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Ceticismo e mundo exterior.

 

Oswaldo Porchat Pereira

 

 

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Ceticismo e mundo exterior1

 

I

 

Tornou-se um lugar bastante comum da filosofia moderna e contemporânea exigir, no ponto de partida de toda e qualquer reflexão filosófica e como condição sine qua non de seu mesmo desenvolvimento livre de predeterminações e prejuízos, a "suspensão metodológica de juízo sobre o mundo exterior". Não se proíbe ao filósofo, por certo, que viva a sua vida cotidiana como um homem qualquer, nem continue a pautar sua conduta pelas regras costumeiras que presidem ao comportamento comum dos homens. O que se lhe pede, porém, é que - enquanto filósofo e não enquanto homem - não assuma em sua reflexão filosófica as opiniões, crenças e pretensões ao conhecimento próprias ao vulgo e que delas decididamente se dispa, por uma exigência de método, no decorrer de seu empreendimento de filosofar e desde o seu próprio início.

 

Poderia acaso ser de outra maneira, se a filosofia sempre se quis e se quer eminentemente crítica? Proceder de outro modo não seria o mesmo que prejulgar, ao menos em parte, aquilo mesmo que se quer submeter ao crivo da análise e da crítica filosófica? Predeterminar os rumos de nossa reflexão, os parâmetros de seu equacionamento e, numa medida importante, muitos já de seus resultados? Se assim é, não parecerá senão muito natural que a própria existência de um mundo exterior seja objeto de uma suspensão filosófica de juízo. Por um compreensível imperativo [90] metodológico, por-se-á, então, o mundo "entre parênteses". Não assumindo o mundo exterior como objeto de conhecimento ou saber, o filósofo reservar-se-á para, no momento oportuno, de dentro de seu sistema e coerentemente com ele, proferir uma decisão filosófica sobre o estatuto ontológico daquela "exterioridade" ou, pelo menos, sobre o real significado epistemológico da crença ordinária nela. Tão habitual se tornou essa postura metodológica e tão natural ela nos parece que não vislumbramos, à primeira vista, como se poderia assumir alguma outra sem incorrer num dogmatismo ingênuo e bem pouco crítico. De tal modo se incorporou à nossa tradição filosófica esse modo de ver as coisas que muitas filosofias nem mesmo se demoram em considerá-lo e esclarecê-lo, menos ainda em discuti-lo. A exigência metodológica, não menos presente, se torna aqui implícita. Não será exagerado, por isso mesmo, sustentar que ela desempenha o papel de um axioma básico da metodologia filosófica, cuja aceitação não se teria como nem por que questionar.

 

Entretanto, uma consideração mais atenta do desenvolvimento histórico do pensamento moderno nos faz facilmente ver que, nessa postura metodológica "natural" que se adota para filosofar, vem embutida toda uma história da filosofia, à qual ela está umbilicalmente ligada e da qual ela é um produto, por assim dizer, cristalizado.2 Não mais se percebe isso tão-somente porque o sentido da história se perdeu. Recordá-la, porém, nos leva a reconhecer que normas metodológicas que nos parecem obviamente impor-se representam, em verdade, o resultado datável de uma orientação filosófica particular, ainda que amplamente difundida e secularmente vitoriosa.

 

A origem moderna dessa postura metodológica encontra-se incontestavelmente na 1ª Meditação de Descartes. Na busca de um fundamento firme para o saber, Descartes suspende o juízo sobre todas as opiniões que outrora recebera como verdadeiras (cf. Descartes, 1953, Méditations, p.271). Por mais prováveis que sejam e por mais difícil que seja recusar-lhes crença, Descartes empenha-se metodologicamente em destruí-las, bastando-lhe, para rejeitá-las, que não se manifestem como absolutamente certas e indubitáveis, isto é, que surja uma razão, por menor que seja, para delas duvidar (cf., ibidem, p.267-8). Sua dúvida se exerce sobre o conhecimento sensível, mediante os argumentos baseados nas ilusões dos sentidos e nos sonhos, e atinge os próprios conhecimentos matemáticos, graças à hipótese do gênio maligno. Assim, a suspensão de juízo se efetua universalmente sobre todas as nossas aparentes verdades costumeiras, incluindo explicitamente a mesma existência do mundo exterior: "Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que nós vemos não são senão ilusões e enganos" (cf., ibidem, [90] p.272). A seqüência, todos a conhecemos: a certeza irrecusável do Cogito resistirá à dúvida hiperbólica e triunfará sobre ela, constituindo o alicerce inabalável sobre que se erguerá todo o edifício filosófico e científico.

