"Liberdade é a possibilidade de escolhas entre alternativas factíveis."
foto: Ediel Ribeiro.
Roniquito de Chevalier.
1936-83. Economista e inventor da palavra aspone.
Ele às vezes entrava num botequim e se anunciava: "Senhoras e senhores, aqui Ronald de Chevalier. Dentro de alguns minutos... Roniquito!".
Mesas estremeciam. Todos sabiam que aquele rapaz bem-nascido, bem vestido, bem-falante e de profissão economista, que acabara de entrar recitando Shakespeare ou Baudelaire, iria cumprir a ameaça. Dali a três ou quatro uísques (não havia uma progressão, era de repente), ele se aproximaria de alguém (o queixo proeminente quase espetando a cara do outro) e diria alguma coisa tão ofensiva que faria o outro espumar e partir para assassiná-lo. Talvez porque o que ele dissesse fosse a verdade.
Era tão corajoso quanto frágil fisicamente. Escapou centenas de vezes de ser desmembrado ou de ter os ossos da face transformados em paçoca por punhos poderosos. Muitas vezes foi salvo pelos amigos, que brigavam por ele. Em outras, apanhou de verdade e agüentou firme.Conta-se que, numa dessas, o sujeito que o espancava perguntou-lhe: "Chega ou quer mais?". E Roniquito, no chão, com o sapato do brutamontes sobre seu pescoço, ainda conseguiu olhar para cima e articular: "Cansou, filho da puta?".
Roniquito: ninguém ousava ser patife perto dele
Roniquito talvez tenha sido o sujeito mais sem censura da história de Ipanema. Dizia o que pensava para qualquer um, não importava o cargo, a idade, a cor, o sexo ou o tamanho da pessoa. Uma dessas foi o cronista Antonio Maria, que, sozinho, seria capaz de massacrar vinte Roniquitos. Numa discussão no Bottle's Bar, no Beco das Garrafas, em 1962, Roniquito provocou Maria ao duvidar de sua competência como homem de televisão. Para ele, ho mem de televisão era seu amigo WALTER Clark, então diretor comercial da tv Rio e que estava calado na mesa, temendo o pior. Roniquito ofendia Maria e pedia o testemunho do boêmio dentista Jorge Arthur Graça, o "Sirica", também sentado com eles. Maria agüentou enquanto pôde, até que Roniquito soltou a frase final: "Antonio Maria, você foi parido por um ânus!". Ao ouvir isso, Maria viu vermelho e atirou-se enfurecido sobre Roniquito, Walter e quem mais estivesse por ali. A muito custo, foi contido por "Sirica" e mais uns dez.
Walter Clark e Roniquito eram amigos de adolescência em Ipanema. Conheceram-se no Colégio Rio de Janeiro, depois de uma prova de redação na qual Walter, recém-chegado de São Paulo, teria tirado 10. A primeira frase de Roniquito para Walter foi: "Você é o garoto que tirou 10? Você me parece bem medíocre.". Nunca mais se separaram.Nos anos 60, Walter contratou Roniquito para trabalhar na administração da tv Rio e toureou os insultos que Roniquito disparava contra o próprio chefe, Péricles do Amaral. Quando Walter saiu para fazer a TV Globo, em 1965, levou Roniquito com ele. Com o estrondoso sucesso da Globo
a partir de 1970, a máquina começou a andar sozinha e Roniquito e o próprio Walter pareceram ficar sem função. Dizia-se que a única utilidade de Roniquito era beber uísque com Walter durante o expediente - em xícaras de chá, para dar menos na vista. Foi quando, ao ser perguntado sobre o que fazia na Globo, Roniquito respondeu com a expressão depois popularizada por CARLINHOS Oliveira: "Sou aspone. As-po-ne. Assessor de porra nenhuma". A palavra, consagrada
nacionalmente, ainda não chegou ao Aurélio.
Mas não era bem assim. Na própria Globo, sua atuação esteve longe de ser a de um aspone. Numa época de crise, por exemplo, ajudara a equacionar uma pesada dívida da Globo para com a Receita Federal. Era um economista brilhante, ex-aluno de Otávio Gouveia de Bulhões, Roberto Campos e Mario Henrique Simonsen e fora o orador de sua turma (da qual fazia parte Maria da Conceição Tavares). Em fins dos anos 50, saíra da faculdade para um emprego na Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). Simonsen, por sinal, vivia consultando-o sobre questões econômicas, antes, durante e depois de ser ministro do Planejamento do governo Geisel – e sendo derrotado por ele no xadrez. Sóbrio, Roniquito trabalhava também no Ministério da Fazenda, escrevia uma coluna semanal no Correio Braziliense e dava palestras em universidades e cursos de pós-graduação.
E, sóbrio ou ébrio, passava a impressão de ser íntimo de todos os livros do mundo: falava inglês e francês, sabia poetas inteiros de cor e conhecia muita literatura, sendo apaixonado por William Faulkner. Suas estantes eram impecáveis, com os livros organizados por assunto, todos sempre à mão. Em música, era capaz de assobiar até os clássicos. Parte dessa erudição lhe vinha de família: seu pai, o amazonense Walmik Ramayana de Chevalier, era poeta e médico (o Ramayana do nome era uma referência ao célebre poema hindu). Ramayana carimbou seus filhos com nomes bonitos, mas, para brasileiros, estrambóticos: Roniquito era Ronald Wallace Carlyle de Chevalier; dois de seus irmãos eram Stanley Emerson Carlyle de Chevalier e, claro, SCARLET Moon de Chevalier.
Por intermédio de Ramayana, Roniquito ainda usava calças curtas quando se sentou para beber pela primeira vez com VINICIUS de Moraes e PAULO Mendes Campos. Ou seja, já começou entre os profissionais, Na mesma época, para exibir Roniquito, Ramayana mandou-o imitar Rui Barbosa para Lucio Cardoso. Roniquito imitou Rui à perfeição, com todos os pronomes no lugar. Lucio ficou fascinado: "Nunca vi um menino de dez anos beber tão bem!". Muitos anos depois, Lucio deu-lhe para ler os originais de seu romance Crônica da casa assassinada e pediu-lhe sua opinião. Mas, quando Lucio o enxotou de uma festa em seu apartamento por ele estar zombando do namoro secreto de Paulinho Mendes Campos com Clarice Lispector, Roniquito foi para debaixo da janela de Lucio e começou a gritar o insulto que, em sua opinião, mais o ofenderia: “Faulk-ner do Méier! Faulkner do Méier!".
A relação de Roniquito com os escritores era cruel. Ao cruzar com FERNANDO Sabino num restaurante, Roniquito perguntou-lhe: "Fernando Sabino, quem escreve melhor, você ou Nelson Rodrigues?". Fernando gaguejou: “Bem... Nelson Rodrigues, é claro”. Mas Roniquito fulminou: "E quem é você para julgar Nelson Rodrigues?".Fez pior com o suave Antonio Callado, a quem perguntou se ele já tinha lido Faulkner. Callado disse que, evidente, já tinha lido. “Bem, se já leu Faulkner, você sabe que você é um bosta", disse Roniquito.
Se Roniquito se limitasse a desfeitear os amigos, seria apenas um bebum inconveniente. Mas ele também não tinha a menor cerimônia para com o poder, nem mesmo quando esse era o truculento poder militar. Certa vez, numa recepção na TV Globo, Roniquito foi apresentado a um general. Depois de certificar-se de que ele nunca lera Machado de Assis, perguntou-lhe se pelo menos entendia de música. O general hesitou e Roniquito exemplificou: “Nem essa?". E, com a voz e os dedos imitando uma corneta, solou o toque da alvorada. Em outra visita de autoridades à Globo, Roniquito perguntou a Pratini de Morais, ministro dos Transportes do governo Médici, se ele sabia o tamanho de um vergalhão. O ministro vacilou e Roniquito emendou: "Pois devia saber, porque o governo está enfiando um vergalhão no rabo do povo". De outra feita, no governo Geisel, quando Roniquito conversava com seu amigo, o ministro da Previdência Luiz Gonzaga do Nascimento Silva, outro ministro, Severo Gomes, este da Indústria e Comércio e dono dos cobertores Parahyba, tentou se meter. Roniquito cortou-o: “Não estou falando com fabricante de lençóis”.
Em todas essas ocasiões, Roniquito foi salvo do opróbrio na Globo porque era adorado por Walter Clark e Boni. Chegou a ser posto de quarentena diversas vezes, mas a punição nunca era mais do que simbólica. De certa forma, Roniquito era o que Walter, com todo o seu poder, gostaria de ser: fino de berço e grosso por opção — Walter era o contrário. Mas a maior sem-cerimônia de Roniquito para com o poder foi em 1967 e envolveu o marechal Costa e Silva, já presidente. Segundo a história, muito bem contada por FERDY Carneiro, Roniquito estava ciceroneando um figurão americano convidado do governo, a pedido de Nascimento Silva. Naquela manhã, ele levara o visitante a almoçar no restaurante do Museu de Arte Moderna. Antes de irem para a mesa, resolveram reforçar-se no bar com alguns uísques - muitos uísques, porque o americano não enjeitava serviço. Por coincidência, na mesma hora, Costa e Silva também estava no mam para almoçar. A comitiva presidencial, sem as normas de segurança que depois se tornariam comuns, passou por Roniquito no momento em que este catava seu isqueiro no paletó para acender um cigarro. Com o cigarro no canto da boca, Roniquito viu o presidente. Avançou, cravou o queixo nas medalhas de Costa e Silva e perguntou: "O senhor tem fogo?". Os seguranças, como que subitamente acordados de um rigor mortis, pularam sobre ele. O americano, sem entender o que se passava e já incapaz de fazer um quatro, se a isso fosse solicitado, balbuciou qualquer coisa como "Whatthegoddamnfuckdoyouthinkyouredoin'" e foi também abotoado.
