Sofística
(uma biografia do conhecimento)
32.4 – Quem eram os alunos dos Sofistas?
A todos que pudessem pagá-los, independentemente da classe social. Assim é que com eles estudaram aristocratas, como Alcibíades e Crítias, e outros do povo (em especial, pessoas oriundas daquilo que seria a burguesia nascente). Conclui-se que dentre os alunos existiam dos Sofistas estavam pessoas estranhas à aristocracia pela própria reação de Platão e... Aristófanes, que, temiam, com a especialização de classes concorrentes, a perda do poder por parte da classe às quais os nominados pertenciam.
Nos diz Guthrie:
“O profissionalismo dos sofistas frisa-se pelo fato de que Protágoras tinha duas classes de alunos: jovens de boa família que desejavam entrar na política, e aquele, como certo Antimero de Mende (isto é, não ateniense), que estudava "para fins profissionais (epi techne), para se tornar por sua vez sofista". 24 No Protágoras (313c), Sócrates descreve o sofista como "o vendedor dos bens pelos quais a alma [a mente] é nutrida", e sugere razões pelas quais o jovem devia hesitar em se confiar a isso como um deles: como varejistas de alimentos corporais, eles elogiam suas mercadorias indiscriminadamente sem conhecimento dietético de sua inteireza; diferentes de alimentos, seus produtos entram diretamente na mente, e não se podem guardar em jarros até descobrir o que consumir e como e em que quantidades. Pela época em que Platão escreveu o Sofista (em que Sócrates não tem nenhum papel no argumento principal), eles tinham se tornado simplesmente (entre outras características indesejáveis) "caçadores pagos de jovens ricos". Desconfiança dos sofistas não se restringia a Platão. A ex-plosão de raiva de Anito deve ser verdadeira, assim como também quando o jovem Hipócrates, filho de uma "grande e próspera casa", se enrubece de vergonha ao pensar em se tornar sofista (Prot. 312a). No Górgias (520a), o oponente mais violento de Sócrates, Cálicles os descarta como "caras inúteis", e no FEDRO (257d), Fedro afirma que os políticos mais poderosos e respeitados têm medo de escrever discursos próprios e deixar obras próprias para a posteridade, temendo ser chamados sofistas, foi muito mais gentil ao lidar com os melhores deles como Protágoras, Górgias e Pródico. Uma observação pejorativa sobre sofistas, em conexão com Pródico, é posta nos lábios de Laches, e não de Sócrates (Laches 179d). Xenofonte, num epílogo moral ao seu tratado sobre a caça (e. 13), os censura como mestres de fraude.
["Se a Cynegetica é de Xenofonte, o que alguns duvidaram. Veja Lesky, Hist. Gr. Lit. 621s. Outros sustentaram que a passagem é influenciada pelo Sofista de Platão (Grani, Ethies, 1, 111) e frisaram que ambas foram escritas após a morte da primeira e brilhante geração de sofistas. Assim pode-se presumir, foram Protágoras e Meno, embora sejam Protágoras, Górgias, Hípias e Pródico para Platão os sofistas representativos.]
A atitude do público ateniense era ambivalente, refletindo a situação transitória da vida social e intelectual ateniense. Os sofistas não tinham nenhuma dificuldade de encontrar alunos para pagar suas altas taxas, ou auditórios para suas conferências e exibições públicas. Todavia, alguns dos mais velhos e conservadores [Isso não significa, necessariamente, aristocrático ou oligárquico como oposto a democrático. Anito era democrata eminente. A divisão entre democrata e antidemocrata corta entre bem-nascidos e plebeus. Péricles, que completou a revolução democrática, foi Alcmênide como Clêistenes que a começou. Dr. Ehrenberg o chamou "o democrata aristocrático". Cf. suas observações na p. 65 de sua Soc. and cio. in Gr. and Rome: "A velha educação aristocrática estava fora de contato com as realidades da vida contemporânea, mas era em larga medida a mesma classe dominante que governava o Estado democrático". Cf. também M. A. Levi, Pol. power in the anc. World, 65, 90. [Osório diz: Considerar!] desaprovavam fortemente a eles. Esta desaprovação vincula-se, como Platão mostra, com o seu profissionalismo.” [Osório diz: Só?!] . (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 40-41).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
32.3 – Métodos de ensino dos Sofistas.
Diz Guthrie:
“Conferências públicas ou "exibições" (epideixeis) [Vocabulário sofístico: Epideixesis: conferências públicas ou “exibições”]
Platão narra um encontro, fictício, por certo, na "casa de patrono como Cálias, o homem mais rico de Atenas”.
Pródigo ocupa antigo armazém que Cálias teve que transformar em dormitório devido ao grande número dos que ficavam na casa.
[Também se nossa autoridade for de duvidosa confiabilidade para o fato real, o autor sabia provavelmente que tais ocorrências aconteciam.]
habilidade e descaramento,
...roupa de púrpura. …
[Isócrates comenta sobre o fato de que os primeiros fundadores dos grandes festivais instituíram só os torneios atléticos, e elogia Atenas como uma cidade onde se podem ver "torneios não só de velocidade, força, mas também de discurso e perícia e outras realizações, para os quais se dão recompensas de grande valor" (Paneg. 1ss, 45). Isócrates escreveu o seu discurso na idade de 92 anos, cerca de seis anos depois da morte de Platão, mas cf. a crítica de Crêon dos atenienses em Tucídides (3.38.4, agonothetountes... theathai ton logon).]
[Plutarco, Mal. Hdt. 862, fala de Heródoto lendo suas obras aos atenienses. Tuc. 1.21.1 e 22.4 comenta o efeito de ouvir a obra de logógrafos e ouvir sua própria (Nestle, VMzuL, 260 com n. 41).]
Para Protágoras, qualquer discussão é “batalha verbal”, na qual deve sair vencedor e o outro vencido, em contraste com o ideal expresso de Sócrates da “busca comum”, um ajudando o outro para que ambos possam chegar mais fácil à verdade. Tucídides contrapõe-se aos sofistas quando diz que sua obra não visa a ser "peça de competição para uma só ocasião" mas possessão para todo tempo. Como amiúde, Eurípedes faz suas personagens falar em verdadeiro estilo contemporâneo sofista como quando o arauto de Crêon canta o elogio da monarquia como oposta à democracia e Teseu responde (Sup. 427s): "Uma vez que tu mesmo começaste esta competição, ouve-me; pois foste tu que propuseste uma batalha de palavras". (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 44-45).
Kerferd ensina:
“A principal instrução dos sofistas, contudo, não era dada, com toda a certeza, nem em preleções públicas, nem em debates públicos, mas em classes menores, ou seminários, como o descrito na casa de Cálias quando o jovem Hipócrates vem buscar conhecimentos com Protágoras. Aqui, Hípias estava sentado numa cadeira no pórtico, discursando para um grupo de ouvintes, aparentemente sobre a natureza e questões de astronomia, e respondendo a perguntas. Pródicos está numa despensa convertida em sala de aula, falando em voz alta e retumbante, enquanto Protágoras anda de um lado para outro no pórtico de entrada, acompanhado por toda uma multidão de atenienses e estrangeiros pressurosos à sua disposição. Muitos desses tinham deixado suas cidades para acompanhar Protágoras nas suas viagens; se, nesses casos, a pensão era suprida por Protágoras, isso explicaria por que alguns de seus preços eram tão altos. Certamente parece haver aí certa ênfase na íntima associação do professor com o aluno, numa espécie de viver junto como parte do processo de educação [Osório diz: isso põe por terra o simples pagamento, embora isso seja besteira]. O resultado disso terá sido, naturalmente, que os estudantes ganhavam não só com o íntimo contato com a mente e a personalidade do sofista, mas também com o estímulo intelectual da associação de uns com os outros, num grupo de jovens, todos interessados nos mesmos estudos. Sem dúvida esse era um dos motivos da intensa excitação que podemos suspeitar no jovem Hipócrates ante a perspectiva de entrar para o grupo de estudantes associados a Protágoras; uma excitação tão intensa que ele não pode esperar o tempo normal, mas vai à casa de Sócrates, todo nervoso e agitado com suas emoções, quando Sócrates ainda está na cama [Osório diz: esse comentário põe por terra o de Platão ao dizer que não existia vínculo entre mestre e discípulo! Há, também, aí, uma clara demonstração da importância e influência de Protágoras sobre todos, inclusive o próprio Sócrates que sai da cama para ir ter com ele, mostrando que Protágoras tinha algo a dizer, pois caso fosse um qualquer Sócrates não acompanharia Hipócrates tão cedo da manhã para ir ao encontro de um “velho” conhecido!]. Isso leva, naturalmente, à (2) questão dos métodos de ensino. Primeiro, havia a preleção preparada sobre um determinado tema. Algumas delas eram essencialmente exercícios retóricos sobre um tópico mítico, tais como as obras existentes de Górgias, Helena e Palamedes. Mais diretamente relacionado com o treinamento dos futuros oradores nos tribunais, ou nas assembleias [Osório diz: locais para os quais os estudantes eram ensinados a fazerem uso do que aprendiam], eram os exercícios retóricos do tipo que chegou até nós na coleção das Tetralogias de Antífon — cada uma delas consiste em um conjunto de quatro discursos: discurso do acusador, resposta do defensor, depois um segundo discurso de cada lado. São como que modelos esquemáticos de discurso; a segunda Tetralogia trata o tema já mencionado — a questão da responsabilidade quando um rapaz é acidentalmente atingido por um dardo quando estava como espectador num ginásio. É claro que exemplos de discurso desse tipo eram dados para os estudantes estudarem e imitarem. [Osório diz: este parágrafo expõe mais uma contradição de Platão: se era só pagar, por que o jovem Hipócrates foi se socorrer de Sócrates para “pedir-lhe uma vaga”?].
Cícero, no Brutus (46-47), nos presta mais informações valiosas que extraiu de uma obra perdida de Aristóteles, provavelmente sua coleção de antigos manuais de retórica conhecidos como a Technôn Synagogê:
Protágoras preparava discussões escritas de assuntos importantes, agora chamados lugares-comuns (loci communes). Górgias fazia o mesmo, compondo elogios e invectivas contra determinadas coisas, porque considerava que era especialmente função do orador ser capaz de aumentar o mérito pelo louvor e diminuí-lo de novo pela invectiva. Antífon de Ramnonte tinha composições semelhantes escritas por extenso. [Osório diz: o uso da escrita pelos sofistas!] [Osório diz: foram os sofistas os criadores dos lugares-comuns, e não Aristóteles, como diz o Prof. Tercio]
Não há por que duvidar de que sejam lugares-comuns desse tipo que os alunos de Górgias eram obrigados a aprender de cor (DK 82B14), em vez de discursos inteiros como às vezes se afirma, e é de se supor que seriam, depois, desenvolvidos em exercícios práticos sob a supervisão do mestre [Osório diz: os lugares comuns].
Isso a que Cícero se refere, em latim, como locus é, em grego, o topos ou "lugar"; no seu sentido mais geral é provável que originalmente significasse a posição ou ponto de vista a partir do qual se ataca o oponente ou se defende a própria tese. Outros, contudo, restringem-no a designar simplesmente o lugar onde o orador encontra um argumento necessário. Aristóteles, no seu tratado Tópicos, apresenta uma espécie de cartilha de dialética, mostrando como se pode defender uma tese tomando como pontos de partida premissas apropriadas que já eram geralmente aceitas [Osório diz: Aristóteles sofista!]. Tópicos são, para ele, linhas de argumento, tais como argumentos tirados dos contrários, argumentos tirados de definições e argumentos tirados de enganos. Sua abordagem é formal, e seus tópicos não são os mesmos que os loci communes a que se refere Cícero. Mas a conclusão do Sophistic Elenchi mostra que ele estava bem consciente da existência deles também, e seu Retórica II, 23 dá exemplos, tais como a citação de Eurípides, do Tiestes: "Se os homens têm o hábito de dar crédito a afirmações falsas, deve-se também crer no contrário, que os homens muitas vezes descrêem do que é verdadeiro".
Muitos desses lugares-comuns eram de caráter antitético, e parece que se faziam coleções escritas deles. Protágoras escreveu uma Techné Eristikôn ou Arte de Erística, que era igual aos dois livros conhecidos como Antilogiai ou Antilogikoi, ou semelhante a eles, mas distinta deles, e há boas razões para supor que um dos dois, ou ambos, continham "lugares-comuns" em forma antitética, como sugere o nome, Antilogiai, prontos para ser usados pelos estudantes, ou na vida real. Quantas dessas coleções de passagens pode ter havido, não sabemos. Mas certamente havia outras, e Platão se refere também à prática de Eueno de Paros (DK 80A26), que inventou Insinuação, Louvores Indiretos e, como dizem alguns, Censuras Indiretas, compondo-as em verso, para ajudar a memória, presumivelmente mais como exemplos para os alunos do que para que ele mesmo pudesse se lembrar.
Um outro método de ensino muito usado era o de pergunta e resposta. Este era frequentemente associado a um outro tema, a habilidade de falar de maneira breve. Assim, ambos eram considerados a marca do homem que conhece a verdade sobre as coisas, no tratado conhecido como o Dissoi Logoi 8.1 e 8.13 (DK 90). Em vários dos diálogos de Platão, Sócrates é apresentado fazendo objeções a longos discursos e exigindo respostas breves às perguntas. No Protágoras, ele enfatiza bem que Protágoras é igualmente hábil e à vontade em cada um desses dois métodos de ensino (329b l-5, 334e4-335a3), sendo que poucos eram os que tinham o domínio do segundo método. Exatamente a mesma asserção é feita a respeito dele mesmo, em outro lugar, por Górgias (Gorg. 440cl-8) [Osório diz: e Sócrates nem era sofista <:] e, possivelmente, a respeito de Polo (461d6-462b3). Somos informados, no Fedro (267a6-b9), que ambos, Tísias, o retórico siciliano que tinha ensinado Górgias [Osório diz: professor de Górgias], e o próprio Górgias
compreendiam que probabilidades merecem mais respeito do que as coisas que são verdadeiras, e além disso faziam com que as coisas pequenas parecessem grandes e coisas grandes parecessem pequenas pelo poder da linguagem, e coisas novas parecerem antigas e vice-versa, e descobriram tanto a concisão em argumentos como tratamento muito longo sobre todas as coisas. E, quando Pródicos ouviu isso, riu e disse que ele, e só ele, tinha descoberto o que a arte exige dos discursos — nem longos, nem curtos, mas moderados... Mas estamos esquecendo Hípias? Acho que o homem de Elis também juntaria o seu voto ao de Pródicos. [Osório diz: probabilidade e verdade].
O testemunho dessa passagem é importante por vários, motivos. Mostra que Platão sabia que havia dois métodos reconhecidos de instrução, no período sofista. Mais do que isto, porém, mostra que havia debate sobre os seus respectivos méritos, entre os chamados sofistas. As referências ao poder de mudar o modo como as coisas aparecem, trocando a sua importância, combina claramente com a técnica do argumento sofista. Como se verá abaixo, no seu devido tempo, essa é a técnica de transformar o argumento mais fraco no mais forte. Como vimos, a partir de outro testemunho, antes de citar a passagem de Fedro, o método de falar brevemente estava muito claramente relacionado, por Sócrates, ao método de pergunta e resposta (ver Prot. 329b3-5,334d4-7,335a6, bl-2) — de fato, é de se perguntar como poderia ter sido diferente, sobretudo com um sofista, o menos inclinado, entre todos os homens, a querer falar brevemente, na discussão, e depois ficar calado [Osório diz: Kerferd está dizendo que Sócrates era sofista?]. Conseqüentemente, não é plausível a sugestão de que a brevidade no discurso de Protágoras e Górgias era simplesmente um estilo lacônico, "de pôr uma coisa no menor número possível de palavras", e não uma técnica de investigação. No mínimo, se não era uma técnica de investigação, era certamente uma técnica de argumentação e de ensino [Osório diz: boa defesa dos Sofistas por Kerferd].