 

Um admirador de Descartes, o abade François Para du Phanjas, escreveu, em 1779, o que se pode tomar como um comentário lúcido e pertinente da estratégia cartesiana nas primeiras páginas das Meditações: "Descartes ensinou a seu tempo a arte de fazer o Ceticismo dar nascimento à Certeza filosófica" (cf. Popkin, 1979, p.172). O próprio Descartes, aliás, descreveu-se como o primeiro dos homens a derrubar as dúvidas dos céticos (cf., ibidem).33 E, no intuito de derrubá-las, sua estratégia consistiu precisamente em retomar a velha argumentação cética, baseada nas ilusões dos sentidos e nos sonhos, contra nosso pretenso conhecimento das coisas exteriores, parecendo exacerbar a dúvida cética até o extremo limite, por meio da ficção metafísica do gênio maligno; em retomar a prática cética da suspensão do juízo, aplicando-a aparentemente de modo universal e radical, fazendo-a incidir expressamente sobre a própria existência das coisas exteriores, para finalmente manifestar a impotência do ceticismo ante a evidência irresistível do Cogito. Devemos a Richard Popkin páginas esclarecedoras sobre o confronto de Descartes com a crise pirrônica de seus contemporâneos e sobre o papel desse confronto no desenvolvimento de sua filosofia.44 A Renascença fizera reviver o ceticismo grego, o novo pirronismo disseminou-se e achou guarida em boa parte dos mais brilhantes espíritos da época. Descartes, porém, assimila e utiliza instrumentalmente o arsenal cético para fazê-lo de algum modo voltar-se contra o próprio ceticismo, minando nossas certezas comuns para "limpar o terreno" e permitir que a certeza do Cogito venha a servir de fundamento para uma filosofia positiva e sistemática.

 

Inaugurando um estilo de filosofar basicamente justificacionista5 e fundamentacionista,6 que requer, como condição prévia para a constituição do saber filosófico, uma tabula rasa de nossas certezas comuns, em geral - e de nossas certezas sobre o mundo exterior, em particular -, o cartesianismo reservou ao ceticismo um curioso destino. Porque, ao utilizar instrumentalmente o ceticismo de que metodologicamente [92] se alimenta, ele estranhamente o preserva, embora pretendendo superá-lo. A suspensão cética de juízo sobre o mundo exterior converteu-se em estratégia padrão e decisivo em preliminar metodológico ao filosofar. Com isso, o cartesianismo deu um passo para a incorporação da mensagem cética ao pensamento moderno, o que nos permite mesmo falar adequadamente de um modelo cético-cartesiano estabelecido no início das Meditações.

 

Esse modelo, a filosofia pós-cartesiana adotou-o com extraordinária freqüência.77 Entretanto, com uma diferença fundamental: enquanto a metodologia cartesiana da 1ª Meditação percorre sua etapa cética por via argumentativa, o pós-cartesianismo, de um modo geral, houve por bem prescindir dessa argumentação. Tudo se passa como se ela não tivesse mais de ser retomada, como se os resultados por meio dela alegadamente obtidos não tivessem mais de ser revistos, como se um novo empreendimento filosófico, qualquer que ele seja, devesse necessariamente ter princípio já no fim da 1ª Meditação de Descartes. A "suspensão metodológica de juízo sobre o mundo exterior" tornou-se algo como o axioma básico e indiscutível da metodologia filosófica ao qual me referia no início. E, desse modo, o ceticismo metodológico se fez um paradigma onipresente, por vezes um paradigma oculto, mas pelo menos pressuposto sempre. E pressuposto em plena ignorância de suas origens, como se ele não fosse o resultado histórico de uma determinada postura filosófica, construído sobre um estilo de argumentação muito particular.

 

II

 

Essa suspensão de juízo sobre as coisas exteriores, que a filosofia cartesiana de tal modo valorizou, foi sabidamente uma atitude característica e fundamental do ceticismo grego. Em verdade, a epokhé (suspensão de juízo) cética dizia respeito a todas as opiniões e crenças humanas, sustentadas por filósofos ou por homens comuns. Sexto Empírico descreve-nos o cético como um filósofo que, na esperança de obter a quietude e a imperturbabilidade (ataraxía), saiu a campo para investigar o que é verdadeiro e o que é falso nas coisas, porque perturbado pelas anomalias e contradições que nelas encontrava e pela dúvida sobre a que alternativas dar seu assentimento (cf. H.P. I, 12). Ele pôs-se a filosofar no intuito de efetuar um julgamento crítico [92] de suas representações (phantasíai) das coisas e de aprender quais as verdadeiras e quais as falsas (cf. H.P. I, 26). O cético não suprime, por certo, as aparências (tà phainómena), isto é, aquilo que o conduz involuntariamente ao assentimento segundo a representação passiva (phantasía pathetiké) (cf. H.P. I, 19; também II, 10): ele dá assentimento às afecções (páthe) que se produzem necessariamente segundo a representação (cf. H.P. I, 13; também I, 193).