Os dois foram levados para o 3º Distrito, na rua Santa Luzia, por desacato à autoridade. Diante do delegado, o americano esbravejava com voz pastosa: "I’m an American shitizen! Call the embashy!". O delegado perguntou: "Quê que o que gringo tá falando?”. “Ele está dizendo que a polícia no Brasil é uma merda”, traduziu Roniquito.“Ah, é? Pois ele vai ver o que é merda!", bramiu o delegado.O americano pediu para usar o telefone.Roniquito traduziu: “Ele está dizendo no Brasil ninguém respeita os direitos humanos”."Direitos humanos é o cacete! Ele vai entrar no pau!", ganiu o delegado. O americano perguntou a Roniquito por que o delegado estava tão brabo. Roniquito sussurrou para o delegado: "Agora ele está dizendo que o Brasil é uma ditadura fascista”. Por sorte, quando estava prestes a ser apresentado ao pau-de-arara, o americano conseguiu mostrar um documento com o emblema do governo americano. Foi dado o telefonema e, em poucos minutos, chegaram as tropas da embaixada e do Itamaraty para libertar Roniquito e o gringo. Mas, por causa de Roniquito, conclui Ferdy, por pouco não se declarou uma guerra entre o Brasil e os Estados Unidos — tendo como pivô um palito de fósforo. Não admira que Roniquito não tenha sido levado a sério quando se ofereceu para ser trocado pelo embaixador Burke Elbrick, seqüestrado em 1970.
Livre dos espíritos, Roniquito era um gentleman. Beijava as mãos das senhoras e encantava-as com sua inteligência e educação. Mas era bom não confiar. A poção que o fazia passar de Dr. Jekyll a Mr. Hyde (ou de Dr. Roni a Mr. Quito, segundo MARCOS de Vasconcellos) vinha em toda espécie de garrafas. Com uma única palavra ele seria capaz de provocar um terremoto. Uma elegante senhora do Flamengo, que só conhecia seu lado fino, convidou-o para um jantar em sua casa. Roniquito comportou-se bem no jantar, mas bebeu vinho demais, desmaiou sobre o prato e foi levado roncando para um sofá. Terminado o jantar, um dos convidados propôs uma brincadeira então na moda, “A palavra é...". No meio do jogo, Roniquito deu sinais de que estava acordando. A dona da casa, achando que ele queria participar da brincadeira, foi até o sofá, de mãos postas e com um sorriso de beatitude: “Roniquito, a palavra é...". E Roniquito, meio zonzo de sono: “Ca-ra-lho”. Naturalmente, foi expulso pelo filho da dona da casa.
Quem o conhecesse mal, diria que Roniquito tinha um temperamento bélico. Mas era sua falta de paciência para com os enganadores que o levava a ser radical. Poucos meses depois do golpe de 1964, intelectuais reunidos no Teatro Santa Rosa promoviam um debate emocionado e anódino sobre os “caminhos da democracia no Brasil”. Propunham "estratégias de ação". Foi quando se ouviu, do fundo da platéia, sua voz característica: "Muito bem. E quem vai fornecer as metralhadoras?". O debate acabou ali.
Roniquito foi atropelado em dezembro de 1981, em frente ao Antonio's. Um fusca o acertou, quebrou-lhe as duas pernas, jogou-o longe e fugiu sem socorrê-lo. Um ônibus que vinha atrás viu o acidente e parou. O motorista recolheu Roniquito, colocou-o no ônibus e levou-o para o Miguel Couto. Histórias surgiram até em torno desse atropelamento. Segundo uma delas, ao passar voando defronte da varanda do Antonio's e ao ver o ar assustado dos amigos, Roniquito teria perguntado: "O que foi, porra? Nunca viram o Super-Homem?".
Na verdade, o atropelamento lhe seria fatal. Roniquito quebrou as pernas em vários lugares, teve seqüelas graves e foi submetido a seis operações durante o ano de 1982. Como todo filho de médico, gostava de se automedicar e passou a tomar uma farmácia de remédios. Mas não parou de beber mesmo de bengala e pé engessado, chegou a ir algumas vezes à Plataforma, fazendo piada com a própria desgraça. Roniquito também foi visto em restaurantes tomando um líquido que parecia café. Ao ser perguntado, "Tomando café, Roniquito?", respondeu: "Estou. Irish coffee” (café com uísque). Mas era também asmático e o uso da bombinha, misturado a bebida e remédios, provocou-lhe uma insuficiência cardíaca. Quando teve o enfarte fatal, em janeiro de 1983, estava sozinho em seu apartamento no Posto 6. Só o encontraram horas depois. Foi enterrado com o pé no gesso e de olhos abertos.
O anúncio de seu falecimento no Jornal do Brasil era uma enciclopédia da vida brasileira. Tinha de ministros de Estado a garçons de botequim. Carlinhos Oliveira disse a seu respeito: "Ninguém podia ser patife perto dele. Ninguém ousava". E Paulo FRANCIS escreveu um comovente obituário na Folha de S. Paulo: “Roniquito fazia o que não temos coragem de fazer - virar a mesa contra os horrores brasileiros. Mas, o leitor dirá, por que então não escrever jornalismo polêmico ou até ficção? É uma boa pergunta. Mas talvez a resposta esteja no Brasil. Nosso horror é de uma tal ordem de vulgaridade que uma resposta vulgar de baderneiro talvez seja mais adequada do que “análises' ou 'contramodelos'. Roniquito manteve uma juventude, uma infância de poeta: protestava em pessoa, pondo a vida em risco tantas vezes, pela gente que desafiava”.
Frases
* [Ao entrar num boteco lotado e só vendo desconhecidos:] Porra, esse bar está cheio de ninguém!
Fonte: Ela é carioca, Ruy Castro, Cia das Letras, São Paulo, p. 313-317.
e,
Scarlet Moon de Chevalier
n. 1950. Jornalista, atriz e apresentadora de TV.
“Isso não é nome, é uma alegoria", disse Joãozinho Trinta à própria Scarlet Moon. Mas é claro que esse é o nome de Scarlet. O de seu irmão era ainda mais exuberante: Ronald Wallace Carlyle de Chevalier ou, uísques depois, RONIQUITO. Nomes exóticos eram uma preferência do pai deles, o poeta amazonense Walmik Ramayana de Chevalier, descendente de índios e franceses, donde íntimo de luas escarlates.
Com esse parentesco, era inevitável que as coisas acontecessem cedo com Scarlet. Aos sete anos, ela observava aquele senhor com jeito de padre, que caminhava nos fins de tarde pelo Posto 6 com o queixo enterrado no peito. Na mesma época, Scarlet leu um poema de Carlos DRUMMOND de Andrade e apaixonou-se pelo autor. Procurou outros livros dele, decorou tudo que podia e fantasiou sobre como seria o poeta. Um dia, seu pai, que conhecia todo mundo, apresentou-a na rua a Drummond. Scarlet fez gulp: era o “padre”.
Aos doze anos, em 1962, começou a ser levada por Roniquito (catorze anos mais velho) ao Bateau e ao Jirau, boates de Copacabana. Para fugir às blitze do delegado Padilha, os de-menores escondiam-se no banheiro. Scarlet logo tinha mais horas de banheiro de boate do que de brincadeiras com sua boneca Suzy. Às vezes saía da boate ao nascer do sol, direto para o curso de mergulho no Clube dos Marimbás. No qual, aliás, venceu o medo de afogar-se ao ouvir de seu instrutor, o lendário mergulhador Américo Santarelli: “Mulher não afunda, porque tem bunda de rolha”.
Scarlet é uma espécie de antologia ambulante da Ipanema e da pós-Ipanema. Ainda de tranças, pegou os últimos tempos do MAU CHEIRO, debutou no primeiro caju-amigo que Carlinhos NIEMEYER promoveu na praia, em 1963, e, desde seu primeiro biquíni, fez parte de todas as turmas: as do ARPOADOR, NO CASTELINHO, da MONTENEGRO, DO PIER e do SOL-Ipanema. Em 1964, com catorze anos e 1,78
metro, já assustava os homens com sua independência. Tornou-se modelo da loja H. Stern e sua mentora era vera Barreto Leite, recém-chegada da Maison Chanel em Paris. Quatro anos depois, num desfile de roupas "espaciais” pela Fenit, em Brasília, teve como colega de passarela um modelo local chamado Fernando Collor de Mello.
Nos anos 70, Scarlet fez teatro, foi assistente de DANIEL Más na Última Hora, participou da louquíssima equipe do filme Anchieta, José do Brasil e durante sete anos estrelou o telejornal Hoje, da Globo, com NELSON Motta. Depois uniu seus talentos de atriz e de repórter em programas de TV dos anos 80, como 90 minutos (Bandeirantes), Noites cariocas (Record) e Mulher de hoje (Manchete), criando um tipo entre o cômico e o sério que, muito depois, seria retomado por Regina Casé na Globo. Desde então, Scarlet casou e descasou diversas vezes, a maioria com o mesmo ex-marido (Lulu Santos), e publicou, em 1999, Areias escaldantes, um relato sobre os agitos do Sol-Ipanema nas décadas de 70 e 80. Mas o grande livro que um dia escreverá será a história de uma garota — ela mesma que entrou e saiu de absolutamente todas em Ipanema nos anos dos brabos agitos. E sobreviveu para contar.