Eis um assunto que, para alguns, oferece muita matéria a ser discutida. Pois a técnica em questão é a base do que conhecemos como a tradição socrática em educação; na realidade Diógenes de Laércio recorda a tradição segundo a qual Protágoras foi o primeiro a desenvolver o método socrático de argumentação [Osório diz: o antes veio depois! Não seria que Sócrates desenvolveu o método protagórico?]. O que foi considerado uma tentativa de roubar de Sócrates o crédito por esse feito suscitou, talvez e inevitavelmente, forte sectarismo. É o que vem à tona, muito claramente, na discussão de Henry Sidgwick. A seu ver, se Protágoras tivesse realmente inventado a disputa metodológica de perguntas e respostas curtas, seria "absolutamente incrível” que pudesse jamais ser representado assim como o representa Platão no diálogo que leva o seu nome. Ele estava a pensar que a arte de disputa, mais tarde atribuída aos sofistas em alguns dos diálogos de Platão, tais como o Eutidemo e o sofista, originou-se inteiramente com Sócrates, e que ele é totalmente responsável ao menos pela forma dessa “segunda" espécie de sofística. [Osório diz: Sócrates seria segunda sofística!!!]
[Osório diz: vejam o que diz, segundo Guthrie, o sectário “Henry Sidgwick em 1872, que assim sintetizou a opinião corrente acerca dos sofistas:
Eram uma súcia de charlatães surgida na Grécia no séc. V, ganhando muito bem a vida impondo-se à credulidade popular: professando ensinar a virtude, ensinavam na verdade a arte do discurso fanático [Osório diz: isso depõe contra Platão que, sob o pálio de dizer que a virtude não era passível de ser ensinada, vedada o ensino de qualquer coisa! Ou será que ele dizia que apenas o que é ruim é passível de ser ensinado?], propagando doutrinas práticas imorais. Gravitando em redor de Atenas, o pritaneu da Grécia, Sócrates os encontrou aí e os derrotou, expondo o vazio de sua retórica, revirando de dentro para fora os seus sofismas, e defendendo triunfalmente princípios éticos sadios contra seus sofismas perniciosos”. [p. 16, da obra de Guthrie]
Essa opinião é frequentemente citada com aprovação, seja com ou sem restrições. Que eu saiba, a mais cuidadosa discussão recente dessa questão é a de Norman Gulley. Ele tem consciência, eu diria, de que a opinião de Sidgwick simplesmente não se sustenta, e que os sofistas realmente desenvolveram um método de argumentação por pergunta e resposta. Esta, eu diria, é a única opinião possível com base no testemunho que temos. Mas Gulley se sente obrigado a reforçar a conclusão o mais possível, argumentando da seguinte forma: o procedimento dos sofistas era provavelmente um desenvolvimento bastante tardio, influenciado, na sua formulação, pelo método de exame por perguntas e respostas de Sócrates. É provável que qualquer elemento de questionamento no método de Protágoras fosse um elemento quase incidental, e tivesse uma importância mais dramática do que filosófica. Portanto, conclui ele, seria mais prudente seguir Platão e chamar o método de Sócrates de "dialético" em contraste com o método "erístico" dos sofistas. [Osório diz: quem disse que em filosofia não existe o jeitinho brasileiro?]
O contraste entre os termos "dialética" e "erística" será discutido mais adiante. Quanto ao resto das controvérsias mencionadas acima, simplesmente não há nenhum indício, nada que possa sugerir que o método de Protágoras, e dos outros sofistas, fosse posterior ao de Sócrates. Mas temos motivo para associar o método de Protágoras com a sua doutrina dos Dois Logoi, um oposto ao outro. De fato, Platão, no Sofista, numa passagem a ser discutida logo mais (232b), destaca um aspecto como distintivo de todos os sofistas como tais, a saber, que eles eram Antilogikoi, que opunham um logos a outro. Isto significa que o que estamos chamando de método de Protágoras tem fundamento na própria teorização de Protágoras, e isso certamente sugere que é mais provável que o método seja mesmo dele do que simplesmente de Sócrates. Portanto, a seguinte esquematização do “método de Protágoras" tem considerável plausibilidade, embora seus detalhes vá um pouco além dos testemunhos: (1) um estilo de exposição formal seja na preleção ou no manual, (2) troca oral num pequeno grupo de discussão informal, e (3) a formulação antitética de posições públicas e o estabelecimento de princípios a serem seguidos pelos membros do grupo. O que podemos dizer com certeza é que temos todos os motivos para atribuir a Protágoras o uso de um método tutorial para suplementar exposições esteriotipadas, e que não há razão para supor que isso se tenha originado com Sócrates. [Osório diz: o método socrático é protagórico]
Por isso, para resumir, eu diria que em certo sentido o problema está longe de ser tão importante quanto tem parecido. O método socrático, mesmo que possa ter se originado com Sócrates, não obstante originou-se a partir de dentro do movimento sofista, porque o próprio Sócrates fazia parte desse movimento [Osório diz: Sócrates era sofista]. Uma vez reconhecido que outros sofistas, além de Sócrates usaram, de fato, o método de pergunta e resposta, e isso certamente temos de reconhecer, então o grau de originalidade de Sócrates e o grau em que ele foi influenciado por outros sofistas são, ao mesmo tempo, uma questão sem resposta e também de importância subordinada, sob todo e qualquer ponto de vista que não seja o do sectarismo socrático.” [Osório diz: para o sectarismo socrático tudo é socrático!]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 54-62).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
32.2 – Currículos ensinados pelos Sofistas.
Kerferd ensina:
“Passo, agora, (3) para os currículos ensinados pelos sofistas, e a série de estudos por eles proposta. De vez em quando, no passado, fizeram-se tentativas de argumentar que os sofistas estavam totalmente, ou predominantemente, preocupados com uma única área de estudo e de ensino. E essa preocupação era, então, tida como a marca distintiva de um sofista — a retórica como ideal educacional, a oposição entre natureza e convenção, sucesso político, o ideal de educação em geral, rejeição da ciência física, recusa da religião, a visão humanista do homem como centro do universo, o homem como um personagem trágico do destino [Osório diz: o que ensinavam os sofistas]. Todos esses, cada um por vez, ou em combinação, têm sido sugeridos por diferentes especialistas modernos, em épocas diferentes. As referências reais que temos a respeito do ensino sofista sugerem que ele cobria uma faixa extremamente larga; em todo caso, a questão é em parte complicada pela necessidade de decidir de antemão exatamente que personagens devem ser incluídos e quais devem ser excluídos do título de sofista. Depois há a dificuldade da não-sobrevivência dos escritos sofistas. É claro que eram realmente numerosos, e às vezes se diz que, de modo geral, desapareceram de circulação em apenas algumas décadas de sua produção. Afinal de contas, sugere-se, eles não eram principalmente eruditos e sua obra educacional mais séria era destinada a homens vivos, não a futuros leitores. Assim diz Jaeger, na sua influente obra Paideia (Vol. I, trad. inglesa de 1939, p. 302), que foi citada com aprovação por Untersteiner [Osório diz: somente agora, e com espanto em relação aos dois autores citados, é que se pode ver como estão errados! A busca pelas ditas obras os desmente vergonhosamente!].
[Osório diz: o que ensinavam os sofistas:
a) a retórica como ideal educacional,
b) a oposição entre natureza e convenção,
c) sucesso político,
d) o ideal de educação em geral,
e) rejeição da ciência física,
f) recusa da religião,
g) a visão humanista do homem como centro do universo,
h) o homem como um personagem trágico do destino.
Acerca disso deve-se dizer, como acerca de tantas das afirmações gerais regularmente repetidas sobre os sofistas, que é apenas em parte verdadeiro. Para demonstrá-lo, basta mencionar alguns fatos. Quanto a Protágoras, os manuscritos de Diógenes Laércio dão uma lista de "obras existentes", compreendendo 12 títulos, e a lista original de Diógenes pode ter sido mais longa. É natural supor que essa lista venha de um catálogo de biblioteca, talvez a de Alexandria. Uma outra obra sua parece ter sido arrolada no chamado catálogo Lamprias, de Plutarco. Porfírio, no século III d.C., encontrou, por acaso, uma cópia de uma outra obra e afirma ter resumido seus argumentos (DK 80B2); e temos uma peça de crítica literária de Homero, feita por Protágoras, num fragmento de papiro de Oxyrrhynchus de não antes do século I d.C. (DK 80A30). Por outro lado, é provável que o chamado novo fragmento de Protágoras, publicado em 1968, extraído de um comentário bíblico por Dídimo o Cego, seja simplesmente oriundo de um tipo qualquer de obra doxográfica cética, e não diretamente dos escritos de Protágoras. E isso mesmo provavelmente acontece com a valiosa nova informação sobre Pródicos, encontrada em um outro dos comentários de Dídimo. Mas quanto a Antífon, a nossa principal informação, de fato, vem de duas peças distintas, na série dos Oxyrrhynchus Papiri, o que significa que sua obra principal era conhecida e copiada no Egito. Se Antífon, o sofista, pode ser identificado com Antífon de Ramnonte, temos, naturalmente, além disso, a coleção existente dos discursos conhecidos como as Tetralogias, junto com dois outros discursos. A identificação foi considerada incerta, por Hermógenes, no final do século II d.C., porque o estilo ou, melhor, a forma literária dos escritos do sofista era bem distinta. Isso implicaria que ele tivesse lido um ou mais deles; de fato, uma extensa citação do Da Concórdia foi feita por João Estobeu por volta da metade do século V d.C. Quanto a Górgias, temos os dois remanescentes Encomia e dois sumários do seu Sobre a Natureza; um deles, o de Sexto Empírico, pertence ao final do século II d.C. Jâmblico, por volta de 300 d.C., pôde fazer extensas citações do tratado, que passou a ser conhecido como o Anónimo Jâmblico (DK 89). Um catálogo de Memphis, do século III d.C., preservado num papiro de S. Petersburgo, continha o título de uma obra de Hípias (DK 86B19); e um tratado de Pródicos, Sobre a natureza do homem, parece ter sido conhecido por Galeno, no século II d.C. (DK 84B4). [Osório diz: algumas das obras dos sofistas].
Pelo visto, parece que um número considerável de escritos sobreviveu por um bom tempo. No que os sofistas foram menos afortunados do que outros, entre os pré-socráticos, foi na virtual ausência de relatos doxográficos. Provavelmente a principal razão disso foi a sua rejeição, como pensadores, por Aristóteles [Osório diz: isso foi e é uma suprema contradição, pois mesmo eles “não sendo pensadores”, o dito pensador, Aristóteles, gastou muita tinta para combatê-los!]. Isso significa que foram virtualmente excluídos da série de sínteses encomendadas à escola de Aristóteles, que foi uma importante fonte de informação subsequente. Eles provavelmente foram incluídos na sua síntese de escritos retóricos e esta é pelo menos uma razão pela qual a tradição subsequente acentuou tão pesadamente este aspecto da obra deles. A geral omissão deles na tradição doxográfica, unida à opinião platônica e aristotélica de que seu pensamento e seu ensino eram falsos, explica por que foram, de fato, virtualmente ignorados pela cultura helênica, e por que mesmo essas suas obras que sobreviveram não eram lidas. No período imperial, só estavam preparados para levá-las a sério os membros do chamado Segundo movimento sofista iniciado com o século II d.C. Entretanto, esse foi um movimento que realmente estava mais interessado em linguagem e retórica do que em filosofia. No século III d.C., Flávio Filostratos, membro do círculo intelectual da imperatriz síria Júlia Doma, escreveu seu Vidas dos Sofistas, no qual incluiu Górgias, Protágoras, Pródicos, Polo, Trasímaco, Antífon e Crítias. Mas, na realidade, parece que ele viu apenas as obras dos dois últimos da lista, e seu interesse quase que exclusivamente retórico fez com que não dissesse nada acerca das doutrinas mesmo quando a informação sobre elas lhe era acessível, como por exemplo a doutrina do Homem-medida de Protágoras.
O currículo da educação sofista não começava do nada, - seguia-se ao término do estágio primário. Segundo Esquines, o orador,foi Sólon quem, no início do século VI a.C., tornou compulsório o ensino da leitura e da escrita, em Atenas (Esquines, In Tim. 9-12) [Osório diz: a escrita em Atenas]. Por volta da metade do século V e, provavelmente, mais cedo, havia um sistema bem estabelecido de escolas primárias. Frequentar a escola era o normal para meninos nascidos livres, embora não haja prova de que a freqüência escolar fosse obrigatória. A ampliação da educação para toda a sociedade ateniense que isso implicava não foi popular entre os que olhavam para o passado como para uma época de maior privilégio aristocrático nessas questões [Osório diz: a educação como prejudicial à hegemonia burguesa]. Píndaro (01.II.86-88) opunha aqueles cuja sabedoria vem por natureza (família e nascimento) àqueles que tiveram de aprender [Osório diz: no que “acreditava” também Platão]. Embora não se saiba ao certo a quem ele estava se referindo, pode-se, com razão, tomar isso como um lance na controvérsia Natureza-Educação, que era importante no período sofista (cf. também sua ode Nemeana, III, 41). Se aretê ou excelência, pode ser ensinada, então a mobilidade social é imediatamente possível [Osório diz: eis o pomo da discórdia e a má vontade contra os sofistas]; e é claro que Protágoras estava interessado exatamente nessa controvérsia Natureza-Educação quando escreveu: "ensinar exige ambos, Natureza e Prática" (DK 80B3; cf. B10). [Osório diz: Frase de Protágoras].
Na escola primária, o sistema normal de educação consistia em três partes, cada uma com o seu próprio professor especialista. O paidotribês era responsável pela educação física e pelas atividades esportivas; o citharistês pela música. Em terceiro lugar, o grammatistês ensinava leitura, escrita e gramática e seus alunos tinham de ler e memorizar escritos dos grandes poetas, Homero, Hesíodo e outros, escolhidos por causa da sabedoria moral que continham (cf. Platão, Prot. 325d7-326a4). [Osório diz: os professores e a educação em Atenas]
Esse era o tipo de educação já adquirida pelo estudante que se entregava a um sofista para maior instrução. Não havia um currículo sofista padrão de estudos, como tem sido repetidamente apontado por especialistas modernos. Mas há algum indício a sugerir que também pode não ter havido tanta diversidade como geralmente se supõe. Pois, quando indagado por Sócrates sobre o que o jovem Hipócrates iria aprender com ele, a resposta de Protágoras, dada por Platão (Prot. 318d7-319a2), é esta:
Quando Hipócrates vier a mim, não será tratado como seria se fosse a qualquer outro sofista. Pois os outros causam danos aos que são jovens [Osório diz: disputa entre sofistas! Daí Platão fazer do Sofista Sócrates o sofista diferente de todos os demais]; quando saem dos estudos especializados, eles os pegam outra vez contra a sua vontade e os lançam de novo em estudos especializados, ensinando-lhes cálculos matemáticos, astronomia, geometria, música e literatura — e ao dizer isso, olhou para Hípias —, mas se vier a mim ele não estudará nada mais além daquilo que veio aprender. E o assunto é boa política: em negócios particulares, como governar sua própria família do melhor modo possível; e, nos negócios públicos, como falar e agir mais eficazmente nos negócios da cidade. [Osório diz: o que Protágoras se propunha a ensinar].
