido del hombre.

 

"La historia de los hombres no es el combate del bien tratando de vencer al mal. La historia de los hombres es el combate del mal tratando de suprimir ese ninúsculo grano de humanidad. Pero  si incluso ahora lo humano no ha muerto en el hombre, el mal no vencerá nunca".

 

Traducción de Alberto Drazul

*Texto tornado del libro Vie et destin, ed. Julliard, Paris, 1983, 2a. parte, cap. 15, pp. 379-386. A este libro, "absolutaminte desesperado"', se refiere Emmanuel Levinas, en "La proximidad del otro", ver Nomnbres nro. 8-9, noviembre de 1996.

 

e,

 

REFLEXÕES DESABUSADAS SOBRE O ABUSO DO PODER POLÍTICO

 

Devemos lutar pelo aperfeiçoamento dos mecanismos institucionais de controle do poder, criando freios objetivos às práticas abusivas dos governantes

 

Em penosa conversa mantida, recentemente, com o professor Celso Antônio Bandeira de Mello, manifestamos ambos uma profunda desilusão com o panorama político nacional. Os homens e os partidos, após crescerem moralmente na oposição pela contínua denúncia dos desmandos governamentais, assim que chegam ao poder reproduzem integralmente, ou quase, o comportamento de seus antigos adversários, embora protestando, com a mão na Bíblia, sua firme intenção de doravante tudo mudar no trato da coisa pública. Concluímos o nosso desalentado colóquio, reconhecendo a urgente necessidade de uma reflexão menos episódica e emocional sobre a essência e os mecanismos de exercício do poder político.

Em homenagem à pessoa do mestre e amigo, venho agora cumprir a minha parte, apresentando as reflexões que se seguem. Elas obedecem ao método ternário, cuja boa qualidade tem sido largamente demonstrada na análise dos problemas sociais: ver, julgar e agir. Apresento, assim, numa primeira parte, o que se poderia denominar a fenomenologia do poder político, para lembrar, em seguida, os princípios ético-jurídicos fundamentais da política, e concluir com uma proposta de programa de ação.

 

I - A Fenomenologia do Poder Político

 

A – As suas diferentes manifestações

 

Não há realidade mais proteiforme que o poder. Hobbes, em passagem famosa do Leviatã (Parte I, capítulo 10), apontou algumas de suas várias manifestações:

"Reputação de poder é poder; pois ela atrai a adesão daqueles que precisam de proteção. Assim é a reputação que alguém tenha de ser amado pelos seus conterrâneos (a chamada popularidade), pela mesma razão. O mesmo acontece com a qualidade que faz com que um homem seja amado ou temido por muitos; pois ela implica obter a assistência e o serviço de muitos.

Bom sucesso é poder; ele cria a reputação de sabedoria, ou de sorte; a qual suscita o temor ou a confiança dos outros.

A afabilidade dos homens que já estão no poder o reforça, porque suscita a estima dos governados.

Reputação de prudência na condução da paz ou da guerra é poder; pois aos homens prudentes costumamos confiar o governo de nós mesmos, mais facilmente do que a outros.

Nobreza é poder, não em todos os países, mas naqueles em que ela confere privilégios; porque o poder consiste justamente em tais privilégios.

Eloqüência é poder; porque dá a impressão de prudência.

Forma (isto é, beleza) é poder; porque, sendo uma promessa do Bem, provoca a simpatia das mulheres e dos estrangeiros".

Nem todas essas formas de poder, contudo, apresentam a mesma importância no plano político. Examinemos, portanto, com mais cuidado, algumas de suas principais manifestações.

 

Poder de mando e autoridade moral ("potestas" e "auctoritas")

 

Essa distinção foi feita em Roma, para distinguir, de um lado, a posição política dos cônsules e outros magistrados, que podiam impor suas decisões ao povo (potestas ou imperium), e, de outro, a posição do senado, cujas decisões eram respeitadas unicamente em razão do prestígio moral ligado à instituição (composta dos descendentes presumidos dos fundadores de Roma), mesmo não tendo o senado poder algum para impor suas decisões ao povo. A constituição da república romana, como salientou Políbio no Livro VI de sua História, era um misto de monarquia, oligarquia e democracia, o que dificultava em muito, na prática, o abuso de poder. Os cônsules exerciam funções de natureza monárquica; o senado organizava-se como instituição oligárquica, enquanto ao povo eram reservados certos poderes propriamente democráticos, como o de aprovar as leis propostas pelos cônsules e não vetadas pelo senado.

Nas instituições modernas, essa antiga distinção não foi oficialmente mantida, salvo em algumas monarquias, como a espanhola. Mas tudo depende, na prática, do efetivo prestígio moral dos agentes políticos, sejam eles ocupantes de cargo oficial ou não. Por exemplo, após a independência da Índia, Gandhi, embora não ocupasse nenhum cargo oficial, gozou até a sua morte de uma autoridade moral incontestável. Nenhuma grande decisão governamental era tomada sem o acordo prévio do Mahatma.

O Datafolha, departamento de pesquisa do jornal Folha de S.Paulo, publicou recentemente (1) os resultados de uma pesquisa de opinião realizada em todo o Brasil, para avaliar o que chamou "poder de influência" e "prestígio" de várias instituições nacionais. Apurou-se que, no tocante ao "poder de influência", as três primeiras instituições eram, em ordem decrescente, a imprensa (provavelmente, o conjunto dos meios de comunicação de massa), a Presidência da República e as instituições financeiras; e as três últimas, os partidos políticos, as empresas estatais e os sindicatos de trabalhadores. Quanto ao "prestígio", as instituições que mais se destacaram foram a imprensa, os clubes de futebol e a Igreja Católica; e as de menor prestígio, as empresas estatais, a seguir o Congresso Nacional e os sindicatos de trabalhadores (no mesmo nível) e, finalmente, os partidos políticos.

Algumas conclusões podem ser tiradas dessa pesquisa.

Vê-se, assim, que o fato de dispor de poder oficial no plano político não significa, necessariamente, gozar de prestígio ou respeito junto à opinião pública. Vou mais além: o político enlouquecido pela paixão do poder, da qual trato mais abaixo, acaba preferindo manter as posições de mando já conquistadas, mesmo ao preço de enxovalhar para sempre a sua reputação pessoal.

De qualquer modo, em matéria política o prestígio (isto é, auctoritas) constitui uma forma especial de poder. É o que explica o fato de os governantes brasileiros sempre respeitarem e temerem a Igreja Católica.

 

Força e poder. Poder legítimo e ilegítimo

 

No campo político, toda posição de força, derivada de qualquer causa – as armas ou a riqueza, por exemplo – é instável enquanto não legalizada, ou seja, não oficialmente reconhecida pelo sistema jurídico. "O mais forte", advertiu Rousseau no Contrato Social, "não é nunca bastante forte para permanecer sempre no poder (pour être toujours le maître), se ele não transforma a sua força em direito e a obediência em dever".

Daí a tendência universal de todos os mentores de golpes de Estado, ou líderes revolucionários, de procurar legalizar, desde logo, a posição de mando que conquistaram. Na América Latina, todo pronunciamiento sempre foi consagrado por uma imediata mudança constitucional.

Muitas vezes, porém, não basta ao governante ser titular de um poder constitucional ou legal para ser respeitado e obedecido. O desgaste pronunciado dos governantes junto ao povo enfraquece a sua posição de mando e pode conduzir à sua não-reeleição, ou, no limite, à sua destituição, pelos meios legais (impeachment, por exemplo).

 

Poder de estatuir ou decidir e poder de impedir

 

Essa distinção (pouvoir de statuer, pouvoir d`empêcher) foi feita por Montesquieu, ao analisar, no capítulo 6º do Livro XI do Espírito das Leis, a questão do abuso de poder, e ao propor a separação institucional dos órgãos do poder estatal. O exemplo por ele dado de poder impediente foi o dos tribunos, na Roma republicana. Ao contrário dos cônsules, eles não tinham competência para tomar decisões obrigatórias para o povo, mas podiam vetá-las, o que representava eficaz prevenção à tentativa de abuso.

Em nosso sistema constitucional de governo, o poder impediente é atribuído, tanto ao Presidente da República, para vetar as leis aprovadas pelo órgão legislativo, quanto a este, para autorizar, por exemplo, a nomeação de membros dos altos tribunais do país, do presidente do Banco Central, dos embaixadores e outros altos funcionários. Quanto ao Poder Judiciário, a sua função política precípua é a de exercer um poder impediente, pelo juízo de constitucionalidade e legalidade dos atos dos demais órgãos do Estado.

Cuida-se, agora, de institucionalizar, no quadro da democracia participativa, mecanismos de exercício do poder impediente pelo próprio povo.

 

Poder formal e poder real

 

Karl Marx salientou em vários escritos que, no Estado moderno, os governantes não passam de mandatários da burguesia, encarregados de gerir os negócios públicos de modo a favorecer os interesses dela, como classe dominante.

Marx teve o grande mérito de mostrar, pela primeira vez, o forte entrelaçamento, na sociedade moderna, do poder político oficial com o poder econômico privado. Mas as suas idéias, nessa matéria, representaram uma generalização da realidade política que ele conheceu na Europa Ocidental de meados do Século XIX, na qual, efetivamente, pelo mecanismo do voto censitário, os homens de posses formavam a maioria do eleitorado. A partir da segunda metade do Século XX, na generalidade dos países onde foi consagrado o sufrágio universal e onde as eleições não são dirigidas pelo aparelho estatal, os ricos e, em especial, os grandes empresários, constituem uma minoria ínfima do eleitorado. As eleições são, portanto, decididas pelo voto popular. Daí todo o empenho das classes dominantes em controlar os instrumentos de formação da opinião pública, notadamente os meios de comunicação de massa. Elas possuem, pois, uma influência preponderante, mas não um controle direto (no sentido forte do termo control em inglês) sobre o processo eleitoral. Esta é, pois, uma fraqueza do poder econômico privado, que deve ser aproveitada pelo povo.

Além disso, não se pode desconsiderar o fato de que alguns órgãos do Estado moderno, concentrados no Poder impropriamente dito Executivo, possuem um feixe de prerrogativas próprias (e não simplesmente delegadas) – como o poder de tributar, o de nomear ou contratar funcionários públicos, o de autorizar o exercício de certas atividades empresariais, o de comandar as forças armadas e as forças policiais, o de controlar as instituições oficiais de crédito – poderes esses suscetíveis de serem usados com sucesso contra as classes dominantes, durante um tempo mais ou menos longo, dependendo do grau de apoio popular de que disponha o Chefe de Estado, da coesão ou divisão existente entre as classes dominantes e da capacidade de intervenção de potências estrangeiras. O caso de Hugo Chávez, na Venezuela, representa uma boa ilustração do que acaba de ser dito.

 

B – A patologia do poder político

As doenças próprias do poder político são, na verdade, comuns às demais formas de poder. Lembremos as principais.

 

Tendência à concentração e à irresponsabilidade

 

Ao contrário da energia física, sujeita à segunda lei da termodinâmica (entropia), ou seja, submetida a uma necessária e constante degradação em calor, o poder político tende sempre, pela sua própria natureza, à concentração, tanto sob o aspecto subjetivo, quanto objetivo. "É uma experiência eterna", frisou Montesquieu, "que todo homem que detém poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites. Quem diria! Até a virtude tem necessidade de limites" (2). Os atuais Estados fundamentalistas, aliás, são uma perfeita ilustração dos perigos dessa idolatria sem limites da virtude.

A experiência eterna, de que nos fala Montesquieu, mostra que, de um lado, todo titular de uma posição de poder procura afastar os rivais, ou neutralizar os que detêm prerrogativas de controle (no sentido francês de fiscalização) sobre si, a fim de se tornar cada vez mais independente e poderoso. Nenhum político abre mão de uma milésima parte de sua competência, legal ou costumeira, a não ser quando coagido. É, portanto, inútil esperar que um órgão do Estado proponha alguma redução, ainda que em escala muito modesta, dos poderes que a Constituição lhe atribui.

De outro lado, todo aquele que tem poder em determinada área porfia sempre em estendê-lo a setores vizinhos, e a outros mais distantes, e assim indefinidamente. É muito raro que alguém no governo reconheça concentrar em suas mãos poderes demasiados. Mas, a todo momento, os Chefes de Executivo costumam se queixar, de público, de que outros órgãos do Estado (as Casas Legislativas, o Ministério Público, os juízes de primeira instância...) prejudicam a governabilidade, impedindo-os de exercer plenamente e com eficácia inerentes à sua competência constitucional. Há, por vezes, uma reclamação pessoal contra o excesso de trabalho. Mas esse problema, quando realmente existe, resolve-se, em geral, pela delegação de atribuições executivas a auxiliares imediatos, reservando-se, sempre, o governante o poder de retomá-las para si a qualquer momento.

Aliás, no sistema presidencial de governo, a tendência incoercível é de o Presidente da República se atribuir pessoalmente os êxitos alcançados pela ação dos seus Ministros e de descarregar sobre eles, ou pelo menos sobre os mais fracos deles, a responsabilidade por todos os insucessos ocorridos ou os desmandos praticados, mesmo quando, nesta última hipótese, os Ministros tenham obedecido estritamente às ordens do Presidente.

Tudo isso alimenta, naturalmente, a incessante busca de uma posição de monárquica irresponsabilidade (3) pelos Chefes de Governo, ou de irrestrita imunidade penal por parte dos parlamentares. Eles se dizem escandalizados com o fato de que, havendo se decidido, segundo proclamam, a se consagrar integralmente ao bem público, ainda podem ser arrastados à barra dos tribunais como malfeitores vulgares. Em nenhuma de suas cabeças entrou, jamais, o princípio elementar do regime republicano de que quanto maior o poder, maior a responsabilidade.