Fonte: Ela é carioca, Ruy Castro, Cia das Letras, São Paulo, p. 341-342.
"Os prazeres da imaginação
Existe uma segunda espécie de Beleza que
encontramos em diversas produções da arte
e da natureza, que não atua sobre a
imaginação com o calor e a força da Beleza
que vemos em nossa própria espécie, mas é
capaz
de suscitar em nós uma delícia secreta
e quase que uma atração pelos lugares ou
objetos em que a descobrimos.
Esta beleza consiste na alegria ou variedade
das cores, na simetria e na proporção das
partes, na ordem e na disposição dos corpos
ou mesmo na fusão ou na confluência de
todos esses elementos em uma justa
proporção. Entre essas diversas espécies de
Beleza, as cores são aquelas que mais
deliciam o olhar. Não se encontra na natureza
cena mais gloriosa e adorável do que aquela
que se descortina quando o sol nasce e se
põe nos céus, e ela é composta tão-somente
pelas diversas manchas de cor que se vêem
sobre as nuvens situadas em diversas
posições."
Fonte: Joseph Addison, A folha, 1726, , citado em "História da Beleza", organizado por Umberto Eco, Editora Record, São Paulo, 2010, p. 255.
Imagem: Milho indiano também encontrado no Peru.
“O Belo em ação
Sempre acreditei que o bom nada mais é que o Belo em ação, que um é intimamente ligado ao outro e que ambos têm uma nascente comum na bem ordenada natureza. Dessa ideia segue-se que o gosto se aperfeiçoa com os mesmos meios que a sabedoria, e que uma alma aberta às seduções da virtude deve ser na mesma medida sensível a todos os outros gêneros de Beleza. Adestramo-nos tanto para ver quanto ouvir uma visão apurada nada mais é que um sentimento delicado e refinado, Diante de uma bela paisagem ou de um belo quadro, um pintor fica em êxtase pelo que um espectador vulgar não notaria. Quantas coisas só são percebidas graças ao sentimento e não é possível dar-lhes uma razão! Quantos desses "não sei quê, dos quais só o gosto pode fornecer um juízo, não se reapresentam sempre! O gosto é de certo modo o microscópio do juízo, já que é capaz mostrar-lhe as coisas pequenas, e suas operações começam onde terminam aquelas do juízo. O que é necessário para cultivá-lo? Adestrar-se para ver como para ouvir, para julgar sobre o Belo por investigação, e sobre o bom por sentimento. Não sustento que nem a todos os corações é dado comover-se ao primeiro olhar de Júlia.”
Fonte: Jean-Jacques Rousseau, A nova Heloísa, 1761, citado em "História da Beleza", organizado por Umberto Eco, Editora Record, São Paulo, 2010, p. 237.
Este texto é de uma riqueza ímpar, pois nos ensina que, além da proximidade entre bom e belo, é possível educarmos nossos gostos por intermédio do conhecimento.
Até para nos deliciarmos com a delicadeza, a beleza etc., temos que estudar.
Inté,
Osório Barbosa.
SOBRE JORNALISMO
Em 1920, Mencken fez picadinho do livro de Upton Sinclair, The Brass Check, em que o autor denunciava o caráter marrom da imprensa americana e defendia o levantamento de 1,3 milhão de dólares para a criação de um semanário devotado "à verdade, a toda a verdade e nada mais que a verdade”. Um conselho de mentes infalíveis seria criado para determinar a verdade. Mencken se diverte imaginando como reagiriam os nomes apontados por Sinclair diante de situações que exigiriam um repórter de verdade – Sinclair chega a sugerir a contratação de um professor da Universidade de Washington para cobrir distúrbios de rua na capital... Em seguida, fingindo apoiar as idéias do autor, Mencken dá a sua visão sardonica e feroz do jornalismo nos Estados Unidos. (N. T.)
I
Vamos a Sinclair, o incurável romântico, que acredita por atacado em tudo que não merece crédito. O homem me delicia constantemente. Sua fé na sabedoria dos imbecis, na virtude dos desonestos, no sublime idealismo dos sórdidos tudo isto é comovente. Não conheço ninguém neste vasto paraíso de credulidade que dê um crédito mais firme e heróico a tudo que é intrinsecamente absurdo. Mas fico por aqui em meu desprezo por ele. Deixando barato a sua falta de humor, sua crônica indignação moral, sua credulidade estranhamente distorcida, sua hipertrofiada confiança em Deus, deve ficar claro para qualquer observador competente que, em The Brass Check, ele conseguiu escrever algo muito interessante, uma crônica picaresca da maior qualidade e tudo que ele aponta como um fato é, na maioria das vezes, inegavelmente verdade. Os jornais irão denunciá-lo como um mentiroso pago em rublos, os leigos suspeitarão de que ele exagerou grosseiramente e, no final, Sinclair poderá amargar alguns desagradáveis processos.
Mas, se meu testemunho ainda valer alguma coisa sob as regras americanas (e. g., que a dedução de um detetive do governo vale mais do que o depoimento jurado de uma teste- [115] munha ocular; que qualquer homem que leia um panfleto seja suspeito de estar planejando derrubar a Constituição pela força; e que é uma prova de culpa quando um acusado exige um advogado e pede para ser acareado com seus acusadores), então ofereço com prazer este testemunho em sua causa. Tenho trabalhado constantemente como jornalista desde 1899. Já passei por todos os cargos editoriais que os jornais têm a oferecer, de crítico de teatro até diretor de redação. Mais ainda, não tenho rancores a remoer. Sempre me pagaram o que eu valia. Nunca fui despedido, nem acusado de ser um idealista e estou, neste momento, nas melhores relações com todos os jornais que já tiveram alguma coisa a ver comigo. O que desejo dizer é simplesmente o seguinte: pelo que sei e acredito, o jornal americano médio, mesmo os supostamente de primeira linha, é não apenas ruim quanto diz o dr. Sinclair, mas dez vezes pior - dez vezes mais ignorante, dez vezes mais injusto e tirânico, dez vezes mais complacente e pusilânime, e dez vezes mais sinuoso, hipócrita, velhaco, enganador, farisaico, tartufista, fraudulento, safado, escorregadio, inescrupuloso, pérfido, indigno e desonesto.
Que pena, que pena! Infelizmente, faltam-me palavras. O jornal americano médio, especialmente o chamado de primeira linha, tem a inteligência de um pastor batista, a coragem de um camundongo, a retidão de um papalvo pró-Proibição, a informação de um porteiro de ginásio, o bom gosto de um criador de flores artificiais e a honra de um advogado de porta de cadeia. Se me pedirem para apontar cinco jornais que estejam claramente acima desta média - se me desafiarem a relacionar cinco jornais que sejam dirigidos de forma tão inteligente, justa, corajosa, decente e honesta como uma fábrica média de pregos, uma empresa de crédito imobiliário ou um negócio de importação de arenques -, levarei dois ou três dias para fazer a lista. E, quando ela estiver pronta e for lida pelo meirinho no tribunal, haverá um rumor de risadinhas abafadas à menção de quase todos eles. Estas risadinhas virão de jornalistas que devem saber um pouco mais do que eu sobre o assunto.
[116]
II
O que aflige primariamente os jornais dos Estados Unidos - e aflige também o esquema regenerador do dr. Sinclair é o fato de que o gigantesco desenvolvimento comercial destes jornais os obriga a atingir massas cada vez maiores de homens indiferenciados, e o de que a verdade é uma mercadoria que estas massas não podem ser induzidas a comprar. As causas disto estão enraizadas na psicologia do Homo boobus, ou homem inferior -- ou seja, do cidadão normal, típico e predominante de uma sociedade democrática. Este homem, apesar de uma aparência superficial de inteligência, é, na realidade, incapaz de qualquer coisa que possa ser descrita como raciocínio. As idéias que lhe entopem a cabeça são formuladas por um processo de mera emoção. Como todos os outros mamíferos superiores, ele tem sentimentos muito intensos, mas, também como eles, falta-lhe capacidade de julgamento. O que o agrada mais no departamento de idéias e, dai, o que ele tende a aceitar mais como verdadeiro – é apenas o que satisfaz os seus anseios principais. Por exemplo, anseios por segurança física, tranquilidade mental e subsistência farta e regular. Em outras palavras, o que ele exige das idéias é o mesmo que exige das instituições - ou seja, que o deixem livre da dúvida, do perigo e daquilo que Nietzsche chamou de os acasos do labirinto. Acima de tudo, livre do medo, aquela emoção básica de todas as criaturas inferiores em todos os tempos e lugares. Por isto este homem é geralmente religioso, porque a espécie de religião que conhece é apenas um vasto esquema para aliviá-lo da luta vã e penosa contra os mistérios do universo. E por isto ele é também um democrata, porque a democracia é um esquema para protegê-lo contra a exploração dos seus superiores em força e sagacidade. E é também por isto que, na miscelânea de suas reações às idéias, ele abraça invariavelmente aquelas que lhe parecem mais simples, mais familiares, mais confortáveis - que se ajustam mais prontamente às suas emoções fundamentais e lhe exigem menos agilidade, resolução ou engenhosidade intelectuais. Em suma, ele é uma besta.
