Sofística
(uma biografia do conhecimento)
10 – O que é a Sofística?
A Sofística é a reunião, o conjunto dos Sofistas!
Esse movimento, Sofística, contudo, não formava uma escola, nos moldes que vieram a existir as escolas de filosofia e medicina, posteriormente.
Os sofistas acorreram para Atenas vindo dos lugares mais distantes e opostos da Grécia!
E, lembre-se, estamos falando da Grécia antiga, onde os meios de comunicação eram extremamente precários, de modo a não permitir entre eles a discussão e aceitação de temas comuns!
Aliás, muitos dos sofistas defendiam pensamentos diametralmente opostos.
Mesmo assim, num acaso da sorte, seus pensamos acabam por se encontrar e produzem o que há de mais belo e racional no pensamento da humanidade, como se, pela coerência e honestidade com que expunham seus saberes, estes acabassem encontrando, por si mesmos, os pontos de contatos necessários capazes de dar unidade e harmonia entre eles, para nossa sorte.
Seus pensamentos, como os mitos gregos, parecem ser, atemporais, não cronológicos, tanto assim que um pensamento posterior pode ser justificado por um pensamento que lhe é anterior!
Exemplo maior disse, cremos, é a proposta de Protágoras (anterior) para “salvar do desastre total” das teses avassaladores de Górgias a possibilidade de, mesmo sem conhecer, ser possível a vida em sociedade, que sempre foi o objetivo maior de seus ensinamentos, sempre dentro da maior igualdade possível, pois eram democratas, e igualdade era, e é, nada mais, nada menos que a Justiça.
É Barbara Cassin quem diz:
“‘Uma semelhança como aquela entre o lobo e o cão, o mais selvagem e o mais domesticado’ Platão, Sofista, 231a. [Osório diz: semelança entre Filosofia e Sofística]
O sofista, mestre de sabedoria, não é o filósofo, amante que não ousa pretender possuir todo o seu objeto: a sofística se constituiu e foi constituída em alter ego (1) da filosofia. É por isso que ela é não apenas um fato de história, mas também um fato de estrutura.
Fato de história: a sofística é de início esse movimento do pensamento que, na aurora pré-socrática da filosofia, seduziu e escandalizou a Grécia inteira. Hegel qualifica os primeiros sofistas, na Atenas de Péricles, de ‘mestres da Grécia’: ao invés de meditar sobre o ser como os eleatas, ou sobre a natureza como os físicos da Jônia, eles escolhem ser educadores profissionais, estrangeiros itinerantes que comerciam sua sabedoria, sua cultura, suas competências, como as heteras [Osório diz: cortesãs ou prostitutas elegantes e instruídas da Grécia antiga), seus charmes, Mais são também homens de poder, que sabem como persuadir juízes, comover uma assembléia, executar bem uma embaixada, dar suas leis a uma cidade nova, formar para a democracia, em suma, fazer obra política. Essa dupla mestria [Osório diz: perícia] tem sua única origem na mestria da linguagem, sob todas suas formas, da linguística (morfologia, gramática, sinonímia) à retórica (estudo dos tropos [Osório diz: emprego de palavra ou expressão em sentido figurado], da sonoridade, da pertinência do discurso e de suas partes).
E,
A tradição dominante, platônico-aristotélica, forma na verdade com a sofística um duplo tanto mais inquietante porque mais difícil de distinguir dela mesma, como o lobo do cão e a má intenção da boa. A filosofia institui assim seus próprios limites e tenta forcluir [Osório diz: negar a existência apresentando como] como ‘sofisma’ por exemplo, qualquer outro discurso que não o seu: "Aqueles que colocam a questão de saber se é preciso ou não honrar os deuses e amar seus pais têm apenas necessidade de uma boa correção, e aqueles que se perguntam se a neve é branca ou não têm apenas que olhar’ (Aristóteles, Tópicos, I, 105a5-7).
E,
Nessa perspectiva, compreende-se o interesse de estudar os retornos da coisa sofística, a maneira pela qual ela não cessa de desfazer a censura filosófica, particularmente com o movimento que se designa a si mesmo, em pleno período imperial – ou seja, cinco séculos depois de Protágoras e Górgias – como "segunda sofística”. Diferente da filosofia, diferente da metafísica, de Platão e de Aristóteles até Hegel, e entretanto nada de pura e simplesmente irracional: eis porque a sofística é uma questão sempre atual. Sem dúvida, não se cessa de puxá-la de um lado ou de outro: primeiro esboço da Aufklärung [Osório diz: iluminismo ou esclarecimento. Aclaração, esclarecimento, iluminação], primeiro existencialismo trágico. Mas, através das contradições da crítica, a heterodoxia sofística faz ainda perceber o caráter de artefato da fronteira racional/irracional.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990,p. 9).
1 1 Pode ser entendido literalmente como outro eu, outra personalidade de uma mesma pessoa. O termo é comumente utilizado em análises literárias para indicar uma identidade secreta de algum personagem ou para identificar um personagem com sendo expressão da personalidade do próprio autor de forma geralmente não-declarada. Para a psicologia, o alter ego é um outro eu inconsciente.
(Fonte: http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20090509021538AA2Af2G)
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
9 – O que é um sofista?
O que você conhece sobre os Sofistas gregos?
Você conhece ou apenas ouviu dizer?
Que material (escritos) deles você já leu?
Que autores você leu que falem sobre eles?
Você sabe o que é um “sparring”? Um “saco de pancadas”? Um “escada”?
Nas lutas de boxe, o sparring é o pugilista que entra no ringue apenas para apanhar! Ele não pode ganhar! Ele é feito/existe para apanhar de seu adversário.
Aquele que é considerado “saco de pancadas” é o que apanha, também, de todo mundo. É aquele que tanto apanha como dão nele!
Nos espetáculos de humor o “escada” é aquele que faz a pergunta idiota que ninguém faz ou faria para que o mocinho feche com chave de ouro e ele fique sendo o idiota.
Pois é, se você não conhece os Sofistas, saiba que eles podem ser tidos, justamente por você não os conhecer, como “sparrings”, “sacos de pancadas” e “escadas” dos filósofos! Tudo isso por você, de boa-fé, acreditar no que Platão e Aristóteles, especialmente, dizem sobre eles, por ainda não ter tido oportunidade de procurar compreender as razões pelas quais tais filósofos batem tanto neles, inclusive eles continuam apanhando dos ditos pensadores atuais, que são meros repetidores daqueles dois homens, enquanto os Sofistas mudaram a história do pensamento no Ocidente.
Você não encontra nada, ou encontra muito pouco do que eles disseram ou escreveram? Isso é realmente uma lástima, mas não se preocupe em demasia com isso, pois seus próprios detratores se encarregaram de preservar muita coisa do que eles condenam! E o melhor, num golpe de sorte, os sectários não queimaram os livros de Platão e Aristóteles, pois, hoje, se soubessem o resultado que a sobrevivência dessas obras implicaria, certamente teriam dado fim a todas elas, como fizeram com as obras Sofísticas.
Assim, foi a partir da leitura daqueles que combateram (combatem) os Sofistas que passamos a conhecê-los melhor e a entender os seus inquietantes e frutíferos pensamentos, fazendo um caminho inverso, ao contrário do que fazemos na leitura ordinária! Assim é que entendemos que: “se Platão e Aristóteles defendiam a escravidão, é porque alguém as condenava”! Ninguém precisaria defender aquilo que não se condena. E sabem que condenava a escravidão? Isso mesmo, os Sofistas!
Que eles passaram como um furacão (atualmente seria um tsunami) não resta dúvida, pois destruíram os pilares de todo pensamento que mantém a sociedade: política, deus, saber etc.!
Mas só destruíram, então!?
Não!
Mas se eles destruíram é por que esses pilares eram frágeis, logo, não mereciam permanecer!
Mas eles, mesmo tendo destruído, não deixaram atrás de si um rastro de destruição! Eles fundaram tudo de novo, só que agora em bases mais sólidas, como são aqueles edifícios que têm molas em seus pilares e que quando dos terremotos, balançam, mas não caem!
Tanto isso é assim que ainda hoje, século XXI, os ensinamentos sofísticos estão por toda parte sendo aplicados no dia a dia e combatidos também, sem que esse combate, com todas as poderosas armas da atualidade, tenha sido vencido por seus detratores, antigos e modernos, deixando, com isso, “um gosto amargo na boca” daqueles que investem contra a muralha construída por aqueles homens a partir de uma argamassa que parece indestrutível e que pode ser chamada de coerência!
Este livro, portanto, é apenas um aperitivo, um convite para você conhecer os Sofistas e tirar, por você mesmo, as conclusões a que chegar, sem aqueles intermediários que já condenam os Sofistas de saída, pelo simples fato de serem quem foram, não lhe mostrando a riqueza que eles deixaram como contribuição inestimável ao conhecimento humano, ou suas possibilidades.
A modernidade manteve e aprofundou um ensinamento muito interessante para todos e que sempre deve ser considerado, em qualquer situação: “não julgue sem antes de conhecer os fatos”.
Assim, você tem duas oportunidades, a partir daqui: (a) seguir condenando os Sofistas sem conhecê-los ou (b) conhecê-los para depois, tirando suas próprias conclusões, condená-los, se for o caso.
Relembre que não se atira pedra em árvores que não dão frutos!
Vamos em frente?
Boa caminhada.
Poderíamos iniciar uma tentativa de resposta para as perguntas que formulamos acima com a famosa frase de Lavoisier: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.
As palavras também têm vida e, se têm vida, participam do movimento natural de todas as coisas, do “eterno fluir”, e, sendo assim, passam por constantes modificações de significados nos seus usos ao longo da história.
Muitas palavras, que hoje têm determinado sentido, num momento posterior, passam a significar o seu oposto.
Em Portugal, por exemplo, uma mulher jovem é rapariga. No Brasil, que também fala a língua portuguesa, em algumas regiões (no Norte, por exemplo) rapariga é sinônimo de meretriz!
O que é um sofista?
Sofista vem da palavra grega sophós, que significa sábio!
Homero, Péricles, por exemplo, eram sofistas! Eram sábios.
O evolver dos tempos transformou o sofista num enganador, mentiroso, embusteiro etc.
Ou seja, osignificado da palavra foi de um extremo a outro!
No caso dos sofistas gregos do século V a.e.a a situação é mais curiosa, pois alguns, tidos por seus contemporâneos como sofistas, irão ser separados, à bisturi, do grupo que reuniu todos eles e deste excluído será retirada a pecha que ficou apenas para os demais que não tiveram advogados tão dedicados. É o caso por exemplo, de Sócrates!
A palavra sofista, que não sabemos quem a criou, mas que ainda é usada, sofreu o processo de transformação de que fala o estudioso francês.
Desde que se tem notícia, o “termo sofista, do grego sophía (σοφία), "sabedoria" e sophós (σοφός), "sábio" é o nome dado na Grécia clássica, daquele que fazia profissão de ensinar a sabedoria. Sophós e Sophía em suas origens denotavam uma especial capacidade para realizar determinadas tarefas como se reflete na Ilíada (XV, 412). Mais tarde atribuía-se a quem dispunha de inteligência prática e era um experiente e sábio em um sentido genérico. Seria Eurípedes quem acrescentar-lhe-ia um significado mais preciso como "a arte prática do bom governo" (Eur. I. Á.749) e que foi usado para assinalar as qualidades dos Sete Sábios da Grécia. No entanto, no decorrer o tempo teve diferenças quanto ao significado de sophós: por uma parte, Ésquilo denomina assim aos que dão utilidade ao sabido, enquanto para outros é ao invés, o sendo quem conhece por natureza. A partir deste momento criar-se-á uma corrente, que se aprecia já em Píndaro, que dá um significado despectivo ao termo sophós o assimilando a "charlatão".
Já na Odisseia, Ulisses é qualificado de sophón como "engenhoso". Pelo contrário, Eurípides atribui à sophía "rapidez" e ao sophón "sabedoria", tratando com isso de diferenciar a intensidade e grau de conhecimento das coisas que têm respectivamente os homens e os deuses. (Fonte: http://pt.encydia.com/es/Sofista, em: 07.02.16).
Platão será, contraditoriamente, contudo, o maior deturpador do termo, seguido por seu discípulo Aristóteles, sendo que ambos trilham caminho aberto por Aristófanes na sua peça “As nuvens”, como veremos mais adiante.
Aristófanes desdenha dos sofistas, tudo leva a crer, para galhofar deles e por acreditar em sua galhofa, especialmente pelos perigos que estes apresentavam para sua classe e seu status conservador.
Aristóteles combaterá TODOS os sofistas.
Platão é o ambivalente.
“Conheçamos os sofistas, cuja má fama é injusta, pois eles prestavam serviços à sociedade e preocupavam-se em nos mostrar o enorme poder das palavras sobre nossas almas. Foram os sofistas os primeiros pensadores a refletirem sobre a linguagem, pois Hesíodo, embora dela tenha feito uso, sobre ela não refletiu; de fato, eles não eram inimigos dos filósofos, mas seus adversários no plano das ideias.
Tão acidamente são criticados os sofistas que muitas vezes nos parecem quase criminosos. Nada mais longe da realidade. Muitos deles serviram às suas cidades como embaixadores, outros construíram ou reconstruíram templos e, com seus próprios recursos, reformaram prédios públicos.
Alguns que exerceram o cargo de embaixador: Górgias, embaixador de Leontinos em Atenas; Pródico, embaixador de Céos em Atenas. [Osório diz: este simples fato mostra que eram homens proeminentes, pois ninguém, em sã consciência, escolhe homens inexpressivos para embaixadas, importantes ou não, pois em todas elas está em jogo o prestígio do país que o escolheu].
Houve, na Antigüidade, dois grandes movimentos sofísticos: um no período clássico e outro, no período helenístico. O primeiro movimento (a primeira sofística) tem como representantes Górgias de Leontinos, Protágoras de Abdera, Pródico de Céos, Trasímaco, Antífon e Hípias, entre outros. Essa sofística, na verdade uma “retórica filosofante”,como define Filostrato, distingue-se da Filosofia pelo modo de argumentação e de investigação.
A segunda sofística tem como representantes Ésquines, Nicetes, Scopelian, Iseus, Herodes Ático, Hermógenes de Tarso e Aristides, entre outros.
Por isso, e setecentos anos de separação, esses dois movimentos não devem ser confundidos.
Os sofistas surgiram num momento em que era indispensável aos gregos falar bem para chegarem aos cargos de direção da sociedade; eles foram os primeiros pensadores a refletir sobre as palavras e seu poder sobre as almas dos homens. Por isso, a sofística é uma “retórica filosofante”: pensando a linguagem, descobriram o enorme poder das palavras e quão facilmente os homens se deixam enganar por elas. Os sofistas não pretendiam enganar os homens, como em geral se pensa, mas investigaram as razões pelas quais um discurso é convincente e outro não, e sobre isso ensinavam mediante a cobrança de honorários, como os professores atualmente o fazem. Sócrates (ou Platão?) criticava essa cobrança de honorários, por considerar que a atividade filosófica deve ter como centro a amizade e não o comércio. Condenação que era muito confortável para Platão, pois pertencia a uma rica família grega, já Sócrates recebia seus “honorários” com outro nome, como se o nome mudasse a natureza das coisas: presentes, convites para banquetes.
Ao contrário do que se pensa, os sofistas não eram inimigos dos filósofos, nem os filósofos eram inimigos dos sofistas: eram sim adversários no plano das ideias. Como pensavam e tratavam de muitos temas comuns, dialogavam e discutiam sobre esses mesmos temas. Assim, há vários diálogos de Platão que têm como título nomes de famosos sofistas (por exemplo: Protágoras, Górgias, Hípias): nesses diálogos, Platão discute as ideias dos sofistas e as tenta rebater, apresentando as suas próprias. (https://ri.ufs.br/bitstream/123456789/764/1/MiscelaneaSofistica.pdf.)
Sofistas apesar de o termo ser empregado originalmente, em relação aos homens sábios, foi aplicado por Platão a vários professores que desaprova, entre eles Protágoras, Górgias, Trasímaco e Hípias de Elis. Platão trata-os em geral como charlatães que falavam unicamente para alcançar a vitória [Osório diz: seria extremamente difícil terem alunos se falassem para alcançar a derrota!], ganhando dinheiro com o ensino dessa técnica. Na verdade, a atitude geral dos sofistas não parece ter sido muito diferente da de Sócrates, mantendo ambos uma posição razoavelmente cética em relação às cosmologias especulativas, tais como as dos eletatas, e uma insistência também razoável no estudo dos fundamentos da moral e da epistemologia. (Simon Blackburn, Dicionário Oxford de Filosofia, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1997, p. 366).
“Não uma, mas duas barreiras se levantam no caminho de quem quer que busque chegar a uma compreensão adequada do movimento sofista na Atenas do Século V a.e.a. Não restaram escritos completos de nenhum dos sofistas e temos de depender de fragmentos insignificantes e de sumários muitas vezes obscuros, ou discutíveis, de suas doutrinas. Pior ainda, dependemos, para grande parte de nossa informação, de Platão, que os tratou de maneira profundamente hostil, com todo o poder de seu gênio literário, acertando-os em cheio com um impacto filosófico quase arrasador. O efeito acumulado tem sido bastante desastroso. Levou a um tipo de opinião pronta segundo a qual é de duvidar se os sofistas, como um todo, tenham contribuído com algo de importante para a história do pensamento. Seu maior valor, diz-se freqüentemente, foi simplesmente o de terem provocado sua própria condenação, primeiro por Sócrates e depois por Platão, ou por ambos, já que se confundem. Em todos os pontos essenciais dessa disputa, Platão é quem foi considerado certo, e os sofistas, errados. Mesmo a reação contra Platão, daqueles para quem Platão tendia a parecer como um reacionário autoritário, de nada ajudou aos sofistas. Condenados a uma espécie de meia-vida entre os pré-socráticos, de um lado, e Platão e Aristóteles, de outro, eles parecem vaguear para sempre como almas perdidas.