 

Em verdade, a aparência fenomênica (tò phainómenon) é o critério da escola cética, "assim chamando ao que é virtualmente sua representação" (cf. H.P. I, 22).88 Mas tal gênero de concepção não envolve a realidade do que é concebido (cf. H.P. II, 10), os "fenômenos" por si mesmos "meramente estabelecendo o fato de que aparecem, mas não sendo capazes de indicar também que realmente existem (hypokeitai)" (cf. A.M. VIII, 368). A aparência fenomênica, porque repousa em assentimento e afecção involuntária, não é objeto de dúvida ou investigação (cf. H.P. I, 22).99 Não se discute sobre o "fenômeno", que se reconhece, mas sobre sua interpretação: concedendo-se que algo aparece, investiga-se sobre se o objeto é tal qual aparece. O cético sente a doçura do mel e assente a que o mel lhe aparece como doce, mas é matéria de dúvida e investigação se ele é doce, no que concerne à sua essência ou razão (lógos), "o que não é o 'fenômeno', mas o que se diz do 'fenômeno"" (cf. H.P. I, 19-20). A dúvida se põe a propósito de um discurso (lógos) que, falando do "fenômeno", pretende desvelar sua essência ou razão (lógos), isto é, a propósito de um discurso humano que se propõe como interpretação da aparência fenomênica e como desvelamento do discurso interno do objeto, manifestando o ser para além do aparecer. E os filósofos pretendem, com efeito, que os "fenômenos" são significativos das coisas não evidentes (tà ádela), que por meio delas seriam apreendidas: segundo eles, "os fenômenos' são a visão das coisas não-evidentes" (cf. H.P. I, 138). [Osório diz: Muito Bom]

 

Ora, é precisamente essa pretensa passagem do nível fenomênico ao do ser não-evidente que o cético vai pôr em xeque, recordando aliás que é objeto da própria investigação filosófica a questão sobre se as aparências fenomênicas têm existência real (cf. A.M. VIII, 357). Filósofos e mesmo pessoas comuns polemizam sobre se as aparências fenomênicas são sensíveis ou inteligíveis (cf. A.M. VIII, 362). E é grande [93] e manifesta a discordância (diaphonía) das posições: alguns negam às aparências fenomênicas uma existência real, enquanto outros lhes atribuem a existência real e tentam provar por argumentos que elas são verdadeiras (cf. A.M. VIII, 365; também VII, 369). E a mesma comparação entre as aparências fenomênicas, de que se poderia querer tirar alguma luz, revela apenas um insanável conflito entre elas (cf. A.M. VIII, 362-3) e nos deixa perplexos sobre onde fundamentar nossa confiança nelas (cf. A.M. VIII, 365-6),1010 de modo a transcender o nível puramente fenomênico. A diaphonía generalizada entre os discursos, filosóficos ou apenas comuns, que se querem veículos de uma tal transcendência, o filósofo cético a descobre, em cada caso, insuscetível de şer resolvida (cf. H.P. I, 165).1111 Pois sua experiência é sempre a da igual força (isosthéneia) dos discursos e razões que se aduzem e podem aduzir, em cada caso, a favor das partes em conflito (cf. H.P. I, 8-10, 26; também A.M. VIII, 363). Usando uma de suas fórmulas preferidas, o cético dirá então que "a todo discurso se opõe um discurso igual", tendo em vista os discursos que se propõem a estabelecer algo "dogmaticamente", isto é, com remissão a uma não-evidência, e entendendo essa igualdade no sentido da credibilidade ou não-credibilidade e aquela oposição como conflito (cf. H.P. I, 1, 202-3).1212 Essa prática de opor a todo discurso um discurso de igual força, Sexto Empírico nô-la descreve como o princípio fundamental do ceticismo (cf. H.P. I, 12). Assim, ao reconhecimento da diaphonía, que por si só já exibe a não-evidência,1313 sucede, em cada caso, a manifestação da isosthéneia.