 

Tendência ao isolamento dos governantes em relação aos governados

 

As estruturas políticas e burocráticas do Estado cercam e prendem os governantes num círculo quase hermético, que os isola do povo. Sem embargo de suas qualidades pessoais que, reconheça-se, não são raras, as pessoas no governo, do primeiro ao último escalão, acabam se tornando cegas e surdas (mas raramente mudas...), diante das efetivas exigências e necessidades do povo.

Além disso, submetidos à constante lisonja por parte dos seus auxiliares imediatos, os quais buscam deles se servir para seu exclusivo proveito pessoal (lembremo-nos do verso final da fábula de Lafontaine do corvo e a raposa: "tout flatteur vit au dépens de celui qui l`écoute"); fascinados pela eficácia das técnicas mais modernas de propaganda política, que seriam capazes, segundo se apregoa, de manipular com êxito a opinião pública em qualquer conjuntura política; mantidos, pela própria organização burocrática de suas funções, na ignorância das dificuldades e dos erros cometidos no exercício do governo – por força de todos esses fatores, os chefes do Poder Executivo acabam freqüentemente por se convencer de que são, de fato, superiores ao conjunto dos demais políticos, senão ao comum dos mortais; de que são, portanto, pessoas indispensáveis no cargo, porque as únicas capazes de resolver com sabedoria as questões de interesse público.

Ora, a essa convicção de auto-excelência, que costuma assoberbar os governantes, corresponde (e isto é fatal para o funcionamento do regime democrático), o sentimento de que o povo é uma massa fraca, inconstante e inepta; e, por conseguinte, perpetuamente carente de tutela, como um menor impúbere. Convém meditar, a esse propósito, sobre a lição contida na parábola do Grande Inquisidor, em Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski.

Dostoievski imagina o confronto entre o cardeal Grande Inquisidor da Espanha e Jesus Cristo, que aparecera de repente em Sevilha, no século XVI, na manhã seguinte a um gigantesco auto-de-fé, em que foram queimados vivos cem hereges. O doce rabi da Galiléia insinuara-se mansamente na grande praça, e, apesar disso, o povo o reconhecera de imediato, sem que ele proferisse uma só palavra. Atendendo às súplicas da multidão, Jesus voltou a fazer os milagres que o celebrizaram na Palestina, quinze séculos antes: restituiu a visão a um cego e ressuscitou uma menina que era levada ao cemitério.

O Grande Inquisidor, que vira toda a cena de longe, ordenou a imediata prisão do "desordeiro". À noite, no calabouço escuro onde fora jogado o Salvador do mundo, o cardeal nonagenário vem se explicar com o prisioneiro. Ele o censura amargamente pelo fato de haver recusado, quando da tentação no deserto (Mateus 4, 1-11; Lucas 4, 1-13), a dar aos homens aquilo que eles sempre almejaram do fundo do coração: o pão que mata a fome, a segurança da riqueza que dispensa o trabalho quotidiano e o governo de um príncipe todo poderoso, que tudo decide pelos seus súditos e em quem estes podem depositar, cegamente, as suas esperanças.

O Grande Inquisidor reconhece que Jesus tomou essa decisão superior, digna de um deus, porque queria preservar a sagrada liberdade de escolha do gênero humano entre o bem e o mal. Mas isto foi um erro funesto, diz o prelado. Os homens, que não são deuses, mas, ao contrário, seres viciosos pela sua própria natureza, sempre consideraram a liberdade, em todos os tempos e lugares, um fardo excessivamente pesado para as suas débeis forças. A sua mais lancinante preocupação é de saber como, quando e em mãos de quem eles poderão, enfim, alienar sua liberdade, em troca daqueles bens que Jesus imprudentemente recusou ao tentador no deserto.

Na verdade, no mundo da política só se respeita quem detém alguma espécie de poder (oficial ou não, sob a forma de prestígio público ou de poder efetivo de mando; como atribuição de mandar ou de impedir). É conhecida a pergunta irônica de Stalin a Churchill e a Roosevelt na Conferência de Ialta, ao final da Segunda Guerra Mundial: "De quantas divisões dispõe, afinal, o Papa?"

Acontece que, no limite – e essa é a verdadeira tragédia –, todo governante corre o risco de ser dominado pelas estruturas de poder, e de passar, objetivamente, da condição de senhor à de escravo, ou seja, de alguém que já não se pertence e vive submetido, servilmente, às estruturas do poder cuja conquista tanto almejou.

E efetivamente, raros são os homens públicos que não se deixam escravizar pela "glória de mandar e a vã cobiça", como denunciou o velho da praia do Restelo (4).

 

A paixão do poder

 

É, seguramente, a maior de todas as paixões, mais potente que a paixão erótica, religiosa, ou argentária. É uma força capaz de superar as limitações biológicas e, até mesmo, de suplantar o amor materno, como o gênio de Shakespeare bem intuiu. Advertida pelo marido da profecia lançada pelas três feiticeiras de que ele seria rei, e sentindo que o temperamento do consorte é todo feito de ternura ("I fear thy nature; it is too full o` the milk of human kindness), Lady Macbeth invoca os espíritos infernais para que eles mudem o seu sexo frágil, enchendo-a, da cabeça aos pés, da mais terrível crueldade: "unsex me here, and fill me, from the crown to the toe, top-full of direst cruelty" (5). E a fim de sacudir os últimos escrúpulos de consciência do marido, ela lhe lança em rosto uma estupenda bravata: seria capaz de esmigalhar a cabeça do filho que amamenta, se isto fosse indispensável para cumprir o seu desígnio (6).

Aliás, de acordo com as observações de alguns antropólogos, a atração avassaladora pelo poder é algo que partilhamos com os outros primatas superiores. E a razão é biológica. As relações de poder e submissão são comandadas pela parte mais primitiva do cérebro humano, a chamada zona límbica, que se encontra até mesmo nos répteis. Eis porque as relações sociais que envolvem comando e obediência tendem a escapar, por vezes, ao controle da razão.

O exercício do poder é, de fato, um tremendo desafio à nossa capacidade de autocontrole. Na peça Cynna de Corneille, o grande auto-elogio posto na boca de Augusto, imperador romano, é o declarar-se ele senhor do mundo e de si mesmo, em pé de igualdade. O dramaturgo tinha toda razão: ninguém é capaz de exercer grande poder sobre os outros, se não souber controlar ou racionalizar a sua paixão de mando.

É preciso atentar para o fato de que objeto da paixão é a posse, uso e gozo da posição de poder; não o "resultado do poder", isto é, as obras ou transformações suscetíveis de serem realizadas pelo seu exercício. O fato de se conseguir dobrar as vontades alheias, e de suscitar o respeito, senão a veneração do povo, como se este se encontrasse diante de um ídolo religioso, provoca um gozo intenso e durável. Aliás, um dos mais importantes recursos de poder consiste em manter os governados em estado permanente de temor e adoração, dois sentimentos, como se sabe, característicos da submissão religiosa.

Como já foi repetidas vezes observado, a paixão pelo poder é intrinsecamente corruptora. Ela tende a corromper, tanto os que exercem o poder, quanto os que deles se aproximam. Há, sem dúvida, a corrupção mais vulgar, daquele que compra a consciência alheia, ou vende a sua. Mas há também uma forma muito mais elaborada, que frisa à loucura moral. É aquele orgulho ou insolência que os gregos denominavam hybris, sempre pronto a provocar audácias proibidas e a engendrar desastres, como adverte o coro na tragédia Agamenon, de Ésquilo. O indivíduo escravo dessa paixão tende a se servir, para alcançar seus fins, de todos os sentimentos altruístas que encontra disponíveis diante de si: o amor, a compaixão, a generosidade, a lealdade, o espírito de serviço, a solidariedade. Com desoladora freqüência, velhos amigos e grandes admiradores do governante, ou então pessoas respeitáveis na sociedade pela sua correção e sabedoria, são tentativamente usados em proveito próprio pelo homem no poder, sem nenhum escrúpulo. Como se diz com freqüência entre nós, em política a única coisa feia é perder a eleição.

O mais curioso é que essa loucura moral vem sempre acompanhada de uma sensação de euforia. "Tudo se passa", observou Aristóteles (7), "como se o poder conservasse sempre em boa saúde os seus detentores". E, efetivamente, é quase impossível encontrar um político que sofra de depressão no exercício do poder.

Daí porque raros são os moralmente preparados para assumir posições de mando político. "O poder revela o homem", sentenciou sinteticamente Aristóteles, na Ética a Nicômaco (1130 a, 2–3). "Pode-se conhecer bem a alma, os sentimentos, os princípios morais de um homem", indaga o rei Creonte na tragédia Antígona de Sófocles, "se ele não se mostrou ainda no exercício do poder, governando e ditando leis?" Pois, como observou saborosamente o Padre Vieira, "não há coisa que mais mude os homens do que o descer e o subir, e o subir muito mais do que o descer".

 

C – A chefia do Executivo no Brasil: uma longa tradição de abuso de poder

 

Rousseau bem advertira: a inclinação natural de todo aquele que detém o poder executivo por delegação popular é de se apropriar desse poder, cujo exercício lhe foi confiado. Não hesita em afirmar que, em todos os países, o governo age e conspira contra a soberania popular, da mesma forma que a vontade particular age e conspira incessantemente contra a volonté générale (8).

Dificilmente encontraremos melhor exemplo de aplicação dessa regra geral do que em nosso país.

Com efeito, desde que iniciamos a nossa vida de nação independente, há um dado que permanece constante na realidade política, indiferente às sucessivas formas de organização constitucional que adotamos no correr dos tempos: todo poder estatal tende a concentrar-se no cargo de chefe de governo. Raymundo Faoro, em estudo já clássico (9), enxerga nas origens do reino de Portugal, forjado que fora pelo rei, muito mais um chefe político do que um senhor feudal, a raiz primeira desse traço típico de nosso ethos político.

No longo panegírico que dedicou à memória do pai, Joaquim Nabuco apenas uma vez permitiu-se censurá-lo. Foi a propósito de uma circular, pela qual Nabuco pai, então Ministro da Justiça, ditou regras de julgamento aos magistrados:

"É o traço saliente do nosso sistema político essa onipotência do Executivo, de fato o Poder único do regímen. Nabuco, apesar de todo o antagonismo de muitas de suas idéias com esse sistema, principalmente em matéria de garantias individuais, e apesar da guerra que moveu à invasão francesa do contencioso administrativo, foi um dos fundadores da onipotência do governo, convertido em última instância dos poderes públicos" (10).

De qualquer forma, no império, a centralização e personalização do mando encontravam uma certa justificativa no chamado Poder Moderador, que a Constituição de 1824 instituiu, sob a inspiração de Benjamin Constant (11). Mas os redatores daquela Carta Política, assim como os seus mais insignes comentadores e intérpretes, não reproduziram com fidelidade a idéia original do pensador franco-suíço. Enquanto este sustentava que a chave de toda organização política é a distinção entre o poder ministerial e o poder do rei, a nossa Constituição imperial preferiu declarar, sutilmente, que "o Poder Moderador é a chave de toda a organização Política", sem acentuar a sua necessária separação do Poder Executivo, exercido pelos ministros de Estado (art. 102). Para Benjamin Constant, o poder do chefe de Estado é neutro, isto é, simplesmente arbitral ou mediador, enquanto o dos ministros é ativo, no sentido de que eles não atuam como meros agentes delegados do chefe de Estado. Daí a diferença essencial, como ele frisou, entre a responsabilidade ministerial e a inviolabilidade do rei.

Entre nós, no entanto, o mais ilustre dos publicistas do império, José Antonio Pimenta Bueno (Marquês de São Vicente), não hesitou em afirmar que a prerrogativa conferida pelo art. 98 da Constituição de 1824 ao Imperador era "a mais elevada força social, o órgão político mais ativo, o mais influente, de todas as instituições fundamentais da nação" (12). No mesmo diapasão, o Visconde de Uruguai, o primeiro grande cultor do Direito Administrativo entre nós, sustentou que "o Imperador não é o Poder Executivo, não constitui por si só o Poder Executivo. É simplesmente (sic) o Chefe do Poder Executivo" (13). Analogamente, o Poder Judicial "é uma mola da máquina administrativa, mas não é a máquina" (14) [tal seria!]. Em conclusão, "a máxima – o Rei reina e não governa – é completamente vazia de sentido para nós, pela nossa Constituição" (15). Ao que o Marquês de Itaboraí (Rodrigues Torres) arrematou: "o Imperador reina, governa e administra".

Com isto, estava aberto o caminho à inevitável absorção das funções governamentais pelo monarca, declarado constitucionalmente imune de toda responsabilidade, com a inevitável conseqüência do avassalamento permanente dos demais órgãos constitucionais.

O nosso parlamentarismo do Século XIX, como todos reconhecem, sempre foi uma ficção retórica. O velho Nabuco de Araújo, em famoso discurso pronunciado no Senado em 17 de julho de 1868, logo após o Imperador despedir inopinadamente o Gabinete Zacarias de Góis, desnudou-a sob a forma de um sorites, ou silogismo encadeado:

"O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí está o sistema representativo do nosso país!" (16)

Instituído o regime republicano, essa concentração abusiva de poderes, de direito e de fato, na pessoa do chefe de Estado não retrocedeu; pelo contrário.

Os primeiros governos presidenciais não passaram de ditaduras militares, sob a justificativa ideológica do positivismo comteano. Imaginava-se que o sistema federativo viesse quebrar, de algum modo, a onipotência do Presidente da República. Mas a solerte "política dos Governadores", instituída por Campos Sales, afastou desde logo qualquer ilusão a esse respeito. Os Governadores – na verdade, apenas dois, de São Paulo e Minas Gerais – faziam o Presidente, e este os apoiava em retorno, na reprodução, em plano federal, do esquema coronelista instituído em cada Estado (17).