O resultado é paradoxal. O período de 450 a 400 a.e.a. foi, sob vários aspectos, a maior época de Atenas. Foi um período de profundas mudanças sociais e políticas, de intensa atividade intelectual e artística. Padrões tradicionais de vida e experiência foram dissolvidos em favor de novos padrões. Crenças e valores das gerações anteriores eram criticados. O movimento sofista expressava tudo isso. Nós que, pode-se supor, temos a sorte de viver no tempo presente estamos especialmente bem posicionados para compreender o que era provável acontecer em tal situação, proceder à investigação e, tanto quanto possível, estabelecer, pelo estudo, o que de fato aconteceu.
A modernidade da extensão dos problemas formulados e discutidos pelos sofistas no seu ensino é realmente espantosa e a lista que se segue fala por si mesma. Primeiro, problemas filosóficos na teoria do conhecimento e da percepção - em que grau as percepções sensíveis devem ser consideradas infalíveis e incorrigíveis, e os problemas decorrentes nesse caso. A natureza da verdade e, acima de tudo, a relação entre o que parece ser e o que é real ou verdadeiro. A relação entre linguagem, pensamento e realidade. Depois, a sociologia do conhecimento, que reclama por investigação, porque muito do que supomos conhecer parece ser socialmente, na verdade etnicamente, condicionado. Isso abriu, pela primeira vez, o caminho para a possibilidade de uma abordagem genuinamente histórica da compreensão da cultura humana, sobretudo mediante o conceito do que foi chamado "antiprimitivismo", isto é, a rejeição da visão de que as coisas eram muito melhores no passado distante, em favor da crença no progresso e da ideia de um constante desenvolvimento na história dos seres humanos. O problema de se alcançar qualquer conhecimento a respeito dos deuses, e a possibilidade de que os deuses existam apenas em nossas mentes, ou até que sejam invenções humanas necessárias para servir às necessidades sociais. Os problemas teóricos e práticos da vida em sociedade, sobretudo nas democracias e sua doutrina implícita de que pelo menos sob alguns aspectos todos os homens são ou devem ser iguais. O que é justiça? Qual deveria ser a atitude dos indivíduos quanto aos valores impostos por outros, sobretudo numa sociedade organizada que requer obediência às leis e ao Estado? O problema do castigo. Natureza e finalidade da educação e o papel dos professores na sociedade. As ruinosas implicações da doutrina segundo a qual virtude pode ser ensinada, o que é apenas uma maneira de expressar, em linguagem fora de moda, o que queremos dizer quando afirmamos que pela educação as pessoas podem mudar a sua situação na sociedade. Isso, por sua vez, levanta de forma aguda a questão do que deve ser ensinado, por quem e a quem deve ser ensinado. O efeito de tudo isso na geração mais jovem em relação à mais velha. Como conseqüência de tudo isso, dois temas dominantes ¡ª a necessidade de aceitar o relativismo nos valores e noutras coisas, sem reduzir tudo ao subjetivismo, e a crença de que não há área da vida humana, ou do mundo como um todo, que seja imune à compreensão alcançada por meio do debate racional.
Uma lista longa, e talvez sejamos criticados por sentir que ela representa o processo mesmo de transição de uma antiga e tradicional representação do mundo para um mundo que é intelectualmente o nosso mundo, com os nossos problemas. No entanto a tentativa de interpretar os sofistas nessa linha mal começou. O que se segue neste livro é bem um primeiro passo. Antes de prosseguir com as interpretações nessa linha, será contudo útil, julgo eu, tratar brevemente de dois tópicos preliminares - a história das tentativas passadas de avaliar o movimento sofista, essencial para se compreender por que sua importância foi tão subestimada até agora, e a situação histórica e social que produziu a atividade dos sofistas.”. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 9/12).
Nos ensina Guthrie:
As palavras gregas sophos, sophia, que se costumam traduzir por “sábio” e “sabedoria”, denotam primariamente perícia em determinada capacidade.
Um construtor de navios em Homero é "experimentado em toda sophia", um cocheiro, um piloto de navio, um áugure, um escultor são sophoi cada um em sua ocupação. [Osório diz: seria o doutor moderno?]
Conhecedora geral ou prudente, na linha de um ...um perito ...instruído em geral. ...(p. 31)
Mas Píndaro, sem dúvida, agradou ao seu real patrono ao escrever que aquele que sabe por natureza é sábio (sophos), em contraste com os papagaios que falam e adquiriram seu conhecimento por aprendizado.
“sofistas”, é o nome do agente derivado do verbo. … (p. 32)
Provavelmente se supunha que o sophistes era mestres Está de acordo com o fato de que o nome se aplicava muitas vezes a poetas, pois, no modo de ver dos gregos, instrução prática e conselho moral constituíam a função precípua do poeta. [Osório diz: Poeta]
[Morrison em Duham U. J. 1949, 59. Seu artigo contém muitas provas de que (como também Jaeger sustenta em Paideia 1,293) os sofistas foram herdeiros da tradição educacional dos poetas. Não que fosse sua única herança. Nestle foi mais correto quando os chamou de herdeiros dos filósofos jônios também (V. Mzul, 262). Assim também de fato Morrison, I. cit. 56. [p. 33] [Osório diz: Herdeiros!]].
Os sosfitas e os poetas.
Teógnis está cheio de máximas éticas, algumas de alcance geral e outras em apoio da supremacia da alta classe.
O próprio Eurípides, desafiado a apresentar motivos pelos quais o poeta merece admiração, responde: “Por sua sagacidade e bom conselho, e porque merece admiração, melhores cidadãos”. …
Com poesia ia a música, pois o poeta lírico era seu próprio acompanhante. (p. 33)
Parece, contudo, que no séc. V a palavra começava a ser usada para escritores em prosa em contraste a poetas, quando a função didática veio a se exercer cada vez mais por este meio. Alguns dos Sete Sábios, em sua qualidade como sophistai ou mestres, expressaram em prosa o tipo de máximas que Teógnis ou Simônides expressaram em verso, o que deve ter lançado as sementes da distinção. 10 Xenofonte (Mem. 4.2. 1) diz que Eutidemo colecionou "muitas das obras escritas dos mais celebrados poetas e sofistas".
Um sophistes escreve e ensina porque tem especial perícia ou conhecimento para comunicar. Sua sophia é prática, quer nos campos da conduta e política quer nas artes técnicas. Se alguém pudesse fazer os produtos de todos os ofícios, e ademais todas as coisas no mundo natural, seria, com efeito, um fabuloso sophistes, diz Gláucon na República (596d), e uma frase semelhante, "um fabuloso (deinos) sophistes", expressa-se no mesmo tom de incredulidade por Hipólito em Eurípedes (Hip. 921) de um homem que poderia fazer sábios de loucos. (p. 34)
Um uso ainda mais surpreendente da palavra em sentido de elogio está em Xenofonte (Cyrop. 3.1.14 e 389ss): o príncipe armênio Tigranes fala a Ciro de um mestre com o qual está se associando, e que Xenofonte chama de sophistes. Seu pai mandou matar o homem na crença de que estava corrompendo Tigranes, mas o seu caráter era tão nobre que antes de sua execução mandou dizer a Tigranes para não levar a mal seu pai porque tinha agido por ignorância. [Osório diz: Primeiros sofistas?]
Deinotes, com o adjetivo deinos.
Astuto e esperto (p. 35)
embora Demóstenes seja figura do séc. IV...
Às duas críticas, que um sofista não é tão experto como ele crê que é, e que sua experteza é usada para objetivos errados, alude-se de novo num fragmento de Sófocles (97 Nauck): "Uma mente bem disposta, com pensamentos corretos, é melhor inventora que qualquer sophistes".
Também Aristófanes sabia de sua existência quando satirizou sofistas nas Nuvens, mas ainda usava a palavra em sentido mais geral, na qual pôde incluir (para os que o desaprovavam) Sócrates, embora ele não aceitasse nenhum pagamento e seja constantemente apresentado por Platão como o oponente inveterado dos sofistas. Em v. 331 as Nuvens se dizem ser as mães de criação de uma multidão de "sofistas", que são relacionados como adivinhadores de Turii, doutores charlatães, janotas de cabelos compridos, poetas ditirâmbicos e astrônomos espúrios – uma lista muito compreensiva. Em 360 Sócrates e Pródico são mencionados juntos como "meteorossofistas" ou peritos em fenômenos celestes. Em 1111 Sócrates promete que o seu ensino converterá o jovem Feidípides em sofista perito, sobre o que seu aluno indisposto comenta: "Um pobre diabo de face pálida, queres dizer", e em 1309 a palavra aplicada a Estrepsíades pelo coro não significa nada mais que “malandro”, em alusão a suas pechinchas com seus credores.
A palavra "sofista" tinha, pois, um sentido geral assim como também um especial do qual temos que falar ainda, e em nenhum destes sentidos [p. 36] era necessariamente termo de insulto. (Compare o juízo de Sócrates sobre o profissional Mícus). Se lembrarmos a vocação educacional dos poetas gregos, poderemos dizer que a palavra que se lhe aproxima mais em português é mestre ou professor.
Nas mãos do conservador Aristófanes tornou-se definitivamente termo de insulto implicando charlatanismo e velhacaria, (…) [Osório diz: Sofistas!]
Socrática [Nem seguiremos Popper (O. S. 263, n. 52) ao dizer que Platão é “o homem que por seus ataques aos ”sofistas” criou associações pejorativas associadas à palavra”. (Grifei). Uma afirmação melhor temos em Havelock (Lib. Temper, 158): “Os dramaturgos da Velha Comédia jogavam com o preconceito [contra o intelectualismo], se na verdade não o criaram, e quando Platão usa a palavra sophistes já tinha perdido dignidade. Talvez ele não possa esquecer as obras burlescas representadas em sua juventude que tinha lido ou visto”. (p. 37) ]. À parte a prova de Xenofonte, teria sido bastante impossível para Platão ter referido, na maneira e nos contextos em que ele assim se refere, aos mestres pagos como sofistas se este não tivesse o seu título reconhecido. [Osório diz: O que dizer os retratos que Aristófanes faz de Sócrates? E os faz em duas peças, não apenas em “As nuvens”, como costuma-se dizer. O faz, também, em “As aves”]
[Osório diz: Platão pegou uma figura popular para ser seu personagem principal. Era conhecido por todos, em especial por ser sujo (igual Diógenes, o cínico), “falava e falava”. Como qualquer questão (proposição é discutível) Platão resolveu questionar as de seu tempo pela boca de Sócrates, podendo, com isso, até eximir-se de responsabilidades, como os modernos, fora Popper, o eximem por seu amor a Esparta, aos tiranos (Siracusa), Eugenia, Escravidão, Aristocracia].
Um modo de ver como o de Grote só se pode sustentar pela prática acrítica (que não será acompanhada aqui) de aceitar como fato todas as referências aos sofistas em Platão que são neutras ou simpáticas (“Mesmo Platão foi forçado a admitir...") e descartar toda observação menos lisonjeira como apenas devida a preconceito não-liberal. Quando Protágoras no Protágoras de Platão se confessa sofista e educador apesar do ódio que se liga ao termo, um ódio que ele explica como devido ao fato de que eles entram nas grandes cidades da Grécia como estrangeiros e afastam seus mais prometedores jovens de suas relações e amigos pretendendo que seu ensino é melhor, não existe nenhuma razão para duvidar da realidade do estado de coisas que ele descreve. Seu alarde tem um elemento de bravata: e preciso coragem para se declarar sofista. Igualmente verdadeira para o caráter dos atenienses é a observação de Sócrates no Eutifro (3c) de que não importa se pensam se alguém é deinos contanto que o guarde para si mesmo, mas se ele começa a ministrar sua superior experteza a outros pelo ensino, eles ficam com raiva, ou por ciúme ou por qualquer outra causa. Aqui Sócrates tem em mente sua própria situação difícil, mas obviamente a observação se aplica também aos sofistas profissionais; ele, com efeito, participava de sua reputação, como o deixam claro as Nuvens. [p. 37] No século seguinte, Esquines, o orador, pôde se referir a ele casualmente como "Sócrates o sofista" [Foi no mesmo discurso que Esquines chamou Demóstenes de sofista. Embora o lapso dos séculos o faça de alcance duvidoso para a presente discussão, é interessante que Luciano tenha podido se referir a Cristo como "o sofista crucificado" (Peregrinos 13). [Osório diz: Se Cristo também foi chamado... O argumento serve para defender apenas Sócrates ou a todos?]]. [p. 38] [Osório diz: O que Platão não soube, foi separar o joio do trigo. Além do mais, além de ter escolhido os melhores para nomear, ele não os enfrenta nas questões que diz condenar, já que não acusa ninguém, especificamente]
Reconheciam sua descendência da primitiva tradição educacional dos poetas; com efeito, Protágoras, no discurso um tanto auto-satisfeito que Platão lhe põe nos lábios (Prot. 316d), acusa Orfeu e Museu, Homero, Hesíodo e Simônides de usar de sua poesia como disfarce, por medo do ódio ligado ao nome que descreve seu real caráter, que era o de sofistas como ele mesmo [O nome foi dito por Plutarco (Péricles 4) de Damon, sofista que foi aluno de Pródico e amigo de Sócrates (Platão, Ladres 197d). Ele era conhecido sobretudo como autoridade em música, mas, diz Plutarco, embora sofista líder e de fato o mentor de Péricles em política, ele usou sua reputação musical para esconder sua deinotes. Isto, porém, não lhe valeu, e foi ostracizado. Sua associação com Péricles é confirmada por Platão (Ale. I 118c) e Isócrates (Antid. 235), e seu ostracismo (já em Arist. Ath. Pol. 27. 4) pela descoberta de um óstraco com seu nome (DK, 1, 382 n. Na República (400b, 424 c) Platão esclarece que seu interesse por música ligava-se a questões mais abrangentes de seus efeitos morais e sociais. Ele vai tão longe a ponto de dizer que na visão de Damon "os modos musicais não são nunca perturbados sem perturbaras convicções políticas e sociais mais fundamentais" ( trad. Shorey). Se fosse conhecido mais dele, podia ocupar importante lugar na história do movimento sofista, mas em nossa relativa ignorância ele só pode aparecer como nota de rodapé a ela. Textos em DK, 1, n. 37, e estudos modernos incluem W. D. Anderson, "The importance of the Damonian theory in Plato's thought" (TAPA, 1955; veja também seu livro Ethos and education in Greek music e sua rescensão por Borthwick em CR, 1958); cap. 6 de F. Lasserre, Plut. dela musique; J. S. Morrison em CQ, 1958, 204-6; H. John, "Das musikerziehende Wirken Pythagoras und Damons" (Das Altertum, 1962).]. (A confusão anacrônica está em aceitar o tom despreocupado que Platão adota nas partes dramáticas do seu diálogo, pois, nem é preciso dizer, nenhum estigma profissional se ligava ao nome em tempos primitivos, e, em todo caso, como vimos, era de fato aplicado aos poetas). No Meno (91e-92a), Platão fala de "muitos outros", além de Protágoras, que praticaram a profissão de sofistas, "alguns antes de seu tempo e outros ainda vivos".(p. 38)
Ele não era orador nem um dos chamados filósofos da natureza. Antes fez prática do que se chamava sophia, mas era na verdade perspicácia política (deinotes) e sagacidade prática, e assim perpetuou o que poderíamos chamar de escola que viera em sucessão desde Sólon. Seus sucessores a combinaram com a arte de eloqüência forense, e, transferindo seu treinamento da ação para o discurso eram chamados sofistas.19 [Osório diz: atuação política ostensiva]
Referências aos sofistas como pagos por seu trabalho são freqüentes em Platão.
"Os que vendem sua sabedoria por dinheiro a quem a queira são chamados sofistas", diz Sócrates em Xenofonte (Mem. 1.6.13), e acrescenta um comentário mais cáustico do que qualquer coisa em Platão.
Isócrates em sua idade avançada 21 defendeu a profissão que equiparou com o seu próprio ideal filosófico, ideal muito mais próximo de Protágoras que de Platão. A melhor e maior recompensa de um sofista, diz ele, é ver alguns de seus alunos se tornar cidadãos sábios e respeitados. Reconhecidamente, há alguns maus sofistas, mas os que fazem uso adequado da filosofia não devem ser culpados pelos poucos carneiros pretos. Em conformidade com isso, ele defende-os da acusação de aproveitamento.
Nenhum deles, diz ele, fez grande fortuna ou viveram senão modestamente, nem mesmo Górgias que ganhou mais que qualquer outro e era solteiro sem nenhum laço e família [Dodds, argumentado que Górgias não era sofista, tenta excluir essa passagem, da mesma forma que Platão, Hip. Maj. 282b5 e Isócr. Antid. 268 (Gorg. 7).]. [Osório diz: Bom! Inveja!]