 

Incapaz de decidir entre alternativas de igual peso, não tendo como aceitar uma opinião ou rejeitá-la, o cético é levado à suspensão de juízo, à epokhé (cf. H.P. I, 26).1414 Como nos explica Sexto Empírico, a epokhé é "um estado de repouso do intelecto (diánoia), devido ao qual nada afirmamos nem negamos" (cf. H.P. I, 10); ao dizer que suspende o juízo, o cético quer simplesmente significar que é incapaz de dizer no que deve acreditar ou não acreditar entre quantas coisas se lhe apresentam, já que lhe aparecem iguais as alternativas no que respeita à sua credibilidade ou não-credibilidade (cf. H.P. I, 196). Ocorre assim que, em virtude da isosthéneia e da conseqüente inevitabilidade da epokhé, o cético deixa de "dogmatizar" (cf. H.P. I, [94] 12), isto é, não mais dá assentimento a nenhuma das coisas não-evidentes. Ele não encontrou um critério de verdade, um critério que regule a crença na realidade ou irrealidade.1515 O cético se confinará, então, se assim nos permitimos expressar-nos, ao universo de suas representações. Mesmo ao proferir suas fórmulas, estará apenas anunciando, sem opinar (adoxástos), o que lhe aparece, "sem fazer nenhuma asserção positiva sobre os objetos exteriores" (perí tôn éxothen hypokeiménon, cf. H.P. I, 15) e sobre sua natureza (cf. H.P. I, 208; também I, 215):1616 ao dizer, por exemplo, que a todo discurso se opõe um discurso igual, sua proferição não é "dogmática", mas, meramente "o anúncio de uma afecção humana (anthropeíou páthous apaggelian) que aparece (hó esti phainómenon) a quem a experiencia" (cf. H.P. I, 203). Mesmo ao discorrer sobre o ceticismo, ó cético não está afirmando positivamente que as coisas são como ele as diz, mas apenas anunciando, à maneira de um cronista, o que The aparece no momento (cf. H.P. I, 4). Seu discurso nunca é assertivo nem opinativo, ele não visa a uma realidade, ele se produz como mero "discurso da representação", expressão da pura fenomenicidade. E, o que é mais, esta análise do seu discurso, o cético deve em verdade estendê-la a todos os discursos, em que pesem as pretensões de seus autores. Assim, por exemplo, um filósofo que se diz critério da verdade está apenas dizendo o que lhe aparece (tò phainómenon hautô) e nada mais (cf. A.M. VII, 336), o mesmo ocorrendo com cada um dos outros filósofos que o contradizem. A fenomenicidade adquire destarte uma dimensão universal, ela recobre igualmente ambos os domínios do sensível e do inteligível. E a epokhé nada mais faz senão traduzir a incapacidade humana para transcendê-la.

 

Para manifestar a efetiva isosthéneia dos discursos todos que se propõem a transcender a esfera fenomênica e desse modo mostrar a inevitabilidade da epokhé, o ceticismo grego constituiu, como se sabe, um conjunto extraordinário de argumentos, que ele foi sistematizando ao longo de sua história e cuja ordenação final nós encontramos nas obras de Sexto Empírico. Este autor expõe-nos as figuras gerais da argumentação cética, elaboradas pelos velhos e pelos novos céticos, particularmente os dez tropos de Enesidemo (cf. H.P. I, 36-163) e os cinco tropos de Agripa (cf. H.P. I, 164-77). E passa longamente em revista as posições "dogmáticas" nas diferentes ramificações do pretenso saber humano, sobretudo na Lógica, na Física e na Ética, que correspondem às três divisões da filosofia tornadas tradicionais pelo [95] pensamento estóico (cf. H.P. II, 13; A.M. VII, 1-26). Alguns entre aqueles argumentos, sobretudo os que se contêm em boa parte dos tropos de Enesidemo - e deles fazem precisamente parte os argumentos que se fundamentam nas ilusões dos sentidos - pareceriam, à primeira vista, pôr em xeque tão-somente nosso conhecimento da real natureza dos objetos exteriores, não porém a sua própria realidade.1717 Pois não é assim que se deveria interpretar uma passagem como esta: "Serei capaz de dizer como me aparece cada um dos objetos, mas sobre como ele é quanto à sua natureza serei compelido... a suspender o juízo" (cf. H.P. I, 78)? Desse tipo são os argumentos baseados nas diferenças entre os animais ou entre os seres humanos, na diferente constituição dos órgãos dos sentidos, nas diferenças entre as condições e disposições humanas (incluindo-se aqui o argumento dos sonhos), na diferença das percepções conforme a posição, distância e localização dos objetos1818 etc. A suspensão de juízo diria respeito, não propriamente à realidade de um mundo exterior, mas aos recortes que nossa percepção sobre ele efetua. Creio, no entanto, que uma análise mais atenta e aprofundada desses argumentos nos revela que eles sugerem claramente a distinção entre objeto fenomenal e objeto real, nossas impressões dizendo respeito ao primeiro, nossa epokhé traduzindo a impossibilidade de afirmar o que quer que seja sobre o último: nem mesmo caberia, por exemplo, dizer que temos a percepção de objetos exteriores. Como disse Ch. L. Stough, concluindo sua lúcida análise da doutrina do phainómenon de Enesidemo, a meu ver com inteira razão: "O método de Enesidemo... fornece uma base para uma epistemologia puramente fenomenista, na qual o objeto exterior, privado de qualquer função, se tornou totalmente desnecessário" (cf. Stough, 1969, p.105).1919 [Osório diz: Muito bom]