Supõe-se, frequentemente, que Protágoras esteja simplesmente ridicularizando um método de instrução que era peculiar a Hípias. Poderia ser, mas não é o que Protágoras diz. Suas palavras são bem claras — o que ele está rejeitando é a abordagem de todos os outros sofistas, todos os que, ele dá a entender, ensinam estudos especializados (318d8 e 9). É verdade que referências, em outro lugar, sugerem que o programa anunciado por Protágoras não era só seu, mas, em certo sentido, representava o que era ensinado por outros sofistas tanto como por ele mesmo (cf. Mênon 91al-b8, Gorg. 520e2-6 Rep. 60Cc7-2, Xen. Mem. 1,2.15). Mas há igualmente prova de que o tipo de conhecimento ensinado por Hípias era aprendido com outros sofistas também. De modo que Protágoras fez um ataque detalhado e aparentemente técnico contra os geômetras (DK 80B7). Uma questão que, sabemos, foi de grande interesse durante todo o período era o problema da quadratura do círculo, que preocupava Anaxágoras (DK 59A38) e que Antífon afirmava ter descoberto como fazer pelo método da exaustão. Temos sorte de ter um relato minucioso de sua proposta, preservado por Simplício (DK 87B13). O método, é claro, está baseado num engano, e Aristóteles podia, com razão, afirmar que ele não está baseado em princípios geométricos sólidos. Não obstante, era uma tentativa de resolver o problema [Osório diz: ninguém condena os “doutores da igreja” por discutirem quantos anjos cabem na cabeça de um alfinete]. Ao próprio Hípias se atribuía a descoberta de uma curva, a quadratrix, usada na tentativa de fazer a quadratura do círculo, e também a trissecção de um ângulo. É natural supor que quando, no Mênon, Sócrates passa a obter respostas de um menino escravo, por meio de um diagrama, sem dúvida desenhado na areia, ele esteja seguindo um método bem conhecido de ilustrar problemas geométricos com desenhos [Osório diz: com isso, não se pode dizer que Sócrates não conhecia física, como se diz para combater Aristófanes em As nuvens]. Que havia discussões geométricas nos círculos sofistas está bem atestado pela observação casual de Sócrates, naquele diálogo (85b4), dizendo que a linha desenhada de canto a canto através de um oblongo é chamada de diagonal pelos sofistas. Como esta é apenas a segunda vez que a palavra diametros, em lugar de "diagonal", é encontrada em grego (a primeira vez é em Aristófanes, As rãs 801), é provável que a palavra fosse um termo técnico relativamente novo e pouco familiar — na verdade, não é impossível que a palavra tivesse, realmente, sido inventada por um dos sofistas. No caso da astronomia, temos uma prova muito forte no Nuvens de Aristófanes. Aí, Pródicos é descrito como um tipo de “sofista de ar superior” (meteorosophistes) e Sócrates é mostrado num palco, balançando-se num tipo de cesto que lhe possibilita ver mais claramente os objetos no céu que ele está ocupado em contemplar. [Osório diz: ninguém questiona a descrição de Pródicos, já a de Sócrates...]
Diz-se, de vez em quando, que os sofistas simplesmente não estavam interessados em especulações físicas. Se excluirmos pensadores como Empédocles, Anaxágoras e Demócrito das fileiras dos sofistas, então é verdade que nenhuma contribuição teórica importante veio do resto. Mas é igualmente claro que eles de fato conversavam regularmente sobre questões físicas. O interesse por questões físicas, tanto nas discussões como nos seus escritos, é de fato atestado por Cícero (DK 84B3) em relação a Pródicos, Trasímaco e Protágoras. Xenofonte procura defender Sócrates e o faz afirmando que Sócrates nem mesmo falava sobre os tópicos discutidos por muitos dos sofistas, a saber, a natureza do universo, como surgiu o cosmo, e as leis essenciais que governam os corpos celestes, argumentando que os que pensavam a respeito dessas questões tinham perdido o juízo (Mem.I,1.11). Aqui Xenofonte está apelando, sem dúvida, para o testemunho do Fédon para defender Sócrates contra a ideia, oriunda de As nuvens, de que ele estava interessado em ciências físicas. Mas ele de fato afirma que Sócrates era mais ou menos o único a evitar tais tópicos [Osório diz: interessante essa defesa contra Aristófanes. Xenofonte é posterior à Platão na escrita, aquí ele se vale do Fédon!]. Sexto Empírico atribui a Protágoras uma doutrina de emanações físicas semelhante à de Empédocles e dos atomistas (DK 80A14), e Êupolis, o poeta cômico, o satirizou por seu interesse por questões físicas (DK 80A11). Górgias também estava interessado na teoria de Empédocles sobre poros e emanações (DK 31A92 e 82B5). Parece que ele teria dito que o sol era uma massa incandescente (DK 82B31) e foi representado, no túmulo de Isócrates, fitando uma esfera astronômica (DK 82A17). De Pródicos se diz que discutiu os quatro elementos identificando-os com deuses e também com o sol e a lua como a fonte da força vital em todas as coisas, qualificando-se, assim, para um lugar ao lado de Empédocles e Heráclito (Epifânio, Adv. Haeres. III, 2.9.21 = Diels, Doxography Graeci, 591). Há, provavelmente, uma referência às suas teorias em Aristófanes, Os pássaros 685ss. Além disso, foi-lhe atribuída, por Galeno, uma opinião particular sobre a natureza do catarro (DK 84B4). [Osório diz: o único sofista a não se interessar com o conhecimento que se derramava ao seu redor era Sócrates!].
É relevante, aqui, a passagem no Sofista de Platão (232b 11-e2), mencionada anteriormente, onde, depois de sugerir que o sofista se caracteriza por ser um antilogikos, o Estrangeiro Eleático pergunta qual é a série de tópicos com os quais essas pessoas se ocupavam, e ele mesmo responde com uma lista: coisas divinas na maioria invisíveis, objetos visíveis na terra e no céu, a vinda à existência e o ser de todas as coisas, leis e todas as questões de política, cada uma das artes (techné), e insiste que tudo isso não era discutido somente por Protágoras, em seus escritos, mas por muitos outros também. [Osório diz: o que estudavam os sofistas].
Isso nos fornece uma lista extensa de tópicos incluindo um título inesperado, coisas divinas. Mas é aqui que se deveria colocar o livro de Protágoras, Sobre os deuses, cujas palavras iniciais nos dão uma aplicação da doutrina dos dois argumentos opostos: "concernente aos deuses não posso vir a conhecer nem como são eles, nem como não são ou que aparência têm"; e também a obra Sobre as coisas no Hades. Pródicos (DK 34B5) discutiu a origem da crença dos homens em deuses em termos naturalistas e psicológicos, e Crítias (DK [71] sustentava que os deuses foram inventados deliberadamente pelos governantes para garantir o bom comportamento de seus súditos. [Osório diz: frases e pensamentos dos sofistas sobre os deuses].
Finalmente, literatura. Aqui temos notícia de Protágoras dizendo (Prot. 338e6-339a3) que, na sua opinião, a maior parte da educação de um homem consiste em ser perito em assunto de versos, isto é, ser capaz de entender, na fala dos poetas, o que foi correta ou incorretamente composto, saber como distingui-los e comentá-los quando solicitado [Osório diz: justamente a repetição de que falará Sócrates]. E prossegue introduzindo uma elaborada discussão de um poema por Simônides; esta, por sua vez, provoca novas análises por Sócrates e Pródicos, e a proposta de uma exposição por Hípias, que é rapidamente recusada por causa de uma reunião presidida por Alcibíades, com a solicitação de que a faça numa outra ocasião. Que a exposição rejeitada de Hípias poderia ter sido enfadonha é sugerido pelas referências às suas epideixis sobre Homero e outros poetas, no Hípias Menor 363 al-c3. A discussão toda, no Protágoras, ocupa mais ou menos um sexto do diálogo completo; e sabemos, por um fragmento de papiro que Protágoras de fato comprazia-se na crítica literária de Homero (DK 80A30). Um pouco mais tarde, Isócrates (XII, 18) conta como certa vez, no Liceu, três ou quatro sofistas, simples e comuns, estavam sentados discutindo poetas, especialmente Hesíodo e Homero. É claro que a prática seguida por Protágoras continuou por muito tempo depois. [Osório diz: Protágoras e a crítica literária].
Os testemunhos citados até aqui indicariam que o contraste entre Protágoras e Hípias pode não ter sido tão grande como é sugerido pela declaração que Platão põe na boca de Protágoas. Essa declaração tem, na verdade, probabilidade de ser essencialmente correta naquilo que realmente diz. Mas há, entre as duas abordagens, uma diferença que, historicamente, é de considerável importância. Protágoras, na sua crítica de Hípias e de outros como ele, está levantando uma questão de relevância ao sugerir que ele, Protágoras, ensinará o que o estudante realmente quer aprender como preparação para a vida que está pretendendo levar. Associada a essa, há uma outra questão também. Heráclito tinha atacado Hesíodo, Pitágoras, Xenófanes e Hecateu, alegando que polimatia ou aprendizagem em muitos assuntos não produzia compreensão (DK 22B40), sem dúvida porque isso não tinha levado os homens a uma compreensão do que ele considerava sua própria especial percepção da natureza do universo. Daí em diante, o valor de polimatia foi uma questão discutida, e encontramos Demócrito dizendo (DK 68B65) que o que é preciso não é polimatia no sentido de aprender muitas coisas mas, antes, no de compreensão de muitas coisas. Essa era a questão entre Protágoras e Hípias, não a da série de coisas que precisamos compreender. É provável que a posição de Protágoras esteja resumida na declaração atribuída a ele (DK 8DB11): educação não brota na alma, a menos que se vá a uma profundidade maior. É possível que isso signifique que não basta ficar no nível dos fenômenos, que são a matéria da polimatia mas que precisamos prosseguir para o que é hoje chamado de estudo em profundidade, numa tentativa de compreender os princípios subjacentes comuns a todos os assuntos que devem ser estudados.” [Osório diz: frase de Protágoras]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 63 a 70, 72, 73).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
32 – O ensino dos sofistas. 32.1 – Organização.
Kerfed ensina:
“Uma vez os honorários pagos ou prometidos, qualquer que fosse em cada caso, o que acontecia quando um estudante começava a frequentar um sofista? Será conveniente distinguir três aspectos: (1) questões de organização, (2) métodos de ensino e (3) currículos, embora, naturalmente, estejam todos interligados.
Um tipo bem distinto de apresentação era a epideixis ou exposição pública. Hípias fazia essas apresentações regularmente nos jogos pan-helênicos, em Olímpia, no recinto sagrado. Ele se dispunha a falar sobre qualquer assunto, de uma lista preparada de antemão, e a responder a quaisquer perguntas (Hipp. Min. 363c7-d4). Parece que isso teria sido uma programação regular lá (Lysias, XXXIII, 2). Górgias se oferecia para falar sobre qualquer assunto no teatro de Atenas (DK 82A1a) e falava também em Olímpia e nos Jogos Píticos, em Delfos (DK 82B7-9). Ocasionalmente, ambos, Hípias e Górgias, adotavam as túnicas púrpuras dos rapsodos, como que para enfatizar a sua continuidade com as funções dos poetas dos tempos antigos (DK 82A9) [Osório diz: sofistas como continuadores dos poetas]. Outras epideixeis eram dadas em praças e prédios públicos em vários lugares de Atenas — no Liceu, por Pródicos (DK 84B8), na "escola de Feidostratos", por Hípias (DK86A9), talvez em um Ginásio por Górgias (Platão, Gorg. 447al-b3). Ainda outras performances epidícticas eram dadas em casas particulares, por exemplo a de Cálias, no caso de Pródicos (DK 84B9).
Uma epideixis era normalmente uma única preleção. Segundo Diógenes Laércio IX, 52 (DK 80A1), Protágoras tinha sido o primeiro a introduzir "debates de argumentos" (logôn agônas), e isso constituiu um dos pontos de partida para a elaborada teoria proposta por Gilbert Ryle, que merece ser mencionada aqui. Segundo Ryle, elas constituíam o que ele chamava de "assembleias erísticas", ou debates públicos entre oradores concorrentes; a seu ver, os primeiros diálogos de Platão eram dramatizações, virtualmente minutas do que se realizara nas assembleias erísticas, e que foram, primeiro, recitados em público, com Platão fazendo a parte de Sócrates. No que concerne a Platão, simplesmente não há prova alguma que sustente essa teoria, e as probabilidades são francamente contrárias. [Osório diz: mesmo Eliano afirmando que ele se dedicava, inicialmente, a versos heróicos. Embora muitos afirmem que os diálogos platônicos eram para ser representados!]
Não é impossível que houvesse, algumas vezes, debates públicos e confrontações desse tipo entre sofistas. Uma prova disso talvez se encontre em Hipócrates, De Natura Hominis 1, onde se lê que quando os mesmos homens se opõem um ao outro (antilegontes), diante dos mesmos ouvintes, nenhum deles é vitorioso sucessivamente três vezes com os seus argumentos, mas ora prevalece um, ora outro, e ora aquele de língua mais desembaraçada diante da multidão. Mas não é certeza que isso se refira a qualquer debate real, visto que o mesmo debate dificilmente se repetiria três vezes publicamente. A referência deve ser simplesmente ao efeito imprevisível e inconcludente de argumentos opostos quando apresentados a sucessivos auditórios [Osório diz: o que dizer dos debates políticos atuais? Mas não apenas os políticos]. A natureza desses "argumentos opostos" é discutida mais abaixo. O que a frase agón logón significa é apenas o tipo de conflito entre argumentos encontrados em todos os casos de antilógica, escritos ou não, em público ou em particular (ver DK Vol. II, 292.8, Platão, Prot. 335a4), tal como foi corretamente compreendido por Guthrie. Se debates públicos formais se realizavam de vez em quando, não parece que eram uma parte importante da atividade sofista. O que é provável ter sido mais frequente era o tipo de debates descritos no Protágoras, de Platão, e ainda outros que eram essencialmente exercícios didáticos, internos à situação de aula. Falaremos mais disso, em breve, quando abordamos os "métodos de ensino".(Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 52-54).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
31 - O que os Sofistas ensinavam e qual a sua finalidade?