[117]
O problema com que se depara um jornal moderno, pressionado pela necessidade de se manter como um negócio lucrativo, é o de conquistar o interesse deste homem inferior e, por interesse, não me refiro naturalmente a sua mera atenção passiva, mas à sua ativa cooperação emocional. Se um jornal não consegue inflamar seus sentimentos é melhor desistir de vez, porque estes sentimentos são a parte essencial do leitor e é deles que este draga as suas obscuras lealdades e aversões. Bem, e como atiçar os seus sentimentos? No fundo, é bastante simples. Primeiro, amedronte-o - e depois tranqüilize-o. Faça-o assustar-se com um bicho-tutu e corra para salvá-lo, usando um cassetete de jornal para matar o monstro. Ou seja, primeiro, engane-o e depois engane-o de novo. Esta, em substância, é toda a teoria e prática da arte do jornalismo nos Estados Unidos. Se nossas gazetas levam a sério algum negócio, é o negócio de tirar da focinheira e exibir novos e terríveis horrores, atrocidades, calamidades iminentes, tiranias, vilanias, barbaridades, perigos mortais, armadilhas, violências, catástrofes - e, então, magnificamente superá-los e resolvê-los. Esta primeira parte é muito fácil. Não se sabe de nenhum caso em que a massa tenha deixado de acreditar num novo papão. Assim que o horrendo bicho tira os véus, ela começa a se agitar e gemer: seu reservatório de medos primários está sempre pronto a transbordar.
A segunda parte não é muito mais difícil. O que se exige do remédio é que ele seja simples, mais ou menos familiar, fácil de compreender que não represente uma provação para o centro cerebral superior e que evite conduzir a tímida e delicada inteligência da multidão para aqueles estranhos e dolorosos caminhos da especulação. Todo o jornalismo sadio nos Estados Unidos (sadio no sentido de que floresce espontaneamente, sem precisar de auxílio externo) baseia-se firmemente em inventar e destruir papões. Assim como a política. E assim como a religião. O que reside sobre esta impostura fundamental é uma artificialidade, um brinquedo de homens com mais esperanças do que bom senso. O jornalismo inteligente e honesto, assim como a política inteligente e honesta, e até mesmo a religião inteligente e honesta são [118] coisas que não têm lugar numa sociedade democrática. São, quando existem, curiosidades exóticas, orquídeas pálidas e viscosas, bestas em cativeiro. Tirem-lhes o vapor, a garrafa de leite, a seringa, e puf!, elas somem.
III
Assim, parece-me uma injustiça, além de presunçoso e moralista, jogar a culpa pelo baixo nível de nossa imprensa sobre a malandragem de seus proprietários e editores. O trabalho de fazer jornal é perverso, assim como são perversos quase todos os que se deixam atrair por ele, mas a perversidade primária não está neles, e sim nos seus fregueses. Neste departamento, tagarela-se à vontade contra sujeitos como William Randolph Hearst. Não conheço este Hearst, nunca o vi ao vivo e nunca trabalhei para nenhum de seus jornais ou revistas, mas, quando o vejo ser caridosamente denunciado por outros jornalistas, dá-me vontade de rir. Os homens que mais o atacam não são seus superiores como moralistas; são, simplesmente, seus inferiores como jornalistas e sabem disto, mesmo que não gostem. No apogeu de uma recente cruzada contra Hearst, fizeram um esforço deliberado para esmagá-lo usando a arma que o próprio Hearst tornou clássica. Ou seja, deliberadamente mentiram sobre ele. A teoria por trás desta estratégia era bem clara. Esperavam embaraçá-lo duplamente: primeiro, tirando partido da axiomática vontade do público para acreditar no capeta; segundo, forçando-o ardilosamente para a difícil posição de ter de dizer a verdade para se defender. Só esta última jogada teria sido suficiente para enterrar um jornalista menos habilidoso. Mas Hearst era melhor do que seus inimigos - aliás, melhor do que todos eles juntos. Ao invés de perder tempo com uma defesa que o teria deixado arranhado (e mais ainda quanto fosse digna e honesta), ele simplesmente devotou todo o seu talento a inventar capetas mais horríveis do que qualquer um que a oposição [119] estivesse pespegando à sua imagem. Em pouco tempo, a turba voltou-se para o melhor espetáculo que ele oferecia, enquanto a oposição enfiou o rabo entre as pernas e se desfez. Hearst saiu da batalha vitorioso sobre um dos melhores fantasmas que se pode inventar: o fantasma do poderio inglês. Se, dentro de um ano, ele não matar seus leitores de medo com isto, é porque devo ter superestimado seus talentos e dado um palpite errado.
Como disse, muita conversa é jogada fora sobre a suposta diferença entre a imprensa marrom e a mais respeitável. A diferença é precisamente a mesma entre um contrabandista e o superintendente de uma escola dominical, ou seja, nenhuma. Honestamente acho até, baseado em vinte anos de intima observação e incessante reflexão, que a vantagem, se existe, está do lado dos jornais marrons. Tirando um dia pelo outro, são provavelmente menos malignamente mentirosos. As coisas sobre as quais mentem não costumam ter a menor importância pedidos de divórcio, pequenos subornos, fofocas sociais, intimidades das vedetes. Nesse campo, até prefiro ler mentiras do que verdades: pelo menos são mais divertidas. Mas no domínio da política, do governo e das altas finanças, os marrons chegam às vezes mais perto da verdade do que os jornais mais austeros, 90% dos quais são de propriedade de homens envolvidos em alguma espécie de exploração dos trouxas. Não estou dizendo que os jornais marrons façam qualquer esforço real para ser exatos; ao contrário, até se esforçam para evitar uma exatidão muito literal. Mas quando martelam diariamente que todo político é um patife, que todo serviço público é dirigido por escroques e que todas as operações de Wall Street têm como objetivo garfar as pessos comuns, estão bastante perto da verdade, para qualquer propósito prático. São obrigados a dramatizar e ficcionalizar esta verdade para torná-la digerível. Ela deve ser mostrada de maneira improvável para convencer aquelas pessoas. Mas isto, na pior das hipóteses, é apenas um exagero de camelô, defendido pela máxima legal do caveat emptor. A maneira de mentir dos jornais mais respeitáveis é menos inocente. Seu objetivo não se limita a vender edições extras para a gente simples; e sim o de perpetuar uma fraude [120] deliberada, para melhor proveito dos cavalheiros que ficam por trás do pano.
IV
Os proprietários dos jornais marrons são, de fato, os únicos jornalistas verdadeiros que restam no país. Geralmene, são sujeitos cínicos, com uma aguda compreensão das limitações intelectuais do proletariado, mas muitos deles não têm nenhum motivo ulterior para alarmá-lo ou tapeá-lo - todo o seu lucro vem dos disparates que despejam sobre ele. O problema dos jornais do primeiro escalão é que quase todos estão hoje nas mãos de homens que vêem o jornalismo como uma espécie de linha auxiliar para empreitadas maiores e mais lucrativas como um meio conveniente de enrolar e anestesiar um público que, de outra forma, se voltaria contra eles. (O que, de certa forma, acontece quando os jornais marrons se voltam contra eles e os expõem.) A exata natureza destas empreitadas maiores e mais lucrativas nem sempre é muito óbvia. É fácil, naturalmente, somar dois e dois quando um rico empreiteiro, latifundiário ou banqueiro compra um jornal, ou quando outro é comprado por alguém notoriamente de olho numa carreira política. Mas, de vez em quando, o comprador é um sujeito cujo negócio é mais ou menos respeitável e que não demonstra uma esganação pelo Senado. Então, por quê? Por que arriscaria tanto dinheiro em tal jogo? A resposta costuma ser encontrada, acredito, em seu descarado Wille zur Macht – sua aspiração, perfeitamente humana, de tornar-se importante e poderoso em sua comunidade, ser cortejado pelos figurões locais, ditar as leis, fazer e desfazer funcionários públicos, atar e desatar cordões políticos. Outras vezes, sua ambição (ou talvez, mais exatamente, de sua mulher) é meramente social. Quer jantar em certas casas, ser convidado para festas e, acima de tudo, receber certos convidados em sua reluzente mansão em Gold Hill. Bem, um homem que controla um jornal importante não tem a menor dificuldade para conseguir estas ninharias. As chaves do escândalo estão em seus bolsos. Ele é pode [121] roso. Pode premiar ou punir, direta ou indiretamente. As esperanças de todos os outros homens em sua jurisdição estão em seu poder. Se for capaz de se lembrar de que a lavanda à sua frente não é para ser bebida, entrará para a sociedade a hora que quiser.
Sejam quais forem o motivo ou os motivos subjacentes, o fato é que os jornais americanos estão passando rapidamente das mãos dos jornalistas profissionais para as de outras pessoas que são primariamente qualquer outra coisa. Os semanários que se ocupam das fofocas jornalísticas vivem publicando noticias de importantes transações desta espécie. A transferência do Evening Post, de Oswald G. Villard, para um dos sócios de Morgan, e a dos jornais de Bennett para Munsey não são fenômenos isolados; são bem típicos de uma tendência geral, rápida e progressiva. E mesmo quando nenhum sócio de Morgan ou Munsey aparece abertamente, é comum que as coisas aconteçam atrás da porta. Primeiro fica-se sabendo que este ou aquele veterano editor-proprietário morreu ou faliu; depois ouve-se que seu jornal foi comprado por 2 milhões de dólares à vista, por um bem-intencionado jornalista notoriamente incapaz de pagar uma dívida de pôquer de 29 dólares; finalmente, em murmúrios discretos, comenta-se que o verdadeiro comprador é o velho John Googan, eminente empreiteiro de obras; ou Irving Rosehill, presidente da Rosenberg, Cohan & Co., a patriótica firma de operações bancárias; ou o ilustre senador Lucius Snodgrass, especulador do petróleo, influente metodista e perpétuo candidato à embaixada em St. James. Há pouco tempo, quando morreu Iceberg Fairbanks e foi feita a autópsia de seus restos, descobriu-se que há anos ele controlava o principal jornal de Indiana. Muitos destes homens encobrem tais negócios com cuidado, tapeando até o magistrado. Mas os homens que trabalham num jornal que tem o rabo preso sabem muito bem o que evitar. Ha, em quase todas as redações, um nome no qual não se deve tocar. Precede imediatamente o de Deus.