Aristóteles descreve o sofista como alguém que faz dinheiro de uma sabedoria aparente, mas irreal, e pondo de lado a zombaria, esta e outras passagens são provas de que sofistas pagos inda existiam em seu tempo. [p. 39] [Osório diz: E existe ainda hoje: professores, advogados etc.]
[Osório diz: Quem escreveu primeiro, Xenofonte ou Platão? De pronto, Xenofonte! Ele é citado por Platão como presente no julgamento de Sócrates?]
O profissionalismo dos sofistas frisa-se pelo fato de que Protágoras tinha duas classes de alunos: jovens de boa família que desejavam entrar na política, e aquele, como certo Antimero de Mende (isto é, não ateniense), que estudava "para fins profissionais (epi techne), para se tornar por sua vez sofista". 24 No Protágoras (313c), Sócrates descreve o sofista como "o vendedor dos bens pelos quais a alma [a mente] é nutrida", e sugere razões pelas quais o jovem devia hesitar em se confiar a isso como um deles: como varejistas de alimentos corporais, eles elogiam suas mercadorias indiscriminadamente sem conhecimento dietético de sua inteireza; diferentes de alimentos, seus produtos entram diretamente na mente, e não se podem guardar em jarros até descobrir o que consumir e como e em que quantidades. Pela época em que Platão escreveu o Sofista (em que Sócrates não tem nenhum papel no argumento principal), eles tinham se tornado simplesmente (entre outras características indesejáveis) "caçadores pagos de jovens ricos". Desconfiança dos sofistas não se restringia a Platão. A ex-plosão de raiva de Anito deve ser verdadeira, assim como também quando o jovem Hipócrates, filho de uma "grande e próspera casa", se enrubece de vergonha ao pensar em se tornar sofista (Prot. 312a). No Górgias (520a), o oponente mais violento de Sócrates, Cálicles os descarta como "caras inúteis", e no FEDRO (257d), Fedro afirma que os políticos mais poderosos e respeitados têm medo de escrever discursos próprios e deixar obras próprias para a posteridade, temendo ser chamados sofistas, foi muito mais gentil ao lidar com os melhores deles como Protágoras, Górgias e Pródico. Uma observação pejorativa sobre sofistas, em conexão com Pródico, é posta nos lábios de Laches, e não de Sócrates (Laches 179d). Xenofonte, num epílogo moral ao seu tratado sobre a caça (e. 13), os censura como mestres de fraude ["Se a Cynegetica é de Xenofonte, o que alguns duvidaram. Veja Lesky, Hist. Gr. Lit. 621s. Outros sustentaram que a passagem é influenciada pelo Sofista de Platão (Grani, Ethies, 1, 111) e frisaram que ambas foram escritas após a morte da primeira e brilhante geração de sofistas. Assim pode-se presumir, foram Protágoras e Meno, embora sejam Protágoras, Górgias, Hípias e Pródico para Platão os sofistas representativos.].
A atitude do público ateniense era ambivalente, refletindo a situação transitória da vida social e intelectual ateniense. Os sofistas não tinham nenhuma dificuldade de encontrar alunos para pagar suas altas taxas, ou [p. 40] auditórios para suas conferências e exibições públicas. Todavia, alguns dos mais velhos e conservadores desaprovavam fortemente a eles. Esta desaprovação vincula-se, como Platão mostra, com o seu profissionalismo [Isso não significa, necessariamente, aristocrático ou oligárquico como oposto a democrático. Anito era democrata eminente. A divisão entre democrata e antidemocrata corta entre bem-nascidos e plebeus. Péricles, que completou a revolução democrática, foi Alcmênide como Clêistenes que a começou. Dr. Ehrenberg o chamou "o democrata aristocrático". Cf. suas observações na p. 65 de sua Soc. and cio. in Gr. and Rome: "A velha educação aristocrática estava fora de contato com as realidades da vida contemporânea, mas era em larga medida a mesma classe dominante que governava o Estado democrático". Cf. também M. A. Levi, Pol. power in the anc. World, 65, 90. [Osório diz: Considerar!]]. [Osório diz: Só?!]
Sócrates era filho de cortador de pedras e provavelmente seguiu o mesmo negócio, mas (impopular que era em muitos lugares) isto nunca se aduziu contra ele. Poetas tinham sido pagos por seu trabalho, de artistas e doutores se esperava que fossem pagos to por sua atividade e por ensiná-la a outros [Outras experiências estão, V MzuL, 259, n. 36. Platão diz de Zenão, o filósofo, que arrecadou a impressionante soma de 100 minas por um curso (Ale. 119a), embora, quando autoridades posteriores dizem o mesmo de Protágoras (como na verdade o fazem de Górgias, Diod. 12.53.2), Zeler o descarte como altamente exagerado (ZN, 1299, n. 2). Todavia Zenão parece não ter partilhado do nome e da censura dos sofistas. [Osório diz: a acusação é seletiva! Zenão não é político ateniense. Não é um aristocrata brigando contra a democracia]]. A preocupação parece ter-se voltado para a espécie de assuntos que os sofistas professavam ensinar, especialmente a arete. Protágoras, interrogado sobre o que Hipócrates aprenderá dele, replica (Prot. 318e): "O cuidado adequado de seus próprios família, também negócios,Vala que possa administrar melhor sua e à o cuidado dos negócios do Estado, para se tornar poder real na cidade quer como orador, quer como homem de ação". Em breve, diz Sócrates, a arte da cidadania, e Protágoras enfaticamente concorda. Embora alguns deles ensinassem muitas outras também, tudo inclusive avanço político em seu currículo, e a chave para este, na Atenas democrática, era o poder do discurso persuasivo [De modo semelhante nas Nuvens (v. 432) Sócrates, que é aí caricaturado entre outras coisas um sofista profissional (cf. 98 argyrion en tis dido), assegura a Estré—p-Ma ~e.que`p.r sua instrução en to demo gnomas oudeis nikesei pleionas e sy. Em Górg. 520e Sócrates sugere uma razão pela qual ensinar esta espécie de coisa não era visto com bons olhos.]. Górgias concentrou-se de fato só na retórica recusando-se a ser inserido entre os mestres de arete, pois sustentava que a retórica era a arte-mestra a que todas as outras devem acatar [gretes didaskaloi era o modo regular de Platão se referir aos sofistas (Dodds, Górgias, 366). Para Górgias veja Meno 95c., Górg. 456-e, especialmente ou gar estin peri hotou ouk an pithanoteron thanoteron eipoi ho retorikos e allos hostisoun ton demiourgon en plethei. Górgias até admite que seus alunos aprenderão dele os princípios do certo e do errado "se acontece que já não o sabem" (460a), mas sustentando ao mesmo tempo que o mestre não é o responsável pelo uso feito de seu ensino [Osório diz: esta lição somente vale, segundo os fanáticos, quando aplicada a Sócrates, se os alunos forem dos sofistas...]. Para a correção de incluir Górgias entre os sofistas veja agora E. L. Harrison em Phoenix, 1964 (contra Raeder e Dodds).]. [Osório diz: Por ser seu igual, Platão não o queria sofista? Vide nota 22, p. 39]
Ora, "ensinar a arte da política e empreender fazer dos homens bons cidadãos" (Prot. 319a) era o que precisamente em Atenas se considerava o campo especial do amador e do cavalheiro. Todo ateniense da alta classe devia entender a conduta adequada dos negócios por uma espécie de i finto herdado de seus antepassados, e estar preparado para transmiti-lo aos filhos. Até Protágoras admitia isso, embora pretendendo que ainda deixava [p. 41] espaço para sua arte pedagógica como suplemento. [Osório diz: Instinto nada! Exemplo e meios para tal]
Na passagem do Meno, a que já se referiu, Sócrates sugere inocentemente a Anito, importante líder democrático que se tornou seu principal acusador, que os sofistas eram as pessoas adequadas para instilar no jovem a sophia que o adequará para administrar o Estado, governar a cidade, e em geral demonstrar o savoir-faire próprio do cavalheiro. Quando Anito os injuria como ameaça para a sociedade, e Sócrates pergunta a quem, então, na sua opinião, o jovem deve se dirigir para tal treinamento, ele replica que não há nenhuma necessidade de mencionar indivíduos particulares, pois "todo cavalheiro decente ateniense que lhe acontecer encontrar, faria dele melhor homem do que os sofistas poderiam fazer". (p. 42) [Osório diz: Na democracia, nem todos são democratas, nem seus líderes!]
Os motivos pelos quais Sócrates criticava sua aceitação de pagamento eram bem diferentes, e típicas do homem. Ele sustentava (temo-lo não de Platão, mas de Xenofonte) que, ao aceitar dinheiro, eles se privavam de sua liberdade: estavam obrigados a conservar com todos os que podiam pagar suas taxas, ao passo que ele era livre para gozar da companhia de qualquer que escolhesse”. [Osório diz: escolher o aluno ou ser escolhido por ele? Mudavam a “formatação” do curso por causa do aluno?]
Chegou ao ponto de chamá-lo prostituição, vender sua mente não era melhor que vender seu corpo.
A sabedoria era algo que devia ser gratuitamente partilhada entre pessoas amigas e amadas (1.6.13). Esta era a maneira como a filosofia tinha sido considerada até então, sobretudo na escola pitagórica, de que Platão com certeza, e Sócrates provavelmente, eram admiradores. [Osório diz: viver e capital]
O conceito complexo socrático-platônico de Eros, um amor homossexual sublimado, também deve ter estado em ação.
É exagero dizer, como temos dito amiúde [T. Gomperz: "É ilegítimo, se não absurdo, falar de mente sofista, moralidade sofista, ceticismo sofista e assim por diante". (Até o mero fato de ser mestres profissionais pode ter um efeito: alguns pelo menos estariam dispostos a sustentar que existe tal coisa como uma mente magistral ou uma mente empavoada (Gr. Th. 1, 415)). Para semelhante ponto de vista veja H. Gomperz, Soph. u. Rh. 39.], que os sofistas nada tinham em comum exceto o fato de serem mestres profissionais, nenhum campo comum nos assuntos que ensinavam ou na mentalidade que estes produziam. Um assunto pelo menos todos eles praticavam e ensinavam em comum: a retórica ou a arte do logos [Veja as provas coligidas por E. L. Harrison, Phoenix, 1964, 190ss, mi. 41 e 42. A alegação de Schmid (Gesch. gr. Lit. 1.3.1, 56s) de que a retórica era desconhecida entre os primeiros sofistas e introduz Górgias no último terço do século, não é produzida pelas provas. [Osório diz: de que sofistas fala ele? Todos os sábios eram sofistas. Talvez ele se refira ao cenário: Atenas não democrática]].
Quando ao jovem Hipócrates se perguntou o que ele pensava ser o sofista, respondeu: “Mestre na arte de fazer oradores hábeis”. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 47).
Ensina Gilbert Romeyer-Dherbey:
O próprio nome de “sofista” que significa “sábio”, desviado do seu sentido original, tornou-se sinônimo de possuidor de um falso saber, não procurando senão enganar, e fazendo, para isso, um considerável uso do paralogismo. Aristóteles, seguindo o veredito do seu mestre Platão, chamará sofista “ao que tem da sabedoria a aparência, não a realidade” (Refutações sofísticas, I, 165 a 21, ver também Tópicos, I, 100 b 21.), e o “sofisma” será sinônimo de falso raciocínio. [Osório diz: o nome Sofista]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 9).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
8 – Florescimento da Sofística (Grécia Clássica).
Kerferd ensina:
“Vivemos numa época de ceticismo e desconfiança, e às vezes parece que expressar admiração por alguma coisa ou alguém é se expor a acusações de ingenuidade ou desonestidade. Expressões tais como a glória da Grécia ou a grandeza da época de Péricles, em Atenas, não estão mais exatamente na moda. Também é suspeita a ideia de que a Grécia atingiu o seu mais alto ponto de cultura e civilização na segunda metade do século V a.C. e que a isso se seguiu um longo declínio, resultante acima de tudo do enfraquecimento de Atenas, depois da sua derrota na Guerra do Peloponeso. Apesar disso, é ainda legítimo expressar cautelosa aprovação das conquistas atenienses, na arte e na arquitetura, durante esse período. Da mesma forma, a literatura da época e, acima de tudo, as tragédias de Esquilo, Sófocles e Eurípides exercem uma infinda fascinação. A estatura de Tucídides como historiador não diminuiu em nada. O que é preciso é que se reconheça que os sofistas foram, com toda a probabilidade, parte não menos notável e importante do progresso da Atenas de Péricles – importantes por si mesmos e também na história da filosofia. Em vista da natureza do testemunho, essa opinião requer mais estudo para ser consolidada. Esperamos que o presente estudo possa ter feito algo para sugerir que, pelo menos no seu plano geral, essa opinião está correta.” (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 297-298).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
7 – Aristocracia, sua crise.
Ensina Gilbert Romeyer-Dherbey:
“Antes dos Sofistas, os educadores da Grécia eram os poetas [Osório diz: os educadores da Grécia]. Só no momento em que a recitação de Homero já não constitui o único alimento cultural dos Gregos é que a sofística poderá nascer; este momento coincidirá, como demonstrou Untersteiner, com a crise da civilização aristocrática2. Mas são as instituições democráticas que permitirão o progresso da sofística, tornando-a de alguma maneira indispensável: a conquista do poder exige, de agora em diante, o perfeito domínio da linguagem e da argumentação: não se trata apenas de ordenar, há também que persuadir e explicar. É por isso que os Sofistas, como nota Jaeger, que “saíam todos da classe média”, foram, de uma maneira geral, mais favoráveis, parece, ao regime democrático. É claro que os seus alunos mais brilhantes foram aristocratas, mas foi porque a democracia escolheu, frequentemente, os seus chefes entre os aristocratas, e os jovens nobres que frequentavam os Sofistas eram os que aceitaram submeter-se às regras das instituições democráticas; os outros desinteressavam-se da vida política.” [Osório diz: os sofistas e a crise aristocrática! Mesmo que fossem aristocratas, aprendiam uma nova visão, portanto, revolucionária / O que permitiu o nascimento da sofística]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 10).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
6 – Democracia – seu início e seus perigos.
Expõe Guthrie:
“O trato de Mitilene pela democracia ateniense ilustra seus perigos, e talvez também suas virtudes. Depois de dominar uma revolta em 428, a Assembleia sob influência de Clêon enviou uma trirreme com ordens de matar todo homem na cidade e escravizar as mulheres e as crianças. No dia seguinte, arrependeram-se de sua crueldade atroz, e, depois de segundo debate, reverteram a decisão por magra maioria e despacharam uma segunda trireme a grande velocidade para cancelar a ordem. Comendo junto aos remos e dormindo revezando-se, conseguiram chegar antes que a ordem fosse levada a efeito. Neste caso, a fraqueza da democracia diante da oratória demagógica só contrabalançou por sua prontidão em reconsiderar e dar a ambos os lados adequada audição [Nota 10: O tamanho dos Estados modernos impede uma democracia completa, enquanto oposta a uma representativa, mesmo que fosse desejada, e provavelmente os únicos lugares onde se pode observar hoje são as Universidades de Oxford e Cambridge, onde semelhantes exemplos de vacilação não são desconhecidos.]. A pequena ilha de Melos foi menos afortunada, e seus habitantes sofreram a sorte originalmente planejada para Mitilene. Seu crime foi preferir a neutralidade à inserção no império ateniense. [Osório diz: Isso aconteceu no início da Democracia, o que mostra que esta é importante, pois permite rever seus atos tidos como errados] [Osório diz: o autor muda de assunto, embora a ele retorne na nota de rodapé]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 24).
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(uma biografia do conhecimento)
5.1 – O estabelecimento da escrita na Grécia.
Os Sofistas surgem na Grécia quando a escrita começava a ser fixada e apoiaram-na incondicionalmente! Diversamente de Platão, por exemplo, como se disse. Eles dela necessitavam para instruir seus alunos também em outras cidades, com o que não seria necessária suas presenças constantemente, pois não queriam “homens livros”. A prova maior dessa utilização da escrita pelos sofistas nos é dada pela existência do próprio “Anônimo de Jâmblico”, que, como se verá oportunamente, tem a forma de exercícios a serem praticados/memorizados por estudante de sofística.
A lógica, tudo indica, já existia antes de Aristóteles, pois Protágoras criou as antilogias (antilógicas) para combatê-la. Aristóteles, assim, apenas a teria fixado pela escrita.
Diz mais Martin Burckherdt:
“Da mesma forma pela qual Aristóteles cuidou dos sofistas, também desenvolveu com sucesso o livro de receitas do pensamento lógico. Com isso, Kant pôde dizer mais tarde que a lógica desde Aristóteles "não conseguiu avançar nenhum passo, parecendo, dessa forma, finalizada e perfeita em todos os sentidos". E, todavia, se quiséssemos falar das leis da razão, precisaríamos trazer à tona uma objeção importante. Todas essas belas frases remontam o alfabeto como condição de possibilidade para poder efetivamente conduzir à lógica. Se Aristóteles atribuiu ao princípio da identidade que A é igual a A, se a casualidade é atribuída ao fato de que quem diz A, também pode dizer B, se a assim chamada conclusão silogística (se A = B e A = C, então B = C) por fim completa o ABC da lógica, vemos assim que nela existem algumas suposições básicas que o lógico não considera. Se retirássemos o alfabeto do lógico, tiraríamos dele o fundamento de seu negócio – não haveria mais nada que lhe pudesse garantir identidade ou casualidade.