Protágoras ensinava a “arte política”, como diz Platão, na sua obra Protágoras:
“Eu segui um caminho inteiramente diferente destes e reconheço que sou um sofista e que educo homens. Já há muitos anos que estou neste ofício (se juntar todos os anos, não há dúvida de que já tenho muitos). Pela idade eu poderia ser pai de todos vós, sem excluir ninguém. Ó jovem, se te associares a mim, ser-te-á possível, logo no dia em que começares a conviver comigo, regressares a casa melhor por causa disso e exactamente o mesmo no dia seguinte; e em cada dia ser-te-á possível progredires para melhor. Os outros tratam mal os jovens. Tendo estes fugido das ciências, os seus mestres reconduzem-nos às ciências contra a sua vontade, ensinando-lhes Cálculo, Astronomia, Geometria e Música. (E, ao mesmo tempo lançava o olhar para Hípias). Pelo contrário, o que vier até mim não aprenderá outra coisa senão o que quer. Aquilo que aprende é a prudência nos assuntos domésticos, a fim de administrar da melhor maneira a sua própria casa, e a prudência nos assuntos da cidade, para que seja o mais capaz quer no plano das ações quer no das palavras”. Sócrates acrescenta: “Parece-me que falas da arte política e prometes tornar os homens bons cidadãos”. E Protágoras conclui: “É pois esse mesmo, ó Sócrates, o compromisso que assumo”. Sócrates retoma a palavra dizendo: “Ao reivindicares publicamente, diante de todos os Gregos, o nome de sofista, apresentaste-te como mestre de educação e de excelência e foste o primeiro a julgar-se merecedor de pagamento por isso”. [317 b e seguintes]”.
Já Górgias afirmava quanto ao seu ensino:
“Sócrates: É indiscutível que respondeste, mas ninguém indagou a respeito da qualidade de sua arte, mas simplesmente qual era essa arte e com que nome devemos designar Górgias. Portanto, tal como Querefonte formulou suas primeiras questões a ti e o respondeste de uma forma admiravelmente breve, deves de modo idêntico indicar que arte é essa e como devemos chamar Górgias. Ou melhor, Górgias, podes nos informar tu mesmo em que arte és versado e, daí, como devemos chamá-lo?
Górgias: É a retórica, Sócrates.
Sócrates: Portanto, cabe-nos chamar-te de orador?
Górgías: Sim, e um bom orador, Sócrates, se quiseres me chamar do que ¡ª para empregar a frase de Homero ¡ª gabo-me de ser.
Sócrates: Claro que quero.
Górgias: Então chama-me assim.
Sócrates: E estaríamos facultados a declarar que és capaz de tornar a outros como tu, isto é, oradores?
Górgias: Sim, mesmo porque é o que professo fazer, não só aqui como, inclusive, em outros lugares”. (Fonte: Platão, Protágoras, Edipro, Bauro, tradução de Edson Bini, 2007, p. 44/45).
Os demais Sofistas seguiam, em linhas gerais, numa dessas duas profícuas trilhas.
Diz Guthrie:
“d) Interesses e perspectiva geral
É exagero dizer, como temos dito amiúde, que os sofistas nada tinham em comum exceto o fato de serem mestres profissionais, nenhum campo comum nos assuntos que ensinavam ou na mentalidade que estes produziam. Um assunto pelo menos todos eles praticavam e ensinavam em comum: a retórica ou a arte do logos.
[T. Gomperz: "É ilegítimo, se não absurdo, falar de mente sofista, moralidade sofista, ceticismo sofista e assim por diante". (Até o mero fato de ser mestres profissionais pode ter um efeito: alguns pelo menos estariam dispostos a sustentar que existe tal coisa como uma mente magistral ou uma mente empavoada) (Gr. Th. 1, 415). Para semelhante ponto de vista veja H. Gomperz, Soph. u. Rh. 39.]
[Veja as provas coligidas por E. L. Harrison, Phoenix, 1964, 190ss, mi. 41 e 42. A alegação de Schmid (Gesch. gr. Lit. 1.3.1, 56s) de que a retórica era desconhecida entre os primeiros sofistas e introduz Górgias no último terço do século, não é produzida pelas provas. [Osório diz: de que sofistas fala ele? Todos os sábios eram sofistas. Talvez ele se refira ao cenário: Atenas não democrática]]
”A palavra é déspota poderoso”, como Górgias disse
Quando ao jovem Hipócrates se perguntou o que ele pensava ser o sofista, respondeu: “Mestre na arte de fazer oradores hábeis”.
O uso correto da linguagem em geral [Para as technai escritas veja Platão, Fedr. 271c hoi nyn graphontes... technas logon e 266d. Isócrates, In Soph. 19, fala "daqueles de uma primeira geração" que escreveram tas kaloumenas technas. A orthoepeia de Protágoras é mencionada no mesmo contexto por Platão (267c; v. p. 192, n. 58, abaixo), e a lista de suas obras em D. L. inclui techne epistikon. Segundo Platão (Soph. 232d) ele publicou séries de argumentos para capacitar o homem a sustentar o seu próprio ponto de vista contra peritos em diversas artes e capacidades. Ele também escreveu sobre gramática. Para Górgias veja Platão, Fedr. 261b-c. Ele technas rhetorikas protos exeure, Diod. 12. 53. 2 (DK, A4). D. L. 8.59 fala dele como hyperechonta en rhetorike kai technen apoleloipota, e Quint. 3.1.8 (A 14) coloca-o entre os artium scriptores. Trasímaco escreveu uma techne retórica (Suda, Ai) que parece ter sido conhecida como a Megale Techne (B 3). Para algo de seu conteúdo veja Fedr. 276c com DK, B 6. Pródico e Hípias também são mencionados na recensão de Platão dos bíblia ta peri logon technes gegrammena (Fedr. 266d ss), e a perícia de Hípias nas minúcias do discurso em Hip. Min. 368d. A paixão de Pródico de distinguir entre sinônimos aparentes é referida com freqüência por Platão, por ex., Prot. 337c, Eutid. 277c (peri onomaton orthotetos), Laches 197d (onomata diairein). Mais sobre isto, abaixo, pp. 207s].
Todos menos Górgias admitiriam ser mestres de arete (da qual, tal como por eles entendida, a arte do discurso persuasivo era pré-requisito), e pode-se suspeitar que a recusa de Górgias era um pouco insincera (cf. pp. 252s abaixo): [Osório diz: E a de Sócrates também, quando dizia que nada sabia, por exemplo?]
[Bluck frisou que arete segundo Górgias se diz ser aí "a capacidade de governar os homens", que é precisamente o que o próprio Górgias, em Górgias (425d), alegra ministrar pela arte da persuasão (sobre Meno 73d).].
Hípias (…) astronomia (de que Protágoras zombava como inútil para a vida prática).
Foi dito dos sofistas que eram herdeiros tanto dos filósofos pré-socráticos como dos poetas. W. Schmidt afirmou para Protágoras uma dívida para com Heráclito, Anaxágoras, os físicos de Mileto e Xenofonte, e lhe dá o crédito de tornar as conclusões paradoxais de Heráclito e Parmênides geralmente correntes em círculos instruídos.
rejeição da causação divina.
No Protágoras de Platão (318e, uma fonte melhor), Protágoras descarta interesse por todos estes estudos não-práticos.
Hippias Major (285b) Sócrates fala-lhe das "estrelas e outros fenômenos celestes, nos quais é perito"; [Osório diz: mas não se diz que Sócrates não se interessava por tais assuntos? Então como é que ele sabe discuti-los?]
Um ramo da filosofia pré-socrática exerceu profunda influência na sofistica como também em todo outro pensamento grego: o monismo extremado de Parmênides e seus seguidores. Seu desafio à evidencia dos sentidos, e rejeição de todo o mundo sensível como irreal, inspirou reação violenta nas mentes empíricas e praticas dos sofistas, que se lhe opuseram em nome do senso comum. Protágoras, diz-nos, afastou-se do ensino político da arete para escrever uma obra sobre o Ser que se dirigia contra “os que sustentam a unidade do Ser” e e Górgias em seu Sobre o não-ser mostrou sua mestria no argumento eleático fazendo-o voltar contra seus inventores. Todavia os sofistas não podiam, não mais do que qualquer outro pretendente a pensamento sério, eliminar o dilema eleático, que forçava uma escolha entre o ser e o tornar-se, a estabilidade e o fluxo, a realidade e a aparência. Uma vez que não mais era possível tê-los a ambos, os sofistas abandonaram a ideia de uma realidade permanente atrás das aparências, em favor de fenomenismo, relativismo e subjetivismo extremos. [Osório diz:!!!]
Os sofistas eram, com efeito, individualistas, e até rivais, competindo entre si por favor público. Não se pode, pois, falar deles como escola. De outro lado, pretender que filosoficamente nada tinham em comum é ir longe. Partilhavam da perspectiva filosófica geral descrita na introdução sob o nome de empirismo, e com este ia ceticismo comum sobre a possibilidade de conhecimento certo, em razão tanto da inadequação e falibilidade de nossas faculdades como da ausência de uma realidade estável para ser conhecida. Todos igualmente acreditavam na antítese entre natureza e convenção. Podem diferir em sua avaliação do valor relativo de uma, mas nenhum deles sustentaria que leis, costumes e crenças religiosos humanos eram inabaláveis porque enraizados numa ordem natural imutável. Estas crenças — ou falta de crenças — eram partilhadas por outros que não eram sofistas profissionais, mas caíram sob sua influência: Tucídides, o historiador; Eurípedes, o poeta trágico; Crítias, o aristocrata, que também escreveu dramas, mas foi um dos mais violentos dos Trinta Tiranos de 404 a.C. Nesta aplicação mais ampla, é perfeitamente justificável falar de mentalidade sofista ou de movimento sofista no pensamento. [Osório diz: este parágrafo está muito bom!]
[Quando se diz acima “todos igualmente”: Isso está expressamente atestado para Protágoras, Górgias, Hípias e Antífon, e pode-se afirmar com confiança de Pródico, que partilhava da idéia de Protágoras acerca das metas práticas de sua instrução (Platão, Rep. 600c-d). Pode-se mostrar em sofistas posteriores como Alcidamas e Licófron, e seria difícil produzir claro exemplo contrário.].
Os sofistas, com sua instrução formal auxiliada pelos escritos e oratória pública, eram os motores principais do que se convencionou chamar de Idade do Iluminismo na Grécia.
Este termo, tomado do alemão, pode-se usar sem muito receio para significar fase necessária de transição no pensamento de qualquer nação que produz filósofos e filosofias próprios. Assim escreveu Zeller (ZN, 1432): "Da mesma forma que nós, alemães, dificilmente teríamos um Kant sem a Idade do Iluminismo, assim também os gregos dificilmente teriam um Sócrates ou uma filosofia socrática sem a sofistica" [Burnet queixa-se da influência que esta "analogia superficial" tivera sobre escritores alemães, e alega que se há algum paralelo ocorre muito antes, e Xenófanes e não Protágoras é seu apóstolo. Mas Xenófanes foi antes a primeira andorinha que não faz verão; a idade do iluminismo sofistica significa não só Górgias, Hípias, Antífon, Crítias, Eurípedes e muitos outros. A seguinte observação de Burnet, de que "não é quanto à religião, mas quanto à ciência que Protágoras e Górgias assumem atitude negativa", é observação estranha para fazer de homem que declarou que ele não sabia se havia ou não deuses. Como regra geral, tais advertências contra analogias fáceis são salutares, mas [p. 49] as semelhanças entre o iluminismo e a era dos sofistas são muitas e surpreendentes (Th. to P. 109). O relacionamento filósofos e seus contemporâneos com seus predecessores no mundo antigo, tanto gregos como romanos, é discutido por Peter Gay em The Enlightenment (1967), 72-126 (capítulo intitulado "lhe first lightenment").].
Que Sócrates e Platão nunca teriam existido sem os sofistas (p. 49) é repetido por Jaeger (Paid. I. 288), e isto em si compensaria estudá-los ainda que não fossem (como alguns deles são) importantes figuras por si mesmos.
Protágoras de Abdera, Pródico de Cos e Hípias de Elis. Estes últimos, além de interessados por educação em seu sentido mais amplo [Osório diz: mas Platão não diz que eles não visavam à verdade?], frisaram o uso correto da linguagem (orthoepeia, orthotes onomaton) e assim foram levados de seu interesse por falar em público a iniciar os estudos de filosofia e gramática, etimologia e as distinções sinonímicas. [Osório diz: áreas de estudos dos sofistas]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 47-50).
Ensina Guthrie:
“A História de Zeller em sua primeira edição (1844-52) talvez tenha sido a última a sustentar sem desafios a idéia de que o ensino, até o do melhor dos sofistas, visava afinal a reduzir tudo a assunto de preferência e preconceito individual, convertendo a filosofia da busca da verdade em meio de satisfazer às exigências do egoísmo e da vaidade; e que a única maneira para evadir foi a de Sócrates, que buscou reobter pela razão fundamento mais profundo e mais seguro para o conhecimento e a moralidade (ZN, 1439). Esta visão tem sido sustentada de forma particularmente forte na Alemanha, a que Grote se opôs no vigoroso capítulo lXVII de sua História da Grécia. Os historiadores alemães da filosofia, queixa-se ele, "erigem um demônio chamado 'A Sofística', que afirmam ter envenenado e desmoralizado, por ensinamentos corruptores, o caráter moral dos atenienses". Grote era utilitarista e democrata, numa época em que, ao descrever o surgimento da democracia ateniense, viu-se constrangido a observar que "acontece que a democracia é intragável para a maioria dos leitores modernos". Sua defesa dos sofistas foi saudada como "descoberta histórica do mais alto alcance" por Henry Sidgwick em 1872, que assim sintetizou a opinião corrente acerca dos sofistas:
Eram uma súcia de charlatães surgida na Grécia no séc. V, ganhando muito bem a vida impondo-se à credulidade popular: professando ensinar a virtude, ensinavam na verdade a arte do discurso fanático [Osório diz: isso depõe contra Platão que, sob o pálio de dizer que a virtude não era passível de ser ensinada, vedada o ensino de qualquer coisa! Ou será que ele dizia que apenas o que é ruim é passível de ser ensinado?], propagando doutrinas práticas imorais. Gravitando em redor de Atenas, o pritaneu da Grécia, Sócrates os encontrou aí e os derrotou, expondo o vazio de sua retórica, revirando de dentro para fora os seus sofismas, e defendendo triunfalmente princípios éticos sadios contra seus sofismas perniciosos.
Falei como se as circunstâncias políticas e as ações públicas dos Estados gregos originassem as teorias morais arreligiosas e utilitárias dos pensadores e mestres, mas é mais provável que prática e teoria agissem e reagissem mutuamente entre si. Sem dúvida, os atenienses não precisavam de um Trasímaco ou de um Cálicles para ensinar-lhes como lidar com uma ilha recalcitrante, mas os discursos que Tucídides põe nos lábios dos porta-vozes atenienses, no que ele tipifica um debate com a assembleia meliana, trazem marcas inconfundíveis de ensino sofista. Péricles era amigo de Protágoras, e quando Górgias apareceu diante dos atenienses em 427, os novos floreios da oratória com que ele pleiteou a causa de sua terra natal, a Sicília, suscitaram admiração e surpresa (p. 169, n. 11, abaixo). Se os sofistas foram produto de seu tempo, por sua vez também ajudaram a cristalizar suas idéias. Mas seu ensino pelo menos caiu em terreno bem preparado. Ao ver Platão, não eram eles que deviam ser declarados culpados por infeccionar os jovens com pensamentos perniciosos, pois nada mais faziam do que refletir os prazeres e as paixões da democracia existente:
Cada um destes mestres profissionais, que o povo chama de sofistas e considera seus rivais na arte da educação, não ensina, com efeito, nada mais do que as crenças do povo expressas por ele mesmo em suas assembléias. É isso que afirma como sua sabedoria.