Discursando no Instituto dos Advogados, ao tomar posse no cargo de Presidente desse sodalício em 19 de novembro de 1914, Rui Barbosa não usou meias palavras para qualificar o sistema de governo instaurado com o regime republicano. "O presidencialismo brasileiro", disse ele, "não é senão a ditadura em estado crônico, a irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade consolidada, a irresponsabilidade sistemática do Poder Executivo" (18). Vinte anos depois, um diplomata inglês, que aqui vivera durante um quarto de século, corroborou essa análise sem concessões do nosso sistema de governo, ao publicar um opúsculo com título sugestivo: "Sua Majestade o Presidente do Brasil" (19). A ousadia valeu-lhe a imediata expulsão do território nacional.

O fato é que, após os dois períodos de governo de exceção, chefiados por Getúlio Vargas – antes e depois da Constituição de 1934 – e após os vinte anos de regime militar, tínhamos ingenuamente a esperança de que, advindo a reconstitucionalização do país, o nosso sistema político se encaminhasse, afinal, para um estado de maior equilíbrio de poderes.

Pura ilusão! O mecanismo de representação popular criado pelo Código Eleitoral de 1932 – sistema único no mundo, ao combinar eleição proporcional com voto uninominal – revelou-se uma eficiente máquina de triturar partidos, para melhor submetê-los à dominação governamental. Não havia nisto, aliás, nada de novo. A atuação partidária sempre foi, em nossa história política, um teatro de fantoches. Por ocasião da crise provocada no Partido Conservador de São Paulo, em 1851, com a imposição palaciana da candidatura de Pimenta Bueno ao Senado, contra a vontade unânime dos dirigentes partidários locais, o então Visconde de Monte Alegre, Presidente do Conselho de Ministros, definiu de forma impecável a realidade que perdura até hoje:

"Os partidos em nossa terra não podem coisa alguma contra a vontade do governo, e só a fraqueza do poder e a pouca vontade de os sujeitar à disciplina é que traz as derrotas, quando as tem havido" (20).

Que o digam os dissidentes do Partido dos Trabalhadores, no primeiro ano do Governo Lula!

Além de apreciáveis poderes administrativos – de nomear ou contratar funcionários, de liberar verbas orçamentárias, de usar as instituições financeiras oficiais para direcionar o crédito estatal para as empresas ou setores que bem entender – o Presidente da República detém, em suas mãos, o poder legislativo, pela via das medidas provisórias, como, até mesmo, o poder de reforma constitucional. Até fins de 2003, ou seja, em quinze anos de vigência, a Constituição de 1988 foi remendada 46 (quarenta e seis) vezes – o que dá uma apreciável média de mais de três mudanças por ano – sempre por iniciativa direta, ou com o consentimento expresso, do chefe do Poder Executivo.

A par disso, permanece a mesma subserviência do Congresso Nacional às determinações do Presidente da República. A eleição dos presidentes das duas Casas Legislativas é rigorosamente controlada por ele. Demais, continuamos a assistir, impotentes, à mesma negociação indecorosa de liberação de verbas orçamentárias, quando não ao suborno puro e simples de parlamentares, no interesse privado do governo, como se tem visto com lamentável freqüência ultimamente, ao se impedir a instalação de comissões parlamentares de inquérito sobre atos de corrupção na esfera do Executivo.

Tudo isso, sem se falar na capacidade, ainda existente, dos Chefes de Executivo, na União e nos Estados, para avassalar o Judiciário e o Ministério Público.

Perante essa situação de lamentável ruína dos mecanismos institucionais de controle do poder entre nós, parece óbvia e urgente a necessidade de se elaborar um programa de regeneração política. Para tanto, devemos nos fundar nos princípios ético-jurídicos fundamentais, e combinar as instituições da democracia participativa com uma ampliação do sistema de separação de poderes.

É o que procuro esboçar a seguir.

 

II - Os Princípios Ético-Jurídicos de Organização do Poder Político

 

Devemos partir do postulado de que o poder é mero instrumento para a consecução de determinadas finalidades, cuja determinação é matéria de ética e não de técnica.

Ora, eticamente, o poder político é submetido, conjuntamente, aos princípios de ordem republicana e democrática, os quais nada mais representam, na verdade, do que uma especificação dos grandes princípios dos Direitos Humanos, todos eles inscritos em nossa Constituição. Até hoje, porém, não obstante o grande progresso da teoria constitucional nos últimos decênios, continuamos a pensar que as grandes políticas públicas, aquelas que empenham as futuras gerações de brasileiros e a própria soberania nacional, devem ser tecnicamente imunes ao juízo de constitucionalidade (21).

 

A ética republicana

 

Ela pode ser sintetizada na supremacia do bem comum sobre o interesse particular.

O bem comum é aquele que pertence a todos, em igualdade de condições. Comum, aí, opõe-se a próprio, assim como a comunhão opõe-se à propriedade. A essência do bem comum é, portanto, a idéia de inclusão e partilha; ao passo que a propriedade implica, necessariamente, a exclusão de todos os que não são titulares dela. Nas comunidades, a relação que se estabelece é sempre de natureza pessoal e igualitária: todos são companheiros, no sentido fraterno que a palavra tem, sob o aspecto etimológico: cum panis. É a reunião dos que partilham o mesmo pão. A relação de propriedade, ao contrário, tem por objeto não pessoas, mas coisas, das quais o proprietário pode livremente usar, fruir e dispor. Daí porque tomar a propriedade como fundamento da ordem social, como faz a ideologia liberal-capitalista, redunda, não somente em exacerbar o individualismo excludente (a supremacia do mais forte e do mais rico), como também em estimular a utilização de pessoas como coisas, ou simples meios para a satisfação dos interesses do proprietário. Na análise marxista da sociedade capitalista, como sabido, tem grande importância o conceito de mercadoria: a burguesia, à semelhança do lendário rei Midas, transforma em objetos sujeitos à lei do mercado tudo aquilo em que toca.

De onde se conclui, irrefutavelmente, que o sistema capitalista é de todo incompatível com a observância da ética republicana, pois ele tende, pela sua própria lógica, à exclusão social dos não-proprietários, bem como à transformação dos trabalhadores e dos consumidores em mercadorias, que têm preço, mas não dignidade.

Note-se a extrema abrangência da noção de bem comum. Ela diz respeito não só ao povo, em relação aos indivíduos, grupos ou classes que o compõem, como também à nação, enquanto entidade permanente, em relação aos interesses particulares do povo atual, e, finalmente, à humanidade como um todo, em relação a cada nação em particular. Ninguém tem o direito de sacrificar o todo em benefício da parte, ou as gerações futuras para favorecer a geração presente, como tem ocorrido presentemente, em matéria de preservação do meio ambiente.

Por outro lado, deve-se advertir que o Estado nem sempre age no interesse público, entendido este no seu preciso sentido etimológico (publicus, -a, -um, em latim, significa do povo). Como Marx salientou, os órgãos estatais não raro favorecem os interesses particulares das classes dominantes, em detrimento das classes dominadas. O que a análise marxista, porém, deixou na sombra, mas foi depois recuperado por Max Weber, entre outros, é que existe, sim, um interesse particular dos órgãos estatais, de índole corporativa ou burocrática, em oposição ao interesse comum do povo. Atualmente, por exemplo, sob a influência preponderante da ideologia neoliberal, a máquina estatal é levada a trabalhar, no mundo todo, no sentido de transformar as finanças, de atividade-meio em pura atividade-fim, como se o Estado existisse não para garantir o desenvolvimento nacional e a realização dos Direitos Humanos, mas sim para arrecadar tributos e manter o serviço da dívida.

No plano pessoal, a ética republicana exige que os governantes não transformem o Estado no seu domínio particular, pela sobreposição dos seus sentimentos ao interesse público, quer favorecendo indevidamente amigos e parentes, quer prejudicando os inimigos, ou preterindo os desafetos, embora altamente competentes, na ocupação dos cargos administrativos. Até hoje continua em vigor, entre nós, a máxima cunhada no período da "República Velha": "para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei".

 

A ética democrática

 

Ela se funda no princípio de que o poder político pertence ao povo, sendo os governantes simples mandatários, sempre obrigados a prestar contas ao mandante de seus atos e omissões, e sujeitos à responsabilidade pessoal pelos desmandos que tenham praticado.

Nas democracias modernas de índole exclusivamente representativa, porém, os governantes tendem a considerar o poder como um bem próprio e transformam a representação política em representação teatral: eles encenam, perante o povo, a farsa da estrita obediência à vontade eleitoral. As eleições, aliás, mui raramente exprimem a vontade popular por programas de governo. Elas constituem, no mais das vezes, a consagração de personalismos. É, portanto, ridículo ouvir governantes afirmarem, com toda a seriedade, que as políticas públicas por eles implementadas foram aceitas previamente pelo povo que os elegeu.

Nessa linha de raciocínio, é preciso reconhecer que o capitalismo é também incompatível com a ética democrática. A sua índole é essencialmente oligárquica: é o governo da minoria que, concentrando o poder econômico sob a forma de capital, dita o modo de vida de todos os outros agentes econômicos, de acordo com a lógica da máxima lucratividade. Para a classe empresarial, seria um desastre submeter as políticas econômicas de governo à vontade do povo, sem poder negociar em particular com os seus representantes, no governo ou no parlamento. O seu modelo de "democracia" é o funcionamento das sociedades por ações, nas quais finge-se que o poder soberano pertence aos acionistas (o povo), recebidos periodicamente na sede social para as festivas reuniões da assembléia geral, sendo de notório conhecimento que todas as decisões desta já foram previamente tomadas pelos controladores (a classe dominante), e que elas serão em seguida implementadas pelos administradores (o governo), sob sua imediata supervisão.

 

Os princípios cardeais dos Direitos Humanos

 

Eles formam a tríade sagrada da igualdade, da liberdade e da solidariedade, e se concretizam nas determinações constantes dos sistemas nacional e internacional de Direitos Humanos. Não existe superioridade de um desses sistemas sobre o outro. Eles se harmonizam entre si, segundo o critério da prevalência, na hipótese de conflito, da norma de maior proteção da dignidade humana.

Toda a evolução histórica dos Direitos Humanos, desde as suas primeiras formas embrionárias na democracia ateniense e na república romana, até os últimos tratados internacionais, como o que criou em 1998 o Tribunal Penal Internacional, segue uma linha diretriz bem marcada: a eliminação do abuso de poder, tanto político, quanto econômico ou social.

A plena realização dos Direitos Humanos no território nacional deveria, portanto, ser o ponto mais importante do programa de qualquer governo.

À luz desse mandamento supremo de ética política, é totalmente inadmissível sacrificar direitos fundamentais (o direito ao trabalho, à educação, à saúde, ou à previdência, por exemplo), para arrumar as finanças do Estado ("pôr a casa em ordem"); o que significa, na prática, manter intocáveis os direitos dos detentores do capital, ou dos títulos da dívida pública. A verdade é que, em nosso país, hoje mais do que nunca, os programas e planos de governo são decididos, em última instância, não pelo Presidente da República ou o Congresso Nacional, mas sim pelo Secretário do Tesouro Nacional. É ele que determina, pela liberação ou o corte de verbas orçamentárias, o que pode e o que não pode ser realizado como "política pública".

 

III - Um Programa de Ação

 

A – No plano educacional e da ação política

 

Montesquieu ressaltou, com toda a razão, a íntima ligação entre os regimes políticos e os sistemas de educação do povo. É que cada regime político orienta-se por valores próprios, que representam o seu princípio de funcionamento, valores esses que somente penetram fundo na consciência dos cidadãos, por força do empenho educacional. Ele também insistiu em que é o regime republicano, cujo princípio é a virtude política, isto é, a firme adesão de todos ao respeito do bem comum, aquele no qual a educação pública é mais necessária (22).

Ora, entre nós, uma das carências mais sentidas e tradicionais do nosso sistema de ensino diz respeito à formação do espírito cívico, ou seja, a educação para o exercício da cidadania. Já o nosso primeiro historiador, Frei Vicente do Salvador, advertia, no longínquo ano de 1627, que "nem um homem nesta terra é republico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular".

A Constituição Federal, em seu art. 39, § 2º, determinou que todas as unidades da federação criassem Escolas de Governo, "para a formação e aperfeiçoamento dos servidores públicos". Mas o mandamento constitucional, mesmo com essa limitação do seu escopo à Administração Pública, ainda é letra morta. Na verdade, esse dispositivo constou da Emenda Constitucional 19 por proposta do então Ministro da Reforma Administrativa, que se inspirou, para tanto, na experiência das escolas de governo e cidadania, criadas, primeiro em São Paulo e depois em várias outras unidades da federação, pela iniciativa de alguns professores universitários. Tais instituições educacionais visam a formar os cidadãos, não só para o exercício de funções políticas e administrativas no aparelho estatal, mas também e principalmente para fiscalizar a atuação dos agentes públicos e denunciar os abusos do poder.

Convém, aliás, salientar que não é de hoje, mas de sempre, a tendência aparentemente incoercível dos homens, de se considerarem perfeitamente aptos a exercer, sem a menor preparação, as mais diferentes responsabilidades no campo político. Foi esse, como sabido, o leitmotiv da filosofia política de Platão. No Alcibíades, por exemplo, Sócrates observa que, enquanto todos são capazes de prontamente reconhecer a sua inabilidade no exercício de alguma profissão técnica – construir navios, levantar fortificações, tocar algum instrumento musical (são exemplos por ele dados) – quase ninguém se enxerga ignorante na complexíssima arte de governar a polis, a qual exige não um conhecimento técnico, mas eminentemente ético: saber distinguir o justo do injusto. Ora, conclui ele, a pior ignorância, porque de extrema periculosidade social, é a auto-ignorância em matéria política: a situação daquele que não sabe que ignora os rudimentos da ciência prática de governo, e que, não obstante, está sempre pleiteando cargos ou funções públicas.