Aprox. 340 a.C. Credita-se a Euclides (365 a 300 a.C.) a "matematização" da lógica aristotélica. Em seu livro Elementos (grego stoichea — ou seja: as letras) ele demonstra que os conjuntos comuns se originam de axiomas. Não se fez mais nada. com a lógica, que se torna um problema novamente apenas nos séculos XIX e XX. (Pequena história das grandes ideias, Martin Burckhardt, tradução de Petê Rissatti, Tinta Negra: 2011, p. 45/46).
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(uma biografia do conhecimento)
5 – Ler e escrever em Atenas.
Kerferd ensina:
O currículo da educação sofista não começava do nada, - seguia-se ao término do estágio primário. Segundo Esquines, o orador, foi Sólon quem, no início do século VI a.C., tornou compulsório o ensino da leitura e da escrita, em Atenas (Esquines, In Tim. 9-12) [Osório diz: a escrita em Atenas]. Por volta da metade do século V e, provavelmente, mais cedo, havia um sistema bem estabelecido de escolas primárias. Frequentar a escola era o normal para meninos nascidos livres, embora não haja prova de que a freqüência escolar fosse obrigatória. A ampliação da educação para toda a sociedade ateniense que isso implica- [66] va não foi popular entre os que olhavam para o passado como para uma época de maior privilégio aristocrático nessas questões [Osório diz: a educação como prejudicial à hegemonia burguesa]. Píndaro (01.II.86-88) opunha aqueles cuja sabedoria vem por natureza (família e nascimento) àqueles que tiveram de aprender [Osório diz: no que “acreditava” também Platão]. Embora não se saiba ao certo a quem ele estava se referindo, pode-se, com razão, tomar isso como um lance na controvérsia Natureza-Educação, que era importante no período sofista (cf. também sua ode Nemeana, III, 41). Se aretê ou excelência, pode ser ensinada, então a mobilidade social é imediatamente possível [Osório diz: eis o pomo da discórdia e a má vontade contra os sofistas]; e é claro que Protágoras estava interessado exatamente nessa controvérsia Natureza-Educação quando escreveu: "ensinar exige ambos, Natureza e Prática" (DK 80B3; cf. B10). [Osório diz: Frase de Protágoras]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 66-67).
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(uma biografia do conhecimento)
4 – Atenas riqueza e democracia. Ambiente do e para o nascimento da sofística.
Após as guerras pérsicas [Osório diz: guerras travadas entre a Grécia e a Pérsia (atual Irã)], na qual a Grécia saiu vitoriosa, coube a Atenas, por sua forte e decisiva participação no conflito, especialmente com sua marinha, a primazia de administrar os recursos que tinham sido arrecadados pela contribuição de seus aliados e concentrados na cidade de Delos para fazer frente as despesas para com o conflito presente e futuros, caso fosse necessário. Pouco depois, Péricles acabou por determinar a transferência desses recursos para o próprio território ateniense, onde passou a gastá-los com o aformoseamento da cidade e com a melhoria das condições de vida dos seus cidadãos. É por isso que Péricles, o artífice de tudo, chega a dizer, segundo nos narra Tucídides:
“35. "Muitos dos que me precederam neste lugar fizeram elogios ao legislador que acrescentou um discurso à cerimônia usual nestas circunstâncias, considerando justo celebrar também com palavras os mortos na guerra em seus funerais. A mim, todavia, ter-me-ia parecido suficiente, tratando-se de homens que se mostraram valorosos em atos, manifestar apenas com atos as honras que lhes prestamos - honras como as que hoje presenciastes nesta cerimônia fúnebre oficial - em vez de deixar o reconhecimento do valor de tantos homens na dependência do maior ou menor talento oratório de um só homem. É realmente difícil falar com propriedade numa ocasião em que não é possível aquilatar a credibilidade das palavras do orador. O ouvinte bem informado e disposto favoravelmente pensará talvez que não foi feita a devida justiça em face de seus próprios desejos e de seu conhecimento dos fatos, enquanto outro menos informado, ouvindo falar de um feito além de sua própria capacidade, será levado pela inveja a pensar em algum exagero. De fato, elogios a outras pessoas são toleráveis somente até onde cada um se julga capaz de realizar qualquer dos atos cuja menção está ouvindo; quando vão além disto, provocam a inveja, e com ela a incredulidade. Seja como for, já que nossos antepassados julgaram boa esta prática também devo obedecer à lei, e farei o possível para corresponder à expectativa e às opiniões de cada um de vós.
36. "Falarei primeiro de nossos antepassados, pois é justo e ao mesmo tempo conveniente, numa ocasião como esta, dar-lhes este lugar de honra rememorando os seus feitos. Na verdade, perpetuando-se em nossa terra através de gerações sucessivas, eles, por seus méritos, no-la transmitiram livre até hoje. Se eles são dignos de elogios, nossos pais o são ainda mais, pois aumentando a herança recebida, constituíram o império que agora possuímos e a duras penas nos deixaram este legado, a nós que estamos aqui e o temos. Nós mesmos aqui presentes, muitos ainda na plenitude de nossas forças, contribuímos para fortalecer o império sob vários aspectos, e demos à nossa cidade todos os recursos, tornando-a auto-suficiente na paz e na guerra. Quanto a isto, quer se trate de feitos militares que nos proporcionaram esta série de conquistas, ou das ocasiões em que nós ou nossos pais nos empenhamos em repelir as investidas guerreiras tanto bárbaras quanto helênicas, pretendo silenciar, para não me tornar repetitivo aqui diante de pessoas às quais nada teria a ensinar. Mencionarei inicialmente os princípios de conduta, o regime de governo e os traços de caráter graças aos quais conseguimos chegar à nossa posição atual, e depois farei o elogio destes homens, pois penso que no momento presente esta exposição não será imprópria e que todos vós aqui reunidos, cidadãos e estrangeiros, podereis ouvi-la com proveito.
37. "Vivemos sob uma forma de governo que não se baseia nas instituições de nossos vizinhos1; ao contrário, servimos de modelo a alguns2 ao invés de imitar outros. Seu nome, como tudo depende não de poucos mas da maioria, é democracia. Nela, enquanto no tocante às leis todos são iguais para a solução de suas divergências privadas, quando se trata de escolher (se é preciso distinguir em qualquer setor), não é o fato de pertencer a uma classe, mas o mérito, que dá acesso aos postos mais honrosos; inversamente, a pobreza não é razão para que alguém, sendo capaz de prestar serviços à cidade, seja impedido de fazê-lo pela obscuridade de sua condição. Conduzimo-nos liberalmente em nossa vida pública, e não observamos com uma curiosidade suspicaz a vida privada de nossos concidadãos, pois não nos ressentimos com nosso vizinho se ele age como lhe apraz, nem o olhamos com ares de reprovação que, embora inócuos, lhe causariam desgosto. Ao mesmo tempo que evitamos ofender os outros em nosso convívio privado, em nossa vida pública nos afastamos da ilegalidade principalmente por causa de um temor reverente, pois somos submissos às autoridades e às leis, especialmente àquelas promulgadas para socorrer os oprimidos e às que, embora não escritas, trazem aos transgressores uma desonra visível a todos.
38. "Instituímos muitos entretenimentos para o alívio da mente fatigada; temos concursos, temos festas religiosas regulares ao longo de todo o ano, e nossas casas são arranjadas com bom gosto e elegância, e o deleite que isto nos traz todos os dias afasta de nós a tristeza. Nossa cidade é tão importante que os produtos de todas as terras fluem para nós, e ainda temos a sorte de colher os bons frutos de nossa própria terra com certeza de prazer não menor que o sentido em relação aos produtos de outras.
39. "Somos também superiores aos nossos adversários em nosso sistema de preparação para a guerra nos seguintes aspectos: em primeiro lugar, mantemos nossa cidade aberta a todo o mundo e nunca, por atos discriminatórios, impedimos alguém de conhecer e ver qualquer coisa que, não estando oculta, possa ser vista por um inimigo e ser-lhe útil. Nossa confiança se baseia menos em preparativos e estratagemas que em nossa bravura no momento de agir. Na educação, ao contrário de outros que impõem desde a adolescência exercícios penosos para estimular a coragem, nós, com nossa maneira liberal de viver, enfrentamos pelo menos tão bem quanto eles perigos comparáveis. Eis a prova disto: os lacedemônios não vêm sós quando invadem nosso território, mas trazem com eles todos os seus aliados, enquanto nós, quando atacamos o território de nossos vizinhos, não temos maiores dificuldades, embora combatendo em terra estrangeira, em levar freqüentemente a melhor. Jamais nossas forças se engajaram todas juntas contra um inimigo, pois aos cuidados com a frota se soma em terra o envio de contingentes nossos contra numerosos objetivos; se os lacedemônios por acaso travam combate com uma parte de nossas tropas e derrotam uns poucos soldados nossos, vangloriam-se de haver repelido todas as nossas forças; se, todavia, a vitória é nossa, queixam-se de ter sido vencidos por todos nós. Se, portanto, levando nossa vida amena ao invés de recorrer a exercícios extenuantes, e confiantes em uma coragem que resulta mais de nossa maneira de viver que da compulsão das leis, estamos sempre dispostos a enfrentar perigos, a vantagem é toda nossa, porque não nos perturbamos antecipando desgraças ainda não existentes e, chegado o momento da provação, demonstramos tanta bravura quanto aqueles que estão sempre sofrendo; nossa cidade, portanto, é digna de admiração sob esses aspectos e muitos outros.
40. "Somos amantes da beleza sem extravagâncias e amantes da filosofia sem indolência. Usamos a riqueza mais como uma oportunidade para agir que como um motivo de vanglória; entre nós não há vergonha na pobreza, mas a maior vergonha é não fazer o possível para evitá-la. Ver-se-á em uma mesma pessoa ao mesmo tempo o interesse em atividades privadas e públicas, e em outros entre nós que dão atenção principalmente aos negócios não se verá falta de discernimento em assuntos políticos, pois olhamos o homem alheio às atividades públicas não como alguém que cuida apenas de seus próprios interesses, mas como um inútil; nós, cidadãos atenienses, decidimos as questões públicas por nós mesmos, ou pelo menos nos esforçamos por compreendê-las claramente, na crença de que não é o debate que é empecilho à ação, e sim o fato de não se estar esclarecido pelo debate antes de chegar a hora da ação. Consideramo-nos ainda superiores aos outros homens em outro ponto: somos ousados para agir, mas ao mesmo tempo gostamos de refletir sobre os riscos que pretendemos correr, para outros homens, ao contrário, ousadia significa ignorância e reflexão traz a hesitação. Deveriam ser justamente considerados mais corajosos aqueles que, percebendo claramente tanto os sofrimentos quanto as satisfações inerentes a uma ação, nem por isso recuam diante do perigo. Mais ainda: em nobreza de espírito contrastamos com a maioria, pois não é por receber favores, mas por fazê-los, que adquirimos amigos. De fato, aquele que faz o favor é um amigo mais seguro, por estar disposto, através de constante benevolência para com o beneficiado, a manter vivo nele o sentimento de gratidão. Em contraste, aquele que deve é mais negligente em sua amizade, sabendo que a sua generosidade, em vez de lhe trazer reconhecimento, apenas quitará uma dívida. Enfim, somente nós ajudamos os outros sem temer as conseqüências, não por mero cálculo de vantagens que obteríamos, mas pela confiança inerente à liberdade.
41. "Em suma, digo que nossa cidade, em seu conjunto, é a escola de toda a Hélade e que, segundo me parece, cada homem entre nós poderia, por sua personalidade própria, mostrar-se auto-suficiente nas mais variadas formas de atividade, com a maior elegância e naturalidade. E isto não é mero ufanismo inspirado pela ocasião, mas a verdade real, atestada pela força mesma de nossa cidade, adquirida em conseqüência dessas qualidades. Com efeito, só Atenas entre as cidades contemporâneas se mostra superior à sua reputação quando posta à prova, e só ela jamais suscitou irritação nos inimigos que a atacaram, ao verem o autor de sua desgraça, ou o protesto de seus súditos porque um chefe indigno os comanda. Já demos muitas provas de nosso poder, e certamente não faltam testemunhos disto; seremos portanto admirados não somente pelos homens de hoje mas também do futuro. Não necessitamos de um Homero para cantar nossas glórias, nem de qualquer outro poeta cujos versos poderão talvez deleitar no momento, mais que verão a sua versão dos fatos desacreditada pela realidade. Compelimos todo o mar e toda a terra a dar passagem à nossa audácia, e em toda parte plantamos monumentos imorredouros dos males e dos bens que fizemos3. Esta, então, é a cidade pela qual estes homens lutaram e morreram nobremente, considerando seu dever não permitir que ela lhes fosse tomada; é natural que todos os sobreviventes, portanto, aceitem de bom grado sofrer por ela.
42. "Falei detidamente sobre a cidade para mostrar-vos que estamos lutando por um prêmio maior que o daqueles cujo gozo de tais privilégios não é comparável ao nosso, e ao mesmo tempo para provar cabalmente que os homens em cuja honra estou falando agora merecem os nossos elogios. Quanto a eles, muita coisa já foi dita, pois quando louvei a cidade estava de fato elogiando os feitos heróicos com que estes homens e outros iguais a eles a glorificaram; e não há muitos helenos cuja fama esteja como a deles tão exatamente adequada a seus feitos. Parece-me ainda que uma morte como a destes homens é prova total de máscula coragem, seja como seu primeiro indício, seja como sua confirmação final. Mesmo para alguns menos louváveis por outros motivos, a bravura comprovada na luta por sua pátria deve com justiça sobrepor-se ao resto; eles compensaram o mal com o bem e saldaram as falhas na vida privada com a dedicação ao bem comum. Ainda a propósito deles, os ricos não deixaram que o desejo de continuar a gozar da riqueza os acovardasse, e os pobres não permitiram que a esperança de mais tarde se tornarem ricos os levasse a fugir ao dia fatal; punir o adversário foi aos seus olhos mais desejável que essas coisas, e ao mesmo tempo o perigo a correr lhes pareceu mais belo que tudo; enfrentando-o, quiseram infligir esse castigo e atingir esse ideal, deixando por conta da esperança as possibilidades ainda obscuras de sucesso, mas na ação, diante do que estava em jogo à sua frente, confiaram altivamente em si mesmos. Quando chegou a hora do combate, achando melhor defender-se e morrer que ceder e salvar-se, fugiram da desonra, jogaram na ação as suas vidas e, no brevíssimo instante marcado pelo destino, morreram num momento de glória e não de medo.
43. "Assim estes homens se comportaram de maneira condizente com nossa cidade; quanto aos sobreviventes, embora desejando melhor sorte deverão decidir-se a enfrentar o inimigo com bravura não menor. Cumpre-nos apreciar a vantagem de tal estado de espírito não apenas com palavras, pois a fala poderia alongar-se demais para dizer-vos que há razões para enfrentar o inimigo; em vez disso, contemplai diariamente a grandeza de Atenas, apaixonai-vos por ela e, quando a sua glória vos houver inspirado, refleti em que tudo isto foi conquistado por homens de coragem cônscios de seu dever, impelidos na hora do combate por um forte sentimento de honra; tais homens, mesmo se alguma vez falharam em seus cometimentos, decidiram que pelo menos à pátria não faltaria o seu valor, e que lhe fariam livremente a mais nobre contribuição possível4. De fato, deram-lhe suas vidas para o bem comum e, assim fazendo, ganharam o louvor imperecível e o túmulo mais insigne, não aquele em que estão sepultados, mas aquele no qual a sua glória sobrevive relembrada para sempre, celebrada em toda ocasião propícia à manifestação das palavras e dos atos5. Com efeito, a terra inteira é o túmulo dos homens valorosos, e não é somente o epitáfio nos mausoléus erigidos em suas cidades que lhes presta homenagem, mas há igualmente em terras além das suas, em cada pessoa, uma reminiscência não escrita, gravada no pensamento e não em coisas materiais. Fazei agora destes homens, portanto, o vosso exemplo, e tendo em vista que a felicidade é liberdade e a liberdade é coragem, não vos preocupeis exageradamente com os perigos da guerra. Não são aqueles que estão em situação difícil que têm o melhor pretexto para descuidar-se da preservação da vida, pois eles não têm esperança de melhores dias, mas sim os que correm o risco, se continuarem a viver, de uma reviravolta da fortuna para pior, e aqueles para os quais faz mais diferença a ocorrência de uma desgraça; para o espírito dos homens, com efeito, a humilhação associada à covardia é mais amarga do que a morte quando chega despercebida em acirrada luta pelas esperanças de todos.