A preocupação parece ter-se voltado para a espécie de assuntos que os sofistas professavam ensinar, especialmente a arete. Protágoras, interrogado sobre o que Hipócrates aprenderá dele, replica (Prot. 318e): "O cuidado adequado de seus próprios família, também negócios,Vala que possa administrar melhor sua e à o cuidado dos negócios do Estado, para se tornar poder real na cidade quer como orador, quer como homem de ação". Em breve, diz Sócrates, a arte da cidadania, e Protágoras enfaticamente concorda. Embora alguns deles ensinassem muitas outras também, tudo inclusive avanço político em seu currículo, e a chave para este, na Atenas democrática, era o poder do discurso persuasivo [De modo semelhante nas Nuvens (v. 432) Sócrates, que é aí caricaturado entre outras coisas um sofista profissional (cf. 98 argyrion en tis dido), assegura a Estré—p-Ma ~e.que`p.r sua instrução en to demo gnomas oudeis nikesei pleionas e sy. Em Górg. 520e Sócrates sugere uma razão pela qual ensinar esta espécie de coisa não era visto com bons olhos.]. Górgias concentrou-se de fato só na retórica recusando-se a ser inserido entre os mestres de arete, pois sustentava que a retórica era a arte-mestra a que todas as outras devem acatar [Gretes didaskaloi era o modo regular de Platão se referir aos sofistas (Dodds, Górgias, 366). Para Górgias veja Meno 95c., Górg. 456-e, especialmente ou gar estin peri hotou ouk an pithanoteron thanoteron eipoi ho retorikos e allos hostisoun ton demiourgon en plethei. Górgias até admite que seus alunos aprenderão dele os princípios do certo e do errado "se acontece que já não o sabem" (460a), mas sustentando ao mesmo tempo que o mestre não é o responsável pelo uso feito de seu ensino [Osório diz: esta lição somente vale, segundo os fanáticos, quando aplicada a Sócrates, se os alunos forem dos sofistas...]. Para a correção de incluir Górgias entre os sofistas veja agora E. L. Harrison em Phoenix, 1964 (contra Raeder e Dodds).]. [Osório diz: Por ser seu igual, Platão não o queria sofista? Vide nota 22, p. 39]
Ora, "ensinar a arte da política e empreender fazer dos homens bons cidadãos" (Prot. 319a) era o que precisamente em Atenas se considerava o campo especial do amador e do cavalheiro. Todo ateniense da alta classe devia entender a conduta adequada dos negócios por uma espécie de i finto herdado de seus antepassados, e estar preparado para transmiti-lo aos filhos. Até Protágoras admitia isso, embora pretendendo que ainda deixava espaço para sua arte pedagógica como suplemento. [Osório diz: Instinto nada! Exemplo e meios para tal]
Na passagem do Meno, a que já se referiu, Sócrates sugere inocentemente a Anito, importante líder democrático que se tornou seu principal acusador, que os sofistas eram as pessoas adequadas para instilar no jovem a sophia que o adequará para administrar o Estado, governar a cidade, e em geral demonstrar o savoir-faire próprio do cavalheiro. Quando Anito os injuria como ameaça para a sociedade, e Sócrates pergunta a quem, então, na sua opinião, o jovem deve se dirigir para tal treinamento, ele replica que não há nenhuma necessidade de mencionar indivíduos particulares, pois "todo cavalheiro decente ateniense que lhe acontecer encontrar, faria dele melhor homem do que os sofistas poderiam fazer". [Osório diz: Na democracia, nem todos são democratas, nem seus líderes!]
Havia, como vimos, uma arte que todos os sofistas ensinavam, a saber, a retórica, e uma posição epistemológica de que todos partilhavam, a saber, um ceticismo segundo o qual o conhecimento só podia ser relativo ao sujeito que percebe. Os dois estavam mais diretamente conexos do que se podia pensar. A retórica não desempenha o papel em nossas vidas que desempenhou na Grécia antiga. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 16 e 41-42),
Kerferd ensina:
“Estes dois aspectos da democracia pericleana foram, sem dúvida, importantes no desenvolvimento de uma demanda pelos serviços dos sofistas. Mas estaremos provavelmente certos se pusermos maior ênfase no segundo. O que "os sofistas estavam aptos a oferecer não era, de forma alguma, uma contribuição para a educação das massas. Eles ofereciam um produto caro, valiosíssimo para os que estavam buscando fazer carreira na política e na vida pública em geral, isto é, uma espécie de educação secundária seletiva, em continuação à da instrução básica recebida na escola, em linguagem e literatura (Grammatikê e Mausikê), aritmética (Logistikê) e atletismo (Gymnastik) — ver, por exemplo, Platão, Prot. 318el; Xenofonte, Constituição dos espartanos, II, 1. Como a educação da escola elementar se completava normalmente no ponto em que o menino deixava de ser criança (Pais) para tornar-se um adolescente ou um jovem (Meirakion) (ver Platão, Laques 179a5-7; Xenofonte, Const. dos espartanos III, I), e visto que se tornar um Meirakion era equacionado com a idade da puberdade, tradicionalmente fixada aos 14 anos (Aristóteles, HA VII. 581al2ss.), podemos dizer, em termos modernos, se quisermos, que os sofistas ministravam uma educação seletiva para a idade de 14 anos em diante.
Essa educação, embora variasse quanto ao conteúdo, parece ter sido sempre, em boa parte, orientada para a carreira. Por volta do início da Guerra do Peloponeso, se é que podemos acreditar em Platão no diálogo Protágoros, estava já suficientemente estabelecida uma outra função — a de treinar mais professores que deveriam, por sua vez, tornar-se sofistas profissionais (Prot. 312a-b). Mas, como a finalidade principal continuava sendo a de preparar homens para uma carreira na política, não é de surpreender que uma parte essencial da educação oferecida fosse treinar na arte do discurso persuasivo. Sobre isso, observou muito bem J. B. Bury:
As instituições de uma cidade democrática grega pressupunham, no cidadão comum, a faculdade de falar em público, o que era indispensável para quem quer que ambicionasse uma carreira política. Um homem que fosse arrastado ao tribunal por seus inimigos e não soubesse como falar era como um civil desarmado atacado por soldados. O poder de expressar ideias claramente e de maneira a persuadir seus ouvintes era uma arte a ser aprendida e ensinada. Mas não bastava adquirir domínio do vocabulário; era necessário aprender como argumentar, e exercitar-se na discussão de questões políticas e éticas. Havia uma procura de educação superior. [Osório diz: por que os sofistas eram necessários às circunstâncias e necessidades da Atenas do século V]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 34-36).
Continua Kerferd:
“Passo, agora, (3) para os currículos ensinados pelos sofistas, e a série de estudos por eles proposta. De vez em quando, no passado, fizeram-se tentativas de argumentar que os sofistas estavam totalmente, ou predominantemente, preocupados com uma única área de estudo e de ensino. E essa preocupação era, então, tida como a marca distintiva de um sofista — a retórica como ideal educacional, a oposição entre natureza e convenção, sucesso político, o ideal de educação em geral, rejeição da ciência física, recusa da religião, a visão humanista do homem como centro do universo, o homem como um personagem trágico do destino [Osório diz: o que ensinavam os sofistas]. Todos esses, cada um por vez, ou em combinação, têm sido sugeridos por diferentes especialistas modernos, em épocas diferentes. As referências reais que temos a respeito do ensino sofista sugerem que ele cobria uma faixa extremamente larga; em todo caso, a questão é em parte complicada pela necessidade de decidir de antemão exatamente que personagens devem ser incluídos e quais devem ser excluídos do título de sofista. Depois há a dificuldade da não-sobrevivência dos escritos sofistas. É claro que eram realmente numerosos, e às vezes se diz que, de modo geral, desapareceram de circulação em apenas algumas décadas de sua produção. Afinal de contas, sugere-se, eles não eram principalmente eruditos e sua obra educacional mais séria era destinada a homens vivos, não a futuros leitores. Assim diz Jaeger, na sua influente obra Paideia (Vol. I, trad. inglesa de 1939, p. 302), que foi citada com aprovação por Untersteiner.” [Osório diz: somente agora, e com espanto em relação aos dois autores citados, é que se pode ver como estão errados! A busca pelas ditas obras os desmente vergonhosamente!].
[Osório diz: o que ensinavam os sofistas:
a) a retórica como ideal educacional,
b) a oposição entre natureza e convenção,
c) sucesso político,
d) o ideal de educação em geral,
e) rejeição da ciência física,
f) recusa da religião,
g) a visão humanista do homem como centro do universo,
h) o homem como um personagem trágico do destino.
(Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 63).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
30 – Matérias estudadas pelos Sofistas.
O que veio acima é uma pregustação dos tópicos, de cálido interesse nos tempos em que Sócrates vivia, que serão examinados em capítulos posteriores: o status das leis e dos princípios morais, a teoria do progresso do homem da selvageria para a civilização substituindo a teoria de degeneração de uma idade áurea passada, a ideia do pacto social, teorias subjetivas do conhecimento, ateísmo e agnosticismo, hedonismo e utilitarismo, a unidade do gênero humano, escravidão e igualdade, a natureza da arete, a importância da retórica e o estudo da linguagem.(p. 29) [Osório diz: o que propunham os sofistas!].
São eles:
(i) o status das leis e dos princípios morais,
(ii) a teoria do progresso do homem da selvageria para a civilização substituindo a teoria de degeneração de uma idade áurea passada,
(iii) a ideia do pacto social,
(iv) teorias subjetivas do conhecimento,
(v) ateísmo e agnosticismo,
(vi) hedonismo e utilitarismo,
(vii) a unidade do gênero humano,
(viii) escravidão e igualdade,
(ix) a natureza da arete,
(x) a importância da retórica,
(xi) o estudo da linguagem.
“Que tinha algo de que se gabar também é certo. Platão fala de sua memória prodigiosa, pela qual podia reter uma lista de cinquenta nomes depois de uma só lida, e sua extraordinária versatilidade. Bem o pôde chamar Xenofonte de polímata. Era evidentemente alguém que absorvia aprendizado fácil e rapidamente, o que exigia dons altamente intelectuais em alguns aspectos. Assuntos que estava preparado para ensinar incluíam astronomia, geometria, aritmética, gramática, ritmo, música, genealogia, mitologia e história, inclusive história da filosofia, e matemática. Também escreveu declamações sobre os poetas.” [Osório diz: temas sobre os quais estudaram os sofistas]
[Osório diz: existem tais homens na atualidade? Existem uns com mente fotográfica, como no filme “Rain man”, mas tem problemas mentais gravíssimos! O que parecia não ser o caso de Hípias]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 29 e 261).
Kerferd ensina:
“A modernidade da extensão dos problemas formulados e discutidos pelos sofistas no seu ensino é realmente espantosa e a lista que se segue fala por si mesma. Primeiro, problemas filosóficos na teoria do conhecimento e da percepção — em que grau as percepções sensíveis devem ser consideradas infalíveis e incorrigíveis, e os problemas decorrentes nesse caso. A natureza da verdade e, acima de tudo, a relação entre o que parece ser e o que é real ou verdadeiro. A relação entre linguagem, pensamento e realidade. Depois, a sociologia do conhecimento, que reclama por investigação, porque muito do que supomos conhecer parece ser socialmente, na verdade etnicamente, condicionado. Isso abriu, pela primeira vez, o caminho para a possibilidade de uma abordagem genuinamente histórica da compreensão da cultura humana, sobretudo mediante o conceito do que foi chamado "antiprimitivismo", isto é, a rejeição da visão de que as coisas eram muito melhores no passado distante, em favor da crença no progresso e da idéia de um constante desenvolvimento na história dos seres humanos. O problema de se alcançar qualquer conhecimento a respeito dos deuses, e a possibilidade de que os deuses existam apenas em nossas mentes, ou até que sejam invenções humanas necessárias para servir às necessidades sociais. Os problemas teóricos e práticos da vida em sociedade, sobretudo nas democracias e sua doutrina implícita de que pelo menos sob alguns aspectos todos os homens são ou devem ser iguais. O que é justiça? Qual deveria ser a atitude dos indivíduos quanto aos valores impostos por outros, sobretudo numa sociedade organizada que requer obediência às leis e ao Estado? O problema do castigo. Natureza e finalidade da educação e o papel dos professores na sociedade. As ruinosas implicações da doutrina segundo a qual virtude pode ser ensinada, o que é apenas uma maneira de expressar, em linguagem fora de moda, o que queremos dizer quando afirmamos que pela educação as pessoas podem mudar a sua situação na sociedade. Isso, por sua vez, levanta de forma aguda a questão do que deve ser ensinado, por quem e a quem deve ser ensinado. O efeito de tudo isso na geração mais jovem em relação à mais velha. Como conseqüência de tudo isso, dois temas dominantes — a necessidade de aceitar o relativismo nos valores e noutras coisas, sem reduzir tudo ao subjetivismo, e a crença de que não há área da vida humana, ou do mundo como um todo, que seja imune à compreensão alcançada por meio do debate racional.” [Osório diz: Temas estudados pelos sofistas] (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 10 a 12).
É ainda o mesmo autor quem expõe:
“a) problemas filosóficos na teoria do conhecimento e da percepção — em que grau as percepções sensíveis devem ser consideradas infalíveis e incorrigíveis, e os problemas decorrentes nesse caso.
b) A natureza da verdade e, acima de tudo, a relação entre o que parece ser e o que é real ou verdadeiro.
c) A relação entre linguagem, pensamento e realidade.
d) Depois, a sociologia do conhecimento, que reclama por investigação, porque muito do que supomos conhecer parece ser socialmente, na verdade etnicamente, condicionado. Isso abriu, pela primeira vez, o caminho para a possibilidade de uma abordagem genuinamente histórica da compreensão da cultura humana, sobretudo mediante o conceito do que foi chamado "antiprimitivismo", isto é, a rejeição da visão de que as coisas eram muito melhores no passado distante, em favor da crença no progresso e da idéia de um constante desenvolvimento na história dos seres humanos.
e) O problema de se alcançar qualquer conhecimento a respeito dos deuses, e a possibilidade de que os deuses existam apenas em nossas mentes, ou até que sejam invenções humanas necessárias para servir às necessidades sociais.
f) Os problemas teóricos e práticos da vida em sociedade, sobretudo nas democracias e sua doutrina implícita de que pelo menos sob alguns aspectos todos os homens são ou devem ser iguais.
g) O que é justiça?
h) Qual deveria ser a atitude dos indivíduos quanto aos valores impostos por outros, sobretudo numa sociedade organizada que requer obediência às leis e ao Estado?
i) O problema do castigo.
j) Natureza e finalidade da educação e o papel dos professores na sociedade.
l) As ruinosas implicações da doutrina segundo a qual virtude pode ser ensinada, o que é apenas uma maneira de expressar, em linguagem fora de moda, o que queremos dizer quando afirmamos que pela educação as pessoas podem mudar a sua situação na sociedade.
m) Isso, por sua vez, levanta de forma aguda a questão do que deve ser ensinado, por quem e a quem deve ser ensinado.
n) O efeito de tudo isso na geração mais jovem em relação à mais velha.
o) Como consequência de tudo isso, dois temas dominantes — a necessidade de aceitar o relativismo nos valores e noutras coisas, sem reduzir tudo ao subjetivismo,
p) e a crença de que não há área da vida humana, ou do mundo como um todo, que seja imume à compreensão alcançada por meio do debate racional.”.