De qualquer maneira, porém, o exercício das prerrogativas inerentes à condição de cidadão exige um mínimo de organização do povo, como titular da soberania. Sem dúvida, aos partidos políticos, quando autênticos órgãos de representação popular e não simples máquinas eleitorais, incumbe essa tarefa de organizar a vontade política do povo. Mas não se deve nunca esquecer que os partidos são agentes políticos, cuja vocação natural é o exercício do poder no Estado.

Em ambiente de democracia direta e cidadania ativa, é indispensável criar outros mecanismos coletivos de ação política do povo. Seria, assim, segundo penso, da maior importância que lográssemos federar num consórcio de âmbito nacional todas as organizações não governamentais já existentes, cujo objetivo é o controle da atuação dos agentes públicos, em qualquer órgão do Estado. Isto viria potencializar a sua capacidade de agir politicamente em defesa do respeito aos objetivos e princípios fundamentais da República.

 

B – No plano institucional

 

Devemos lutar pelo aperfeiçoamento dos mecanismos institucionais de controle do poder. Por mais importante que seja a atuação educacional, ela não dispensa a criação de freios objetivos às práticas abusivas dos governantes.

Ora, o controle (no sentido de fiscalização, impedimento e responsabilidade) do poder político deve atuar, tanto no sentido horizontal (separação de Poderes), quanto no vertical (relação entre governantes e governados).

A matéria é vastíssima. Limitar-me-ei, portanto, a apresentar, sumariamente, uma lista não exaustiva de sugestões para uma verdadeira e séria reforma política.

Sugestões de controle vertical

 

- Submeter toda e qualquer emenda constitucional, uma vez aprovada no Congresso, ao referendo popular. Como enfatizou Sieyès em obra famosa (23), "em cada uma de suas partes, a Constituição não é obra do poder constituído, mas do poder constituinte. Nenhuma espécie de poder delegado pode mudar coisa alguma nas condições de sua delegação".

- Suprimir da competência exclusiva do Congresso Nacional o poder de autorizar referendo e convocar plebiscito (art. 49 – XV da Constituição Federal). A autorização e a convocação devem ser feitas pela Justiça Eleitoral, uma vez cumpridos os requisitos a serem fixados pela Constituição de maneira razoável, a fim de facilitar e não dificultar essas manifestações da soberania popular ativa.

- Suprimir a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, criada pela Emenda Constitucional 3, de 17 de março de 1993. Trata-se de manifesta no sistema tradicional de judicial control, criado pelos norte-americanos. A ação em questão não é uma defesa da cidadania contra o abuso governamental, mas, bem ao contrário, uma proteção antecipada do governo contra as demandas que os cidadãos possam ajuizar para defesa de seus direitos.

- Tornar obrigatória a participação popular na elaboração do plano plurianual e da lei de diretrizes orçamentárias, na União e nos Estados. Nos Municípios e no Distrito Federal, essa participação ativa do povo deve estender-se também ao orçamento anual.

- Instituir o recall de Chefes de Executivo e a dissolução, pelo voto popular, das Câmaras Legislativas, na segunda metade do mandato ou da legislatura. No caso dos Chefes de Executivo, o início do processo por crime de responsabilidade, no órgão legislativo, deveria ensejar a convocação do povo, mesmo na primeira metade do mandato ou da legislatura, para exercer, se assim o desejar, esse poder de destituição ou dissolução.

- Dar legitimidade a associações civis e a fundações, para a propositura de ações populares, inclusive de caráter penal (24), e de ações de improbidade administrativa contra os agentes públicos.

- Instituir o financiamento público das campanhas eleitorais, com a cominação de severas penas aos candidatos que receberem dinheiro de particulares, ou que despenderem acima do limite máximo fixado em lei.

- Rever a legislação concernente aos meios de comunicação de massa, de modo a evitar que eles sejam utilizados contra o interesse nacional, ou em prejuízo do direito fundamental do povo a ser corretamente informado sobre assuntos de interesse público, e do direito de controlar o exercício do poder, sob todas as suas formas. Nesse sentido, o primeiro passo é, sem dúvida, a revogação da Emenda Constitucional 36, de 28 de maio de 2002, que abriu, pela primeira vez entre nós, a possibilidade de estrangeiros controlarem órgãos de imprensa, rádio e televisão. Dever-se-ia introduzir no Brasil o "direito de antena", já previsto nas Constituições espanhola e portuguesa: é o direito de quaisquer entidades privadas a se servirem do rádio e da televisão para a transmissão de suas mensagens ao público.

Sugestões de controle horizontal

- Separar em órgãos distintos, no Congresso Nacional, o poder de legislar do poder de fiscalizar e autorizar. Com isto, eliminar-se-iam todos os obstáculos institucionais ao exercício da competência fiscal do parlamento sobre os demais Poderes. A maioria parlamentar perderia o poder de impedir a instalação de Comissões Parlamentares de Inquérito.

- Criar um órgão autônomo de planejamento, incumbido de elaborar os orçamentos-programas e os planos plurianuais de investimento, a serem aprovados pelo órgão legislativo, bem como de fiscalizar a sua execução. O objetivo é separar o longo prazo do curto prazo, de modo a evitar que os grandes investimentos de infra-estrutura e as políticas estruturais sejam sacrificadas ao interesse conjuntural ou eleitoral dos governantes.

- Alterar a disciplina dos orçamentos anuais. De um lado, tornar obrigatórias as despesas públicas aprovadas, salvo autorização prévia dada ao Governo, em cada caso, pela Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional. De outro lado, limitar as emendas que os parlamentares façam à proposta orçamentária, unicamente, à alteração de rubricas gerais, de modo a afastar as barganhas individuais entre o Executivo e os parlamentares (liberação de verbas em troca de votos).

- Proibir toda e qualquer despesa pública com propaganda governamental, inclusive as despesas com "publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos", permitida pelo art. 37, § 1º da Constituição Federal, quando tenham "caráter educativo, informativo ou de orientação social". A experiência tem demonstrado, fartamente, que essa norma constitucional é fraudada por todos os governos, sem exceção.

- Dar maior independência ao Judiciário e ao Ministério Público, em relação ao Poder Executivo. As nomeações para cargos, nesses órgãos, não deveriam ser feitas pelo Chefe de Governo. É preciso, também, dar-lhes maior autonomia financeira: a fixação de limites de despesas orçamentárias no Judiciário e no Ministério Público, feita pela mal denominada "Lei de Responsabilidade Fiscal" (Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000), atenta claramente contra o princípio constitucional de separação de Poderes. Se o Judiciário e o Ministério Público são, pela Constituição, criados como órgãos independentes, não cabe ao legislador reduzir as suas prerrogativas.

- Instituir mecanismos de controle público (não estatal) do Judiciário e do Ministério Público.

- Tornar os Tribunais de Contas órgãos do Poder Judiciário. Em recente reportagem de imprensa (25), apontou-se o fato de que, dos 189 membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, 33 respondem a processos junto ao Superior Tribunal de Justiça, pela prática de crimes de malversação dos dinheiros públicos.

Dixi et salvavi animam meam.

Concluído em São Paulo, em 18 de fevereiro de 2004.

 

Notas:

(1) Edição de 4 de janeiro de 2004.

(2) Do Espírito das Leis, Livre XI, capítulo 4º.

(3) O art. 99 da nossa Constituição Política do Império, de 1824, assim dispunha: "A Pessoa do Imperador é ínviolável, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma".

(4) Os Lusíadas, canto IV, estrofe XCIV.

(5) Macbeth, ato primeiro, cena 5.

(6) Idem, ato primeiro, cena 7.

(7) Política, 1279 a, 15.

(8) Do Contrato Social, livro terceiro, capítulo X.

(9) Os Donos do Poder – Formação do Patronato Político Brasileiro, 2ª edição, Tomo 1, Editora Globo/Editora da Universidade de São Paulo, capítulo 1º.

(10) Um Estadista do Império, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1975, pág. 239.

(11) Cf. Principes de Politique, capítulo II, in Oeuvres, Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, pp. 1112 e ss.

(12) Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 1958, p. 201.

(13) Ensaio sobre o Direito Administrativo, Tomo II, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1862, p. 55.

(14) Mesma obra, p. 261.

(15) Ibidem, p. 157.

(16) Joaquim Nabuco, op. cit., p. 663.

(17) O estudo de Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, cuja 1ª edição é de 1949, ainda é a obra de maior autoridade sobre o assunto..

(18) Obras Completas, Ministério da Cultura, Fundação Casa de Rui Barbosa, Volume XLI 1914, Tomo IV, p. 233.

(19) Ernst Hambloch, Sua Majestade o Presidente do Brasil – Um Estudo do Brasil Constitucional (1889–1934), Editora Universidade de Brasília.

(20) Joaquim Nabuco, op. cit., p. 129.

(21) Procurei, há alguns anos, num artigo composto em homenagem à memória do querido amigo, professor Gerlado Ataliba, reagir contra isto. Mas não tive sucesso. Cf. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas, Revista dos Tribunais 737/11.

(22) Do Espírito das Leis, livro IV, capítulo 5º.

(23) Qu`est-ce que le Tiers État?, capítulo V.

(24) A Carta Política do Império admitia que "por suborno, peita, peculato e concussão", pudesse ser intentada contra os juízes ação popular, "pelo próprio queixoso, ou por qualquer do Povo" (art. 157).

 

Fábio Konder Comparato é jurista, doutor pela Universidade de Paris, professor titular da Faculdade de Direito da USP e doutor honoris causa da Faculdade de Direito de Coimbra. É autor, entre outra obras, de "A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos" (Saraiva).

 

e,

 

O estado constitucional de direito hoje: o modelo e a sua discrepância com a realidade (*)

LUIGI FERRAJOLI

Professor da Universidade de Camerino (Itália)

 

1. Dois aspectos da crise actual da democracia

Vivemos hoje uma fase de crise dos sistemas políticos democráticos. O fim dos regimes comunistas nos países de Leste e a crise ideológica dos partidos de esquerda nos países ocidentais, ambos consumados na última década, marcaram o triunfo, por um lado, do capitalismo e, por outro, da democracia liberal, que parecem agora privados de alternativas credíveis. E no entanto, no preciso momento em que a democracia liberal celebra a sua vitória, parecem gastar-se os seus valores e desvanecer-se as suas promessas.

Valores e promessas que são essencialmente dois: em primeiro lugar, o carácter representativo dos sistemas políticos, ou seja, a sua capacidade para representar a sociedade e para realizar a vontade da maioria; em segundo lugar, a sujeição à lei dos poderes públicos, o controlo de legalidade sobre a sua actividade e a sua funcionalização à tutela e à satisfação dos direitos constitucionalmente garantidos. Dois valores que correspondem a outras tantas dimensões do paradigma democrático: a da democracia política e representativa e a do estado constitucional de direito, entendido este como sistema de limites e de vínculos impostos para garantia dos direitos fundamentais de todos.

É da crise simultânea destes dois elementos, expressa pela divergência entre o modelo normativo do estado democrático de direito e o seu funcionamento de facto, que aqui pretendo falar. Esta crise assumiu formas diferentes nos diversos países europeus. Mas creio que em Itália atingiu formas tão patológicas e paradigmáticas que permitem falar novamente de um «caso italiano». Para o bem e para o mal produzimos em Itália, ao longo deste século, numerosos «casos italianos». De um «caso italiano» se falou nos anos setenta, a propósito do longo período de lutas sociais desencadeadas a partir de 1968. A nossa capacidade inventiva exprimiu-se sobretudo no mal: o fascismo em 1922, a democracia bloqueada a partir de 1945, «Tangentopoli» nos anos oitenta e noventa e, hoje, o seu desenlace de direita nessa nova e singular coligação formada em apoio do governo Berlusconi. E receio que os elementos inovadores deste novo caso italiano, consistentes em outras tantas degenerações dos valores de representatividade e legalidade da democracia, constituam o resultado extremo de um processo degenerativo comum a todos os sistemas políticos ocidentais. Por isso, e não só porque a Itália é o país que melhor conheço, é sobretudo à Itália que farei referência ao analisar estes dois aspectos da crise que hoje atinge a democracia.

2. Um novo caso italiano. A alteração da comunicação política e da representação

Não falarei aqui da crise da legalidade do sistema político, ao qual são dedicados os outros dois dias do nosso seminário, senão para dizer que essa crise atingiu em Itália formas tão espectaculares, generalizadas e estruturais que se torna completamente imprópria a qualificação do nosso ordenamento como «estado de direito». Temos realmente de reconhecer, perante a dimensão atingida pela corrupção e pela ligação do poder político com a Mafia, com a Camorra e com outros poderes invisíveis (lojas maçónicas, Gládio, P2 e serviços secretos «desviados») que o nosso Estado era de facto um duplo Estado, por detrás de cuja fachada legal e representativa tinha crescido um infra-Estado clandestino, dotado de códigos e tributos próprios, organizado em centros de poder invisíveis, destinado à apropriação privada da coisa pública e secretamente percorrido por tentações subversivas recorrentes: um duplo estado oculto e paralelo que assim contradizia todos os princípios da democracia política e do estado de direito, do princípio da legalidade aos da publicidade, visibilidade, controlabilidade e responsabilidade dos poderes públicos.