44. "Eis porque não lastimo os pais destes homens, muitos aqui presentes, mas prefiro confortá-los. Eles sabem que suas vidas transcorreram em meio a constantes vicissitudes, e que a boa sorte consiste em obter o que é mais nobre, seja quanto à morte - como estes homens - seja quanto à amargura - como vós, e em ter tido uma existência em que se foi feliz quando chegou o fim. Sei que é difícil convencer-vos desta verdade, quando lembrais a cada instante a vossa perda ao ver os outros gozando a ventura em que também já vos deleitastes; sei, também, que se sente tristeza não pela falta de coisas boas que nunca se teve, mas pelo que se perde depois de ter tido. Aqueles entre vós ainda em idade de procriar devem suavizar a tristeza com a esperança de ter outros filhos; assim, não somente para muitos de vós individualmente os filhos que nascerem serão um motivo de esquecimento dos que se foram, mas a cidade também colherá uma dupla vantagem: não ficará menos populosa e continuará segura; não é possível, com efeito, participar das deliberações na assembléia em pé de igualdade e ponderadamente quando não se arriscam filhos nas decisões a tomar. Quanto a vós, que já estais muito idosos para isso, contai como um ganho a maior porção de vossa vida durante a qual fostes felizes, lembrai-vos de que o porvir será curto, e sobretudo consolai-vos com a glória destes vossos filhos. Só o amor da glória não envelhece, e na idade avançada o principal não é o ganho, como alguns dizem, mas ser honrado.
45. "Para vós aqui presentes que sois filhos e irmãos destes homens, antevejo a amplitude de vosso conflito íntimo; quem já não existe recebe elogios de todos; quanto a vós, seria muito bom se um mérito excepcional fizesse com que fosseis julgados não iguais a eles, mas pouco inferiores. De fato, há inveja entre os vivos por causa da rivalidade; os que já não estão em nosso caminho, todavia, recebem homenagens unânimes.
"Se tenho de falar também das virtudes femininas, dirigindo-me às mulheres agora viúvas, resumirei tudo num breve conselho: será grande a vossa glória se vos mantiverdes fiéis à vossa própria natureza, e grande também será a glória daquelas de quem menos se falar, seja pelas virtudes, seja pelos defeitos.
46. "Aqui termino o meu discurso, no qual, de acordo com o costume, falei o que me pareceu adequado; quanto aos fatos, os homens que viemos sepultar já receberam as nossas homenagens e seus filhos serão, de agora em diante, educados a expensas da cidade até a adolescência; assim ofereceremos aos mortos e a seus descendentes uma valiosa coroa como prêmio por seus feitos, pois onde as recompensas pela virtude são maiores, ali se encontram melhores cidadãos. Agora, depois de cada um haver chorado devidamente os seus mortos, ide embora." (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, tradução de Mário da Gama Kury, UnB, Brasília: 182, p. 97/102.).
Além disso Atenas continuou a cobrar tributos das outras cidades sobre o pretexto de manter sua armada e, assim, dar proteção a quem para isso contribuísse. Os recalcitrantes eram “convencidos” pela força daquilo que se tornou o Império Ateniense. Essa política agressiva, logo depois, irá levar à famosa Guerra do Peloponeso, que colocou frente a frente Atenas e as cidades que comandava e Esparta e suas cidades aliadas. A guerra durou de 431 a 404, e, depois de vinte e sete anos de conflito, Esparta sagrava-se vencedora na derrota fraticida dos gregos!
Ao gastar os recursos comuns, Atenas tornou-se uma cidade rica, luxuosa, culturalmente desenvolvida e cheia de oportunidades. Essas oportunidades atraíram gregos e mesmo estrangeiros das mais distantes localidades, que para lá acorreram para vender seus produtos e talentos.
O chamado Século de Péricles, o Século V a.e.a., será o século de ouro da Grécia, onde a beleza proporcionada por seus artistas resplandecerá e lançará luz até os dias de hoje. Construção civil, teatro, poesia, sofística, filosofia encontrarão aí solo propício ao seu desabrochar.
É também o século de consolidação da democracia direta grega.
A implantação da democracia irá abalar a estrutura de poder até então imperante na cidade. A aristocracia, que sempre a comandou, começa a se sentir incomodada com a possibilidade de alguém que não a integra poder ascender ao poder pela vontade da maioria do povo que venha a elegê-lo. O poder sanguíneo-hereditário estava sendo posto tem perigo pela ameaça de quem soubesse se fazer ouvir e convencesse os votantes a elegê-lo ou às suas propostas.
Dar-se também a abolição da vingança privada, tendo o a cidade/estado chamado para si a administração da justiça em seus tribunais.
Assembleia e tribunais passaram a atuar quotidianamente.
Para alguém fazer aprovar uma proposta na assembleia teria que saber falar para bem defender seus propósitos.
Para defender-se ou acusar no tribunal também era necessário o domínio apropriado da palavra.
O discurso, a palavra (logos), passa a ser fundamental na vida da cidade e daqueles que nela buscam o poder, ou influenciá-lo.
Os Sofistas, como tantos outros, foram também para Atenas em busca da riqueza lá concentrada, oferecendo para consegui-la os seus talentos de Sofistas/Sábios, capazes de ensinar as pessoas que os pagassem a discursarem convicentemente nas assembleias e nos tribunais, defendendo qualquer ponto de vista que lhes interessasse, pois sabiam que “para tudo existem dois discursos”, um a favor e outro que lhe contrapõe.
Na cidade iniciava-se a formar a classe que hoje pode-se chamar de burguesia, pequenos artesãos e comerciantes, com dinheiro suficiente para pagar aos Sofistas e vontade maior ainda de controlarem o poder político, concentrador e administrador das riquezas do tesouro.
Ensina Gilbert Romeyer-Dherbey:
Antes dos Sofistas, os educadores da Grécia eram os poetas [Osório diz: os educadores da Grécia]. Só no momento em que a recitação de Homero já não constitui o único alimento cultural dos Gregos é que a sofística poderá nascer; este momento coincidirá, como demonstrou Untersteiner, com a crise da civilização aristocrática2. Mas são as instituições democráticas que permitirão o progresso da sofística, tornando-a de alguma maneira indispensável: a conquista do poder exige, de agora em diante, o perfeito domínio da linguagem e da argumentação: não se trata apenas de ordenar, há também que persuadir e explicar. É por isso que os Sofistas, como nota Jaeger, que “saíam todos da classe média”, foram, de uma maneira geral, mais favoráveis, parece, ao regime democrático. É claro que os seus alunos mais brilhantes foram aristocratas, mas foi porque a democracia escolheu, frequentemente, os seus chefes entre os aristocratas, e os jovens nobres que frequentavam os Sofistas eram os que aceitaram submeter-se às regras das instituições democráticas; os outros desinteressavam-se da vida política. [Osório diz: os sofistas e a crise aristocrática! Mesmo que fosse aristocratas, aprendiam uma nova visão, portanto, revolucionária / O que permitiu o nascimento da sofística]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. ).
Kerferd ensina:
Os sofistas vieram de toda parte do mundo grego e muitos, embora nem todos, continuaram a viajar por toda parte em função de sua atividade profissional. Entretanto, todos vieram a Atenas, e é claro que Atenas, por uns sessenta anos, na segunda metade do século V a.C., era o verdadeiro centro do movimento sofista. De fato, tanto isso é verdade que, sem Atenas, é provável que o movimento dificilmente teria vindo a existir. O que havia, então, em Atenas nesse período que foi responsável por esse acontecimento?
A resposta deveria ser dada, provavelmente, sob dois tópicos11. Primeiro, as condições sociais e políticas que cria- [31] ram a necessidade dos sofistas [Osório diz: fundamentalmente a democracia, com suas necessidades básicas: falar/discursar e igualdade]; e, segundo, a influência direta de um único indivíduo, a saber, Péricles [Osório: Péricles que é elogiado por todos!]. A Grécia, como um todo, no século V a.C., parece ter ultrapassado todos os períodos antecedentes na produção da agricultura, da indústria e do comércio. Mas a transformação, em Atenas, importou em uma revolução econômica que tem sido descrita como uma passagem da economia de uma cidade-estado para a economia de um império. O grande e extenso programa de construção de prédios públicos que restaurou, numa escala jamais igualada antes, os templos destruídos pelos persas equiparava-se, segundo Tucídides (II, 38), à elegância, ao conforto e ao consumo luxuoso na vida privada. Conquanto seja totalmente errado tentar inferir dessa última afirmação que a pobreza tinha sido eliminada, é muito provável que a afirmação reflita uma crença geral de que a afluência privada era muito maior do que nas gerações anteriores em Atenas ou, mesmo, em outras cidades gregas. [Osório diz: Péricles usou, para isso o dinheiro da Confederação / Foi essa riqueza que permitiu aos sofistas poderem cobrar por seus ensinamentos].
Em certo sentido, o desenvolvimento de instituições democráticas em Atenas tinha sido gradual desde o tempo de Sólon. Mas também seria correto dizer que até o início da Guerra do Peloponeso foram, de modo geral, a mesma classe dominante e as mesmas famílias influentes que governaram o Estado em processo de democratização [Osório diz: Eis o que afetará a visão de Platão sobre os Sofistas, pois eles contribuiram para essa mudança]. Mas houve mudanças. As reformas constitucionais que começaram em Atenas em 462/461 a.C. deram nascimento ao que alguns consideraram uma democracia plena ou pura (p. ex. Plutarco, Cim. [32] 15.2). De fato, a afirmação de Tucídides (II, 37.1), cuidadosamente formulada, deixa claro que a democracia pericleana repousava em dois princípios fundamentais: "É chamada uma democracia porque a conduta dos negócios é confiada não a uns poucos, mas a muitos [Osório diz: Platão vai achar que isso é para poucos]; mas, conquanto haja igualdade para todos nos negócios civis estabelecidos por lei, permitimos plena liberdade de ação ao valor individual nos negócios públicos".
[Osório diz: São essas mudanças que Platão não suporta!]
Esses dois princípios são (1) que o poder deveria estar com o povo como um todo e não com uma pequena parte do conjunto dos cidadãos [Osório diz: com os aristocratas, como defende Platão e sua família], e (2) que os cargos com direito de aconselhar e agir em nome do povo deveriam ser confiados aos mais competentes e mais capazes de desempenhar essas funções [Osório diz: E quem atestava isso ou seria melhor para atestar? O próprio povo, embora isso não fosse visto com bons olhos por quem perdia poder, em especial o grupo ao qual pertencia Platão]. Em termos práticos, o primeiro princípio era expresso no poder da assembleia e dos conselhos de massa e a extensão gradual do sistema de seleção por sorteio para a maioria das magistraturas municipais. A introdução de pagamento tornou possível que cidadãos mais pobres se apresentassem para possível seleção, e sua importância é atestada pela fúria que provocou na oposição conservadora [Osório diz: leia-se Platão, em especial, embora posterior! Pagamento, justo, pela prestação de serviço público para o público].
Por outro lado, não houve nenhuma tentativa de estender o princípio de seleção por sorteio aos comandantes militares. De um ponto de vista militar isso era, sem dúvida, questão de bom senso [Osório diz: Platão não faz essa importantíssima ressalva!]. O autor do tratado pseudo-xenofontino Sobre a Constituição de Atenas (I, 2-3) contrasta os cargos para os quais todo o mundo pode ser admitido com [33] aquelas magistraturas que, quando bem conduzidas, trazem segurança para todo o povo, mas mal conduzidas trazem perigo; nessas magistraturas o povo não pede para tomar parte — eles não acham que devam tomar parte no generalato mediante sorteio, nem no cargo de comandante de cavalaria. Porque o povo está consciente de que lhe é mais vantajoso não ocupar esses cargos, e deixá-los para os homens mais capazes.[Osório diz: trecho fundamental para destruir o argumento platônico/socrático].
A importância deste segundo princípio não confinava-se a assuntos militares, visto que foi como strategos ou general que Péricles assegurou a si mesmo um poder virtualmente ininterrupto, tanto que Tucídides podia dizer que, sob Péricles, o que tinha o nome de democracia estava, de fato, em processo de se tornar o governo de um só homem.
Estes dois aspectos da democracia pericleana foram, sem dúvida, importantes no desenvolvimento de uma demanda pelos serviços dos sofistas. Mas estaremos provavelmente certos se pusermos maior ênfase no segundo. O que "os sofistas estavam aptos a oferecer não era, de forma alguma, uma contribuição para a educação das massas. Eles ofereciam um produto caro, valiosíssimo para os que estavam buscando fazer carreira na política e na vida pública em geral, isto é, uma espécie de educação secundária seletiva, em continuação à da instrução básica recebida na escola, em linguagem e literatura (Grammatikê e Mausikê), aritmética (Logistikê) e atletismo (Gymnastik) — ver, por exemplo, Platão, Prot. 318el; Xenofonte, Constituição dos espartanos, II, 1. Como a educação da escola elementar se completava normalmente no ponto em que o menino deixava de ser crian- [34] ça (Pais) para tornar-se um adolescente ou um jovem (Meirakion) (ver Platão, Laques 179a5-7; Xenofonte, Const. dos espartanos III, I), e visto que se tornar um Meirakion era equacionado com a idade da puberdade, tradicionalmente fixada aos 14 anos (Aristóteles, HA VII. 581al2ss.), podemos dizer, em termos modernos, se quisermos, que os sofistas ministravam uma educação seletiva para a idade de 14 anos em diante.
Essa educação, embora variasse quanto ao conteúdo, parece ter sido sempre, em boa parte, orientada para a carreira. Por volta do início da Guerra do Peloponeso, se é que podemos acreditar em Platão no diálogo Protágoros, estava já suficientemente estabelecida uma outra função — a de treinar mais professores que deveriam, por sua vez, tornar-se sofistas profissionais (Prot. 312a-b). Mas, como a finalidade principal continuava sendo a de preparar homens para uma carreira na política, não é de surpreender que uma parte essencial da educação oferecida fosse treinar na arte do discurso persuasivo. Sobre isso, observou muito bem J. B. Bury:
As instituições de uma cidade democrática grega pressupunham, no cidadão comum, a faculdade de falar em público, o que era indispensável para quem quer que ambicionasse uma carreira política. Um homem que fosse arrastado ao tribunal por seus inimigos e não soubesse como falar era como um civil desarmado atacado por soldados. O poder de expressar ideias claramente e de maneira a persuadir seus ouvintes era uma arte a ser aprendida e ensinada. Mas não bastava adquirir domínio do vocabulário; era necessário aprender como argu- [35] mentar, e exercitar-se na discussão de questões políticas e éticas. Havia uma procura de educação superior. [Osório diz: por que os sofistas eram necessários às circunstâncias e necessidades da Atenas do século V].
Os sofistas, então, supriam uma necessidade social e política. Mas além disso eles deviam muito ao patronato individual e, acima de tudo, ao patronato de um homem, Péricles. Isso é algo que talvez não tenha sido sempre reconhecido, tanto quanto deveria, nos relatos sobre o movimento sofista [Osório diz: eu, particularmente, sempre o reconheci!]. A falta de dados torna difícil para nós formar qualquer juízo claro e confiável sobre a personalidade de Péricles. Mas seu intelectualismo não se discute. Seus associados mais próximos e, ao que parece, seus únicos amigos pessoais eram artistas, intelectuais e filósofos. Um dos sofistas, o ateniense Damon, amigo de Sócrates e fiel companheiro de Pródicos, foi mencionado como seu "instrutor e mestre em política", e Isócrates disse de Damon que ele era considerado o homem mais sábio de seu tempo. Subsequentemente ele ganhou suficiente importância política para ser expulso de Atenas, por dez anos, pelo processo do ostracismo [Osório diz: a entourage de Péricles].
De importância ainda maior foi Anaxágoras. Segundo Plutarco, esse era o homem que Péricles admirava até ao exagero. Adquiriu com ele a sua gravidade de pensamento e de aparência e, mais ainda, seu racionalismo científico e a rejeição da superstição. Isso era ilustrado pela história segundo a qual Péricles fora capaz de explicar o eclipse do sol, em 431 a.C., e acalmar os que estavam assustados, explicando os movimentos do sol e da lua e ilustrando o que dizia com a sua [36] capa, levantando-a, aparentemente para esconder seu próprio rosto. Mais importante, contudo, do que essa história é o testemunho de que tentava basear todas as suas ações em decisão racional e cálculo judicioso (Gnomé) de preferência a emoções (Orgé), esperança ou acaso. [Osório diz: Péricles e Anaxágoras].
Além de Anaxágoras, havia outros intelectuais intimamente associados a Péricles (cf. [Platão] Alcib. I 118c). Protágoras era certamente um deles. Ele elogiava Péricles por sua atitude filosófica depois da morte de seus dois filhos ilegítimos na praga de 429 a.C. (DK 80B9). Muito antes, ele tinha sido claramente escolhido, por Péricles, para escrever as leis para a nova cidade de Turói, uma importante fundação na Itália meridional, no ano 444/443 a.C. O traçado das suas ruas fora encomendado a Hipódamo de Mileto, teórico político e planejador urbanista que foi também responsável pela configuração das ruas do porto de Atenas, em Pireus. É-nos dito, ainda, que Protágoras passou, certa vez, um dia inteiro conversando com Péricles sobre a questão de quem ou o que deveria ser corretamente acusado por uma morte acidental ocorrida durante a celebração de um festival atlético — a arma (um dardo), o homem que o lançou ou os organizadores dos jogos. [Osório diz: Péricles e Protágoras].
Uma outra tradição preservada por Plutarco (Per. 4,3), mas provavelmente conhecida também por Platão (DK 29A4), conta que Péricles ouvia as conferências de Zenão, o Eleáti- [37] co. Outros do seu círculo eram Heródoto, o historiador, Fídias, o escultor, e Sófocles, o tragediógrafo. [Osório diz: a entourage de Péricles].