Em tal jornal ou seja, o típico e normal jornal americano - deve ser óbvio que a busca da verdade, de toda a verdade e de nada mais que a verdade é comumente mitigada [122] pela política do jornal. Por um lado, a redação deve produzir um jornal que venda e, para isto, é forçada a manter o público atiçado pelo tradicional sensacionalismo; por outro, precisa tomar cuidado para não pisar nos enormes, numerosos e sensíveis pés do Googan, do Rosehill ou do Snodgrass nos bastidores. (Quando comecei, os pés eram os de um rico magnata do gelo, e toda reportagem em que ele estivesse interessado digamos, umas nove ou dez por noite descia para a composição marcada com a palavra “Gelo!!!".) Não é preciso argumentar muito para convencer os mais judiciosos de que o negócio de moldar a opinião pública sob tais condições tende a relaxar o conceito de verdade na cabeça do jornalista e, por fim, até o seu conceito de honra. Empenhado diariamente em maquilar idéias que ele sabe serem falsas e idiotas, e forçado a fazer de si mesmo um instrumento de jogadas que às vezes não entende ou considera sinistras, o jornalista acaba por perder toda a noção de responsabilidade pública. Com isto, torna-se um mero cão de guarda, pronto a receber ordens para defender um culpado ou atazanar e perseguir um inocente. No fim, acaba possuído por uma fúria maligna. O poder está em suas mãos, e sua consciência se evaporou. Não passa de um homem de oitava classe com a capacidade para o mal de um Napoleão cronicamente investindo às cegas. Esta destruição ordinária da decência normal do jornalista é responsável por muitas das coisas de que o dr. Sinclair se queixa em seu livro - a amarga e incansável perseguição às vítimas, o grosseiro desprezo pela honestidade, o total abandono dos hábitos de cortesia e educação prevalecentes entre homens civilizados. Um jornal tão poluído torna-se uma ameaça pública. Sua palavra não vale um níquel. Suas campanhas são maliciosas, burras e covardes, negando o direito de resposta a suas presas. Um apelo à sua honra é tão inútil como um apelo à honra do Congresso.
Tais jornais, como disse, tendem a crescer desordenada- mente em número. Houve uma época, digamos uns vinte anos, em que eles ainda eram as exceções; hoje são a regra e, em algumas partes do país, a regra invariável. Não me entendam mal! Não estou protestando contra o mero zelo exagerado o louvável desejo de um jornalista em agradar o seu patrão.[123] Não estou, na verdade, protestando contra nada. Estou apenas descrevendo algo, e nem mesmo com um lamento, mas simplesmente como um especialista em depravação humana. O que quero deixar claro é que tais jornais são completa e deliberadamente desonestos, e que eles divertem ou atormentam o seu público sem a menor consideração pela mais comezinha decência. E quero também deixar claro que eles estão tirando do mercado todas as outras espécies de jornais. Tal jornal, com tanto poder nas mãos, não se importa com o direito dos indivíduos. Quem cair, vítima de sua mendacidade, dificilmente poderá se recuperar. Sua própria versão do caso será distorcida ou ignorada. Seus defensores ficarão amedrontados. E se, desistindo do fair play, apelar aos tribunais, irá descobrir rapidinho que, em quase todas as grandes cidades americanas, a lei tem um medo santo dos jornais e que o homem que ganhou uma causa e saiu com o dinheiro é tão raro quanto o homem que mordeu o leão e viveu para contar a história.
Estou ciente de que serei acusado, digamos, de jogar lama sobre minha velha profissão e, em particular, sobre profissionais batalhadores. Mas fatos são fatos. Esta profissão sofreu uma desagradável metamorfose nas últimas décadas. Houve um tempo em que o verdadeiro chefe de quase todos os jornais importantes era um jornalista praticante, que tinha orgulho de seu trabalho e uma honrosa reputação no ramo, pelo menos no local. Para o repórter mais jovem, este sujeito era um ídolo. Suas teorias sobre jornalismo eram ouvidas e citadas, seu estilo era imitado e todo foca na equipe queria seguir suas pegadas. Hoje, o verdadeiro chefe de um jornal tende cada vez mais a se tornar uma figura sombria nos bastidores, ignorante das tradições do jornal e do seu modo de pensar, e grosseiramente empenhado em empreitadas que colidem frontalmente com o que resta dos ideais deste jornal. Este homem está além do círculo jornalístico; nenhum jovem repórter sonha em seguir-lhe os passos algum dia; qualquer ambição de ficar como ele significaria abandonar de vez a profissão. A primeira conseqüência é a de que a profissão em si deixa de ser charmosa; já não é mais uma cooperação român- [124] tica entre pessoas livres e iguais, mas uma forma de trabalho parecida com a de uma oficina de laminação, tendo o sindicalismo como a única forma de torná-la suportável. A segunda conseqüência é a de que os homens que, no passado, entraram para a profissão com um alto senso de dignidade resolveram seguir outros rumos, enquanto o típico recruta de hoje é um jovem andrajoso e de oitava categoria, sem mais capacidade para o auto-respeito profissional do que um coletor de lixo.
Suspeito que o falecido Joseph Pulitzer já previa esta tendência ao criar a sua Faculdade de Jornalismo. Hoje há muitas faculdades como esta, mas duvido que sirvam para alguma coisa. Por um lado, parecem estar todas caindo nas mãos de pedagogos profissionais uma classe obrigada a chafurdar no lodo por uma tirania plutocrática pior ainda do que a que oprime os jornalistas. Por outro lado, o máximo que uma faculdade de jornalismo pode conseguir mesmo supondo que ela injete em seus alunos um civilizado código de ética - é gerar jovens repórteres que fugirão do jornalismo tapando o nariz, assim que se familiarizarem com o que se passa dentro de uma típica redação de jornal. Aqueles que perseverarem na profissão devem ser uns rapazes estúpidos que não notam o mau cheiro ou sujeitos sem espinha que se habituaram a respirá-lo, e alguns bem ordinários, que gostam do fedor.
Folheio ao acaso uma revista especializada em divertir e instruir jornalistas. O primeiro artigo que me cai aos olhos é uma elaborada descrição, por um homem empregado por vários jornais conhecidos, de seus truques particulares para fabricar notícias. Uma delas, à qual ele se refere com orgulho, envolvia citar o nome de uma mulher, presumivelmente respeitável, numa reportagem grotesca, idiota e totalmente mentirosa. Passo à frente. O segundo artigo é um convite aos repórteres para que escrevam relatórios bem realistas de seus encontros com mulheres que lhes passaram informações escandalosas sem saber - esposas de criminosos tapeadas pelo repórter, mulheres que entraram com pedidos de divórcio, e por aí vai. Abro outra revista. Contém um longo artigo descrevendo como certos correspondentes de importantes jornais [125] em Washington, com acesso às galerias do Congresso naquela condição, atuam como "assessores de imprensa para interesses ligados à legislação", são "contratados para trabalho de propaganda disto ou daquilo", e foram considerados culpados de "sérias violações da confiança de funcionários civis e militares".
As alegações citadas acima levantaram muitas discussões no meio jornalístico. E o que aconteceu? Pelo que pude apurar, absolutamente nada. Os homens acusados daquilo tudo continuam trabalhando em jornais e se dedicando a suas atividades paralelas. Alguns, ouso dizer, têm até empregos políticos - uma das formas favoritas de se promover a dignidade do jornalismo. Bem, por que não? Certamente não é infra dig. para um repórter atuar como "assessor de imprensa para interesses ligados à legislação”. E por que ele não seria "contratado para trabalho de propaganda disto ou daquilo”, se o seu próprio jornal já está envolvido até o pescoço em "trabalho de propaganda disto ou daquilo"? E onde jaz o descrédito em estar "aberta ou secretamente empregado por políticos e partidos políticos", quando o seu próprio patrão está concorrendo ao Senado, e empregando o jornal para convencer a todos de que seus adversários são uns ladrões e usando chumbo grosso para sufocar qualquer inquérito sobre os fundos que recebeu para a campanha?
Fonte: O livro dos insultos de H. L. Mencken, Tradução de Ruy Castro, Cia das Letras, São Paulo, 1988, p. 141-142.
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Distopia (conceito).
por Fernanda Torres.
"Lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação. Representação ou descrição de uma organização social futura caracterizada por condições de vida insuportáveis."
Fonte: FSP, 212.04.19.
Fonte da imagem: https://segredosdomundo.r7.com/distopia/
Os muitos efeitos de uma nulidade
Notas & informações, O Estado de S. Paulo, 27.08.20.
Lula ficha-limpa seria o melhor presente que o STF poderia dar a Jair Bolsonaro
A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) anulou sentença condenatória contra o doleiro Paulo Roberto Krug por crimes financeiros no caso Banestado. Houve empate no julgamento – o ministro Celso de Mello está em licença médica –, prevalecendo, assim, a posição favorável ao réu. Segundo essa orientação, o então juiz Sérgio Moro teria quebrado o dever de imparcialidade ao ter participado da produção da prova na fase investigativa.
A decisão da 2.ª Turma refere-se apenas à sentença contra Krug, e está alicerçada em circunstâncias específicas ocorridas naquele processo. A rigor, o Supremo não criou nenhuma jurisprudência. Simplesmente, dois ministros do STF entenderam que, no caso concreto, houve descumprimento do art. 252 do Código de Processo Penal. Na celebração do acordo de delação premiada, o juiz Sérgio Moro teria ultrapassado as funções de magistrado.