 

Seja como for, numerosos outros textos de Sexto Empírico são absolutamente decisivos no sentido de mostrar-nos que a epokhé, tal como preconizada pelo ceticismo grego (deste excluindo-se, por certo, a filosofia probabilista da nova Academia),2020 punha em xeque a exterioridade do mundo, em geral. Contra os filósofos que, para defender o caráter adequado e suficiente da percepção sensível, argumentavam que a Natureza fizera os sentidos comensuráveis com seus objetos, Sexto Empírico pergunta “qual Natureza?" e lembra a diaphonía indecidível entre os "dogmáticos" acerca da mesma realidade da Natureza (cf. H.P. I, 98). Mas são so- [96] bretudo os dois livros Contra os Físicos (respectivamente A.M. IX e X) e o terceiro livro das Hipotiposes Pirronianas que se podem aqui invocar. Neles, Sexto passa sucessivamente em revista os argumentos que se podem aduzir para mostrar o caráter inapreensível da realidade dos deuses ou de uma divindade qualquer, de uma causalidade ou passividade real nos objetos, dos princípios materiais, dos corpos, das várias formas do movimento e do repouso, do devir e do perecer, do lugar e do tempo, do número;2121 sobre todos esses tópicos da filosofia "dogmática" e do pretenso saber comum, não resta ao cético senão a epokhé. Mesmo aqueles discursos que pareceriam estar plenamente fundamentados nas aparências fenomênicas, como os que afirmam a realidade do movimento, se vêem contestados por igualmente fortes argumentos filosóficos, não tendo o cético como entre uns e outros decidir (cf. H.P. III, 81).2222 A filosofia estóica havia identificado o Todo (tò hólon) com o mundo (kósmos), mas sólidos argumentos também se podem formular em favor da irrealidade de todos e de partes (cf. H.P. III, 98-101 e A.M. IX, 331-58, part. 331-2). Nunca tendo como justificar qualquer pretensão do discurso de transcender a esfera da fenomenicidade, o cético suspende necessariamente seu juízo sobre a própria existência de uma realidade exterior, Compreende-se que nenhum argumento aparentemente mais radical como o do gênio maligno cartesiano se faz necessário; aliás, a realidade mesma de uma divindade qualquer já é objeto da epokhé cética e um argumento dessa natureza não haveria por que considerar-se particularmente relevante.

 

III

 

Deixemos por alguns momentos as questões históricas e reflitamos um pouco sobre a noção mesma de realidade do mundo exterior. É, por certo, uma estranha noção. Em relação a que se dirão exteriores certos objetos? Em relação a que se dirá exterior o mundo? "Mundo exterior" parece imediatamente contrapor-se a "mundo interior" e, em que pesem as conotações espaciais dessas expressões, uma tal distinção e oposição parece que imediatamente nos remetem, se queremos servir-nos de uma terminologia moderna, à distinção e oposição entre mental e não-mental, entre a mente humana (o que quer que a expressão "mente" possa designar) como "universo interior" e tudo aquilo que dela não faz parte, isto é, a realidade "fora da [97] mente", o mundo. Desta realidade extramental entende-se fazer parte, então, o nosso corpo, objeto exterior como os outros que o são, parte do mundo e mundo, também ele.2323 A natureza e o alcance de uma tal bipolarização se tornam bastante patentes quando se considera a questão do mundo exterior sob o prisma da dúvida ou da suspensão de juízo sobre sua existência. Ou mesmo quando nos propomos simplesmente a examinar, ainda que sem suspender o juízo ou duvidar, quais seriam os fundamentos de nossa crença numa realidade exterior e que razões se podem invocar para validá-la; ou quando fazemos a mera asserção de que temos boas razões para acreditar que há objetos exteriores.2424 Com efeito, a análise da mesma linguagem de que nos servimos, em cada um desses casos, parece muito claramente indicar que se está, desde o início, reconhecendo e assumindo aquela bipolaridade. Pois, dizendo que temos dúvida sobre a existência de uma realidade exterior, ou que sobre ela suspendemos o juízo, ou que buscamos razões para justificar nossa crença nela, ou mesmo apenas proclamando que as temos, também estamos ao mesmo tempo ipso facto pressupondo que, se uma vez mais nos permitimos uma metáfora espacial, o lugar onde se dão essas diversas operações é a nossa mente, espécie de "universo interior" a que se contrapõe um mundo que concebemos como "exterior" e inteiramente outro que não ela, unicamente em relação à qual se define essa "exterioridade".