É relevante, aqui, a passagem no Sofista de Platão (232b 11-e2), mencionada anteriormente, onde, depois de sugerir que o sofista se caracteriza por ser um antilogikos, o Estrangeiro Eleático pergunta qual é a série de tópicos com os quais essas pessoas se ocupavam, e ele mesmo responde com uma lista: coisas divinas na maioria invisíveis, objetos visíveis na terra e no céu, a vinda à existência e o ser de todas as coisas, leis e todas as questões de política, cada uma das artes (techné), e insiste que tudo isso não era discutido somente por Protágoras, em seus escritos, mas por muitos outros também. [Osório diz: o que estudavam os sofistas].
Isso nos fornece uma lista extensa de tópicos incluindo um título inesperado, coisas divinas. Mas é aqui que se deveria colocar o livro de Protágoras, Sobre os deuses, cujas palavras iniciais nos dão uma aplicação da doutrina dos dois argumentos opostos: "concernente aos deuses não posso vir a conhecer nem como são eles, nem como não são ou que aparência têm"; e também a obra Sobre as coisas no Hades. Pródicos (DK 34B5) discutiu a origem da crença dos homens em deuses em termos naturalistas e psicológicos, e Crítias (DK sustentava que os deuses foram inventados deliberadamente pelos governantes para garantir o bom comportamento de seus súditos.” [Osório diz: frases e pensamentos dos sofistas sobre os deuses]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 10-11, 71).
Prossegue Kerferd:
“É provável que a importância histórica e intelectual dos sofistas seja agora mais geralmente reconhecida do que era antes. É indiscutível que eles ensinaram e discutiram gramática, teoria linguística, doutrinas filosóficas e morais, doutrinas sobre os deuses e a natureza e a origem do homem, crítica e análise literária, matemática e, pelo menos em alguns casos, os elementos da teoria física sobre o universo [Osório diz: o que discutiram os Sofistas?]. Mas eram eles filósofos? Isso ainda não é geralmente admitido. Depende, em parte, da definição de filosofia. Aqui o fantasma do platonismo ainda está ativo. Para Platão, os sofistas rejeitavam o que ele considerava ser a realidade última e estavam tentando explicar o universo em termos de seus aspectos fenomenais apenas. Para Platão, o mundo fenomenal era um mundo falso, sem realidade e, portanto, sem o requisito essencial para ser um genuíno objeto de conhecimento. Mas no mundo moderno, onde os especialistas, na maioria, não são platônicos e, de modo geral, nem mesmo querem procurar a realidade na direção em que Platão acreditava que ela devia ser encontrada, é algo paradoxal que a condenação platônica ainda permaneça em grande parte indiscutível. Já vai longe o tempo em que a rejeição de qualquer realidade transcendente podia ser tomada como indício de que a busca da verdade fora abandonada.” [Osório diz: Platão e a modernidade! / O problema, creio eu, ainda é de financiamento: as religiões continuam “bancando” a educação e, consequentemente, as pesquisas, além de condenando!]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 294-295).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
29 – Cronologia do embate entre os Sofistas e os demais pensadores.
Entendemos que olhar a cronologia da história da Filosofia, no caso, é muito importante, pois nos ajuda compreender a razão da exposição e a sua contestação, especialmente por demonstrar que aqueles que foram contraditados em seus ensinamentos já não estavam vivos quando isso ocorreu, portanto, não tiveram oportunidade de efetuarem uma refutação de seus contraditores, tendo essas ficado a cargo de ex-discípulos e, muitas vezes, de totais desconhecidos deles.
Embora haja a possibilidade de penetração de um movimento em outro, se superpondo, assim, as datas de nascimento e morte, para a nossa exposição vale o seguinte:
a) Os pré-socráticos:
a.1 “Tales”, 624 a 547.
a.2 “Heráclito”, estava vivo por volta de 504 - 500.
a.3 “Parmênides”, estava vivo por volta de 475 - 500.
a.4 “Demócrito”, 460 a 370.
b) Os Sofistas:
b.1 “Protágoras”, 492 - 422. (deu lei a Túrio em 444).
b.2 “Górgias”, 485 ou 480 ¨C 380 (ou seja, morre cerca de 100 de idade).
c) Platão e Aristóteles:
c.1 “Platão” 428 ou 427 – 348-347.
c.2 “Aristóteles”, 384 – 322.
Outras datas significativas:
Péricles, 495/492 – 429.
Sócrates, 469 – 399.
Guerra do Peloponeso, “431 – 404.
Quando Platão e Aristóteles nascem, Protágoras já estava morto.
Quando Platão nasce, Górgias já contava com cerca de 50 anos de idade. Já Aristóteles nasceu cerca de quatro anos após a morte de Górgias.
Diz Ateneu, como já informado acima, que, certa feita, mostraram a Górgias o diálogo homônimo de Platão que leva seu nome, ao que ele teria dito: “Que bem que Platão sabe satirizar!”.
O primeiro embate entre Sofistas e filósofos.
Ocorre, justamente, entre um pré-socrático, Parmênides, e um Sofista, Górgias.
Parmênides expõe seu pensamento no seguinte poema:
“As éguas que me levam tão longe quanto possa aspirar meu coração formavam meu séquito:
tinham-me conduzido e colocado na célebre trilha do deus que leva o homem de conhecimento [...]
Ali encontrava-me eu sendo carregado; pois que as sábias éguas a mim transportavam, puxando meu carro, enquanto as donzelas indicavam o trajeto.
O eixo no mancal bramia de seu encaixe e ardia — pois era conduzido por duas rodas que giravam em cada extremidade —
enquanto as virgens, filhas do sol, se apressavam para acompanhá-lo,
tendo deixado a morada da Noite para a luz e arrancado, com as mãos, os véus que lhes cobriam a cabeça.
Encontram-se ali os portais das trilhas da Noite e do Dia, uma verga e uma soleira de pedra a guarnecê-los.
Eles próprios, os portais que a grande altura no éter se elevam, são vedados por imponentes portas,
e por toda a noite a vingadora Justiça guarda suas chaves alternantes.
A ela as donzelas abrandaram com doces palavras, persuadindo-a, com habilidade, a remover prontamente dos portais a tranca aferrolhada.
Retrocedendo em voo abriram elas um largo vão entre as portas, girando em sentido oposto as brônzeas articulações, ajustadas com cavilhas e chavetas.
E através delas conduziram as virgens o carro e as éguas diretamente à ampla estrada.
E a deusa afavelmente acolheu-me, tomando-me a mão direita nas suas;
e assim falou dirigindo-se a mim:
“Jovem varão, companheiro das imortais aurigas e por estas éguas conduzido à minha morada, eu te saúdo.
Pois que não foi nenhuma sina cruel que te lançou em viagem por essa via (pois é grande sua distância da trilha dos homens), mas sim o Direito e a Justiça.
Deves instruir-te em tudo quanto há,
tanto no inabalável cerne da verdade persuasiva, [151]
como na opiniões dos mortais,
em que não reside nenhuma confiança legítima". [28 B 1.1-30]
...
Deves instruir-te em tudo quanto há,
tanto no inabalável cerne da verdade bem torneada,
como na opiniões dos mortais,
em que não reside nenhuma confiança legítima.
Não obstante, aprenderás também estas coisas - como as aparências tiveram confiabilidade para, eternamente, a tudo permear. [B 1.28-32]
...
Tanto no inabalável cerne da verdade radiante
como nas opiniões dos mortais,
em que não reside nenhuma confiança legítima; [B 1.29-30]
...
Mas vem, e eu te direi - e guarda minhas palavras quando as escutares os únicos caminhos de investigação concebíveis:
o primeiro, que é e não pode não ser,
é o caminho da persuasão (pois que é acompanhado pela verdade);
o outro, que não é e que não deve ser
refiro-me a uma trilha destituída de todo conhecimento. [B 2.1-6] [152]
...
Pois não poderias reconhecer aquilo que Pião é (pois não cabe fazê-lo),
tampouco poderias mencioná-lo. [B 2.7-8]
...
Pois que as mesmas coisas podem ser pensadas e podem ser. [B 3]
...
Aquilo que é para ser e para pensar deve ser; pois lhe é possível, mas não ao que nada é. [B 6.1-2]
...
pois lhe é possível ser,
mas não ao que nada é. Isto te rogo que consideres.
Pois dessa primeira via da investigação <eu te afasto>, [B 6.1-3] <ele acrescenta>
e também do caminho ao longo do qual os mortais que nada sabem vagueiam, cabeças duplas;
pois que a impotência em seus peitos conduz-lhes o pensamento errante.
E deixam-se levar como surdos e cegos, multidões atônitas e desprovidas de discernimento,
para as quais ser e não ser tidos como iguais e desiguais; e o caminho para todas as coisas retorna a si mesmo. [B 6.4-9]
...
Jamais se provará isso, que o não-ser é:
afasta teu pensamento dessa via da investigação. [B 7.1-2]
...
Afasta teu pensamento dessa via da investigação,
e não permitas que o hábito, alicerçado em larga experiência, te force a esta via percorrer, [154]
dirigindo o olhar cego, os ouvidos ressoantes e a língua;
mas julga segundo a razão a prova muito contestada que te revelei. Somente uma história, um caminho, resta narrar agora. [B 7.2-6]
...
Somente uma história, um caminho resta narrar agora: aquele que é.
E sobre este abundantes são os indícios de que, sendo, é
não-gerado e imperecível,
total, único, inabalável e completo.
Tampouco foi, ou será, uma vez que é agora, todo junto, uno, contínuo.
Pois que origem se lhe poderá encontrar? Como, de onde, se desenvolveu?
Que tenha vindo do que não é, não admitirei que pronuncies ou concebas – pois que não é pronunciável ou concebível que o não-ser seja.
E qual necessidade o teria impelido, mais cedo ou mais tarde, a desenvolver-se – tivesse se originado de nada?
Por conseguinte, deve absolutamente ser ou não ser. Tampouco, a força da convicção permitirá surgir daquilo que é outra coisa além de si.
Por essa razão não relaxou a justiça seus grilhões para deixá-lo nascer ou perecer, mas firme o mantém.
A decisão nessas questões jaz no seguinte: é ou não é.
Mas foi decidido, conforme o necessário, abandonar uma via inominada (pois que não se trata de um caminho verdadeiro), e de considerar a outra como sendo e sendo verdadeira.
Como poderia, então, perecer o que é?
Como poderia ter sido gerado? [155]
Pois em sendo gerado, não é, tampouco é se alguma vez vier a ser.
Portanto, a geração é extinta e o perecimento inaudito.
Tampouco é dividido, uma vez que é totalmente homogêneo– nem é mais aqui (o que lhe impediria a coesão) nem menos; mas totalmente pleno do que é.
Por conseguinte, é todo contínuo; pois aquilo que é adere ao que é.
E, imóvel nos limites de grandes cadeias, é sem início e incessante,
uma vez que a geração e a destruição para longe se afastaram, e a legítima verdade expulsou-as.
O mesmo e o remanescente no mesmo estado, repousa em si próprio, e assim permanece fixo em seu lugar.
Pois a poderosa necessidade o mantém encerrado em um limite que o circunda por toda volta,
pois é acertado que o que é não deva ser incompleto. Pois não é carente – do contrário, de tudo careceria.
O mesmo é pensar e o pensamento de que o ser é. Pois que desprovido do que é, no qual foi expresso, não encontrarás o pensamento.
Pois que nada é ou será se não o que é, uma vez que a sorte o agrilhoou de modo a ser inteiro e imóvel.
Por conseguinte, todas as coisas são um nome que os mortais atribuem e confiam em que seja verdade –
geração e perecimento, ser e não ser,
mudança de lugar e alteração no brilho das cores.
E uma vez existindo um limite último, este se completa em todos os lados,
como uma massa ou uma esfera perfeitamente redonda,
igual em todas as direções a partir do centro. Pois que não deve ser absolutamente maior ou menor aqui ou ali.
Pois tampouco existe coisa alguma que não seja,
que pudesse detê-la de alcançar seu igual,
tampouco coisa alguma que seja de tal maneira que pudesse estar mais aqui ou menos ali do que aquilo que é, uma vez que é todo, inviolável. [156]
Portanto, igual a si mesmo em todos os lados, jaz uniformemente em seus limites.
Encerro aqui minha argumentação e reflexões fidedignas acerca da verdade. Doravante, assenhora-te das opiniões mortais,
dando ouvidos à enganadora ordem de minhas palavras. [B 8.1-52]
...
Observa as coisas que, embora ausentes, têm uma sólida presença no pensamento;
pois não hás de arrancar o que é de sua ligação com o que é, nem o dispersando por toda parte no universo
nem o reunindo. [B 4].
Pois aquele que tem esperança, como aquele que tem fé, enxerga com sua mente os objetos do pensamento e as coisas vindouras. (Clemente, Miscelâneas V, iii 15-5)
...
Pois aquilo que adere ao que é, [B 8.251
...
é indiferente para mim
onde comece, pois para ali deverei retornar, [B 5] [157]
...
Encerro aqui minha argumentação e reflexões fidedignas acerca da verdade. Doravante, assenhora-te das opiniões dos mortais;
dando ouvidos à enganadora ordem de minhas palavras. Pois elas determinaram em seu entendimento nomear ditas formas,
uma das quais não deveria sê-lo – e neste ponto equivocaram-se.
E distinguiram-nas como opostas em forma e estabeleceram sinais para elas,
separadamente uma da outra, de um lado a etérea chama do fogo,
suave e muito leve, idêntica a si mesma em todas as direções e não idêntica à outra; e aquela outra em si mesma é oposta – a noite obscura, de forma densa e pesada. Todo esse arranjo verossímil a ti revelo
de sorte que jamais sejas vencido por nenhum pensamento mortal [B 8.50-61]. (Fonte: Filósofos pré-socráticos. Jonathan Barnes. Tradução de Julio Fischer. Martins Fontes. São Paulo. 2003, p. 151-158).
Seus intérpretes irão dizer que este poema funda a “ontologia”, que nada mais é que “a ciência do ser”.
Mas a parte fundamental do poema acima, e que vai chamar a atenção de Górgias, é a decorrente da afirmação de Parmênides que diz:
1) o ser é (e o não-ser não é),
2) o ser é o mesmo que pensar (logo o ser é pensável) e
3) o não-ser não pode ser dito (mas o ser pode ser dito).
Diz Luís Felipe Bellintani Ribeiro, que a resposta de Górgias a isto virá com o seu “Tratado do não-ser”, onde ele explica:
“Em seu Poema, Parmênides diz: 1) o ser é (e o não-ser não é), 2) o ser é o mesmo que pensar (logo o ser é pensável) e 3) o não-ser não pode ser dito (mas o ser pode). Pois o Acerca do não-ser diz: 1) coisa alguma é (nem o ser, nem o não-ser), 2) mesmo que algo fosse, não poderia ser pensado, 3) mesmo que algo fosse e pudesse ser pensado, não poderia ser comunicado a outrem. Portanto, tomado como réplica ao Poema, e não isoladamente, esse texto de Górgias produz de novo o efeito da antilogia. Mas a réplica não é uma mera inversão arbitrária, ela usa as mesmas armas da ontologia.