Não se pode ignorar, no entanto, a existência de outros recursos no Supremo questionando a imparcialidade de Sérgio Moro no julgamento de processos da Operação Lava Jato. Em especial, o próximo recurso a ser analisado pelo STF, que diz respeito à sentença condenatória do sr. Luiz Inácio Lula da Silva pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do triplex do Guarujá. Não cabe ao Supremo, como guardião da Constituição, ser indiferente às muitas consequências de eventual nulidade dessa sentença. O papel do Judiciário é aplicar o Direito ao caso concreto, sem simplismos ou irresponsabilidades.
O País inteiro assistiu a muitas horas de julgamento, em diversas instâncias e pelos mais variados motivos, sobre o caso do triplex do Guarujá. O próprio Supremo já se deteve discutindo, em mais de uma sessão, os efeitos do acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 4.ª Região, que confirmou a sentença de Sérgio Moro condenando o sr. Luiz Inácio por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Não se tem, portanto, um processo novo, até aqui desconhecido, cujos detalhes e circunstâncias teriam eventualmente passado despercebidos dos muitos controles recursais.
No caso do triplex do Guarujá, o que se deu foi justamente o oposto. Tudo foi visto, analisado e discutido muitas e muitas vezes, por várias instâncias. Não parece minimamente razoável afirmar agora que todo esse imenso processo deve ser anulado em razão de algo ocorrido lá na primeira instância, que ninguém até agora teria percebido – exceto os ministros do Supremo, em 2020 [Osório diz: A velhacaria convertendo-se em virtude pela velharidade]. Deve-se reconhecer desde já, portanto, que, por mais teses jurídicas que possam ser apresentadas para favorecer o réu Lula – a criatividade humana não tem limites –, eventual declaração de nulidade da sentença de Sérgio Moro teria sempre o sabor de uma mudança de regra no meio do caminho. Não é plausível que todas as cortes, incluindo o Supremo, não tenham visto até agora essa tal nulidade.
É importante ressaltar que eventual anulação da sentença do caso do triplex do Guarujá teria o efeito imediato de transformar Luiz Inácio Lula da Silva em ficha-limpa [Osório diz: Aqui está o x da questão desta nota!]. Tudo aquilo que recaía contra o líder petista, como num passe de mágica, desapareceria. Seria realmente uma hipótese estranha e absolutamente incompreensível – anos e anos de processo judicial serem postos por terra, em razão de uma questão só agora detectada.
A mensagem à população não poderia ser mais deletéria. Seria o Supremo dizendo que não se deve confiar nas instituições, que não se deve buscar razoabilidade na aplicação das leis, que não se deve acompanhar os processos judiciais – tudo, de uma hora para outra, pode ser anulado. De condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, Luiz Inácio Lula da Silva estaria, por decisão suprema, livre e solto para fazer sua política.
Por paradoxal que pareça, este seria o maior presente que o STF poderia dar a Jair Bolsonaro. Com Lula como adversário nas próximas eleições, o ex-capitão poderia voltar a hastear sua bandeira antipetista. E seria criar a pior confusão possível para a população, num cenário já desolador, com pandemia e crise social e econômica. Basta de sofrimento. [Osório diz: É para chorar ler algo como esta bosta! Não há a mínima preocupação com aquilo que se chama de Justiça nem com a correta aplicação da lei! Quer esse partidário do PSDB e outros interesses escusos simplesmente tirar do caminho de seus paus-mandados alguém que possa ter mais votos que eles! Se é inocente, não importa, o que importa é condenar por condenar e assim abrir caminho aos seus desideratos políticos. Ou seja: repetir o que fez a Lava Jato, conforme ficamos sabendo pela Vaza Jato!].
A nota é de 27.08.20. Sete dias depois, é publicado o artigo abaixo!
Ou seja, o artigo desdiz tudo que foi dito na nota!
Então, a nota é uma Fake News da imprensa que diz condenar as Fake News!
Quanta má do jornal!
E olha que não tenho nenhuma admiração pelo autor do artigo, mas neste escrito ele mandou muito bem, só faltou dizer “do juiz que orientava a acusação em como proceder”!
Era o que ocorria em Curitiba com a tal Lava Jato.
Quando os juristas dificultam
... sábios têm o talento de tornar herméticas disposições feitas para uso do cidadão comum
Ives Gandra da Silva Martins (O Estado de S. Paulo, 03.09.20).
Este artigo eu escrevo em memória de meu professor de Direito Processual Penal, Joaquim Canuto Mendes de Almeida. Em suas aulas costumava dizer que os juristas muitas vezes dificultam a compreensão do Direito. O Direito é uma ciência simples que os mestres que o ensinam têm o dom de complicar. Nada mais é do que as regras de convivência, que o povo deve entender para cumpri-las. Quando, entretanto, ensinadas pelos sábios, nem o povo nem os próprios sábios entendem como obedecer-lhes corretamente. Essa é a razão por que os tribunais superiores e constitucionais existem e seus ínclitos magistrados divergem tanto. Nomeados para esclarecer os “administrados” - este é o termo jurídico aplicável aos cidadãos -, normalmente os deixam mais confusos.
Lembro-me de um seu exemplo, quando afirmava que a melhor definição de prisão preventiva ele ouvira de um sambista gaúcho, cujo samba começava: “Nascimento, segura o homem, que este homem quer fugir”. Dizia: “Aí está a razão de ser da prisão preventiva, que vocês terão dificuldade de compreender depois que lerem os tratadistas brasileiros e estrangeiros. O bandido tem de ser preso antes para que não fuja. Todo o resto, como destruição de documentos, obstrução de Justiça, são criação dos juristas para exercício do saber e do poder”. Poderia eu acrescentar: para trazer insegurança jurídica, pois qualquer suspeito, alavancado, misteriosamente, pela imprensa para justificar o encarceramento sem aviso prévio, sofre a pena. As prisões provisórias e preventivas estão hoje banalizadas, como na era dos tribunais populares da Revolução Francesa, banalizada estava a utilização da guilhotina, que se tornara um passatempo popular.
Lembro-me do velho mestre quando afirmava: “O Código de Processo Penal é instrumento válido apenas nas democracias, pois existe para proteger o acusado, e não a sociedade”. Ensinava que, se o povo fizesse justiça com as próprias mãos, os linchamentos públicos seriam diários.
Quando lembro, 62 anos depois de suas aulas, após ter eu exercido durante todo esse período o direito de defesa como advogado provinciano, adaptaria às aulas do professor Canuto - ele se intitulava neto da praça, pois seu avô era João Mendes, que dera o nome ao logradouro central - as lições de Bastiat em seu célebre opúsculo A Lei. Escrevia Bastiat, na primeira metade do século 19, que a função da lei não é fazer justiça, mas sim não fazer injustiça.
Parafraseando o jornalista e economista francês, diria que a função do Poder Judiciário é não fazer justiça, mas sim não fazer injustiça. Se cabe ao Ministério Público sempre na dúvida acusar, o Poder Judiciário não deve tornar-se um órgão homologatório do parquet. Deve, isso sim, não permitir que a injustiça se faça, devendo o advogado, no mais legítimo direito das democracias, que é o de defesa, lutar para que a injustiça não se faça. Não sem razão, a lição da velha Roma é atual, quando se dizia que o máximo da justiça é o máximo da injustiça.
Por essa razão, numa sociedade o Judiciário é um Poder técnico, que não representa o povo, mas a lei; e não tem vocação política, pois esta cabe aos representantes do povo.
Assim é que, a Constituição brasileira tornou os Poderes harmônicos e independentes (artigo 2.°), com atribuições bem definidas, nos artigos 44 a 69 (Poder Legislativo), 70 a 75 (Tribunal de Contas), 76 a 91 (Poder Executivo), 92 a 126 (Poder Judiciário). Acrescentou àquelas atribuições as funções essenciais à administração da justiça, ou seja, Ministério Público (127 a 132) e Advocacia (133 a 135). Se o Judiciário deixa de ser um Poder técnico para ser um Poder político, ingressando na luta ideológica, a democracia corre riscos, visto que, sendo o Poder que pode errar por último, imporia uma ditadura da magistratura.
Mestre Canuto costumava dizer que, normalmente, o que está escrito na lei é o que deve ser seguido, e não as teorias dos sábios que encontram mil e uma interpretações atrás de cada palavra colocada na lei, tendo o talento de tornar herméticas e fechadas só para a compreensão dos iluminados as mais singelas disposições feitas para serem vividas e entendidas pelo cidadão comum.
Creio que, se vivo fosse, o professor Canuto, ao ver os consequencialistas, que flexibilizam de tal forma o que está na Lei Suprema a ponto de admitirem que o Poder Judiciário seja um constituinte derivado, fazendo normas constitucionais e infraconstitucionais, nas pretendidas omissões legislativas - o artigo 103, § 2.º, da Constituição federal proíbe tal conduta -, ou promovendo atos da competência do Executivo, quando tais atos não lhe agradam, certamente se sentiria um monge trapista em suas considerações, pois à época em que ironizava o hermetismo dos juristas, dizendo que atrapalhavam, os Poderes eram realmente harmônicos e independentes, respeitando uns aos outros suas atribuições.
Quantas saudades tenho de meu querido professor!
Fonte da imagem: http://opinioes.folha1.com.br/2019/04/10/vereador-de-sjb-e-a-nova-vitima-da-canalhice-travestida-de-jornalismo/
Regras de experiência comum do homem no dia a dia aplicadas pelo juiz!