 

Em outras palavras, uma simples reflexão sobre um qualquer desses procedimentos de problematização, explícita ou meramente implícita, da existência do mundo "exterior" imediatamente descobre - e isso como condição sine qua non da própria inteligibilidade de nossa linguagem - que ele necessariamente repousa sobre o reconhecimento e a aceitação prévia de uma distinção radical entre a mente e o mundo. Aquela, como o "lugar" da própria dúvida ou crença, este como o seu objeto. Aquela, como uma espécie de "espaço interno" onde se dá a representação do mundo, este como o seu correlato intencional, a investigação dizendo respeito à eventual realidade ou não-realidade de um tal correlato. Mas a mente, também, como o que é dado e não é problematizado, enquanto o mundo, ao contrário, como o que não é dado, já que é, ou pode ser, problematizado. E o próprio vocabulário da exterioridade já sugere, de si mesmo, uma tal problematização e a ela convida. De fato, precisamente porque pressupõe – e se contrapõe a – uma “interioridade” dada, a noção de exterioridade [98] emerge, por assim dizer, já prenhe de problematicidade e a possibilidade desde logo se insinua de questionar-se a realidade dessa "exterioridade". [Osório diz: a mente está no mundo, mas fora dele!]

 

De outro lado - e na medida mesma em que nosso corpo está incluído nessa "exterioridade" problemática ou problematizável -, parece também inegável que, a cada vez que exprimimos um daqueles procedimentos de problematização da existência do mundo "exterior", estamos pressupondo que a referencialidade do pronome "eu", ingrediente por certo necessário de nossas formulações lingüísticas e utilizado para falarmos daquela dúvida ou suspensão de juízo ou investigação ou crença, diz primordialmente respeito a nossa mente. Com efeito, operada a distinção entre a mente e o corpo e problematizado o corpo, é àquela que o pronome então imediatamente remete, destarte assinalando a consumação de uma como ruptura entre o eu e o corpo próprio. O corpo, que eventualmente cremos "ter", aparece assim como outra coisa que não verdadeiramente o nosso eu, como fazendo parte, não deste, mas, sim, do mundo que está "fora de nós" e no qual, por isso mesmo, parece devermos também dizer que, de algum modo, não estamos. Além disso, precisamente porque a “interioridade" é dada e não o é a "exterioridade", diremos que somente àquela temos acesso imediato e não a esta, não portanto também a nosso corpo. Nosso acesso privilegiado é ao "universo de nossa mente", isto é, a nossos pensamentos, idéias, impressões, afecções, representações; em suma, à esfera da representação, não às coisas e aos objetos representados. [Osório diz: Nietzsche diz que é o o pensamento que nos pensa e não o contrário!].

 

Essas considerações, ainda que sucintas, parecem-nos claramente indicar que a problematização cética do mundo "exterior" - como também, aliás, a mera concepção de uma tal "exterioridade", mesmo se acompanhada de crença firme em sua existência real - implica efetivamente a oposição nítida entre mente e mundo, a distinção radical entre mente e corpo, a contraposição entre representação e objeto representado; em resumo, uma doutrina positiva da mente e uma concepção da representação a ela associada, mesmo se apenas em germe e não explicitamente formuladas. Mas creio podermos dizer mais do que isso: é porque se adere de início a uma tal doutrina e a uma tal concepção, mesmo se apenas entrevistas e não desenvolvidas, que a "exterioridade" pode conceber-se e emergir como problema e as diferentes modalidades de problematização podem ter lugar. Porque perguntar pela existência de uma realidade "exterior" é o mesmo que perguntar se ao "mental" que nos é "dado" corresponde algo de "não-mental", isto é, se o "mental" representa efetivamente algo real e outro que não ele, se a partir dele podemos inferir a existência desse outro, transcendendo a representação e atingindo o representado. Como se disse recentemente, esta é a pergunta "profissional" do ceticismo.2525

[99]

 