Compreende-se que a descoberta deste infra-Estado graças aos inquéritos judiciais, e portanto a esse enorme recurso institucional do sistema constitucional italiano que é a independência do Ministério Público, tenha produzido um terramoto político na esfera da representação. Ao longo dos anos, tinham-se desgastado os dois principais pressupostos do princípio da representação: o papel dos partidos como instrumentos de mediação política entre a sociedade e as instituições e de canalização das necessidades e da vontade dos eleitores, e a sua base social tal como se exprimiu, por mais de um século, na estrutura de classes da sociedade. Estes dois pressupostos estão evidentemente ligados entre si e a sua crise afectou o sistema dos partidos na totalidade. Diria no entanto que enquanto a crise do primeiro pressuposto afectou sobretudo os partidos do governo, transformados nesses anos em centros ilegais de poder e em organizações corruptas, a do segundo afectou sobretudo as forças de esquerda, desvirtuadas na sua identidade ideal e no seu papel de representação dos interesses dos fracos, pela progressiva marginalização do trabalho dependente e, por outro lado, pela constante vocação para o compromisso, com o qual tentaram colmatar o seu vazio estratégico e programático.

Assim se explica o desenlace da crise italiana. Destruídos os velhos partidos do governo pelo ciclone Tangentopoli, os poderes fortes, os interesses consistentes e as clientelas que estavam por trás ficaram a descoberto, optando pelas listas pós-fascistas da Aliança Nacional, mas sobretudo reorganizando-se elas próprias na Fininvest-Força Itália de Silvio Berlusconi, e assim se propondo directamente, sem mediações representativas, como forças de governo. É este fenómeno que produziu a alteração mais profunda da nossa constituição material, sobre a qual deverá longamente reflectir a cultura política, e não só italiana. Esse fenómeno mudou formas e sujeitos da comunicação política e também da representação e da democracia, enriquecendo a ciência política de duas novas categorias: a empresa-partido e a empresa-governo.

Com o aparecimento na cena política da empresa-partido, mudaram desde logo as formas de comunicação política e da organização do consenso. A maior concentração existente de meios televisivos e de informação mobilizou-se na recente campanha eleitoral a favor não tanto de uma formação partidária ou de um bloco de interesses, mas directamente do seu proprietário, construindo em poucas semanas uma força política no seu departamento de publicidade e lançando-a no mercado com as mesmas modalidades as técnicas de marketing e os spots publicitários com que se lança um produto comercial. O sucesso eleitoral de Berlusconi foi obviamente favorecido por muitos outros factores: a debilidade ideológica e programática da esquerda, a necessidade de renovação e o generalizado sentimento de rejeição relativamente aos velhos partidos, a perspectiva de relegitimação oferecida ao velho eleitorado de centro e aos seus tradicionais interesses por uma força «nova» e genuinamente conservadora. Mas o sucesso de Berlusconi seria inexplicável se não se tiver em conta o papel desempenhado pelos seus canais de televisão em apoio do seu programa, por sua vez confeccionado na base de sondagens de mercado em torno das promessas mais gratas ao eleitorado; doutra forma é impensável que qualquer outra pessoa, mesmo que dotada de qualidades políticas, tivesse podido obter, sem esses meios, um sucesso análogo.

Mas é sobretudo o advento da empresa-governo que produziu as deformações mais graves da democracia representativa: a queda da mediação política e ascenção ao poder directamente do partido-empresa e do seu empresário, subitamente órfãos de representação e da protecção que lhes eram oferecidas pelos velhos partidos de governo. Graças a esta directa assunção de funções governativas, produziu-se a concentração numa só pessoa de um enorme poder económico e do poder político, que conduz ao reforço de ambos; daí resultando que os cruzamentos ocultos de interesses que caracterizaram Tangentopoli transformaram-se em cruzamentos públicos e institucionalizados.

É claro que uma tal confusão entre interesses públicos e interesses privados e sabemos neste caso com que dimensão e variedade, da informação à publicidade, da edição ao espectáculo, dos seguros à distribuição comercial infringe um princípio jurídico elementar: aquele que em todos os países civilizados impede que as funções públicas possam ser exercidas por quem nelas está privadamente interessado. Defendeu-se, mesmo à esquerda, que lamentavelmente no ordenamento italiano não existiriam normas explícitas sobre a incompatibilidade do cargo de presidente do conselho de ministros com fortes conflitos de interesses. Assim se esqueceu a existência, no nosso como em todos os sistemas jurídicos, de princípios gerais do direito como o dever constitucional de «imparcialidade» da administração pública, submetida à «unidade de direcção política e administrativa do presidente do conselho»; a obrigação deste, sancionada com o juramento constitucional, de «exercer as funções no interesse exclusivo da nação»; o princípio da igualdade, que não permite privilégios ou discriminações conformadas a interesses particulares; a anulabilidade dos actos, o dever de abstenção e a responsabilidade por danos que, mesmo no campo privado, segundo os arts. 1394.º e 2391.º do Código Civil, incumbem a qualquer administrador em caso de conflito de interesses com a entidade de que é órgão e, mais em geral, sobre qualquer representante em caso de conflito com o seu representado; por fim, a previsão como crime, punido pelo art. 323.º do Código Penal, do «abuso de funções», que ocorre sempre que o funcionário público retira um benefício privado do exercício de funções públicas.

Mas esta ocupação do governo directamente por uma empresa significa sobretudo a violação de um princípio fundamental do moderno estado representativo: a separação entre Estado e sociedade, entre esfera pública e esfera privada, entre poderes económicos e poder político. Esta separação, bem mais importante e fundamental que a intra-institucional entre os três poderes do Estado, não está escrita em nenhuma constituição porque faz parte, por assim dizer, do constitucionalismo profundo de qualquer democracia. E constitui o pressuposto do estado político-representativo, que nasce da superação da confusão entre soberania e propriedade que caracterizava o velho estado patrimonial pré-moderno, e se afirma, na base da autonomização da esfera pública relativamente à esfera privada, como mediação política e representativa entre as duas esferas.

É esta, parece-me, a mutação mais relevante e original produzida em Itália, que nos autoriza a falar de uma nova forma de Estado, sem precedentes na história das democracias. Um governo-empresa baseado na confiança de uma empresa-partido significa realmente uma clamorosa reprodução da confusão pré-moderna entre público e privado, com a consequente deformação quer do Estado, quer do mercado. Daí resulta em primeiro lugar uma ruptura de todo o sistema dos equilíbrios institucionais, além do mais porque o grupo dirigente do partido-empresa, que é o partido maioritário no parlamento, é o mesmo grupo dirigente da empresa-partido propriedade do chefe do governo-empresa; em segundo lugar, uma contaminação do papel de controlo do parlamento com as relações privadas dependentes que ligam ao leader-manager muitos dos actuais parlamentares; por fim, a transferência para as instituições do modelo autoritário da empresa e da lógica não igualitária do mercado, segundo um paradigma neocorporativo relativamente à qual a presença dos fascistas no governo constitui uma componente orgânica e não casual.

Isso é comprovado pelo facto de a maioria se ter movido nas instituições sem nenhum sentido do limite, transportando para a esfera da política a aspiração monopolista própria do mundo dos negócios e interpretando o princípio da maioria como domínio absoluto, segundo a lógica das sociedades por acções. A ocupação da RAI, com a finalidade de controlar o serviço televisivo e de reforçar as redes da Fininvest, é sob todos os aspectos exemplar. Nela se exprime ao mesmo tempo o papel primário associado à televisão como sede da política, o conflito clamoroso e penalmente relevante entre interesse público e interesse privado, o espírito de apropriação e prepotência que, em nome do princípio da maioria, visa neutralizar o pluralismo. Mas um discurso análogo merece o recente decreto Biondi visando neutralizar os inquéritos «Mani pulite», onde igualmente se manifesta o interesse privado na autotutela, mais do que na defesa dos velhos amigos e protectores da actual presidente do conselho e, conjuntamente, a vocação totalitária do novo governo, intolerante com os poderes autónomos e as suas funções de controlo. Até na política económica do governo, baseada principalmente nos cortes à assistência sanitária e às pensões, pesa a suspeita de um interesse pessoal do presidente do conselho pelas vantagens que receberiam as seguradoras de que ele é proprietário.

Há por fim outro aspecto, não menos importante, do caso italiano que serve para explicar o sucesso da empresa-partido e da empresa-governo e ao mesmo tempo a natureza do novo sistema político que sobre elas se está edificando: a afirmação, como nova Grundnorm, do primado do mercado e da ausência de limites dos poderes empresariais. Ocorreu realmente um facto singular e na aparência paradoxal: a revolta suscitada pela descoberta de Tangentopoli e do sistema de ilegalidade que caracterizou, na última década, toda a vida política do nosso país, desembocou numa desqualificação sem apelo dos velhos partidos, mas também numa profunda deslegitimação do Estado e da esfera pública, e até da constituição republicana, identificados indistintamente com a partidocracia e com os negócios sujos. A rejeição do velho sistema político envolveu consequentemente, numa única embora contraditória deslegitimação, não só o seu funcionamento efectivo mas também a sua dimensão normativa, não só o seu modo de ser real e ilegal, mas também o seu dever ser constitucional. Com o resultado de favorecer sob o signo da polémica anti-estatista e de palavras de ordem como o primado do mercado e a liberdade de empreendimento o desmantelamento do estado social e do seu sistema de limites, de garantias e de controlos não só sobre o Estado, mas também sobre o mercado. A liberdade económica, desregulada e selvagem, tornou-se assim o valor basilar da cultura de governo, que se fundiu com a cultura empresarial, em perfeita sintonia com a confusão de interesses públicos e privados personificada pelo presidente do conselho.

3. Poderes ilimitados e aspirações neo-absolutistas: maioria e mercado

O caso Itália assinala portanto quatro ameaças alarmantes para a democracia: 1) as novas técnicas televisivas de captação do consenso; 2) a confusão entre a esfera pública e a esfera privada; 3) a ideia do carácter ilimitado do poder da maioria; 4) a ideia do carácter ilimitado da liberdade do mercado. Sem contar com o enorme valor simbólico do retorno, depois de cinquenta anos, dos fascistas ao governo, que significou a ruptura do fundamento histórico da nossa democracia, a sua inspiração antifascista, que é a característica genética não só da democracia italiana mas em geral, creio, da democracia contemporânea e da própria identidade democrática do Ocidente, ambas redifinidas com a carta da ONU, a Declaração Universal de 1948, as constituições italiana e alemã, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem através da negação do nazi-fascismo.

É claro que os dois elementos de desregulação dos poderes económicos do mercado e da ausência de limites dos poderes públicos da maioria que sob a inflacionadíssima etiqueta de «democracia liberal» formam não só o credo ideológico da direita italiana, mas também as linhas de tendência presentes com formas e medidas diferentes em todos os sistemas políticos ocidentais são a antítese do paradigma do estado de direito como sistema de limites e de vínculos idóneos a impedir a formação de poderes absolutos, quer públicos, quer privados.

Em Itália esta dupla ausência de limites é particularmente visível e aberrante, pelo facto de ter sido protagonizada por uma única força, ao mesmo tempo política e económica. Mas esta específica perversão italiana expressa pelos dois primeiros elementos referidos que hoje ameaçam a democracia não é casual, e pode reproduzir-se onde quer que os dois tipos de limites faltem, qualquer que seja o país. Por duas razões, uma política e a outra social. A primeira é representada pela relação sinérgica sempre mais estreita que se foi instaurando entre o dinheiro e a política, o primeiro como meio para financiar as novas formas televisivas de organização do consenso, a segunda como meio de conservar e aumentar o poder económico. A segunda é constituída pela alteração da composição social nos países de capitalismo avançado, que cada vez se configuram mais como «sociedades dos dois terços», nas quais a maioria é formada por classes ricas ou desafogadas que identificam a liberdade essencialmente com a recusa das regras, enquanto as classes débeis, pobres e excluídas se reduzem cada vez mais ao estado de minorias.

Por causa deste segundo fenómeno, a relação entre estado de direito e democracia política inverteu-se. Enquanto no passado, até há poucos anos, o estado de direito parecia um valor liberal e burguês enquanto concebido prevalentemente para tutela das liberdades civis, e a democracia política parecia um valor socialista, dado que a maioria era formada por trabalhadores dependentes e por pessoas pobres, hoje essa relação inverteu-se. Na sociedade dos dois terços, a democracia política arrisca-se a favorecer ainda mais as classes fortes e ricas, que enquanto maioritárias insistem cada vez mais abertamente no princípio maioritário e na indiferença pelas regras, limites e controlos, enquanto que é o estado de direito, com os seus limites e vínculos impostos ao Estado e ao mercado, para tutela não só das liberdades, mas também dos direitos sociais, que desempenha uma função de defesa e de garantia relativamente às pessoas mais débeis.

É portanto a resistência a estes dois tipos de limites a do poder político maioritário e a do poder económico ou do mercado a insídia mais grave para o futuro do nosso sistema político. Ausência de limites para o poder político e ausência de limites para o poder económico equivalem de facto a outras tantas formas de absolutismo perigosamente convergentes que contradizem o paradigma do estado constitucional de direito, provocando uma regressão à era pré-moderna, à lei do mais forte. Efectivamente, por um lado, as duas formas de absolutismo apresentam-se como contestação da legalidade e das regras, desqualificadas como obstáculos inúteis ao poder de decisão governativo e ao desenvolvimento produtivo. Por outro lado, absolutismo da maioria e absolutismo do mercado, conjugando-se com a desqualificação da política, da esfera pública e do estado social, provocam uma ruptura do pacto constitucional, fundado na tutela da igualdade e na satisfação dos direitos vitais de todos e em particular das pessoas mais débeis.