É por isso que o título Perì toû mè óntos é só uma alternativa ao primeiro título, Perì phýseos, Acerca da natureza, o mesmo título das obras dos filósofos pré-socráticos. A primeira das três teses se funda numa argumentação aparentemente tão “racional” quanto parece ser o truísmo “o ser é, o não-ser não é”. Se algo fosse, diz o texto, este ou bem seria o ser, ou bem seria o não-ser, ou bem seria o ser e o não-ser ao mesmo tempo. A eliminação das duas últimas possibilidades vai por si, desde os princípios da não-contradição e do terceiro-excluído. Problemático parece afirmar que sequer o ser é. Mas, se o ser fosse, continua, ou bem seria eterno, ou bem seria gerado. Se fosse eterno, não teria começo, meio e fim, não teria limite, não teria termo, mas nenhum ente é infinito, ilimitado e indeterminado, logo o ser não é eterno. Se fosse gerado, ou bem o seria desde o ser ou bem o seria desde o não-ser, mas, se o não-ser [90] pudesse gerar algo, não seria não-ser, seria antes ser, e, se o ser fosse gerado desde o ser, isso não seria uma geração, pois o ser já seria antes, logo o ser não é gerado. E, se não é nem eterno nem gerado, não é absolutamente. Górgias ainda opera seu jogo destrutivo manipulando as noções de uno e múltiplo, mas o espírito do jogo é este. Simples brincadeira? Ou desmascaramento da brincadeira encerrada na seriedade da ontologia?” (Fonte: História da filosofia - I. Luís Felipe Bellintani Ribeiro. UFSC. Florianópolis. 2008, p. 90-91).
“As outras duas teses falam mais diretamente da posição gorgiana propriamente dita. Ora, se nem tudo que se pensa existe, como sustentar a identidade entre ser e pensar? Se a linguagem diz palavras e não as coisas, como a onto-logia seria mais que logo-logia? Veja-se o próprio texto (in: Sexto Empírico Adversus Mathematicus , VII, 65 seqq. Tradução: Fernando Santoro):
Górgias de Leontini de um lado fundamentou e pertenceu à mesma legião dos que refutam o critério, porém, não com o mesmo propósito dos seguidores de Protágoras, pois na obra intitulada Acerca do não-ser ou Acerca da natureza demonstra três proposições capitais. Uma e também primeira é que “nada existe”, a segunda que “e se existe, é incompreensível aos homens, e a terceira que “e se é compreensível, é, no entanto, realmente impossível de ser divulgado e interpretado para o próximo”.
Ora, que realmente nada existe ele argumenta desse modo: se existe algo, ou bem é o ser que existe ou o não-ser, ou tanto o ser existe quanto o não-ser. Porém, nem existe o ser, como se vai sustentar, nem o não ser, como se emendará, nem o ser e o não-ser, como se ensinará; portanto não existe coisa alguma.
E com certeza o não-ser não existe. Pois se o não-ser existisse, existiria ao mesmo tempo que não existiria: enquanto for pensado que não é, não existirá; mas enquanto existir um não-ser, ao contrário, existirá. Então resulta um completo absurdo: o de existir algo e ao mesmo tempo não existir; portanto não existe o não-ser. E se, pelo avesso, o não-ser existisse, o ser não existiria: pois frente a frente eles são avessos um ao outro, e, se para o não-ser tivesse coincido o existir, para o ser teria de coincidir o não existir. Mas, por outro lado, não é o ser o que não existe, e, assim, também não é o não-ser que existirá.
E ainda nem o ser existe. Pois, se o ser existe, ou é eterno, ou é gerado, ou é eterno e gerado ao mesmo tempo. Mas não é eterno, nem gerado, nem ambos, como demonstraremos: então não existe o ser. Pois, se o [91] ser é eterno (comecemos por aqui), não tem começo algum, pois tudo que nasce tem algum começo, enquanto o eterno, estabelecido como não gerado, não tem começo. Não tendo começo é então ilimitado. Se é ainda ilimitado, não está em nenhum lugar. Pois, se está em algum lugar, é diferente de si aquilo onde está, e assim não mais será ilimitado o ser, se for contido em algo. Pois é próprio do continente ser maior do que o contido, mas nada é maior do que o ilimitado, de modo que o ilimitado não está em nenhum lugar.
E também nem em si mesmo está contido, pois o mesmo existiria sendo o “em quê” e o “em si mesmo”, e o ser se repartiria em dois, lugar e corpo: de um lado, o lugar, o “em quê”, de outro lado, o corpo, o “em si”. Mas isso é certamente absurdo. Com efeito, nem em si mesmo está o ser. De modo que, se o ser é eterno, é ilimitado, e, se é ilimitado, não está em nenhum lugar, e, se não está em nenhum lugar, não existe. Com efeito, se o ser é eterno, nem no princípio o ser é.
E o ser também não pode existir sendo gerado. Pois, se foi gerado, com certeza foi gerado de um ser ou de um não-ser. Porém não foi gerado do ser: pois, se é um ser, não foi gerado, mas já existia; nem tampouco do não-ser, pois o não ser não pode gerar algo, porque necessariamente aquele que gera deve participar da existência. Portanto o ser não é nem gerado.
Por isso mesmo nem é as duas alternativas juntas, eterno e ao mesmo tempo gerado: pois elas se ato-destroem e, se o ser fosse eterno, ele não seria gerado, e, se gerado, não existiria eternamente. Portanto, se o ser não é eterno, nem gerado, nem ambos, não poderia existir o ser.
E ainda, se existe, então é uno ou múltiplo; mas nem é uno, nem é múltiplo, como será sustentado, então não existe o ser. Pois, se é uno, então é uma quantidade, ou uma continuidade, ou uma grandeza, ou um corpo. Mas que seja algum desses e não será uno, porque, se for estabelecido como quantidade, será divisível, e, sendo uma continuidade, seccionável; semelhantemente, também, se pensado como grandeza, não existiria como indivisível. Como corpo, porém, ocorrerá de existir tríplice em dimensões, pois terá tanto comprimento, quanto largura e profundidade. Mas é absurdo dizer que o ser não é nada disso, portanto o ser não é uno.
Nem tampouco é múltiplo. Pois, se não é um, também não é múltiplo: pois o múltiplo é uma união de uns, e, como o um foi refutado, refutou-se junto com ele o múltiplo.
E com isso fica então manifesto que nem existe o ser, nem o não-ser. [92]
Que também não existem juntos, tanto o ser, quanto o não-ser, é fácil de deduzir. Pois, se o ser e o não-ser existem, serão o mesmo quanto à existência o ser tanto quanto o não-ser, e, quanto a isso, nenhum dos dois existem. Pois, que o não-ser não existe, já concordamos; foi explicado também que o ser se apresenta do mesmo modo e como tal não existirá.
Além disso, sendo o não-ser o mesmo que o ser, não podem existir juntos, pois, se os dois existem juntos, não são o mesmo, e, se são o mesmo, não existem ambos ao mesmo tempo.
Conclui-se com isso que nada existe. Se, pois, nem o ser existe, nem o não-ser, nem ambos juntos, e, como fora disso, nada é pensável, nada existe.
Que algo sequer existisse, o mesmo não seria cognoscível, como também não seria pensável pelos homens, é o que deve ser demonstrado em seguida. Se, pois, as coisas pensadas, afirma Górgias, não são coisas existentes, o ser não é pensado. E, segundo a linguagem: do mesmo modo que, se coincidisse nas coisas pensadas de existir o branco, também no branco coincidiria o ser pensado; assim, se às coisas pensadas coincidir de não existirem, necessariamente coincidirá de não existir algo em que se pensa.
Por isso nosso resultado, que “se as coisas pensadas não existem, então o ser não é pensado”, estará são e salvo. Mas certamente as coisas pensadas (antecipando, pois) não são existentes, como sustentaremos, portanto o ser não é pensado. Mas que as coisas pensadas não são existentes é evidente.
Pois, se as coisas pensadas são existentes, tudo o que é pensado existe por onde quer que se pense, o que é inverossímil. E que o é é fácil demonstrar, pois ninguém pensa num homem voando ou em carros correndo em pleno mar, e em seguida um homem voa ou carros correm em pleno mar, de modo que as coisas pensadas não são existentes.
Paralelamente, se as coisas pensadas são existentes, as não existentes não serão pensadas; pois para os contrários coincide o contrário, e ao ser é contrário o não-ser. Por tudo isso, se ao ser coincide o ser pensado, ao não-ser coincidirá o não ser pensado. Mas isso é absurdo: pois Scyllas e Quimeras e muitas coisas que não existem são pensadas. Portanto, o ser não é pensado.
Como as coisas visíveis, pela visualização mesma são ditas que são vistas, e as coisas audíveis, pela audição mesma que são ouvidas; e, de um [93] lado, não descartamos as coisas visíveis pelo fato de não serem audíveis, nem repudiamos as coisas audíveis pelo fato de não serem vistas (pois é vantajoso distinguir cada coisa pela sensação que lhe é peculiar e não por outra), também as coisas pensadas, mesmo se não são vistas pela vista, nem ouvidas pelo ouvido, existirão, pelo fato de serem apreendidas pelo critério apropriado.
Se, com efeito, alguém pensar que carros correm em pleno mar e no entanto não avistar o mesmo, deve acreditar que existem carros correndo pelos mares. Mas isso é absurdo: portanto o ser não é pensado nem compreendido.
E, mesmo se for compreendido, não pode ser comunicado a outrem, pois, se as coisas que existem são visíveis e audíveis e perceptíveis por sensações comuns como coisas que subsistem de fora, do mesmo modo que, de um lado, as coisas visíveis devem ser compreendidas se vendo e, de outro lado, as audíveis, se ouvindo, e não o inverso, como alguém poderá revelá-las para outrem?
Pois o meio pelo qual nós revelamos é a linguagem, mas a linguagem não é o subsistente e o que existe realmente. Portanto o que existe realmente não é revelado aos vizinhos, mas a linguagem é que é revelada, ela, que é um outro solo subjacente; do mesmo modo que aquilo que é o visível não se tornaria audível e vice-versa. Assim, pois, já que o ser se fundamenta de fora, não se tornaria uma linguagem nossa.
Mas não sendo linguagem, não se manifestará para outrem. De um lado, ele diz, a linguagem certamente vem ao nosso encontro se unir desde as realidades externas [vale dizer, das sensações], pois, desde o encontro com o sabor nasce em nós a palavra feita representando o mesmo sentido, e, desde a impressão da cor, a palavra de acordo com a cor. Mas, se é assim, não é a palavra que exprime a realidade externa, mas a realidade externa é que torna a palavra reveladora.
E, de um lado, nem é possível dizer que aquela modalidade que fundamenta as coisas visíveis e audíveis, do mesmo jeito fundamente também a linguagem, de modo que seja possível, desde um mesmo solo subjacente, tanto ser os fundamentos do ser quanto as coisas reveladas do ser. Mais, diz, e se a linguagem se fundamenta em algo que difere dos demais fundamentos, os corpos visíveis serão muito mais distantes ainda da linguagem, pois o objeto visível será apreendido através de uns instrumentos, e a linguagem, através de outros, de modo que um não revelará a natureza do outro. [94] Portanto, de acordo com as aporias de Górgias, vão-se, pelo que depende delas, os critérios de verdade: pois algo nem existe, nem é possível de ser conhecido, nem para outros sustentado, e naturalmente não pode haver nenhum critério.
Destarte a sofística completa a exploração do terreno parmenidiano, como já o fizera com relação a Heráclito. De um lado, a conclusão “tudo é verdade”, arrancada do interdito anunciado no Poema: “jamais obrigarás os não-seres a ser, antes afasta teu pensamento desta via de investigação” (se não existe absolutamente o não-ser, não é possível pensá-lo, nem dizê-lo, logo tudo que se pensa e diz é verdade). De outro lado, a conclusão “nada é verdade”, por ser tudo aparência e opinião, por serem o real, o pensamento e a linguagem solos subjacentes irredutíveis uns aos outros.
É por isso que o grande desafio de Platão e Aristóteles é estabelecer um nexo entre linguagem e realidade que não seja aderência total, para que um terceiro termo possa se insinuar entre o nada mudo e o discurso pleno de ser, o falso, que contém certa positividade, pois é discurso e não silêncio, mas “erra o alvo”. Na jaula do falso é que a metafísica clássica pretende aprisionar a sofística. Mas esse é outro capítulo. Agora está em causa não o espantalho da sofística forjado por Platão e Aristóteles, que certamente não é arbitrário, mas aquilo que os sofistas pensaram e disseram numa época em que aqueles dois sequer haviam entrado em cena.
Diga-se mais uma vez: a sofística era a genuína filosofia de sua época. A secularização que retira definitivamente o homem da clausura das teocracias, da comodidade da heteronomia, e o joga sobre si mesmo, no risco da autonomia, chega à explicitação filosófica pelas mãos, ou antes, pelas bocas, dos sofistas. Eles são as testemunhas da tomada de consciência da diferença irredutível entre phýsis e nómos, entre natureza e lei, entre o âmbito daquilo que brota espontaneamente por si e não pode não ser como é (e, portanto, diante do qual cabe apenas aceitação resignada) e o âmbito daquilo que é convencionado abertamente pelos homens e que pode ser de outro modo, se eles assim instituírem. Mas que coisas exatamente estão no interior de cada âmbito? Nesse último certamente as leis propriamente ditas, mas também os valores em geral, e as palavras – a multiplicidade de línguas está aí [95] para prová-lo – e não apenas os significantes (como se as próprias coisas, conforme dirá mais tarde Aristóteles, fossem “as mesmas para todos”), mas também, aquilo que só vem à tona pelos recortes dos significantes, isto é, os significados, isto é, as próprias coisas. Ora, se o âmbito da natureza é o da matéria, do devir, da mistura, do cadinho de átomos agitados ao acaso, qual é, então, o estatuto ontológico das formas? Resposta: nómos, convenção. Aqui mais uma vez é preciso dizer que o empenho de Platão e Aristóteles em garantir um caráter katà tèn phýsin (segundo a natureza) para as formas (eíde) é reativo. Sobre isso, Aristóteles diz do sofista Antifonte (Física, 193a 9):
A natureza, para alguns, e a essência dos entes por natureza, parece ser o primeiro subsistente em cada um, por si mesmo destituído de forma, como, por exemplo, a natureza da cama seria a madeira e a da estátua, o bronze. Como prova, diz Antifonte que se alguém enterrasse uma cama e a putrefação tivesse poder de fazer levantar um rebento, esse não viria a ser cama, mas madeira, existindo a primeira por acidente, por disposição segundo a lei e por arte, enquanto a segunda seria a essência, a qual permanece, e padece continuamente essas coisas. Numa primeira visada, parece que Antifonte está minimizando o ser da cama, mero artifício acidental, em favor da madeira, essência necessária. Até porque quem conhece Antifonte sabe que ele também disse (Oxyrhynchus Papyri XI n. 1364 ed. Hunt):
Justiça, com efeito, é não transgredir as prescrições da lei da cidade da qual se é cidadão. De fato, um homem utilizaria convenientemente a justiça para si mesmo, se, diante de testemunhas, exaltasse as leis, mas sozinho e sem testemunhas, exaltasse as prescrições da natureza. Pois as prescrições das leis são impostas de fora, as da natureza, necessárias.
Teocracias Do Grego theós, deus + krateía, kratós, poder, força. s.f. – governo em que os chefes da nação pertencem à classe sacerdotal.