Assim, a investigação sobre a existência de uma realidade "exterior" não é que a investigação sobre como responder a essa pergunta. E a suspensão cética do juízo sobre aquela realidade é a confissão de que para essa pergunta não se encontrou uma resposta. Analogamente, dizer que se têm boas razões para crer numa tal realidade é dizer que se encontrou para essa pergunta uma boa resposta. Mas tudo isso somente se compreende se uma distinção nítida entre "mental" e "não-mental" já está postulada, firmada e assumida previamente. Se já se aceitou, de algum modo, desde o início aquilo que Place denominou "a falácia fenomenológica", isto é, a idéia de que "descrições das aparências das coisas são descrições do atual estado de coisas (state of affairs) num misterioso ambiente interno" (cf. Place, 1970, p.42), a suposição de que,

 

quando o sujeito descreve sua experiência, quando ele descreve como as coisas se dão a seu olhar, ouvido, olfato, gosto ou tato, ele está descrevendo as propriedades literais de objetos e eventos numa espécie peculiar de tela interna de cinema ou televisão. (cf., ibidem, p. 49)2626

 

São essa aceitação e essa suposição prévias que dão sentido à tarefa proposta de buscar o mundo a partir de nossas representações. Assim como são elas, também, que permitem uma asserção como a de que "eu não me contradigo ao sustentar positivamente que eu não conheço nenhum fato externo" (cf. Moore, 1970, p.159). O "exterior" se torna problema porque se privilegiou decididamente o "interior". Não fosse essa opção - e trata-se de uma nítida opção filosófica - e outra teria necessariamente de ser a maneira de lidar-se com os argumentos baseados nas ilusões dos sentidos, nos sonhos, nas "contradições" da experiência perceptiva em geral, na eventual perfídia de um deus enganador, na discordância infindável das opiniões dos filósofos e dos homens comuns, ou na eventual força igual de persuasão dos discursos em conflito. Não fosse ela e não haveria como justificar a idéia, a final de contas bastante estranha, de que a existência e a natureza das coisas se devem discutir a partir da consideração e análise de nossos processos mentais. Em outras palavras, estou defendendo a tese de que a problematização cética do mundo, concebido como "exterior", repousa em verdade, em que pese a pretensão dos céticos de haverem procedido a uma epokhé universal sobre todas as opiniões e doutrinas, sobre uma opção filosófica particular, isto é, sobre alguma forma de filosofia da mente, no sentido mais geral que se possa conferir a essa expressão. Uma tal filosofia da mente pode obviamente assumir distintas configurações, mas me parece que duas alternativas mais imediatamente se desenham: pode optar-se por uma teoria substancialista [101] da mente, identificando-se eu e substância pensante, recusando-se ipso facto abertamente a postura cética inicial ou, pelo menos, rejeitando-se sua extensão para além da problemática do mundo "exterior"; ou pode optar-se por uma noção de mente como mero feixe e sucessão de data incorrigíveis e indubitáveis, eventualmente suscetíveis de serem integrados e sistematizados em maior ou menor grau. Esta segunda maneira de conceber a mente faz dela uma coleção de "representações" ou "percepções", com a qual se pode identificar o eu e o homem.2727

 

IV

 