A provável influência do pensamento sofista em Péricles não passou, de fato, despercebida. Mas a importância dele na promoção do movimento sofista não era, claramente, menos importante. Não foi por acaso que sofistas de todo canto do mundo grego vieram para Atenas. Isso foi devido, em parte, à própria Atenas. Primeiro, porque a cidade oferecia excelentes oportunidades para um sofista ganhar muito dinheiro e, segundo, em nível mais elevado, porque, sob muitos aspectos, ela estava em processo de se tornar um verdadeiro centro intelectual e artístico para toda a Grécia. Mas o patronato individual era também importante. Protágoras, o diálogo de Platão, abre com um brilhante cenário na casa de Cálias, em Atenas. A cena dramática é colocada exatamente antes do começo da Guerra do Peloponeso. Hospedados na casa de Cálias estão Hípias e Pródicos, aos quais se reunira, recentemente, Protágoras, que chegara do exterior dois dias antes. Estão presentes, também, muitos dos seus seguidores e discípulos reunidos para ouvir seus discursos. Esse Cálias pertencia a uma das famílias mais ricas de Atenas e, segundo Platão, na Apologia (20a4-5), gastou mais dinheiro com os sofistas do que foi gasto por todos os outros juntos. Não pode ser insignificante o fato de sua mãe ter sido a primeira mulher de Péricles, antes de se casar com o pai de Cálias, Hípônico. Além disso, Cálias não era o único patrono particular dos sofistas — ficamos sabendo, por Platão, que Górgias es- [38] tava hospedado e preparado para fazer uma palestra na casa de Cálicles (Górgias, 447b7-8), e especulações posteriores sugeriram que Protágoras fez a leitura de sua obra Sobre os deuses ou na casa de Eurípides ou na casa de um certo Megaclides (Diógenes Laércio IX, 54). [Osório diz: quem foi Cálias / Protágoras leu sua obra – escrita].
Embora fosse esse, claramente, um importante patronato particular, dificilmente teria a mesma importância que o de Péricles. Não sabemos se ele teve, alguma vez, sofistas hospedados em sua casa, mas há menção de conversas com sofistas em sua casa, aparentemente em inúmeras ocasiões (Plut. Per. 36.2). Mas já vimos o seu grande interesse pessoal por eles. Considerando-se a sua posição, é razoável supor que a importância desse interesse tenha sido considerável.A profissão de sofista, em Atenas, não era isenta de perigo. O ponto de partida, aqui, são as palavras que Platão põe na boca de Protágoras:
Quando um homem, que é um estrangeiro, vai para grandes cidades e lá persuade os melhores jovens a abandonar suas associações com outros, sejam parentes ou estranhos, mais velhos ou mais jovens do que eles, para se associarem consigo, movidos pela ideia de que se tornarão melhores mediante a sua associação com ele, um homem que assim procede precisa estar vigilante. Pois grandes são os ciúmes que surgem junto com outros ressentimentos e ataques contra ele [Osório diz: isso parece até uma confissão, no contexto!]. Ora, eu declaro que a arte sofista é muito antiga, mas os que a praticavam nos tempos antigos [Osório diz: já!? A antiguidade da Sofística! É que ela nasceu com o homem: falar é sofismar!], receando o ódio que despertava, construíam um escudo e máscara para si mesmos; alguns deles poesia, como no caso de Homero, Hesíodo e Simônides; al- [39] guns, ritos religiosos e profecias, como fizeram Orfeu, Museus e seus seguidores, alguns, tenho observado, também o atletismo, como aconteceu com Icos de Tarento e um outro ainda vivo, Heródico de Selimbria, originalmente de Mégara, tão sofista como qualquer outro; e música foi disfarce adotado por vosso próprio Agátocles, um grande sofista, e Pitocleides de Ceos e muitos outros. Todos esses, como digo, receando a má vontade contra eles, usaram essas artes como anteparos (Prot. 316c5-e5). [Osório diz: rol interessante de sofistas anteriores ao século V! Muito estranha essa não condenação, o que leva a crer até em uma possível distorção dos escritos platônicos].
Protágoras prossegue dizendo que ele mesmo não tomou esse caminho [Osório diz: o do disfarce?]. Admite que é sofista e que educa homens. Considera isso melhor precaução do que total negação. Mas ele inventou "outras precauções também" (317b6-7) cuja natureza não é especificada, de modo que, por isso, não sofre dano em consequência de sua admissão de que é sofista.
A certa altura, Platão até põe na boca de Sócrates a afirmação de que Atenas permite maior liberdade de palavra do que qualquer outro lugar na Grécia (Górgias, 461e2), e isso se conservou, até o século IV, como uma das características das quais os atenienses se orgulhavam (cf. Demóstenes IX, 3). A "Nota de Liberdade" tem sido regularmente declarada uma das glórias do gênio grego, manifesta em Atenas mais do que em qualquer outro lugar no século V a.C. Entretanto, como escreveu E. R. Dodds,
os indícios que temos são mais do que suficientes para provar que a Grande Era do Iluminismo grego era também, como no nosso próprio tempo, uma Era de Perseguição — banimento de intelectuais, antolhos para o pensamento e até (a crer na tradição sobre Protágoras) [40] queima de livros. Isso afligiu e confundiu os professores do século XIX, que não tinham a nossa vantagem da familiaridade com esse tipo de comportamento. Isso os confundia ainda mais porque acontecia em Atenas, a "escola da Hélade", a matriz da filosofia e, até onde vai nossa informação, em nenhum outro lugar. Daí a tendência para duvidar dos dados, sempre que possível; e quando possível explicar que o motivo real por trás das denúncias era político.
Sem dúvida, os que atacavam os filósofos, em Atenas, estavam atacando Péricles. Isso é simplesmente prova do íntimo envolvimento e da patronagem de Péricles em relação ao movimento sofista. Mas os indícios são realmente fortes de que houve toda uma série de processos contra filósofos e outros em Atenas, na segunda metade do século V a.C., geralmente sob a acusação de Asebeia ou impiedade. Isto é preservado não por uma fonte, mas por várias. Entre as vítimas se incluía a maioria dos líderes do pensamento progressista em Atenas: Anaxágoras, Diágoras, Sócrates, Aspásia, Protágoras e Eurípides, embora no seu caso pareça que a denúncia não foi bem-sucedida. De Protágoras se disse que foi exilado de Atenas e seus livros foram queimados (DK 80Ale3); [41] parece não haver dúvida de que Anaxágoras foi exilado, embora a data seja incerta. Fídias, depois de condenado por apropriação indébita, ou morreu na prisão ou foi exilado. Damon, como vimos, sofreu o ostracismo. É difícil acreditar que tudo isso foi simplesmente inventado, a despeito da incerteza sobre alguns detalhes. [Osório diz: perseguição aos intelectuais em Atenas. Mais uma vez Sócrates não difere dos demais sofistas! Sócrates, no entanto, parece que não é do agrado de Péricles! Se o fosse, talvez Platão tivesse dito ou o destacou dos demais, justamente para fazer o contraponto, tentando dizer que ele era o melhor, daí não ter recebido atenção].
Plutarco (Per. 31-32) reúne um certo número dessas acusações e as situa por volta do início da Guerra do Peloponeso, associando-as a um decreto de Diopeites prescrevendo a instauração de processo público (pelo processo de eisangelia) contra os que não acreditavam em coisas divinas ou que davam lições de astronomia [Osório diz: talvez esse seja o real motivo para Sócrates negar a astronomia! Medo!]. As tentativas de datar o decreto depois do início da guerra, claramente motivadas por um desejo de associá-lo com a histeria da guerra e mesmo com emoções evocadas pela praga, deveriam ser descartadas. É até possível que alguns dos processos reais fossem anteriores a 432 a.C. Finalmente, tem de ser feita referência a uma intrigante afirmação na Retórica 1397b24, de Aristóteles, segundo a qual a rejeição de uma afirmação provável é aceita como um bom argumento para a rejeição de outra afirmação menos provável. Portanto, se não se deve menosprezar outros especialistas, os filósofos também não deveriam ser menosprezados. Se os generais não devem ser menosprezados porque estão frequentemente sujeitos à morte, tampouco devem ser menosprezados os sofistas. Aqui a interpretação do texto thanatountai é segura e não deveria ser alterada. Mas não significa realmente condenados à morte, mas apenas sujeitos à ameaça de [42] morte. O que Aristóteles está dizendo é que a profissão de sofista era perigosa, embora menos do que a de general. [Osório diz: a profissão de sofista era perigosa por que eles mexiam com interesses profundos da sociedade: dinheiro e poder ou poder e dinheiro. Alternância de poder e divisão de riqueza gera conflitos, e dos maiores].
Em vista dos testemunhos acima não é de se duvidar da autenticidade da tradição segundo a qual alguns sentiam que seria prudente que o sofista ocultasse o fato de ser sofista. Encontramos isso não só na passagem do Protágoras de Platão citada anteriormente, mas também aplicado a Damon, na Vida de Péricles, de Plutarco; tratado como pilhéria por Sócrates, no seu próprio caso, em Teeteto 149a7 [Osório diz: nisso é pilhéria? No dos outros não?]; como um argumento sério na Apologia 33c4-34b5, e aplicado a outros, além de Protágoras, em Mênon 91e3-92a6. Se os sofistas poderiam ocasionalmente sentir-se inseguros em Atenas, certamente haveriam de ter recorrido ao apoio de Péricles. Consta que Péricles interveio diretamente para socorrer Anaxágoras e Aspásia. Não há por que duvidar de que sua influência estava disponível para socorrer outros também, e é provável que o apoio de Péricles fosse a secreta fonte de segurança em que se fiava Protágoras (Prot. 317B6-7).
Em vista de tudo o que foi dito, podemos agora concluir que não somente a situação geral em Atenas, mas também o franco encorajamento de Péricles é que trouxeram tantos sofistas a Atenas. A sua vinda não foi provocada simplesmente por algo de fora mas, antes, por um desenvolvimento interno à história de Atenas. Eles faziam parte do movimento que estava produzindo a Nova Atenas de Péricles, e era como tal que foram, ao mesmo tempo, bem-vindos e atacados. Eles atraíam o entusiasmo e o ódio que regularmente advêm àqueles que [43] estão profundamente envolvidos num processo de fundamental mudança social. A mudança que estava se realizando era, ao mesmo tempo, social e política, de um lado, e intelectual, de outro. Mas esses dois aspectos não eram separados; ambos faziam parte de um único processo complexo de mudança [Osório diz: qual autor não diz! Mas podemos dizer: poder político e divisão de riqueza].
Este capítulo intentou compreender o movimento sofista como um movimento social dentro do contexto da sociedade ateniense do século V. Acredito que não há necessidade de me justificar pela ênfase dada aos aspectos especiais existentes em Atenas e, em particular, pela importância atribuída à influência pessoal de Péricles, embora reconheça que em ambos os pontos talvez esteja indo um pouco mais longe do que foram outros especialistas. Seria um engano dar a impressão de que o movimento sofista era alguma coisa confinada em Atenas. Os sofistas vieram de muitas partes do mundo grego, viajaram longas distâncias, visitando cidades por toda parte (Platão, Ap. 19e5), ou pelo menos as cidades maiores (Platão, Prot. 316c6), das quais, ao que parece, estavam sujeitos a ser expulsos, exatamente como acontecia em Atenas (Platão, Mênon 92b3). Alguns sofistas, contudo, não eram estrangeiros, mas cidadãos das cidades nas quais ensinavam (Platão, Mênon 91c2, 92b3, Sof. 223d5). Quando um sofista viajava, ia provavelmente acompanhado de alunos que, como ele, chegavam como estrangeiros nas cidades que estavam visitando (Platão, Prot. 315a7). Górgias teve alunos em Argos, onde atraiu muita hostilidade da população local (ver DK Vol. II, 425.26), e em outro período de sua vida parece que se fixou em Tessália (DK 82A19). Hípias viajou muito, especialmente no mundo dório e, portanto, até Esparta e Sicília; e Protágoras também viveu por algum tempo na Sicília. [44] [Osório diz: Os sofistas como professores itinerantes. Embora Atenas, por sua riqueza e poder tenha sido o palco principal deles]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. ____)
Foi, assim, que os Sofistas chegaram na cidade, ensinaram, ficaram ricos e deixaram suas marcas para sempre na cultura grega e Ocidental, desde então.
Os Sofistas, portanto, nada mais fizeram que simplesmente atender a uma demanda ateniense pelo saber, pelo conhecimento que eles detinham.
E, ao ensinarem, os Sofistas abriram um fosso que jamais veio a ser fechado, pois, com conhecimento, demonstrarem que o conhecimento é precário e limitado, sendo, por isso, odiados pelos donos da verdade, especialmente professores e religiosos ou os dois juntos e misturados.
Dizer a verdade, para os Sofistas, passou a ser o seu crime, numa completa inversão do que se diz, embora, intimamente, não se acredite nisso!
Que professor chega em sala de aula e diz, logo de início, que não tem conhecimento do que se propõe a ensinar?
11 No texto a seguir só posso proceder por generalizações que, inevitavelmente, estarão sujeitas a qualificação. Para maior discussão da controvertida questão do desenvolvimento económico da Grécia antiga, ver M. M. AUSTIN e P. VIDAL-NAQUET, Economic and Social History of Ancient Greece, Londres, 1977, e C. G. STARR, The Economia and Social Growth ofEarly Greece, Nova Iorque, 1977.
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
3 – Antecedentes da revolução Sofística.
Nos diz Guthrier:
“Determinar as causas de uma revolução intelectual sempre é empreendimento temerário, e quando muitas e grandes coisas acontecem juntas não é sempre fácil distinguir causa de efeito; mas umas poucas coisas se podem mencionar como provavelmente pertencentes à primeira categoria. Somos obrigados a destacar, por motivos cronológicos, a suposição de que os “pré-socraticos”, e em particular os jônios, possam todos ter exercido influência na configuração do pensamento dos sofistas. Se existe alguma conexão causal entre as idéias de Demócrito e as de Protágoras ou Górgias, é mais provável que tenha sido em sentido contrário. De outro lado, a influência dos eleatas sobre Protágoras e Górgias é inegável, como também a de Heráclito sobre Protágoras, e de Górgias se diz que foi discípulo e seguidor de Empédocles.
A vida, inclusive a vida humana, seria produto de uma espécie de fermentação causada pela ação do calor sobre a humanidade ou na matéria em decomposição, e grupos sociais e políticos seriam formados por acordos como a única forma eficaz para o homem se defender da natureza não humana. As próprias cosmogonias ajudaram a banir agentes divinos do mundo, não porque eram mais evolutivas do que criativas...
...a idéia de (p. 19) criação divina nunca foi proeminente na religião grega – mas porque tornavam mais difícil o hábito grego de ver seres divinos ou semidivinos em toda parte da natureza. Foi um golpe para a religião quando até das estrelas e do sol se afirmou serem nuvens ígneas, ou rochas arrancadas da terra e postas em órbita pelo redemoinho cósmico. Os olímpicos, ainda que não tivessem criado o mundo, tinham-no pelo menos controlado, mas as teorias dos filósofos naturais não deixavam nenhum lugar ou papel para Zeus na produção da chuva, do trovão e do relâmpago, nem para Posêidon no terror dos terremotos. (p. 20)
Além de sua distância, os pré-socráticos eram desacreditados por suas mútuas contradições. [Osório diz: Protágoras viu isso!]
Muitas vezes se aduz como uma das causas do novo humanismo a ampliação de horizontes mediante aumento de contatos com outros povos, na guerra, nas viagens e na fundação de colônias. Estes deixaram cada vez [p. 20] mais claro que costumes e modos de comportamento que antes tinham sido aceitos como absolutos e universais, e de instituirão divina, eram de fato locais e relativos. [Osório diz: Divergência entre valores]
...Hábitos que para gregos eram maus e desagradáveis, como casamento entre irmão e irmã, podem entre os egípcios ou alhures ser considerados normais e até impostos pela religião. A história de Heródoto é típica dos meados do séc. V pelo entusiasmo com que coleta e descreve os costumes dos citas, persas, lídios, egípcios e outros, indicando suas divergencias do uso grego. Se se pedisse a todos os homens, diz ele, que mencionassem as melhores leis e costumes, cada um escolheria os seus próprios; e o ilustra pela história de Dario, que mandou vir a sua corte alguns gregos e hindus e perguntou primeiro aos gregos por que consideração eles consentiriam comer os seus pais falecidos. Quando estes responderam que não fariam isso por nada, ele se voltou para os hindus (de uma tribo que normalmente comiam os corpos de seus pais) e lhes perguntou se algo os poderia persuadir a queimar seus pais (como os gregos faziam), ao que eles protestaram pela mera menção de tal impiedade.
Também Eurípides notou que se pratica o incesto entre povos não-gregos, “e nenhuma lei o proíbe”... [Osório diz: Relatividade dos valores]
[Sócrates não concordava que uma lei não era menos universal e divina porque alguns a transgrediram; ...(p. 21) [Osório diz: um único exemplo e, ainda por cima, o pior!].
Estadas entre egípcios e caldeus são relatadas de primitivos filósofos e sábios como Sólon, e são inteiramente confiáveis tais relatos. ...
É “lei da natureza” que o mais forte faça o que está em seu poder e mais fraco ceda … (p. 22)
Assim também Teseu no Hipólito (Hip. 915ss) se pergunta para que serve os homens ensinarem dez mil artes e descobrir tanto instrumento engenhoso, se sua ciência não lhes diz como pôr senso na cabeça de um homem que não o tem. [Osório diz: o homem criando!]