E as prescrições das leis são pactuadas e não geradas naturalmente, enquanto as da natureza são geradas naturalmente e não pactuadas. Transgredindo as prescrições das leis, com efeito, se encoberto frente aos que compactuam, aparta-se de vergonha e castigo, se não se encobre, porém, não. Se alguma das coisas que nascem com a natureza é violentada para além do possível, mesmo que isso ficasse encoberto a todos os homens, em nada o mal seria menor, e se todos vissem, em nada maior, pois não é prejudicado pela opinião, mas pela verdade. [96]
Lei: grilhão da natureza. Enunciado de um anarquista? De um individualista que se esconde no privado para aí gozar despudoradamente do fluxo amoral do prazer? Pode até ser que a lei seja apenas um mal necessário para garantir a vida em rebanho, fresta ínfima sobre o mar infinito da natureza, mas é naquela frestinha que se vive, não neste mar. É num mundo de camas e estátuas que se vive, não debaixo da terra. Nesse ponto os sofistas separam-se dos pré-socráticos, com os quais caminhavam juntos até então. É que em física eles concordam, mas trata-se agora exatamente de fazer política, não física. Trata-se de laborar no domínio do artifício, trata-se de recortar aqui e não ali para obter essa e não aquela coisa: política como criação ontológica. Assim, a fresta domina até o mar: segundo Crítias, outro sofista, sendo a força a realidade última e dependendo a justiça do controle público, o sábio inventou o medo do olhar onisciente dos deuses, para que, mesmo no privado, os indivíduos se sentissem observados e preservassem o pudor diante dos valores legais. E quando Trasímaco, sem papas na língua, faz equivaler o justo por natureza ao útil do mais forte, ele também faz equivaler o útil do mais fraco ao justo por lei (deixando-lhe a possibilidade de, pela lei, compensar sua inferioridade).
A definição de justiça como a conveniência do mais forte não é em si um ato de força. Os tiranos, aliás, não costumam lançar mão dela para justificar sua tirania, ainda que em seu íntimo bem o saibam.
Os tiranos preferem dizer que agem em nome do bem ou de qualquer outro valor transcendente. Nesse caso, a metafísica é que é o sofisma, e a frase do sofista, uma honesta expressão da verdade, como também a tese do homem-medida não é humanismo nem antropocentrismo, mas consciência da finitude e desmascaramento preventivo de qualquer posição meramente humana que pretenda se impôr como espelhamento fiel das coisas. Antropocêntrica é a frase de Platão, “deus é a medida de todas as coisas”, pois é porque o homem age teleologicamente que, por transferência para todas as coisas, todas as coisas são experimentadas como efeito de uma providência, de uma causalidade teleológica.
Se, portanto, ninguém mais detém previamente o saber quanto ao que é e o que não é, se é nas assembleias que, pelo entrechoque de opiniões se há de chegar a um consenso, instância da unidade [97] (política) feita inteiramente de multiplicidade, então que se eduque os homens para as assembleias, que se os ensine muitas coisas, os conteúdos coligidos pela tradição cultural, mas sobretudo a falar por si, a defender o que lhes parece ser o caso. E é isso que os sofistas fazem. Por isso Hegel diz: “os sofistas foram os mestres da Grécia”. (Fonte: História da filosofia I, UFSC, Florianópolis: 2008, p. 90-97).
Assim, quando Parmênides afirma:
“Somente ‘aquilo que é’ pode ser expresso e conhecido, porque o ser e o pensar são a mesma coisa; ‘aquilo que não é’, portanto, não pode ser pensado nem expresso”.
Górgias retrucará:
Se só o que é pode ser expresso, o que ocorre quando eu expresso: “carruagens andam sobre o mar”?
“Após o título [da obra] e a série, finalmente, cada uma das três teses de Górgias se apresenta, por sua vez, como uma inversão irônica ou grosseira do Parmênides escolar que cada um de nós, de Platão aos nossos dias, teve que memorizar: inicialmente, que há o ser pois o ser é e o não ser não é; em seguida, que esse ser é por essência cognoscível [Osório diz: é passível de ser conhecido], já que ser e pensar são a mesma coisa; por meio disso a filosofia, e mais especificamente essa filosofia primeira que foi denominada de metafísica, pôde se engajar muito naturalmente em seu caminho – conhecer o ser enquanto ser – e se cunhou em doutrinas, discípulos e escolas. Ser, conhecer, transmitir: não é, não é cognoscível, não é transmissível”. [Osório diz: eis a batalha entre Górgias e Parmênides]. [Bárbara Cassin em O efeito sofístico trata do tema].
Portanto, quando Górgias respondeu à Parmênides, este já estava morto, logo, não podia contradizê-lo.
É no meio dessa disputa que se coloca Platão, que vai advogar a causa em favor de Parmênides, pois sem um ser fixo e passível de conhecimento é impossível fazer-se “ciência”, que é o objetivo platônico, segundo o próprio.
Onde Platão tenta se igualar a Parmênides:
“A imagem que faz Diotima da ascensão do amante até a Beleza foi muitas vezes refletida na literatura ocidental, tomada de empréstimo por filósofos místicos, pelos primeiros escritores cristãos, como Orígenes e Santo Agostinho, e por inumeráveis poetas. Tal descrição da Forma da Beleza como totalidade imutável e imortal, sempre e em toda parte a mesma, mostra que as Formas platônicas são muito similares ao Uno de Parmênides, porém revivida, multiplicada e colocada em relação com o mundo físico. É claro, enquanto para Parmênides existia somente o Uno, para Platão existia uma Forma diferente para todo termo ou conceito geral, e não apenas para a ‘beleza’. E, se até onde dizia respeito a Parmênides o mundo físico de objetos mutantes era apenas uma ilusão, para Platão ele era bastante real, embora inferior sob vários aspectos”. [Fonte: O sonho da razão. Anthony Gottlieb. Tradução de Pedro Jorgesen Jr. Rio de Janeiro. Difel. 2007, p. 216)
Estava, portanto, fundada a controvérsia que se arrasta a mais de dois milênios sem uma resposta conveniente, ou seja, sem que a “verdade” prometida por Platão tenha vindo a lume, tenha sido parida por essa parteira similar a mãe de seu mestre Sócrates.
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
28 – Sofistas e seus instrumentos de trabalho.
É Barbara Cassin quem diz:
“O discurso sofístico, na verdade, está para a alma assim como o phármakon, remédio/veneno, está para o corpo: induz uma mudança de estado para o melhor ou para o pior. Mas o sofista, como o médico, sabe utilizar o phármakon e pode transmitir esse saber; sabe e ensina como fazer passar, não, segundo a bivalência do princípio de não-contradição, do erro à verdade ou da ignorância à sabedoria, mas, segundo a pluralidade inerente ao comparativo, de um estado menos bom a um estado melhor [Osório diz: o que os sofistas propõem-se a fazer]. Protágoras, que professa a virtude, o diz pela boca de Sócrates que, então, o defende: "É de uma disposição à disposição que vale mais que deve se fazer a passagem, mas o médico produz essa passagem através das drogas, o sofista através dos discursos" (Teeteto, 167a).” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 12).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
27 – Os Sofistas e suas formações culturais.
Nos diz Guthrie:
“Alguns deles foram primeiro ao estrangeiro em missões oficiais, como Górgias em Atenas para defender a causa de Leontini contra Siracusa em 427. Tanto ele como Pródico de Ceos aproveitaram da oportunidade, ao apresentar o caso de suas cidades diante do Conselho, de fazer avançar seus próprios interesses dando aulas e demonstrações que lhes trouxeram considerável soma de dinheiro (Hip. Maj. 282b-c). Hípias também orgulhava-se do número de missões diplomáticas que lhe confiara sua cidade (ib. 281a). Leontini, Ceos e Élis davam vazão inadequada para seus talentos. [Osório diz: os embaixadores]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 42-43).
Sofística
(uma biografia do conhecimento)
26 – Existiu uma “Escola Sofística” ou de Sofística?
O que foi sofística grega?
Podemos dizer que não foi nada e foi tudo ao mesmo tempo!
Não foi nada por nunca ter existido um “movimento organizado” em que seus integrantes, no futuro, pudessem vir a ser conhecidos como integrantes do mesmo!
Nunca existiu uma escola dos sofistas, nos termos que existiram outras escolas gregas, como a Academia e Stoá, por exemplo.
Os que hoje conhecemos por sofistas não se juntaram em uma confraria onde pudessem expor e ensinar suas ideias.
Tudo isso fica mais claro quando observamos o seguinte: Protágoras era de Abdera; Górgias de Leontino, na Magna Grécia (hoje Itália); Pródico de Céos e Hípias de Élis. Ou seja, nem um destes era ateniense, mas acorreram para Atenas para aí ensinarem. Assim, já chegaram professores de suas artes: o discurso.
Aristóteles foi para Atenas estudar com Platão, este era discípulo de Sócrates... os sofistas já chegaram em Antenas, vindo de outras cidades/colônias gregas como mestres.
Como, então, dizer-se que formavam um movimento homogêneo?
Nos parece que foram homens com visões diversas de mundo que passaram a contestar o pensamento então imperante/dominante na Atenas do século V a.e.a.
Por esse poder contestatório/modificativo do status quo, os sofistas foram agrupados, com malícia, de modo a dar a entender que formavam um movimento coeso, amalgamado em ideias comuns, o que, em princípio, não é correto afirmar.
Existiu uma única Sofística, a Grega, assim seria um erro, portanto, falar em segunda sofística. Entretanto, erro ou não, continua-se falando em uma “Segunda Sofística”, sendo esta um movimento surgido no seio do Império Romano, cerca de sete séculos depois daquela (Século II da era atual, ou seja, 700 anos depois da primeira, e estava voltada quase que exclusivamente para a Retórica).
“Por último [...], não fizemos intervir nunca o que se chamou de segunda sofística, ou melhor, um movimento intelectual baseado na retórica e inspirado no exemplo dos sofistas do século V. Esta segunda sofística se situa no século II d. C., ou seja, sete séculos depois da primeira, que é a que nos ocupa, e a que veio bem depois está muito mais consagrada à retórica que a primeira e muito mais aberta às tendências irracionais que floresciam naquela época. Repetimos que para quem reflete sobre a retórica ou sobre a linguagem, esta aproximação tenha interesse, porém não tem para quem busca compreender o que aconteceu e se pensou na Atenas do século V.”. (Fonte: Os grandes sofistas da Atenas de Péricles. Jacqueline de Romilly. Tradução: Osório Silva Barbosa Sobrinho. Octavo. São Paulo. 2017, p 41).
Aqui nos interessa, a princípio, apenas o movimento grego do Século V antes da era atual. Da dita “Segunda Sofística” nos utilizaremos, se for o caso, apenas para tentar melhor esclarecer a “primeira”.
Todo a produção intelectual dos Sofistas, hoje, não passam de cerca de vinte páginas! Todas elas, regra geral, oriunda do punho de seus detratores.
Se não temos os contextos para os fragmentos que conhecemos, de alguns Sofistas temos apenas um único nome, sem qualquer outra informação sobre eles.
Fontes indiretas, como os escritos sobre medicina, as peças de teatro (tragédias e comédias) e a historiografia gregas são o que de melhor nos levam a conhecer a força das doutrinas dos Sofistas, pois apesar de não as explicarem, as estudarem, pois não era esse seu objetivo, usam largamente o que eram ensinado pelos mestres das palavras.
Vindo das mais diversas cidades gregas, já com idades avançadas, pode-se afirmar em decorrência dos cargos de embaixadores, regra geral, que exerciam, se encontram e impulsionam um elo aparentemente aleatório, a não ser pela coerência, que os une, pois suas doutrinas vão se encaixando como as peças de um brinquedo lego, sem que tenham sido produzidas com essa finalidade, mas cuja quase harmonia é largamente percebida pelos autores que se preocupam em conhecê-los devidamente.
Assim é que Górgias, por exemplo, vai em ajuda e, aparentemente sem querer, acaba por justificar Protágoras, e este dá solução para o problema posto por Górgias, numa anacronia singular.
A demonstrar que a escola que formaram decorreu dos acasos do destino, é que de todo o grupo apenas dois de seus integrantes eram atenienses: Antifonte e Hípias, a despeito do movimento ter-se projetado e atuado mais firmemente nessa cidade grega.
A denominação de pré-socráticos foi-lhes atribuída muito tempo após a existência desse grupo de pensadores, denominação que passou a abarcar TODOS aqueles que antecederam Sócrates, pondo num cesto comum pensadores tão díspares. O que é uma incorreção e uma injustiça, pois a filosofia produzida pelos Sofistas difere totalmente daquelas expostas por seus antecessores, que são chamados, também, de “filósofos da natureza” ou “físicos”. Os Sofistas, por sua vez, voltaram seus estudos para o homem, como ele pensa e a age, abandonando, assim, a “física”, mas este fato é, maliciosamente, ignorado ou escondido por grande número de historiadores da filosofia e mesmo por filósofos, de quem não se esperava tamanha má-fé!
Aliás, para Aristófanes, por exemplo, Sócrates era um Sofistas também, como expõe na sua peça As nuvens. Aliás, os filósofos e historiadores da filosofia mentem quando dizem que Aristófanes tratou Sócrates como sofista apena na peça citada! É que na peça: As rãs, volta a repetir a acusação e, para quem quer ver além de crer, sabe que o sábio e sagaz Aristófanes jamais cometeria o mesmo erro duas vezes.
Honestamente, acredita-se que a filosofia deve ser dividida apenas em duas partes: os filósofos da natureza e os filósofos humanistas, sendo o primeiro daqueles Tales e o destes o sofista Protágoras. Todos os que vieram depois, de um modo ou de outro, apenas deram, ou tentaram dar, continuidade ao pensamento dos Sofistas, no que nenhum deles, até agora, obteve sucesso!
Aliás, diz, injustamente, Alfred North Whitehead que: “Toda a filosofia ocidental não passa de notas de rodapé das páginas de Platão”.
Por que injustamente?
Porque Platão, basta que se veja os títulos de seus diálogos (muitos com o nome de sofistas, como Protágoras, Górgias, Hípias, O Sofista etc.), nada mais fez que tentar combater os Sofistas! Embora sem sucesso, repita-se!
Nos diz Guthrie:
“Os sofistas não formaram uma escola.
Os sofistas eram, com efeito, individualistas, e até rivais, competindo entre si por favor público. Não se pode, pois, falar deles como escola. De outro lado, pretender que filosoficamente nada tinham em comum é ir longe. Partilhavam da perspectiva filosófica geral descrita na introdução sob o nome de empirismo, e com este ia ceticismo comum sobre a possibilidade de conhecimento certo, em razão tanto da inadequação e falibilidade de nossas faculdades como da ausência de uma realidade estável para ser conhecida. Todos igualmente acreditavam na antítese entre natureza e convenção. Podem diferir em sua avaliação do valor relativo de uma, mas nenhum deles sustentaria que leis, costumes e crenças religiosos humanos eram inabaláveis porque enraizados numa ordem natural imutável. Estas crenças — ou falta de crenças — eram partilhadas por outros que não eram sofistas profissionais, mas caíram sob sua influência: Tucídides, o historiador; Eurípedes, o poeta trágico; Crítias, o aristocrata, que também escreveu dramas, mas foi um dos mais violentos dos Trinta Tiranos de 404 a.C. Nesta aplicação mais ampla, é perfeitamente justificável falar de mentalidade sofista ou de movimento sofista no pensamento.” [Osório diz: este parágrafo está muito bom!]
[O “todos igualmente” acima diz que: Isso está expressamente atestado para Protágoras, Górgias, Hípias e Antífon, e pode-se afirmar com confiança de Pródico, que partilhava da idéia de Protágoras acerca das metas práticas de sua instrução (Platão, Rep. 600c-d). Pode-se mostrar em sofistas posteriores como Alcidamas e Licófron, e seria difícil produzir claro exemplo contrário.”]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 49).