4. Repensar a democracia. O direito como garantia da democracia

Bastaria isto para demonstrar a incompatibilidade destes dois absolutismos o político e o económico não só com os princípios do estado de direito, como também com a democracia. Da democracia existem muitas representações ou modelos. Na acepção corrente, poderosamente alimentada em Itália pelas actuais forças de governo, ela é habitualmente confundida com a omnipotência da maioria. Se assim fosse, seria difícil negar o carácter democrático de regimes totalitários como o fascismo, o nazismo ou o stalinismo, que provavelmente gozaram, pelo menos em alguns momentos, de consensos largamente maioritários. Mas precisamente porque os erros destes regimes ensinaram que a democracia não consiste realmente no despotismo da maioria, mas sim num sistema frágil e complexo de separações e equilíbrios entre poderes, de limites e vínculos ao seu exercício, de garantias estabelecidas para a tutela dos direitos fundamentais, de técnicas de controlo e reparação contra a sua violação; e que estes equilíbrios se rompem, e a democracia é posta em perigo, sempre que os poderes, sejam económicos, sejam políticos, se acumulam ou, pior, se confundem em formas absolutas.

Este complexo sistema de vínculos e de equilíbrios mais não é do que o direito, e mais precisamente a Constituição, que deve ser reconhecida como a principal garantia da democracia, não só no aspecto formal, isto é, como conjunto de procedimentos e de controlos estipulados como garantia da representação e do conexo princípio maioritário; mas também no aspecto substancial, enquanto sistema de direitos fundamentais estipulados contra as tentações absolutistas, para garantia da igualdade e das necessidades vitais de todos. Uma tal função do direito como sistema de garantias tanto das formas como dos conteúdos da democracia funda-se numa característica estrutural própria do moderno estado constitucional de direito: a sujeição ao direito da produção do próprio direito, por força da qual o direito não só, segundo o velho esquema juspositivista, é produzido por fontes e formas de que é possível garantir o carácter democrático-representativo, mas é também programado nos seus conteúdos por princípios constitucionais que limitam e vinculam os poderes normativos, dirigindo-os ao respeito e à satisfação dos direitos fundamentais. Graças a esta característica, é o próprio «dever ser» do direito, e não só o seu «ser» o seu modelo axiológico e não só a sua existência que foi positivado como direito sobre o direito, na forma de limites e vínculos jurídicos à produção jurídica.

Esta dupla artificialidade do direito positivo actual do seu ser e do seu dever ser comporta a meu ver duas relevantes consequências, respectivamente no plano da teoria jurídica e no da teoria política: por um lado, uma revisão da tradicional teoria da validade; por outro, uma redefinição da democracia. Não posso, por falta de tempo, demorar-me analiticamente nestas duas consequências, que de resto já tive ocasião de desenvolver (em Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale, 1989, caps. VII e XIII e em «O direito como sistema de garantias») (**). Limito--me a salientar que ambas se baseiam na dupla dimensão adquirida pela legalidade no estado constitucional de direito: a dimensão formal, que respeita às formas dos actos normativos, e a substancial, que respeita ao seu conteúdo ou significado. Mais precisamente, a revisão da noção de «validade», identificada pelo juspositivismo clássico com a «existência» das normas, consiste na sua dissociação em duas figuras distintas: por um lado a «vigência», que se identifica com a simples «existência» ou «validade formal» e que consiste na conformidade ou correspondência do acto normativo com as normas formais sobre a sua formação; por outro, a «validade» ou «validade substancial», que pelo contrário consiste na coerência do significado ou conteúdo das normas produzidas com as normas substanciais sobre a sua produção.

Ora, estas duas dimensões da legalidade são disciplinadas pelas duas classes de meta-normas nas quais se articulam todas as constituições, a começar pela italiana e pela espanhola: as normas formais sobre a organização do poder, e em particular sobre o princípio matioritário e sobre a divisão de poderes, e as substanciais, expressas pelos princípios e direitos fundamentais. Paralelamente à distinção entre vigência e validade, também na democracia se podem consequentemente distinguir duas dimensões: a dimensão formal, que respeita às condições da vigência ou legitimidade formal asseguradas pelo respeito pelos princípios da democracia política, e a que podemos chamar substancial e que respeita às condições de validade asseguradas pela observância dos direitos fundamentais. Enquanto efectivamente os princípios da democracia política disciplinam as «formas» (o quem e o como) das decisões, garantindo a expressão da vontade da maioria, os direitos fundamentais respeitam à sua «substância» ou «conteúdo» (o que não se deve ou antes o que se deve decidir), para lá ou talvez até contra a vontade da maioria: quer se trate de liberdades, que impõem proibições, quer se trate de direitos sociais, que impõem deveres ao legislador.

O estado constitucional de direito não é mais do que esta dupla sujeição do direito ao direito, gerada por esta dissociação entre vigência e validade, entre forma e substância, entre legitimação formal e legitimação substancial ou, se se quiser, entre as weberianas «racionalidade formal» e «racionalidade material». Graças ao reconhecimento desta dissociação, falece a presunção de legitimidade associada ao direito existente pelo juspositivismo dogmático e, nos ordenamentos politicamente democráticos, pela concepção jacobina e puramente política da democracia. A possibilidade de um «direito substancialmente ilegítimo», isto é, da divergência entre normatividade e efectividade do dever ser constitucional do direito positivo, representa de facto, com aparente paradoxo, a condição prévia da democracia substancial. Daí deriva um papel central para os tribunais e para a sua independência como instrumento de controlo da legalidade do poder e de garantia contra os seus desvios: da jurisdição constitucional sobre a validade das leis, da administrativa sobre a validade dos actos da Administração, da penal contra os abusos e as arbitrariedades criminosas dos titulares dos poderes públicos. Ao mesmo tempo, todos os poderes, públicos e privados, ficam, num tal modelo normativo, funcionalizados aos direitos fundamentais. A política e o mercado, ou seja, os lugares e as formas das decisões, acabam por se configurar como a esfera do decidível, rigorosamente circunscrita pela esfera do não decidível, representada pelos direitos fundamentais e subtraída tanto à decisão política como à negociação do mercado. A relação entre estado de direito e princípio maioritário, ou mais simplesmente entre direito e política, quando confrontada com as representações «politicistas» da democracia, fica invertida: já não é o direito que pode ser concebido como instrumento da política, mas pelo contrário a política que deve ser assumida como instrumento de realização do direito.

5. Uma nova ciência das garantias

É evidente que o modelo de democracia aqui delineado é exactamente o oposto do duplo absolutismo dos poderes da maioria e da liberdade do mercado que caracteriza as actuais tendências do sistema político italiano e, em geral, as vocações das modernas democracias ocidentais. Para ambos os absolutismos é insuportável a legalidade, quer os limites quer os controlos a ela ligados, a começar pelo exercido em Itália com a bem conhecida eficácia pela independência da magistratura.

Se isto é verdade, o problema da democracia pode ser hoje articulado em dois subproblemas, ambos relativos ao seu nexo com o estado de direito. O primeiro problema é o do reforço das garantias jurídicas e institucionais adequadas a vincular os poderes à tutela dos direitos, e portanto a reduzir o desfasamento, até certo ponto fisiológico, mas além de certo limite patológico, entre dever ser e ser do direito, entre normatividade e efectividade, entre promessas constitucionais e funcionamento real das instituições. O segundo problema é de carácter mais propriamente político e cultural, e respeita à maturação, na consciência civil, de um modelo de democracia que rejeite as simplificações «democrático-liberais» baseadas no domínio dos poderes política ou economicamente fortes sobre pessoas e interesses socialmente débeis.

O primeiro problema corresponde a uma questão inteiramente em aberto na ciência jurídica. A cultura jurídica, até agora condicionada por um aparelho conceptual de tipo paleo-liberal, ainda não elaborou uma teoria das garantias e uma ciência das constituições à altura das instâncias de tutela expressas pelos velhos e novos direitos e pelos ataques que podem provir dos dois absolutismos da maioria e do mercado atrás referidos. O paradigma constitucional nasceu realmente com referência apenas às liberdades. E não se desenvolveu, ao lado de um constitucionalismo liberal, um constitucionalismo económico, político e social.

Em particular, a ciência jurídica não elaborou um constitucionalismo de direito privado capaz de impor limites e garantias ao poder das forças económicas, relativamente às quais, por causa de um velho equívoco em que incorrem quer a cultura jurídica quer a política a equivalência instituída entre liberdade e propriedade se tem até ignorado que são verdadeiros poderes. O paradigma garantista do estado de direito foi por isso modelado tendo em vista apenas as relações verticais estado/cidadão, autoridade/autonomia, liberdades públicas/ liberdades privadas, mas já não as relações verticais que também se instauram entre cidadãos, ou seja, entre poderes privados e liberdades individuais. Isto não quer dizer que na realidade não tenham sido introduzidos limites e garantias relativamente aos poderes privados. A história da propriedade privada, da empresa e do direito do trabalho, a par da do direito de família, é em grande parte uma história da progressiva limitação dos poderes privados, para tutela dos direitos fundamentais da pessoa. E todavia não foi construída uma teoria jusprivatística do estado de direito e dos direitos fundamentais relativamente aos poderes privados, comparável à juspublicística desenvolvida em matéria de poderes públicos.

Mas nem sequer na esfera pública a cultura jurídica elaborou, além das garantias penais e processuais para tutela das liberdades, garantias adequadas à tutela dos direitos políticos e dos direitos sociais. Matérias decisivas para a democracia política, como o pluralismo da informação, estão inteiramente subtraídas a qualquer regulamentação e relegadas para a esfera do privado e do mercado. Novos direitos, como os relativos ao ambiente e à paz, estão privados de adequadas garantias constitucionais. Enfim, os direitos sociais continuam, na maior parte, no estado de promessas, cujo cumprimento é confiado à discricionariedade política e administrativa. Assim como não foi construído, ao lado do estado de direito liberal, um estado de direito em matéria civil, também não foi edificado um estado social de direito, nem sequer um estado de direito em matéria de comunicação política e de mediação representativa entre partidos e cidadãos.

É certo que este vazio de garantias constitucionais resulta também de dificuldades técnicas: diversamente das liberdades, cuja violação produz antinomias e leis inválidas anuláveis por inconstitucionalidade, as violações dos direitos sociais, e mais em geral dos que requerem intervenções activas do Estado, provocam lacunas e omissões não remediáveis facilmente. Mas isto não quer dizer que para estes direitos não sejam concebíveis técnicas de garantia, embora mais complexas. Nada impediria, por exemplo, a introdução nas constituições de vínculos às políticas da despesa pública através da formulação de uma escala quantificada de prioridades, assegurada pela reserva para as diversas matérias de despesa social (saúde, educação, subsistência, previdência, e outras) de quotas mínimas do orçamento estatal; e portanto a extensão do controlo de constitucionalidade, actualmente limitado às leis que violam as liberdades clássicas, também às leis de orçamento e portanto à omissa ou inadequada satisfação dos direitos sociais.

Mas acima de tudo não é verdade, como muitas vezes se repete, que os direitos sociais, comportando para o Estado um dever de prestação positiva, não admitam técnicas de garantia tão universais e formalizáveis como as estabelecidas para as liberdades. Pelo contrário, a própria falência, decretada pelos inquéritos de Tangentopoli, do sistema de ineficácia e de ilegalidade que foi até hoje o estado social burocrático, se apresenta como a mais clamorosa confirmação do valor simultaneamente jurídico, económico e político de um princípio de carácter geral, segundo o qual um direito social pode ser garantido de maneira tanto mais plena, simples e eficaz no plano jurídico, quanto menos gravosa no plano económico e tanto mais ao abrigo da discricionariedade político--administrativa e portanto da selectividade e da corrupção por elas alimentadas, quanto mais a mediação burocrática requerida pela sua satisfação seja reduzida e, no limite, eliminada mediante a sua garantia igual para todos, ex lege, sem indagação sequer do estado de necessidade.

A forma paradigmática de uma tal garantia é, a meu ver, a oferecida pelo salário ou rendimento mínimo garantido a todos, a partir da maioridade. Trata-se, como é sabido, de uma proposta desde há algum tempo elaborada e discutida na literatura sociológica (recordem-se os estudos de James Meade, de Guy Standing, de Ralph Dahrendorf e de Massimo Paci) e tornada cada vez mais necessária e urgente pela ruptura agora irreversível da tradicional relação entre desenvolvimento produtivo, emprego, capacidade de trabalho e subsistência. A sua característica mais saliente reside na satisfação ex lege, de forma universal e generalizada e já não apenas, segundo o estabelecido pelo art. 38.º da Constituição Italiana, relativamente a quem é «inacapacitado para o trabalho e desprovido dos meios necessários para viver», do direito social à subsistência. Um esquema análogo têm as formas gratuitas e obrigatórias de satisfação de outros direitos vitais, como os direitos à saúde, à educação e à segurança social, que hoje se tende a eliminar ou a reduzir em nome do valor e da eficácia do mercado, que se mostra na realidade uma fonte inesgotável de lucros ilícitos e de gravame para os utentes.

Naturalmente, o principal problema posto por tais garantias ex lege é o do seu financiamento, que requereria formas de agravamento fiscal suficientemente progressivas de maneira a permitir recuperar os encargos. Mas por muito custosas que sejam, tais garantias sê-lo-ão talvez menos do que as formas rapaces e corruptas geradas pela distribuição das mesmas prestações de forma selectiva e discricionária e do que os enormes desperdícios produzidos pela selva dos aparelhos encarregados dessa distribuição. O objectivo de uma reforma racional da administração pública, com vista à máxima redução da mediação burocrática e à máxima transparência e simplificação, converge em suma com a indicação estratégica da formalização e da universalização a nível constitucional das prestações requeridas pelos direitos sociais, como técnicas de garantia ex lege mais adequadas do que quaisquer outras a assegurar o máximo de igualdade e de efectividade, e até mais eficazes do que as estabelecidas para as liberdades. Sem contar que essa perspectiva de garantir a todos o mínimo vital é também a única, na aparência paradoxalmente, que tornaria sustentáveis os objectivos, hoje prosseguidos pela direita, de uma economia liberalista e de um aumento da flexibilidade nas relações de trabalho.