Folha cumpre decisão judicial e publica sentença
Ação foi proposta sobre reportagem veiculada em maio de 2000.
25.set.2020.
JUIZADO DE DIREITO DA DÉCIMA SEXTA VARA CÍVEL DE BRASÍLIA – DISTRITO FEDERAL. Proc.: 58118-2/00 – Volume II. Autores: SANDRA MARIA DIAS NUNES e OUTROS. Requeridos: OSWALDO JOSÉ BARBOSA SILVA e EMPRESA FOLHA DA MANHÃ S/A. Ação: INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. SENTENÇA. Vistos, etc. SANDRA MARIA DIAS NUNES, CÂNDIDO RODRIGUES NEUBER, WILSON BIADOLA, MÁRCIA MARIA LÓRIA MEIRA, MÁRCIO MACHADO CALDEIRA, VICTOR LUÍS DE SALLES FREIRE, JEZER DE OLIVEIRA CANDIDO, EDISON PEREIRA RODRIGUES, FRANCISCO DE ASSIS MIRANDA, KAZUKI SHIOBARA, SEBASTIÃO RODRIGUES CABRAL, RAUL PIMENTEL, SANDRA MARIA FARONI e CELSO ALVES FEITISA, qualificados, ajuizaram a OSWALDO JOSÉ BARBOSA SILVA e EMPRESA FOLHA DA MANHÃ S/A, também qualificados, AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS, dizendo na inicial serem eles membros do Primeiro Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, órgão recursal de julgamentos proferidos pelos Delegados da Receita Federal em que processos relativos a imposto de renda de pessoas jurídicas, e que eles, em função desta circunstância, julgaram recursos envolvendo o IGASE, a eles dando provimento, com o que não concordou o primeiro demandado, o que o levou a ajuizar Ação Civil Pública, e, ainda, a dar entrevista publicada pela segunda demandada, caluniosa e difamante, o que lhes causou dano moral, pedindo a condenação dos requeridos a lhes pagar danos morais, além de ser a segunda requerida condenada a divulgar, com igual destaque dada à matéria, pelo mesmo número de vezes, a sentença, e a imposição aos demandados dos ônus da sucumbência. A inicial veio corretamente formulada e acompanhada de documentos. Resposta do primeiro demandado de fls.81/92, acompanhada de documentos, onde o requerido argui preliminares de ausência de pressuposto processual, por falta de pedido certo e determinado, e ser a inicial inepta por não atender ela a lei de imprensa e, no mérito, que nunca fez ataques pessoais aos autores, criticando, na entrevista, atividade funcional, que teve erros gritantes em julgamentos, sendo ela inspirada pelo interesse público, não tendo ele proferido inverdades, terminando por dizer que só citou uma pessoa, e que se houver o atendimento do pedido o valor da condenação deve ser moderado. Resposta da segunda demandada de fls.116/148, acompanhada de documentos, onde sustenta não ter causado dano moral aos requerentes, não tendo a matéria apontada como ofensiva, publicada em nome do interesse público, mantendo-se ela dentro dos limites legais e éticos, sendo dado aos autores, antes da publicação, possibilidade de manifestação, terminando por dizer não haver provas dos alegados danos, e que o valor da condenação, em havendo ela, deve obedecer a lei de imprensa. Decisão de fls.183 que rejeitou as preliminares e determinou especificação de provas, e de fls.194 que deferiu a produção de prova oral e designou audiência, realizada (ata de fls.255), onde se tomou depoimentos pessoais. Agravo retido oferecido pela segunda demandada de fls.195/197. Nova audiência realizada (ata de fls.263), quando se ouviu uma testemunha, encontrando-se razões finais dos autores às fls.268/2852, do primeiro demandado às fls.288/289, e da segunda requerida às fls.290/303. Este o relatório. FUNDAMENTO A DECISÃO. A causa de pedir, a razão de estarem os autores em Juízo são ofensas que o primeiro teria a eles proferido, e que teriam sido divulgadas pela segunda requerida. Correta se apresenta a causa de pedir, se mostrando ela verdadeira. Efetivamente houve ofensa. Disse o requerido na matéria publicada pela requerida a seguinte expressão: “Os conselheiros participaram de um julgamento safado.” Está a ofensa a justificar o dano moral. Safado é aquele que participa de safadezas, e que no dicionário é tido como desavergonhado, descarado, imoral, pornográfico. Evidente que não se pode dizer que uso de expressão tão dura, de conotação tão grave, tenha sido somente no legítimo exercício de função pública, na defesa dos interesses da comunidade. Isto se poderia entender como caracterizado no uso do Poder Judiciário, quando houve o ajuizamento de Ação Civil Pública, e, ainda, quando houve a estranheza com o conteúdo da decisão, que, na visão do demandado, não poderia decorrer de imperícia, mas, nunca, na rotulação dos requerentes como participantes de julgamento safado, sendo evidente que ela extrapola as possibilidades legais de uso de direito e vem a se constituir em ofensa. Não se pode perder de vista que, para as pessoas que souberam da acusação, as tipificações penais, de haver ou não este ou aquele crime, nada dizem, valendo-se elas do senso comum, da verdade estabelecida entre todos de que safados são pessoas sobre as quais se tem juízo negativo. Ensina Moacyr Amaral Santos: “ART.335. Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comuns subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial”. DIREITO ANTERIOR – omisso DIREITO COMPARADO – omisso COMENTÁRIO 31. REGRAS DE EXPERIÊNCIA. - Já aludimos a regras ou máximas de experiência nos comentários relativos a fatos notórios e nos referentes à apreciação da prova (ver n.10 e 27). Na definição de STEIN, a quem se deve a iniciativa do seu estudo mais aprofundado, consistem “em definições ou juízos hipotéticos de conteúdo geral, independentes do caso concreto que se tem de julgar e de seus elementos particulares, e que são adquiridos pela experiência, mas que são autônomas em face dos casos particulares, de cuja observação se deduzem e que pretendem ter valor em relação aos novos casos. De tais regras, que integram o patrimônio de noções pacificamente armazenadas por uma determinada esfera social, e assim a do juiz, a que se pode genericamente denominar cultura, se utiliza o juiz como normas destinada, a servir como premissa maior dos silogismos que forma no seu trabalho de fixação, interpretação e avaliação das provas. Síntese perfeita a de ROSENBERG:” Máximas de experiência são tanto as regras da experiência e cultura gerais como as regras de uma perícia ou erudição especiais nas artes, ciência, ofício ou profissão, comércio e tráfico (também os costumes do tráfico, os usos do comércio, etc.): em parte se extraem da observação do modo de viver e de obrar das pessoas, em parte são resultado da investigação científica ou de uma atividade profissional ou artística. Servem para a apreciação jurídica (subsunção) dos fatos, particularmente quando a aplicação do direito depende de juízos de valor; e, portanto, representam elementos essenciais da mesma norma jurídica aplicável, da premissa maior jurídica no silogismo do juízo judicial; ou servem para comprovação de fatos, em particular, na apreciação da prova para examinar o valor probatório do meio de prova e para concluir dos fatos não controvertidos ou provados a verdade de outros fatos discutidos; e formam, assim, a premissa maior do silogismo judicial em relação à estimação das afirmações sobre os fatos”. As regras de experiência, sem o uso das quais especialmente nos sistemas em que atua o princípio da livre apreciação da prova dificilmente poder-se-á chegar à verdade quanto aos fatos, se encontram no plano das normas de que o juiz deverá utilizar-se, salvo a existência de normas jurídicas a respeito, que sobre elas prevalecem. Assim, por exemplo, o juiz não poderá valer-se de máximas de experiência em face de presunções legais, mas, necessariamente, delas se utilizará, como premissa maior, em face do indício, para extrair uma presunção de homem. Uma dessas máximas são comuns, isto é, são inerentes à cultura da esfera social a que pertence o juiz: são as regras de experiência comum; outras se encontram no campo da erudição especial, para o conhecimento das quais é reclamada a informação de técnicos: são as regras de experiência técnica.32. REGRAS DE EXPERIÊNCIA COMUM. - As regras de experiência comum, que surgem pela observação do que comumemente acontece, e fazem parte da cultura normal do juiz, serão por este livremente aplicadas, independente de prova das mesmas: O juiz não pode desprezá-las quando aprecia o conteúdo de um testemunho, ou mesmo de um documento, para extrair a verdade dos fatos testemunhados ou documentados. “Tampouco pode olvidá-las quando aprecia a prova de indícios e somente com o seu concurso poderá reconhecer em vários deles o mérito de formar suficiente convicção, ou a um só a especial qualidade de constituir por si só prova plena. Essa qualificação indício necessário e a capacidade indicadora dos não-necessários conforme sua conexão entre si e com a fato por se provar, não podem reconhecer-se sem o auxílio das regras de experiência, pois de outra maneira não poderia o juiz aplicá-los.” Em suma, o juiz se vale das regras de experiência comum, livremente, para apreciar e avaliar as provas trazidas ao processo pelos meios regulares, a fim de decidir quanto àquilo que lhe pareça a verdade. (In Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, Rio de Janeiro, 1982, 3a edição, volume IV, pags.41/43). Logo, por tudo isto, não se pode ter a qualificação dos requerentes como safados, partícipes, de safadeza, sem a entender como ofensiva. Cometida a ofensa, ela atingiu a todos os Conselheiros membros do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, uma vez que o requerido disse na entrevista, sem excluir este ou aquele membro, que os envolvidos na anulação da dívida do Imposto de