Sólon (que foi o primeiro a introduzir o principio de nomear funcionários públicos por uma combinação de eleição e sorte) [Osório diz: Política]
...o arcontado ...Sócrates, ...sentimentos antidemocráticos ...(p. 23)
O trato de Mitilene pela democracia ateniense ilustra seus perigos, e talvez também suas virtudes.
Depois de dominar uma revolta em 428, a Assembléia sob influência de Clêon enviou uma trireme com ordens de matar todo homem na cidade e escravizar as mulheres e as crianças. No dia seguinte, arrependeram-se de sua crueldade atroz, e, depois de segundo debate, reverteram a decisão por magra maioria e despacharam uma segunda trireme a grande velocidade para cancelar a ordem. Comendo junto aos remos e dormindo revezando-se, conseguiram chegar antes que a ordem fosse levada a efeito. Neste caso, a fraqueza demagógicaratória contrabalançou por sua prontidão em reconsiderar e dar a ambos os lados adequada audição [O tamanho dos Estados modernos impede uma democracia completa, enquanto oposta a uma representativa, mesmo que fosse desejada, e provavelmente os únicos lugares onde se pode observar hoje são as Universidades de Oxford e Cambridge, onde semelhantes exemplos de vacilação não são desconhecidos.]. A pequena ilha de Melos foi menos afortunada, e seus habitantes sofreram a sorte originalmente planejada para Mitilene. Seu crime foi preferir a neutralidade à inserção no império ateniense. [Osório diz: Isso aconteceu no início da Democracia, o que mostra que esta é importante, pois permite rever seus atos tidos como errados] [Osório diz: o autor muda de assunto, embora a ele retorne na nota de rodapé]
Protágoras, que se gloriava do título de sofista e anunciava orgulhosamente sua habilidade de ensinar ao jovem “o cuidado adequado de seus negócios pessoais, para poder administrar melhor sua própria casa e família, e também dos negócios do Estado, para se tornar poder real na cidade, quer como orador, quer como homem de ação”. ...
E argumentou-se (da parte de Heinrich Gomperz) que todo o ensino dos sofistas se resume na arte da retórica. É considerável exagero; a arete que Protágoras pretendia comunicar consistia em mais do que isso. Mas alguém dentre eles, Górgias, mofou dos professores profissionais de [p. 24] virtude cívica. [Osório diz: existiam?]
Falei como se as circunstâncias políticas e as ações públicas dos Estados gregos originassem as teorias morais arreligiosas e utilitárias dos pensadores e mestres, mas é mais provável que prática e teoria agissem e reagissem mutuamente entre si. Sem dúvida, os atenienses não precisavam de um Trasímaco ou de um Cálicles para ensinar-lhes como lidar com uma ilha recalcitrante, mas os discursos que Tucídides põe nos lábios dos porta-vozes atenienses, no que ele tipifica um debate com a assembléia meliana, trazem marcas inconfundíveis de ensino sofista. Péricles era amigo de Protágoras, e quando Górgias apareceu diante dos atenienses em 427, os novos floreios da oratória com que ele pleiteou a causa de sua terra natal, a Sicília, suscitaram admiração e surpresa (p. 169, n. 11, abaixo). Se os sofistas foram produto de seu tempo, por sua vez também ajudaram a cristalizar suas idéias. Mas seu ensino pelo menos caiu em terreno bem preparado. Ao ver Platão, não eram eles que deviam ser declarados culpados por infeccionar os jovens com pensamentos perniciosos, pois nada mais faziam do que refletir os prazeres e as paixões da democracia existente:
Cada um destes mestres profissionais, que o povo chama de sofistas e considera seus rivais na arte da educação, não ensina, com efeito, nada mais do que as crenças do povo expressas por ele mesmo em suas assembléias. É isso que afirma como sua sabedoria.
Voltando-nos de causas para facetas de mudança (à medida que se podem distinguir os dois aspectos), destas últimas a mais fundamental é a antítese entre physis e nomos que se desenvolveu nesta época entre filósofos naturais e humanistas igualmente. (p. 25) [Osório diz: Natureza e Leis]
...o individualismo desmedido dos que, como Cálicles de Platão, defendiam que idéias de lei e justiça eram mero expediente da maioria de fracos para afastar o homem forte, que é o homem justo da natureza, do lugar que por direito lhe cabe.
Na idéia de que leis são assuntos de acordo humano, "alianças feitas pelos cidadãos", como Hípias as chamou (p. 130 abaixo)
Temos a essência da teoria do pacto social que se desenvolveu sobretudo na Europa dos sécs. XVII e XVIII.
Uma afirmação inequívoca da teoria contratual da lei é atribuída por Aristóteles a Licófron, discípulo de Górgias, e, em sua forma histórica, como teoria da origem da lei, é afirmada claramente por Gláucon na República como modo de ver corrente que ele gostaria de refutar.
Além de leis no sentido comum, a opinião contemporânea reconheceu-a existência de "leis não-escritas", e a relação entre ambas ilustra bem a natureza transitória deste período de pensamento. Para uns, a frase denotava certos princípios morais eternos, válidos universalmente e prevalecendo sobre as leis positivas dos homens porque tinham sua origem nos deuses. Esta noção é mais bem conhecida pelas esplêndidas linhas de Sófocles na Antígona (450ss), onde Antígona defende o funeral de seu irmão morto contrário ao edito de Crêon declarando: "Não foi Zeus nem foi a Justiça que decretaram estes nomoi entre os homens, nem julgo tua proclamação tão poderosa que tu, um mortal, possas subverter as leis seguras e não-escritas dos deuses". Mais tarde veremos outras referências a estas leis divinas que existiram em todo tempo, e sua superioridade sobre os decretos falhos e mutáveis dos homens. Contudo, com a difusão de idéias democráticas, a frase ganhou sentido novo e mais sinistro. A codificação da lei veio a ser considerada proteção necessária para o povo. Não só Eurípedes (Suppl. 429ss) considerou-a garantia para direitos iguais e baluarte contra a tirania, mas também na prática a democracia restaurada no fim da guerra do Peloponeso proibiu expressamente ao magistrado fazer uso de leis não-escritas (p. 119 abaixo). (p. 26) [Osório diz: lei não escrita era a burguesia!] [Osório diz: cada coisa no seu contexto!]
O crescimento do ateísmo e do agnosticismo nesta época também esteve conexo com a idéia de nomos. [Osório diz: Religião]
Para Crítias, os deuses foram invenção de um engenhoso legislador para prevenir que os homens transgredissem as leis quando não observados. ...deificação de objetos naturais úteis como o sol e os rios, trigo e uva, …
Um aspecto atraente da antítese nomos-physis é que ela patrocinou os primeiros passos rumo ao cosmopolitismo e à idéia da unidade do gênero humano. (p. 27)
Antífon foi mais longe (como Hípias também pode ter feito), e depois de censurar distinções baseadas em nascimento nobre e inferior passou a declarar que não há nenhuma diferença de natureza entre bárbaros e gregos. [Osório diz: Platão!]
A única testemunha no séc. V da existência de uma crença de que a escravidão é não-natural é Eurípides, cujas personagens expressam sentimentos deste tipo: “Somente o nome traz vergonha para um escravo: em tudo o mais ele não é pior que os livres, se ele for homem bom”. [Osório diz: Escravidão]
Protágoras começou com o axioma de que “há dois argumentos sobre cada assunto”.
Aos olhos de Górgias, "a palavra" era déspota que podia fazer qualquer coisa, mas como escravo da lâmpada estaria a serviço dos que faziam seus cursos. Lendo os restos que nos sobraram dos escritos de Górgias, não nos inclinamos a acusar Platão de deslealdade quando o faz desconhecer toda responsabilidade pelo uso que se pode fazer de seu ensino por outros. Era matéria subversiva, tanto moral como epistemologicamente, pois a convicção de que os homens podiam ser persuadidos de qualquer coisa casava-se naturalmente com a relatividade da doutrina de Protágoras segundo a qual "o homem é a medida" e com o niilismo do tratado de Górgias Sobre a natureza e o não-existente. [Osório diz: aqui o autor rói a corda!]
Eles pretendiam ensinar arete, mas seria isso algo que se poderia instilar pelo ensino? [Osório diz: isso é contraditório e idiota! Platão diz que a virtude não pode ser ensinada, mas maldade, seu oposto, pode! Ou ambas podem ser ensinadas ou ambas não podem sê-lo] [Osório diz: arete, no caso, é: aceite que alguém manda e alguém obedece. Manda quem nasceu no seis das famílias que nasceram para mandar. De indivíduo nada para família].
Arete, quando usada (p. 28) sem qualificação, denotava as qualidades de excelência humana que fazia o homem líder natural em sua comunidade, e até então crera-se que ela dependia de certos dons naturais e mesmo divinos que eram a marca do bom nascimento e geração. Eram definitivamente assunto da physis, cultivada, à medida que o rapaz crescia, pela experiência de viver com exemplo de seu pai e pessoas mais velhas buscando segui-lo. Assim eram, transmitidos naturalmente e raramente de maneira consciente, uma prerrogativa da classe que nasceu para governar. [Osório diz: Platão]
...anátema … ([latim eclesiástico anathema, -atis, do grego anáthema, -atos, oferenda, coisa maldita, maldição] adjetivo de dois gêneros. 1. Maldito, excomungado. substantivo masculino 2. Excomunhão com execração. 3. Pessoa anatematizada.)
O que veio acima é uma pregustação dos tópicos, de cálido interesse nos tempos em que Sócrates vivia, que serão examinados em capítulos posteriores: o status das leis e dos princípios morais, a teoria do progresso do homem da selvageria para a civilização substituindo a teoria de degeneração de uma idade áurea passada, a idéia do pacto social, teorias subjetivas do conhecimento, ateísmo e agnosticismo, hedonismo e utilitarismo, a unidade do gênero humano, escravidão e igualdade, a natureza da arete, a importância da retórica e o estudo da linguagem.(p. 29) [Osório diz: o que propunham os sofistas!]
Foi dito dos sofistas que eram herdeiros tanto dos filósofos pré-socráticos como dos poetas. W. Schmidt afirmou para Protágoras uma dívida para com Heráclito, Anaxágoras, os físicos de Mileto e Xenofonte, e lhe dá o crédito de tornar as conclusões paradoxais de Heráclito e Parmênides geralmente correntes em círculos instruídos.
Um ramo da filosofia pré-socrática exerceu profunda influência na sofistica como também em todo outro pensamento grego: o monismo extremado de Parmênides e seus seguidores. Seu desafio à evidencia dos sentidos, e rejeição de todo o mundo sensível como irreal, inspirou reação violenta nas mentes empíricas e praticas dos sofistas, que se lhe opuseram em nome do senso comum. Protágoras, diz-nos, afastou-se do ensino político da arete para escrever uma obra sobre o Ser que se dirigia contra “os que sustentam a unidade do Ser” e Górgias em seu Sobre o não-ser mostrou sua mestria no argumento eleático fazendo-o voltar contra seus [p. 48] inventores. Todavia os sofistas não podiam, não mais do que qualquer outro pretendente a pensamento sério, eliminar o dilema eleático, que forçava uma escolha entre o ser e o tornar-se, a estabilidade e o fluxo, a realidade e a aparência. Uma vez que não mais era possível tê-los a ambos, os sofistas abandonaram a idéia de uma realidade permanente atrás das aparências, em favor de fenomenismo, relativismo e subjetivismo extremos [p. 49]. [Osório diz:!!!]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. citadas entre colchetes).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
2 – Do conhecimento religioso, mítico ao racional.
São em colônias gregas situadas no que esse povo chamava de Ásia menor (atual Turquia), que encontramos os primeiros registros do esforço humano, buscando superar o conhecimento religioso e mítico, por intermédio do pensamento dito racional. Lá encontramos os seguintes homens e suas contribuições na explicação ao esforço de pensar.
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Tales
Contribuição fundamental: colocou o problema do princípio único originário de todas as coisas, afirmando que o princípio (ou arché) de todas as coisas é a água.
Anaxímenes
Contribuição fundamental: afirma que o princípio (ou arché) de todas as coisas é o ar.
Anaximandro
Contribuição fundamental: Afirma que o princípio (ou arché) de todas as coisas é o apeiron (o indefinido ou o infinito).
Heráclito
Contribuição fundamental: Afirma que o princípio (ou arché) de todas as coisas é o fogo. Afirma, ainda, a existência do princípio (logos) como unidade múltipla, guerra e paz, luta e harmonia, discórdia e justiça, contradição e síntese dos opostos. O fogo é a manifestação empírica do logos.
Parmênides
Contribuição fundamental: sua doutrina nega, energicamente, a possibilidade do movimento, da mudança e da multiplicidade.
Empédocles
Contribuição fundamental: Inaugura o pluralismo, rompendo com a tradição eleata (dos pensadores originários da cidade de Eléia). Afirma que as coisas têm origem em “quatro raízes”, batizadas com nomes divinais: o fogo (Zeus), o ar (Hera), a terra (Aidoneus) e a água (Nestis).
Anaxágoras
Contribuição fundamental: entende que o universo, na sua totalidade, é constituído por inumeráveis partículas, infinitamente pequenas, invisíveis, divisíveis ao infinito, às quais dá o nome de sementes ou homeomerias. Introduziu na filosofia grega a ideia de um princípio unificador e ordenador da matéria, o nous (inteligência) de natureza espiritual.
Pitágoras
Contribuição fundamental: para ele, os números e a oposição finito-infinito, eram o princípio (ou arché), a substância de todas as coisas
Demócrito
Contribuição fundamental: Desenvolveu a teoria dos átomos de seu mestre Leucipo. A realidade é composta de átomos (as menores partículas nas quais as coisas poderiam se dividir) e de vazio.
Nietzsche tem uma tese muito interessante sobre os pré-socráticos, que pode assim ser descrita:
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“A crítica de Nietzsche e Hegel sobre Tales de Mileto
Nietzsche através de seu texto "A filosofia na Época Trágica dos Gregos" se mostra um grande admirador da cultura e principalmente da filosofia grega. Mesmo elas tendo sofrido influências de elementos construídos por outros povos, os gregos usando de toda a sua inteligência, souberam construir a sua própria cultura e filosofia.
Falando sobre Tales de Mileto, considerado o primeiro filósofo grego, Nietzsche compara os saltos da imaginação de Tales com aquilo que ele chamou de "entendimento calculador". De acordo com Nietzsche, os pré-socráticos em seus estudos sobre a origem e a essência das coisas, submeteram os mitos ao pensamento lógico causal, sendo responsáveis pelo nascimento da filosofia. Segundo Nietzsche:
"A filosofia grega parece começar com uma ideia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo necessário deter-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas, em segundo lugar, porque faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisálida, está contido o pensamento: 'tudo é um'.".
Nietzsche diz que através de Tales podemos entender como procedeu a filosofia em todos os tempos. O pensamento filosófico possui extrema mobilidade, pois ele é alçado pela fantasia, usa os fatos apenas como apôio provisório, para depois, lançar-se à frente. Já o "entendimento calculador" caminha apenas depois de construir fundamentos sólidos: "a todo instante, detém-se desamparado, precisa antes construir fundamentos que sustentem seu passo pesado e cauteloso; por vezes isso não dá resultado, e então não há deus que possa auxiliá-lo a transpor o regato."
Nietzsche faz uma comparação entre a elaboração linguística da intuição filosófica e os versos do poeta: "O filósofo busca ressoar em si mesmo o clangor total do mundo e, de si mesmo, expô-lo em conceitos; enquanto é contemplativo como o artista plástico, compassivo como o religioso, à espreita de fins e causalidades como o homem da ciência, enquanto se sente dilatar-se até a dimensão do macrocosmo, conserva a lucidez para considerar-se friamente como o reflexo do mudo, essa lucidez que tem o artista dramático quando se transforma em outros corpos, fala a partir destes e, contudo, sabe projetar essa transformação para o exterior, em versos escritos." É inevitável que cogitemos uma aproximação entre a filosofia e a poesia, por serem ambas, uma forma de expressão linguística. Nietzsche diz que o poeta usa a imagem de seu eu empírico como forma de expressão, constrói um símbolo, através do qual representa seu próprio estado. Ora, demonstrar o "sentir" por meio de uma representação subjetiva, é o mesmo que submeter o seu significado a uma restrição que a vocação da filosofia desconhece. O impulso ao conhecimento universal arrasta o filósofo fazendo com que ele aprenda o "sentir" em seu sentido mais geral. O discurso filosófico deve ser conceitualmente construído, e para isso, na filosofia, qualquer traço de subjetividade, ou seja, do eu lírico deve ser aniquilado. No entanto, só através da virtualidade linguística desenvolvida pelos poetas seria possível pensar a independência da filosofia em relação aos padrões da língua.