6. Democracia e imaginário social

O segundo e não menos importante problema da efectividade dos direitos, e consequentemente da democracia, respeita à sua percepção social, ou seja, o grau de consciência com que são reivindicados e defendidos. Ficou dito mais acima que em sentido corrente a democracia é geralmente identificada com a omnipotência da maioria e, talvez, com o desregulado exercício das liberdades económicas: quer dizer, com os dois absolutismos, da maioria e do mercado, prosseguidos pela actual ideologia maioritária e liberal. Depois de tudo o que se disse, torna-se claro que uma tal concepção da democracia é de facto antitética do significado e do papel dos direitos fundamentais como limites e vínculos em relação a qualquer poder.

Se isto é assim, a luta pelo direito e pela democracia é também uma batalha cultural dirigida a modificar este sentido corrente e a fazer amadurecer na consciência civil uma concepção de democracia assente nos direitos fundamentais de todos, como vínculos, negativos ou positivos, a todos os poderes, e portanto como negação de todo e qualquer poder absoluto. Esta questão é de particular importância e actualidade em Itália, onde temos assistido nestes anos a uma regressão do sentido corrente da democracia para concepções grosseiramente maioritárias e a um apagamento da Constituição e do constitucionalismo na consciência pública através de palavras de ordem como o primado do mercado, o antiestatismo e a anti-solidariedade.

Esta regressão foi provocada por dois factores convergentes. Antes de mais, pela desqualificação a que nos anos recentes foi submetida, tanto pela direita e como pela esquerda, a Constituição republicana e pela desenvoltura com que se defendeu a necessidade de revê-la. Para preencher a própria crise de representatividade e o crescente distanciamento da sociedade, o sistema político, durante toda a última década, fez das reformas institucionais (primeiro a escolha entre parlamentarismo e presidencialismo, depois a questão eleitoral) o tema central do debate e do confronto político, como se todos os males do nosso país a democracia bloqueada, a ineficácia do Estado, a própria corrupção proviessem das «regras», e o problema prioritário fosse a sua modificação por meio da reforma constitucional. Daí resultou um esbatimento do sentido da Constituição que enformou não só a Constituição de 1948, mas o próprio valor do constitucionalismo: não apenas este pacto, mas a própria ideia de um pacto vinculativo; não apenas este direito e estas regras do jogo, mas todas e quaisquer regras, isto é, o próprio valor das regras, a começar pela meta-regra geral do estado de direito que quer todos os poderes submetidos a normas superiores e vinculados à satisfação de direitos fundamentais inatacáveis quer pelo mercado, quer pela política.

O segundo factor, consequência do primeiro, desta regressão na concepção corrente da democracia foi a crise do valor da igualdade e do respeito pelas minorias produzida pela ideologia neo-absolutista da nova direita. Creio que esta modificação da ideia de democracia é ainda mais grave e destrutiva do que as operações políticas que ela consente. A ideia de que a democracia consiste unicamente no consenso da maioria («ganhámos as eleições, logo podemos fazer o que nos apetece»), comporta, além da redução do pluralismo, a legitimação da ilegalidade e do abuso: foi o que aconteceu com o conflito de interesses entre funções públicas e interesses privados do presidente do conselho (e também com a ocupação da RAI por parte da Fininvest), que no debate político foi precisamente legitimado em nome da soberania popular, que teria avalizado esse conflito com o voto. E um discurso análogo vale para a ideia liberal do primado e da desregulação do mercado. Operações como a reforma da educação em nome do reforço das escolas privadas e da transformação das públicas em «empresas», ou como os cortes nas pensões e na assistência sanitária a favor das seguradoras privadas, além da penalização das pessoas mais débeis e do favor prestado a poderosos interesses empresariais, têm acima de tudo o valor de uma mensagem ideológica dirigida a alterar a escala de valores em que se baseia a democracia: no vértice a liberdade de empreendimento e as razões da economia e do lucro, com a consequente desqualificação da esfera pública e a degradação dos direitos fundamentais, que a Constituição quer ver subtraídos à política e ao mercado, em meros direitos patrimoniais, quantificáveis e negociáveis.

É nesta mudança de sentido da democracia, em contraste com a sua imagem constitucional, que reside o principal risco de formação de um regime. Por isso, se hoje existe uma possibilidade de travar a involução constitucional em curso em Itália, ela passa antes de mais pela reafirmação, no imaginário social, do carácter sagrado e pactício da Constituição e pela defesa da única forma de identidade colectiva de tipo democrático: aquilo que nos Estados Unidos se chama «patriotismo da Constituição». Desenvolver este sentido da democracia, isto é, levar a sério a Constituição, é hoje, realisticamente, o únito tipo de batalha democrática, relativamente aos princípios, que pode ser ganha.

A Constituição, e em geral o direito, mais não são do que um conjunto de significados. Regem, funcionam, até o seu sentido ser socialmente compartilhado. Se não for assim, desaparecem, conjuntamente com os valores que garantem, sem necessidade de golpes de estado ou de alterações institucionais. Se é verdade que hoje a crise dos vínculos constitucionais provém sobretudo do seu obscurecimento no sentido comum, qualquer projecto de alternativa democrática passa por uma refundação do sentido do pacto constitucional como garantia da igualdade e dos direitos vitais da pessoa, na consciência de que os direitos fundamentais são sempre leis do mais fraco contra a lei do mais forte, que toma vantagem quando se perde o sentido daqueles, e de que a defesa do pacto constitucional só tem possibilidades de sucesso na medida em que cada um o entenda como defesa dos seus próprios direitos e da sua própria identidade de cidadão.

 

(*)Comunicação apresentada no verão de 1994 num seminário organizado por Jueces para la Democracia sobre «A crise do poder judicial na crise do estado de direito: Itália-Espanha, uma reflexão comparada». Todas as comunicações então apresentadas foram publicadas em Corrupción y Estado de Derecho: el papel de la jurisdicción, publicado pela Editorial Trotta, Madrid, 1996, sob a direcção de Perfecto Andrés Ibáñez. A presente tradução foi feita do original italiano por Eduardo Maia Costa.

(**) Publicado na Revista do Ministério Público, n.º 61, p. 29.

 

Fonte da imagem: http://girassol3462.blogspot.com/.

 

 

 

 

 

STF e as lagostas e vinhos

Um Supremo preso entre lagostas e vinhos!

 

Causou furor em alguns invejosos, outros de má-fé e em ignorantes e hipócritas de plantão, uma licitação promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) visando a compra de lagostas e vinhos para o tribunal.

 

Não vou discutir as razões dos revoltados de internet, mas propor um questionário, que você está obrigado a responder, sob pena de não participar do lauto banquete.

 

Vamos ver como andam seus conhecimentos.

 

1 – Você conhece algo sobre a guerra de Troia?

 

2 – Você sabe de onde vem a figura e o que significa ser anfitrião? Sabe que ser anfitrião ainda é algo prezado na vida privada e na vida institucional e, em especial, de relações internacionais?

 

3 – Você sabe que um dos motivos da guerra acima citada foi o fato de o hóspede violar o seu dever pela acolhida na casa de seu anfitrião?

 

4 – Você já ouviu falar em embaixadores? Sabe que a diplomacia é, ainda, algo que mantém o controle da barbárie no cenário internacional?

 

5 – Você já ouviu que uma das regras ou práticas de uma embaixada era/é o embaixador levar presentes ao dignitário que ele visita oficialmente?

 

6 – Você sabe que o Poder Judiciário é um dos Poderes da República Federativa do Brasil, juntamente com os Poderes Executivo e Legislativo?

 

7 – Você sabe que o órgão de cúpula do Poder Judiciário é o STF?

 

8 – Você sabia que, como Poder da República (do Brasil) o STF recebe autoridades/dignitários estrangeiros tal qual o presidente da República e o presidente do Congresso Nacional?

 

9 – Você sabia que é dever de quem receber um dignitário dar a ele o melhor tratamento possível, sendo, na medida do possível, um excepcional anfitrião?

 

10 – Você acha que ao receber um dignitário os presidentes da República, do Congresso Nacional ou do STF devem, ao oferecer-lhes almoços e jantares, servirem pratos típicos do homem “pobre” brasileiro, como ovo frito, feijão e arroz, buchada de bode ou jabá, por exemplo?

 

11 – Quando alguém visita sua casa, você escolhe o pior para servir a quem você tem obrigação de agradar no melhor servir?

 

12 – Você já ouviu falar em reciprocidade de tratamento diplomático?

 

13 – Você sabia que almoços e jantares servidos a dignitários são atos preliminares e preparatórios de grandes negócios para o Brasil?

 

Pois é, caro amigo que chegou até aqui, pense melhor antes de simplesmente se indignar com necessidades básicas da vida de seu país nas relações internacionais.

 

Se queremos ser civilizados, como se prega, temos que arcar com o ônus!

 

Ônus implica gastos! No caso, de recursos públicos.

 

Não fui convidado, mas isso não me impede de ver as coisas por ângulos diversos do simples desejo de escandalizar!

 

Quer criticar o STF com justeza?

 

Causas não faltam.

 

O STF tem mil defeitos que merecem contestação do cidadão, a meu sentir, como, por exemplo, decidir contra a Constituição que a ele cabe velar!

 

O STF impõe a prisão com condenação em segunda instância contra a Constituição!

 

O STF tem legislado contra a Constituição, pois isso cabe ao Congresso Nacional em conjunto com o Poder Executivo.

 

O STF encheu de poderes ilegais o juiz Moro, contra a Constituição!

 

O STF tem ações que dormitam em seus escaninhos faz séculos!

 

Nesses casos escabrosos, ninguém fala nisso, ao contrário, aplaude-se o tribunal que viola o que deveria preservar!

 

Arranje uma causa nobre e me convide para mostrarmos os verdadeiros erros do STF.

 

Inté,

 

Osório Barbosa

 

P.S.: Como tinha prometido, não vou falar sobre os revoltados da internet, vou apenas transcrever o despacho da juíza que tinha suspendido a licitação do STF, e do qual recorreu a AGU:

“Ao suspender a licitação, anteontem, a juíza ____ disse que o edital não se inseria como "necessário para a manutenção do bom e relevante funcionamento" do STF e que os itens exigidos "destoam sobremaneira realidade socioeconômico brasileira, configurando um desprestígio ao cidadão brasileiro que arduamente recolhe seus impostos para manter a máquina pública funcionando a seu benefício.”

 

Duas coisas:

 

Primeira: Quando a juíza diz que “o edital não se inseria como ‘necessário para a manutenção do bom e relevante funcionamento’ do STF”, ela assume uma função que não é a sua de juíza, mas de administradora do STF.

 

Segunda: Quando a juíza diz “que os itens exigidos ‘destoam sobremaneira realidade socioeconômico brasileira, configurando um desprestígio ao cidadão brasileiro que arduamente recolhe seus impostos para manter a máquina pública funcionando a seu benefício.’”, ela recorre aos argumentos dos revoltados da internet e legisla, pois esquece de fundamentar sua decisão em uma lei qualquer que a ampare, a escude, como dizem o juristas! Ou seja, ela caiu na mesma trilha do STF que é decidir segundo sua vontade, não amparado nas leis.

 

(Não li a decisão da magistrada na sua integralidade, o acima foi retirado de um jornal que, segundo ele, transcreve parte da decisão da juíza. Pode ser que em outro local, pois apenas me vali de “tiras”, ela tenha fundamentado seu decisum).

 

 

Fonte da imagem: www.jornalcontabil.com.br.

 

 

 

Bacalhau da Noruega 1Bacalhau da Noruega 2

A caixa de bacalhau.

 

Escrevendo as lembranças da minha infância no interior do Amazonas, na cidade de Maraã, a presença de meu pai se faz cada vez mais abundante e fecunda, pois, afinal, ele é o personagem principal.

 

No mês de dezembro estava em Manaus e fui a um shopping center e lá, em um de seus estabelecimentos, vi uma grande caixa de madeira (pinho) na qual estava escrito “Bacalhau da Noruega”.

 

Como sempre gostei de caixas de madeiras, especialmente as de vinho e as de charutos, e depois passei a gostar mais quando a Cris me apresentou o livro “O homem que amava caixas”, de Stephen Michael King, me encantei, a despeito do tamanho maior, com a caixa de bacalhau, a qual kiss acrescentar à minha coleção.

 

Me dirigi à gerente do comércio e perguntei-lhe o que fariam com a caixa depois de esvaziá-la. Não lembro a resposta, mas lembro que, ao final da conversa, ela disse que me daria a caixa. Que eu fosse apanhá-la no próximo domingo. Como eu ia viajar no sábado, minha ida ao encontro de meu objeto de desejo seria impossível. Então, encontrei o que achava ser a solução.

 

Pedi a meu filho, que tem carro, que no domingo fosse apanhar a caixa e levasse para a casa da minha mãe.

 

Depois de poucos dias procurei saber com a minha irmã se ele tinha levado a caixa e a resposta foi negativa.

 

Liguei para o filho e a resposta dele foi: “Esqueci”!

 

Engoli a seco!

 

Agora em abril, em Santos, ao passar em frente a um comércio vejo sendo entregues duas caixas iguais àquela lá de Manaus. Entrei e perguntei à portuguesa (sei disso pelo bigode e depois pelo sotaque) se, após as caixas serem esvaziadas, ela me as venderia. A resposta foi sim.

 

Bebi Chopps das 12 às 18:30 horas.

 

Na volta fui atrás das caixas.

 

Ela me vendeu por R$ 20,00 (vinte reais) as duas.

 

Levei para detrás do prédio e fui desmontá-las. O trabalhador do prédio, ao me ver em ação, disse-me, ao saber que eu tinha comprado, que a vendedora costuma jogar tais caixas no lixo. Não me importei com isso, estava feliz com as maravilhas.

 

Desmontei com cuidado (martelo, chave de fenda e alicate) para que os grampos não quebrassem a frágil madeira.