Renda do Instituto Geral de Assistência Social Evangélica participaram do julgamento safado, e sendo todos os autores integrantes deste Conselho, óbvio que a acusação contra eles foi dirigida. Estabelecida a existência do dano, de ter ele atingido todos os requerentes, de ter sido ele proferido pelo primeiro demandado, vejo, agora, a participação da segunda requerida. Não se pode negar, porque isto feriria, de morte, Estado Democrático, a importância de imprensa livre, e que para ela assim ser, tem a necessidade de divulgar informações, graves ou não, pertinentes ou não. A questão passa pelos limites deste direito. Evidente que direito, todo ele, sendo este também princípio sustentador de Estado Democrático, tem limites, e sendo ele ultrapassado, tem a pessoa que o desrespeita a obrigação de pagar pelo dano que cometeu. Aqui, evidente que a demandada ultrapassou os limites do direito de informação. Não cuidou ela somente de noticiar possível irregularidade em julgamento sob a responsabilidade dos autores em julgamento. Fez mais. Deu ela voz às ofensas do requerido, cuidando de as divulgar nacionalmente. Teve ela o cuidado de extirpar da publicação o trecho ofensivo, o que poderia fazer sem qualquer prejuízo para a informação de todos, estaria contido seu ato no direito de informar, mas, não o fazendo, sujeita-se a ter que também responder pelo dano, até porque só atingiu ele as proporções que tomou, de conhecimento por todos os cidadãos do território nacional, por ter sido divulgado em órgão conceituado e de ampla leitura como é o jornal editado pela demandada, a Folha de São Paulo. Logo, se a requerida assume o risco de fazer publicar matéria com trecho nitidamente ofensivo, junto com ele assume o risco de ter que responder, de forma conjunta, com quem faz a ofensa. Assim já sumulou a questão o Superior Tribunal de Justiça, dizendo: “221. São civilmente responsáveis pelos ressarcimento de dano, decorrente de publicações pela imprensa, tanto o autor do escrito, quanto o proprietário do veículo de divulgação.” Explica-se a solidariedade. Se não houvesse ela, fácil seria a alguma empresa jornalística não comprometida com a responsabilidade social que tem, com a obrigação de ser imparcial, atribuísse a pessoa financeiramente desvalida afirmações ofensivas, resguardando-se de possíveis responsabilidades e impedindo que o ofendido obtivesse efetiva reparação. Chego, finalmente, ao estabelecimento do quantum da indenização. Sabe-se, à exaustão, que a fixação do dano moral é atividade completamente subjetiva, devendo o valor servir como possibilidade de diminuição da dor, o que poderá se dar com aquisição de bem de consumo ou atividade de lazer, e, muito mais, como punição financeira para quem cometeu o ato. Deve-se, pois, evitar valor ínfimo, que nada representaria para quem o pagaria, sendo mesmo incentivo a novas ofensas, ou exagerado, que significaria ganho sem causa e até ruína financeira do devedor. Sabendo-se, também, que os autores, até pelas funções que exercem ou exerceram, sendo lícito estabelecer-se esta conclusão, muito mais que vantagens financeiras, buscam o restabelecimento da verdade, ficam claro para todos que safados não são e que assim não podem ser chamados, o conforto moral que a reprovação ao dano moral que sofreram lhes dará, e das possibilidades financeiras de cada um dos requeridos, a da segunda demandada muito maior do que o primeiro, correto que a fixação se dê em patamares diferentes. Deve pagar o primeiro demandado, para a relação antes estabelecida seja respeitada R$ 1.500,00 (mil e quinhentos reais), e a segunda demandada R$ 3.000,00 (três mil reais). Por fim. Sendo a divulgação das ofensas um dos fatores de seu agravamento, correto que, quando elas forem reparadas, que também haja a sua divulgação, com o mesmo destaque das ofensas, sob pena de não se repor integralmente os danos. Estas as razões de decidir. DECIDO. Ante o exposto: 1) - JULGO PROCEDENTE os pedidos contidos na inicial, CONDENANDO: a) - o primeiro demandado a pagar a cada um dos autores, para reparação do dano moral, a quantia de R$ 1.500,00 (mil e quinhentos reais); b) - a segunda demandada a pagar a cada um dos autores a quantia de R$ 3.000,00 (três mil reais), e, ainda, a publicar, na íntegra, pelo mesmo número de vezes, e com igual destaque, esta decisão, no mesmo órgão que publicou a notícia tida como ofensiva. 2) - CONDENO, ainda, os requeridos a pagar as despesas processuais e honorários advocatícios, que fixo em 10% (dez por cento) do valor da condenação. P.R.I. Brasília, DF, 6 de Agosto de 2001. Luciano Moreira Vasconcellos – Juiz de Direito.
Fonte da imagem: http://www.monolitospost.com/2016/04/19/a-importancia-do-conselho-municipal-de-politica-publica-cultural-de-quixada/
Sobre o ‘marxismo cultural’
Roberto DaMatta (O Estado de S. Paulo, 15.05.19).
Para Juremir
Deveríamos ter aprendido que a democracia tanto como um regime político e, acima de tudo, como um estilo de vida, precisa da esquerda e da direita que nela concordam em discordar
A rádio Guaíba me perguntou sobre esse “marxismo cultural” que, como um canibal, devora consciências. Ele, diz a vulgata bolsonarista, distorce realidades tão claras como o evangelismo cristão ou um conservadorismo radical, igualmente sectário.
Um ataque de pusilanimidade me fez driblar a entrevista. Mas não consigo fazer o mesmo com minha consciência.
Eis o que penso.
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O problema das Ciências Sociais é estudar coisas que todos experimentam. Quem não tem opinião sobre sexualidade, religião, política, pobreza e corrupção? Mas quantos buscam compreender tais assunto com distanciamento?
As Ciências Sociais contrariam o senso comum e investigam temas e assuntos proibidos. Um exemplo forte é a sexualidade infantil estudada por Freud, um outro é a transição do lucro como paixão escusa a investimento produtivo num universo de multiplex interesses que, leiam Albert Hirschman, bloqueia despotismos.
Por outro lado, quem não pensa em transformar a vida dos pobres e oprimidos, sobretudo num Brasil onde eles fazem parte da vida de cada um de nós? Seja como ricaço ou miserável; cidadão comum ou celebridade com o direito a escapar da terrível igualdade republicana? Quem não se preocupa com o mínimo de bens e serviços obrigatórios para todos os brasileiros?
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O coração ideológico da consciência política da minha geração, formada no final dos anos 50, foi o marxismo. Um marxismo lido em traduções de edições russas censuradas. Lembro que essa geração da guerra fria – condescendentemente chamada de “geração Coca-Cola” – não falava apenas de “direita” e “esquerda”. Ela ia além, classificando as pessoas como “conscientizadas” e “alienadas”.
Os pais eram alienados, as mães – católicas e preocupadas com os pobres – pré-conscientizadas. Fui contaminado por Karl Marx e pelo pouco falado Friedrich Engels quando entrei na faculdade. Quem, aos 20 anos, não tem o direito de deslumbrar-se com o Manifesto Comunista e vibrar com o fim da opressão encontrando, de quebra, a chave mestra da História da Humanidade?
Foi o protomarxismo mais evolucionista do que funcionalista (o Marx do 18 Brumário e no da Questão Judaica) que me levou a perceber o Brasil que gravitava à minha volta. Brasil que, como aprendiz de antropólogo do Museu Nacional, entrei em contato quando vi o seu lado mais fundo e dramático – suas sociedades indígenas que, mesmo com a tal “proteção oficial”, estavam sendo dizimadas, enquanto os sertanejos reclamavam de injustiça.
Foi, pois, o altruísmo contido no “comunismo” que me levou a essa identificação com um Brasil a ser transformado. Não abandonei esse comunismo até hoje entrelaçado ao meu amor pelo Brasil.
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O que abandonei foi a infantilidade dos radicalismos. Do “esquerdismo” nas suas versões radicais e patologicamente malandras e populistas. Um posicionamento cujo pendor acusatório e condescendente, ressentido e repleto de má-fé (aos nossos tudo; aos inimigos o berro, a negação, a mentira e a calúnia!), reproduz o autoritarismo fascistoide do regime militar. A prova do pudim foi (como ocorre em todo lugar) a chegada ao poder, pois nada é mais revelador do que o poder.
O esquerdismo irresponsável produziu o contexto polarizado em que vivemos [Osório diz: Por que não o direitismo irresponsável?]. Podem-se controlar excessos, mas enjaular o “marxismo cultural”, cujo espírito marca toda uma época, seria como tentar colocar de volta a noite na caixa de Pandora. Do mesmo modo, não há como carimbar o liberalismo como um paraíso de rentistas ladravazes. Basta pensar na filantropia [Osório diz: PiKetty, em “Capital e ideologia”, Intrínseca, p. 619, desmascara os filantropos do capitalismo] e no mercado com um equalizador de interesses pulverizados – esses produtores de meritocracia coletivista. Por outro lado, o comunismo recria o individualismo capitalista quando se reconhece o talento dos seus líderes. Senão ninguém falava em Stalin, Lenin, Mao e Fidel.
O que não pode ocorrer é a tentativa de eliminação suicida da esquerda pela direita. Deveríamos ter aprendido que a democracia tanto como um regime político e, acima de tudo, como um estilo de vida, precisa dos dois lados que nela concordam em discordar. Diretas e esquerdas perfeitas – que deixam saudade! – só acorrem nas ditaduras que, lamentavelmente, conhecemos bem demais.
Fonte da imagem: https://www.youtube.com/watch?v=gmwuH7qwwh8.