O "entendimento calculador", por sua vez, parte da hipótese, a ele mesmo desconhecida, de que há na estrutura linguística uma verdade, e por isso considera o uso da linguagem como meio necessário para se alcançar o conhecimento. A verdade do entendimento calculador é constituída de uma aplicação da representação linguística à realidade. Sendo assim, a adequação da representação ao objeto é distorcida, pois o próprio mundo objetivo é construído a partir das leis gramaticais. Logo, a aplicação da estrutura e representação linguística ao objeto de estudo da filosofia corresponderia à falsificação desse objeto. A própria intuição filosófica compreende esse fato, ou seja, intuir o fundamento da realidade, implica em reconhecer a sua imensurabilidade em relação ao pensamento conceitual e à linguagem. Devido a esse motivo, a relação entre a intuição filosófica e o discurso da filosofia só se dá, quando este não está preso as leis estabelecidas pela linguagem. Neste âmbito do discurso filosófico, a linguagem não deve absorver o seu objeto, obrigando-o a acomodar-se dentro de estruturas já existentes, mas deve apenas entrar em "contato superficial" com ele. Através desse contato, o discurso filosófico torna-se capaz de expressar o "sentir" na medida em que se liberta dos grilhões da linguagem. (Tal liberdade é infinitamente maior na literatura e em qualquer outra forma de arte).
Na obra "Fragmentos Póstumos", de Nietzsche, é atribuída à filosofia um caráter de atividade fundamentalmente poética: "A filosofia é uma forma de arte poética. [...] A descrição da natureza do filósofo. Ele conhece na medida em que poetiza, e poetiza na medida em que conhece. [...] Ela é a poesia além das fronteiras da experiência." Aqui fica claro que Nietzsche acredita que os filósofos devem recusar a validade das convenções linguísticas. Para Nietzsche, a expressão de Tales "tudo é água", foi o meio que ele encontrou para expressar a unidade, a singularidade de tudo o que é. E por estar submetido ao condicionamento da linguagem, Tales se comunicou falando da água.
Hegel e Nietzsche concordam que a proposição de Tales, que diz "a água é o absoluto", é filosófica e que com ela a filosofia se iniciou. Mas para Hegel, a frase é filosófica porque ela nos mostra que o "um é a essência, o verdadeiro, o único que é em si e para si". Ele diz que: "Os gregos consideram o sol, as montanhas, os rios, etc. como forças autônomas, honrando-os como deuses, elevados pela fantasia a seres ativos, móveis, conscientes, dotados de vontade. Isto gera em nós a representação da pura criação pela fantasia, animação infinita e universal, figuração, sem unidade simples."
Para Hegel, esse segregar-se de uma infinidade de princípios, ou seja, toda essa representação de que um objeto singular é algo que subsiste para si, que possui autonomia, é substituída. E, assim, está posto que só existe um universal, o universal ser em si e para si, e de acordo com Hegel, o pensamento de que apenas o um é. O infinito, Deus, é um só, pois se fosse dois haveria a finitude, seria singular e o singular é passageiro, é finito, voltando novamente a tornar-se universal. Para Hegel, nada é em sua singularidade.
“A filosofia grega parece começar com uma idéia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo necessário deter-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar, porque faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisálida, está contido o pensamento: "Tudo é um". A razão citada em primeiro lugar deixa Tales ainda em comunidade com os religiosos e supersticiosos, a segunda o tira dessa sociedade e no-lo mostra como investigador da natureza, mas, em virtude da terceira, Tales se torna o primeiro filósofo grego. Se tivesse dito: "Da água provém a terra", teríamos apenas uma hipótese científica, falsa, mas dificilmente refutável. Mas ele foi além do científico. Ao expor essa representação de unidade através da hipótese da água, Tales não superou o estágio inferior das noções físicas da época, mas, no máximo, saltou por sobre ele. As parcas e desordenadas observações da natureza empírica que Tales havia feito sobre a presença e as transformações da água ou, mais exatamente, do úmido, seriam o que menos permitiria ou mesmo aconselharia tão monstruosa generalização; o que o impeliu a esta foi um postulado metafísico, uma crença que tem sua origem em uma intuição mística e que encontramos em todos os filósofos, ao lado dos esforços sempre renovados para exprimi-la melhor — a proposição: "Tudo é um".
É notável a violência tirânica com que essa crença trata toda a empiria: exatamente em Tales se pode aprender como procedeu a filosofia, em todos os 6 Os Filósofos Trágicos. Este título, que deve ser tomado estritamente em sentido nietzschiano, não é de Nietzsche: apenas obedece a uma indicação do autor, que diz: "Os filósofos antigos, os eleatas, Heráclito, Empédocles, são filósofos trágicos". Também não se trata de um livro de Nietzsche, mas de uma reunião de textos sobre os pré-socráticos. Os cinco primeiros pertencem ao ensaio A Filosofia na Época Trágica dos Gregos, de 1873 (edição Krõner, vol- I). Os três últimos são notas e planos de curso, do vol. XIX das Obras Completas* (edição de 1903). Assim prevenido de que este é um livro artificial, o leitor poderá também desmontá-lo* e aproveitá-lo em pelo meros dois sentidos muito fecundos: como suplemento ao estudo dos pré-socráticos ou como via de acesso à compreensão de Nietzsche. (N. do T.) " E o que se fez nesta edição, destacando cada parte para o respectivo pré-socrático comentado. (N. do E.) tempos, quando queria elevar-se a seu alvo magicamente atraente, transpondo as cercas da experiência. Sobre leves esteios, ela salta para diante: a esperança e o pressentimento põem asas em seus pés. Pesadamente, o entendimento calculador arqueja em seu encalço e busca esteios melhores para também alcançar aquele alvo sedutor, ao qual sua companheira mais divina já chegou. Dir-se-ia ver dois andarilhos diante de um regato selvagem, que corre rodopiando pedras; o primeiro, com pés ligeiros, salta por sobre ele, usando as pedras e apoiando-se nelas para lançar-se mais adiante, ainda que, atrás dele, afundem bruscamente nas profundezas. O outro, a todo instante, detém-se desamparado, precisa antes construir fundamentos que sustentem seu passo pesado e cauteloso; por vezes isso não dá resultado e, então, não há deus que possa auxiliá-lo a transpor o regato.
O que, então, leva o pensamento filosófico tão rapidamente a seu alvo? Acaso ele se distingue do pensamento calculador e mediador por seu vôo mais veloz através de grandes espaços? Não, pois seu pé é alçado por uma potência alheia, lógica, a fantasia. Alçado por esta, ele salta adiante, de possibilidade em possibilidade, que por um momento são tomadas por certezas; aqui e ali, ele mesmo apanha certezas em vôo. Um pressentimento genial as mostra a ele e adivinha de longe que nesse ponto há certezas demonstráveis. Mas, em particular, a fantasia tem o poder de captar e iluminar como um relâmpago as semelhanças: mais tarde, a reflexão vem trazer seus critérios e padrões e procura substituir as semelhanças por igualdades, as contigüidades por causalidades. Mas, mesmo que isso nunca seja possível, mesmo no caso de Tales, o filosofar indemonstrável tem ainda um valor; mesmo que estejam rompidos todos os esteios quando a lógica é a rigidez da empiria quiseram chegar até a proposição "Tudo é água", fica ainda, sempre, depois de destroçado o edifício científico, um resto; e precisamente nesse resto há uma força propulsora e como que a esperança de uma futura fecundidade.
Naturalmente não quero dizer que o pensamento, em alguma limitação ou enfraquecimento, ou como alegoria, conserva ainda, talvez, uma espécie de "verdade": assim como, por exemplo, quando se pensa em um artista plástico diante de uma queda d'água, e ele vê, nas formas que saltam ao seu encontro, um jogo artístico e prefigurador da água, com corpos de homens e de animais, máscaras, plantas, falésias, ninfas, grifos e, em geral, com todos os protótipos possíveis: de tal modo que, para ele, a proposição "Tudo é água" estaria confirmada. O pensamento de Tales, ao contrário, tem seu valor — mesmo depois do conhecimento de que é indemonstrável — em pretender ser, em todo caso, não-místico e não-alegórico. Os gregos, entre os quais Tales subitamente destacou tanto, eram o oposto de todos os realistas, pois propriamente só acreditavam na realidade dos homens e dos deuses e consideravam a natureza inteira como que apenas um disfarce, mascaramento e metamorfose desses homens-deuses. O homem era para eles a verdade e o núcleo das coisas, todo o resto apenas aparência e jogo ilusório. Justamente por isso era tão incrivelmente difícil para eles captar os conceitos como conceitos: e, ao inverso dos modernos, entre os quais mesmo o mais pessoal se sublima em abstrações, entre eles o mais abstrato sempre confluía de novo em uma pessoa. Mas Tales dizia: "Não é o homem, mas a água, a realidade das coisas"; ele começa a acreditar na natureza, na medida em que, pelo menos, acredita na água. Como matemático e astrônomo, ele se havia tornado frio e insensível a todo o místico e o alegórico e, se não logrou alcançar a sobriedade da pura proposição "Tudo é um" e se deteve em uma expressão física, ele era, contudo, entre os gregos de seu tempo, uma estranha raridade. Talvez os admiráveis órficos possuíssem a capacidade de captar abstrações e de pensar sem imagens, em um grau ainda superior a ele: mas estes só chegaram a exprimi-lo na forma da alegoria. Também Ferécides de Siros, que está próximo de Tales no tempo e em muitas das concepções físicas, oscila, ao exprimi-las, naquela região intermediária em que o mito se casa com a alegoria: de tal modo que, por exemplo, se aventura a comparar a Terra com um carvalho alado, suspenso no ar com as asas abertas, e que Zeus, depois de sobrepujar Kronos, reveste de um faustoso manto de honra, onde bordou, com sua própria mão, as terras, águas e rios. Contraposto a esse filosofar obscuramente alegórico, que mal se deixa traduzir em imagens visuais, Tales é um mestre criador, que, sem fabulação fantástica, começou a ver a natureza em suas profundezas. Se para isso se serviu, sem dúvida, da ciência e do demonstrável, mas logo saltou por sobre eles, isso é igualmente um caráter típico da cabeça filosófica. A palavra grega que designa o "sábio" se prende, etimologicamente, a sapio, eu saboreio, sapiens, o degustador, sisyphos, o homem do gosto mais apurado; um apurado degustar e distinguir, um significativo discernimento, constitui, pois, segundo a consciência do povo, a arte peculiar do filósofo. Este não é prudente, se chamamos de prudente àquele que, em seus assuntos próprios, sabe descobrir o bem. Aristóteles diz com razão: "Aquilo que Tales e Anaxágoras sabem será chamado de insólito, assombroso, difícil, divino, mas inútil, porque eles não se importavam com os bens humanos". Ao escolher e discriminar assim o insólito, assombroso, difícil, divino, a filosofia marca o limite que a separa da ciência, do mesmo modo que, ao preferir o inútil, marca o limite que a separa da prudência. A ciência, sem essa seleção, sem esse refinamento de gosto, precipita-se sobre tudo o que é possível saber, na cega avidez de querer conhecer a qualquer preço; enquanto o pensar filosófico está sempre no rastro das coisas dignas de serem sabidas, dos conhecimentos importantes e grandes.
Mas o conceito de grandeza é mutável, tanto no domínio moral quanto no estético: assim a filosofia começa por legislar sobre a grandeza, a ela se prende uma doação de nomes. "Isto é grande", diz ela, e com isso eleva o homem acima da avidez cega, desenfreada, de seu impulso ao conhecimento. Pelo conceito de grandeza, ela refreia esse impulso: ainda mais por considerar o conhecimento máximo, da essência e do núcleo das coisas, como alcançável e alcançado. Quando Tales diz: 'Tudo é água", o homem estremece e se ergue do tatear e rastejar vermiformes das ciências isoladas, pressente a solução última das coisas e vence, com esse pressentimento, o acanhamento dos graus inferiores do conhecimento. O filósofo busca ressoar em si mesmo o clangor total do mundo e, de si mesmo, expô-lo em conceitos; enquanto é contemplativo como o artista plástico, compassivo como o religioso, à espreita de fins e causalidades como o homem de ciência, enquanto se sente dilatar-se até a dimensão do macrocosmo, conserva a lucidez para considerar-se friamente como o reflexo do mundo, essa lucidez que tem o artista dramático quando se transforma em outros corpos, fala a partir destes e, contudo, sabe projetar essa transformação para o exterior, em versos escritos. O que é o verso para o poeta, aqui, é para o filósofo o pensar dialético: é deste que ele lança mão para fixar-se em seu enfeitiçamento, para petrificá-lo. E assim como, para o dramaturgo, palavra e verso são apenas o balbucio em uma língua estrangeira, para dizer nela o que viveu e contemplou e que, diretamente, só poderia anunciar pelos gestos e pela música, assim a expressão daquela intuição filosófica profunda pela dialética e pela reflexão científica é, decerto, por um lado, o único meio de comunicar o contemplado, mas um meio raquítico, no fundo uma transposição metafórica, totalmente infiel, em uma esfera e língua diferentes. Assim contemplou Tales a unidade de tudo o que é: e quando quis comunicar-se, falou da água!”. (Fonte: NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica dos Gregos, § 3. Em: Os Pré-Socráticos. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1973. p. 16/18).
A frase famosa de Protágoras – pronunciada no contexto acima, onde homens considerados sábios (Tales consta dentre os Sete Sábios da Grécia) não se entendem, cada um dizendo coisas diferentes, como água e fogo, por exemplo –, e que já recebeu inúmeras interpretações, especialmente aquelas que buscam desqualificar o autor e não compreender seu pensamento, é perfeita. Diz ele:
“O homem é a medida de todas as coisas” (metron).
Nada mais apropriado que, naquele contexto de desentendimento entre os sábios, afirmar que “o homem é a mediada de todas as coisas”, isso por uma simples e fundamental razão: o homem é o único animal que valora!
Protágoras, em um determinado momento, percebeu as opiniões externadas pelos filósofos que o antecederam ou lhe eram contemporâneos, e pode comprovar que eles divergiam completamente nessas opiniões sobre o que seria a origem de todas as coisas, o princípio de tudo. Vejamos:
Para Tales de Mileto: era a água.
Para Anaximandro: era o ápeiron.
Para Anaxímenes: era o ar.
Para Xenófanes: era a terra.
Para Heráclito: era o fogo.
Para Pitágoras: era o número.
Para Empédocles: eram os quatro elementos (água, terra, fogo e ar).
Para Anaxágoras: eram as homeomerias.
Para Demócrito: eram os átomos.
Ora, estes homens eram os sábios, um deles, Tales é um dos Sete Sábios da Grécia, como, então, deveria comportar-se um homem diante de opiniões completa e diametralmente opostas?
Somente restou ao não menos sábio Protágoras chegar à conclusão que chegou! Qual seja, que “o homem é a medida de todas as coisas”.
Giovanni Reali assim explica o único comportamento que era possível a um pensador arguto como Protágoras:
“Dizer que, sem os sofistas, Sócrates e Platão são totalmente impensáveis significa dizer que os sofistas representam algo totalmente novo e, de algum modo, operaram uma revolução com relação aos filósofos da physis: é esta revolução, junto com as razões que a produziram, que agora devemos esclarecer.
Em primeiro lugar, para compreender o surgimento e o desenvolvimento do fenômeno da sofística, é preciso ter presentes os resultados particulares aos quais chegou a especulação naturalista. Estes tinham então chegado ao ponto de se anularem mutuamente: os resultados do eleatismo contradiziam os do heraclitismo; os resultados dos pluralistas contradiziam os dos monistas; ulteriormente, as soluções dos pluralistas se excluíam mutamente, se não nos fundamentos, pelo menos na determinação do pensamento. Parecia, então, que todas as possíveis soluções tinham sido propostas e não eram pensáveis outras: os princípios são um, muitos, infinitos ou até mesmo não existem princípios (eleatas); tudo é móvel, tudo é imóvel; tudo depende de um ordenamento inteligente de uma Mente, tudo deriva de um movimento mecânico; e assim se poderia prosseguir no elenco das antíteses às quais chegara a filosofia da physis. Até a tentativa de alguns pensadores de retomar e voltar a defender, com oportunas correções, o pensamento de um ou outro dos antigos mestres (por exemplo, a tentativa de Hípon de defender Tales, ou a de Diógenes de Apolônia de defender a doutrina do ar de Anaxímenes) demonstra, como vimos acima, que, então, todas as vias estavam batidas e que a pesquisa do princípio de todas as coisas tinha esgotado todas as possibilidades e tocado os próprios limites. Era fatal, portanto, que o pensamento filosófico deixasse de lado a physis, e deslocasse o próprio interesse para outro objetivo. [Osório diz: a encruzilhada do conhecimento e o kairós dos sofistas. A grande sacada de Protágoras!].
O novo objetivo foi, justamente, aquele que os naturalistas descuidaram por completo, ou só marginalmente tocaram, vale dizer, o homem e tudo o que há de tipicamente humano. Diz muito bem Nestle: "[...] para os sofistas o homem e suas criações espirituais estão no centro da reflexão. Também para eles vale aquilo que Cícero' diz de Sócrates: `Ele fez descer a filosofia do céu sobre a terra, introduziu-a nas cidades e nas casas e obrigou-a a refletir sobre a vida e os costumes, sobre o bem e o mal'. Para o homem como ente individual e como membro da sociedade é que se volta a atenção da sofística"'. E por isso compreende-se que os temas dominantes da especulação sofística tenham se tornado a ética, a política, a retórica, a arte, a língua, a religião, a educação, tudo aquilo que nós hoje chamamos de cultura humanista. Com os sofistas, em suma, começa aquele que, com expressão correta, foi chamado de período humanista da filosofia antiga”. (Fonte: Sofistas, Sócrates e Socráticos Menores. Editora Loyola: São Paulo, 2009, p. 25-26).