 

Levei-as para o apartamento com a intenção de lavar, mas desisti pelo tamanho do banheiro.

 

Corri atrás de um saco de lixo grande. Arranjei um no boteco em que bebo de vez enquando. O saco era menor que as quatro tabuletas maiores. Tive que colocar uma sacola em sentido contrário e, depois, com barbante, amarrá-los, como já o tinha feito com as tábuas. Ao fim, passei fita gomada e guardei o pacote em um banheiro que chamo dos excluídos.

 

O cheiro forte do bacalhau rescendia muito, só tendo melhorado depois de ensacadas e amarradas as tábuas.

 

Na manhã seguinte apanho um uber e levo o pacote objeto do meu carinho para a rodoviária. Apanho o ônibus e ele vem no bagageiro. Chegando em São Paulo levo-o para o metrô. Linha azul e depois verde. Chego na estação Consolação. Como é domingo, dia de feira, eu seria apenas um expositor a mais. Passo na banca de jornais com meu instrumento debaixo do braço, o qual começa a pesar e apanho os jornais do final de semana e vou para casa. O caminho fica cada vez mais longo e os braços fraquejam, por isso preciso mudar o pacote de braços constantemente. Finalmente chego em casa. Ufa!

 

Desembrulho as tábuas para que o odor do bacalhau não entranhasse nelas mais ainda. O cheiro toma conta do apartamento.

 

Na manhã seguinte: esponja, escova e desengordurante!

 

Lavei-as! Coloquei-as ao sol para que secassem. Felizmente não choveu e elas secaram rapidamente e o cheiro do peixe diminuiu bastante.

 

Contei-lhes tudo isso para dizer-lhes de um dos conselhos do meu analfabeto pai! Dizia ele para mim: “Seja audacioso”!

 

Este foi um conselho que sempre o papai nos transmitiu. Tenha coragem, enfrente, ouse, arroje, enfrente os obstáculos.

 

Creio que ele tinha razão, pois nunca me conformei com o fracasso sem sequer ter tentado.

 

Sempre disse o mesmo para os meus filhos, mas parece que berço de ouro atrapalha um pouco, pois a mãe necessidade, felizmente, não impõe a eles a oportunidade de serem “audaciosos” no sentido que seu Juarez Barbosa de Lima me ensinava!

 

Entretanto, não posso me queixar que eles sejam esquecidos, tenham memória ruim, pois quando lhes prometo algo, sempre para o dia 25 de cada mês (de olho no vencimento do cartão de crédito), no dia 24, às 23 horas, 59 minutos e 59 segundos eles não deixam que eu me esqueça da promessa que lhes fiz. São de uma pontualidade de relógios atômicos, que superam, em muito, os suíços!

 

Me sinto feliz em atendê-los, mas me sinto mais feliz ainda em nunca ter desprezado a bússola na minha vida que foram os conselhos do meu pai.

 

Inté,

 

Osório Barbosax

 

 

Linguagem humana

A linguagem humana.

 

A linguagem funciona por ser convencional.

 

Os homens convencionaram/acordaram entre si como chamariam/denominariam as coisas. Que nome dariam às coisas.

 

Como se trata de um acordo, todos, ou a maioria aceitou o nome dado pelo “batismo” dos objetos físicos e “mentais”.

 

Copo é copo porque é copo!

 

A razão, o motivo dele ser copo é o fato de os homens terem dito e aceito que o chamariam de copo.

 

O copo poderia chamar-se bastão e o bastão chamar-se copo! Para isso bastaria que o acordo assim houvesse determinado.

 

Na Amazônia brasileira sempre tivemos o boto-vermelho! Um dia aparece por lá o francês “Jacques Custou Caro” e chama o boto-vermelho de “boto-cor-de-rosa”!

 

Como o francês dispunha de amplo poder na mídia (imprensa), esta passou a divulgar o boto-vermelho como “boto-cor-de-rosa”, as pessoas que não conheciam o boto passaram a chamá-lo somente de “boto-cor-de-rosa”!

 

Mesmo muitos dos nativos, nós, os caboclos da Amazônia, passaram a chamar o nosso milenar boto-vermelho de “boto-cor-de-rosa”!

 

Algumas coisas ressaltam daí:

 

a) que o nome das coisas é dado por acordo entre os machos;

 

b) que a mídia tem um poder imenso, inclusive de mudar toda uma tradição mais que centenária;

 

c) que o mundo da cultura é dominado por quem a impuser, especialmente de forma sutil, sem a violência explícita, mas pelo convencimento vindo das palavras e da beleza com que elas são ditas.

 

Assim, só é possível um fraco entendimento entre os humanos se houver boa vontade em primeiro lugar, depois por conta das metáforas, sinônimos e exemplos.

 

Vejam que acima eu usei: “convencionaram/acordaram” e “chamariam/denominariam”, tudo para tentar me fazer entender.

 

Não sei se consegui!

 

Mas sei que não consegui! É que tudo que eu disse pode ser contestado, de boa ou má-fé, sendo que esta, a má-fé, pode vencer a disputa cultural.

 

Pense nisso, mas, antes, no seguinte:

 

No Nordeste brasileiro tem um ditado popular, usado para quando se quer aprovar algo, que diz:

 

“É justo que nem boca de bode”!

 

Você já viu uma boca de bode?

 

Sabe a razão do ditado?

 

Essa sabedoria popular vem da comparação, algo que, como eu disse, permite o diálogo.

 

O sábio, ao olhar as bocas dos bodes, percebeu que os lábios superiores são iguais, têm o mesmo tamanho, dos lábios inferiores, ou, o contrário, os lábios inferiores são iguais, têm o mesmo tamanho dos lábios superiores. Ou seja, não são maiores nem menores, são iguais, logo, são justos!

 

Assim, quem conhece os bodes ou foi aculturado em um ambiente em que se usa o ditado mencionado, ao ouvi-lo, já faz ideia do que se trata, daquilo que quem o usa quer dizer.

 

E, assim, falamos, e, assim, fazemos poesias e encantamos!

 

Mas, tudo isso, desde que A ouvinte (receptorA) tenha boa vontade (disposição) para nos ouvir.

 

Se não tiver disposição, pregaremos no deserto. Seremos indiferentes.

 

Se tiver disposição, achará qualquer tolice dita pelo emissor um belo poema de Lúcia Santos ou Augusto Assis Cruz Neto!

 

E assim vamos vivendo e, de vez em quando, fazendo filhos!

 

Inté,

 

Osório Barbosa.

 

Fonte da imagem: https://sites.google.com/site/linguaelinguistica/home.

 

À Rilke(1) me atrevi te escrever este bilhete, sem o mesmo brilhantismo, contudo. Não vou citar a ministra(2) pelo que disse do ministro(3) que também escreveu uma “Carta a um jovem juiz”, imputando-lhe conduta que não deve nortear a atuação dos destinatários.

 

Vejam: todos os subprocuradores-gerais da República já foram procuradores da República e procuradores regionais da República. Estes já foram procuradores da República. Assim, vocês são o início, realmente, e podem construir todos os fins, mas os outros também já o foram e abriram os caminhos que vós trilhais. Ou não encontraram nada que justifique que houve antecessores?

 

Para o bem ou para o mal, acredito que sim, que pioneiros existiram. Pois bem, sou como a maioria dos senhores, de ingresso posterior à Constituição de 1988. Fui aprovado no último concurso sob a batuta de Aristides Junqueira Alvarenga. Na casa, como procurador federal dos direitos do cidadão, encontrei Álvaro Augusto Ribeiro da Costa, cuja uma dentre as muitas lições relembro a seguinte: “sobre os ratos, é preciso jogar luz, pois eles temem a claridade”.

 

Quando cá cheguei/chegando, bem como os demais colegas de concurso, acreditava que o MPF era o ponto de apoio que me faltava para mover o mundo. Ainda acredito nisso, mas já não tanto na minha alavanca! Não que ela tenha “morrido”/quebrado, mas porque ela precisa ser retomada (ajudada) por outros, pois o próprio tempo se encarrega de diminuir as forças do candidato a movedor. O tempo, infelizmente, é o corruptor mais implacável de todos, pois chega a degenerar o próprio corpo e, consequentemente, seus consectários, como a própria beleza!

 

Mas o tempo também, como sabem (“o silêncio e o tempo são dois mudos que falam”), é o senhor da razão. Também cheguei a pensar que aqueles que me antecederam nesta nossa casa nada fizeram por ela. Consequentemente, pela sociedade. Estava enganado, como, de resto, costumo sempre estar. Eu não teria sido capaz de realizar o modesto trabalho institucional que realizei e realizo se não tivesse encontrado o caminho aberto pelos nossos antecessores.

 

Portanto, respeita os mais velhos, independentemente da idade, pois o que a ti pode ser novidade para eles pode ser apenas a repetição de um filme já visto de há muito. Isso não significa que não possas ser um brilhante cineasta e assim fazer todas as releituras possíveis. Só não tenhas tanta certeza de que todas elas serão as melhores. Então, aceita a divergência, pois, como tu, ninguém é dono da verdade. Lembra-te de que Galileu não acertou todas!

 

Então me perguntarás: “encontra-te satisfeito? Tua missão está cumprida?” Não, claro que não. Lembras que te convidei para juntar forças na minha palanca? Pois é...

 

É claro que tenho reservas a pessoas (como elas certamente as têm com relação a mim) e às falhas pontuais da instituição MPF. Mas acredito, acima de tudo, que essas falhas são apenas um incentivador convite às suas correções. E tu, jovem amigo de caminhada, és o convidado privilegiado que irás corrigir o que corrigido precisa ser. Mas, cuidado: és humano e, como tal, padeces das limitações que disso decorre. Portanto, seja altivo e corajoso, mas prudente. Inove, mas procure ver as razões dos vencidos (antecessores). Não erre, mas se errar, procure consertar seu erro. Lembra-te sempre que “não tens compromisso com o erro”. Seja duro no cumprimento do dever, porém não seja soberbo, pois tratas com seres humanos que, além de serem iguais a ti, são teus senhores, pois és um “servidor do público” e o público é o contribuinte que sustenta a ti, tua esposa, teus filhos e teus pais, muitas vezes. Mesmo que não fosse, respeita-o em sua dignidade. Não te niveles com o criminoso por baixo, exatamente descumprindo a lei para prejudicá-lo.

 

Não persiga o forte por essa sua simples condição que o sistema lhe permitiu, nem por inveja. Mas também não persiga o fraco por essa sua condição. Também não se curve àquele por aquela condição, nem a este por piedade. Não deves temer a nada, a não ser a possibilidade de cometeres injustiça contra ambos. Por isso não os olhes por suas condições, mas pela falta que cometeram.

 

Assim, não condenes antecipadamente os que te antecederam, pois, no mínimo, eles te deixaram os seus erros, exatamente para que tu não voltes a cometê-los.

 

 

 

Não és o carpinteiro de teu próprio berço, não importa se ele é de madeira dura ou de plumas. O importante é que deixes um melhor para teus filhos, no caso, que deixes um MPF melhor para aqueles que, inelutavelmente, te sucederão.

 

Do Osório Barbosa

 

São Paulo, 11/25/09.

 

Fonte da imagem: www.cgu.gov.br.

 

Notas:

[1] Rainer Maria Rilke, poeta alemão que escreveu “Carta a um jovem poeta”.

[2] Eliana Calmon. Fonte: O Estado de São Paulo, 22/11/2009.

[3] César Asfor Rocha.



 

 

 

 

Sentença e Estadão 2

A imprensa navega na impotência do poder judiciário!

 

A dialética criada pelos Sofistas é insuperável!

 

Hegel avançou no estudo da matéria e Marx pôs a cereja no bolo!

 

O poder judiciário (nunca confunda ele com Justiça, que é outra coisa!), é mal quando julga contra meus interesses, é bom quando castiga meus inimigos.

 

A celeridade do poder judiciário só é boa quando se impõe aos meus adversários!

 

A morosidade do poder judiciário é ótima quando me beneficia!

 

Como fazer a síntese?

 

Vejam esse exemplo corriqueiríssimo e façam a síntese necessária.

 

Luiz Antonio Fleury Filho, ex-governador do Estado de São Paulo, em 14 de agosto de 1998 foi atacado por editorial do jornal da Tarde, pertencente ao grupo Estado (OESP).

 

Entrou (ajuizou) com ação junto ao poder judiciário por danos morais e direito de resposta.

 

Hoje, 05.04.2019, VINTE (20) ANOS, o jornal publica o direito de resposta!

 

Da matéria injuriosa constou: “Assim é que por durante oito longos anos, a instituição (Ministério Público) foi cooptada pelo então governador Orestes Quércia e perdeu inteiramente sua autonomia, convertendo-se em mero braço auxiliar do Palácio dos Bandeirantes."

 

Não sei as razões do comentário do jornal!

 

Não sei se as práticas nas relações Governo do Estado e Ministério Público Estadual mudaram depois da matéria, mas é certo que, nos últimos cerca de 18 (dezoito) anos em que assino o jornal, justamente para fazer o contrário do que ele diz, não vi mais comentário de igual teor.

 

Acho que nos governos posteriores o Ministério Público de São Paulo voltou a atuar sem quaisquer amarras impostas pelos governadores dos últimos anos!

 

Que alento!

 

Uma coisa boa tem a matéria, pois, para quem vem dizendo que a história começou ontem, o jornal informa que em 1998 fazia-se “Cerco a prefeitos corruptos”!

 

Certamente que é esse o motivo da condenação, pois jamais houve corrupção no país! Aliás, ela é bem recente, data de certa de 2003, segundo prega todos os dias o mesmo jornal.

 

Assim, caro leitor que chegou até aqui, tire suas conclusões numa síntese brilhante como o é toda aquela que você faz!

 

Inté,

 

Osório Barbosa

 

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