Tudo isso parece-me resultar de uma consideração mais atenta da questão da assim chamada exterioridade do mundo e de sua problematização filosófica. E não vejo como se pudessem evitar tais conclusões. Retornemos, porém, ao ceticismo histórico, tal como ele nos foi preservado e explicitado na obra de Sexto Empírico. Parece-me que tudo quanto acima expus a propósito da epokhé cética sobre a existência de uma realidade "exterior" já nos propicia elementos mais que suficientes para mostrar que a reflexão teórica há pouco esboçada se vê plenamente confirmada pela análise histórica. Isso salta-nos tanto mais aos olhos quando recordamos que a crítica do ceticismo se definiu fundamentalmente contra um pano de fundo postura constituído pelo sistema filosófico estóico, reconhecidamente predominante naquela época, e quando atentamos na estreita relação que facilmente se descobre entre a formulação de problemática cética e a teoria estóica do conhecimento. Esta, como se sabe, construiu-se sobre a noção de representação (phantasía) e uma de nossas principais fontes para reconstituí-la é precisamente a obra de Sexto Empírico (cf. A.M. VII, 227-62, 370-439: H.P. II, 70-9).2828 Inicialmente entendida como uma impressão (týposis) na alma, posteriormente como uma alteração (heteróiosis) nela, a phantasía estóica, a partir de sucessivas discussões entre os filósofos da Escola e [101] outras tantas reformulações da doutrina (cf. A.M. VII, 227s), veio a ser definida como uma alteração passiva na parte regente (tò hegemonikón) da alma, estando nesta definição implicado que essa passividade é o resultado de um impacto produzido pelos objetos exteriores (tà ektós) ou das afecções (páthe) em nós, como, por exemplo, no caso dos sonhos. É as representações são classificadas (cf., ibidem, 241s) em persuasivas ("prováveis", pithanai), não-persuasivas ("improváveis", apíthanoi), tanto persuasivas como não-persuasivas e nem persuasivas nem não-perstiasivas; as persuasivas produzem um movimento brando na alma, o que não ocorre com as não-persuasivas, as quais nos fazem declinar do assentimento. Das representações persuasivas ou "prováveis", umas são verdadeiras (aquelas a cujo respeito é possível fazer uma asserção verdadeira), outras falsas (a respeito das quais é possível fazer uma asserção falsa, como, por exemplo, a de que o remo sob a água está torcido), outras verdadeiras e falsas (como a representação que Orestes teve de Eletra, verdadeira porque produzida por um objeto real, mas falsa na medida em que pareceu a Orestes, em sua loucura, ter a representação de uma Fúria), outras ainda nem verdadeiras nem falsas (como as representações genéricas). E uma representação verdadeira dir-se-á apreensiva (kataleptike) ou não-apreensiva. Esta noção de representação apreensiva é básica, como se sabe, para a teoria estóica do conhecimento - os estóicos dela fizeram o critério da verdade (cf., ibidem, 227) - e contra ela se concentrou particularmente a crítica cética. Os estóicos entenderam a representação apreensiva como "aquela que provém de um objeto real e é modelada estampada conforme ao próprio objeto real, sendo tal que não poderia provir de algo irreal" (cf., ibidem, 248),2929 uma representação que, por assim dizer, reproduz "artisticamente" todas as peculiaridades do objeto. E alguns estóicos acrescentaram à definição a expressão “não tendo nenhum obstáculo", para levar em conta aqueles casos em que uma representação, em si mesma verdadeira e apreensiva, pode no entanto aparecer ao sujeito como "improvável", em virtude das circunstâncias do momento.

 

Mas, não havendo obstáculo, a representação apreensiva, "sendo evidente e impressiva, quase nos toma pelos cabelos, dizem eles, arrastando-nos ao assentimento e de nada mais precisando para de tal modo sobrevir-nos, ou para indicar sua diferença em relação às outras" (cf., ibidem, 257-8), qual uma luz que a Natureza nos deu para o conhecimento da verdade. Essa representação é de tal natureza que, além de ser verdadeira, é incapaz de tornar-se falsa (cf., ibidem, 152). E os estóicos dirão que, tanto quanto é absurdo alguém conceder a existência das cores mas abolir a visão como irreal ou indigna de confiança, ou dizer que os sons existem mas negar a existência da audição, é-o também reconhecer a existência dos objetos, investindo [102] porém contra as representações, por meio das quais eles se apreendem (cf., ibidem, -260). O conhecimento se entenderá, então, como uma apreensão firme e infalível do objeto, esta apreensão não mais sendo do que assentimento a uma representação apreensiva (cf., ibidem, 151).

 

Temos assim, no estoicismo, de um lado, uma clara oposição entre a alma e os objetos "exteriores" (tà ektós) e uma nítida teoria causai da percepção - é o próprio Sexto quem expressamente nô-lo aponta;3030 de outro, uma concepção especular do conhecimento perceptivo, entendido como apreensão infalível do objeto, sob forma de assentimento à representação apreensiva que ele produz na alma, numa luminosa evidência que torna inquestionável a experiência e compulsório o assentimento. O que nos permite dizer que, para o estoicismo, o conhecimento do "exterior" se constrói, de algum modo, como uma experiência "interior" de natureza toda peculiar.3131

 

Os filósofos da Nova Academia, Arcésilas e Carnéades em particular, rejeitarão a teoria estóica da representação apreensiva e negarão a existência de um critério qualquer de verdade.3232 Carnéades lembrará que um tal alegado critério não subsiste independentemente da afecção (páthos) da alma produzida pela evidência sensorial, nela, em verdade, devendo ser buscado; enquanto a representação estóica se propõe como uma afecção do ser vivo que seria indicativa tanto de si própria quanto do objeto evidente que a produz (cf. A.M. VII, 160-2). Por outro lado, já argumentara Arcésilas que nenhuma representação é tal que não possa ser falsa (cf., ibidem, 154). E Carnéades insistirá em que sempre será possível descobrir, em face de qualquer representação aparentemente verdadeira, uma outra que, embora falsa, é exatamente semelhante àquela primeira e é dela, portanto, indistinguível (cf., ibidem, 164). Consideremos as representações de um homem que sonha ou em estado de loucura (cf., ibidem, 402-8): elas são tão evidentes e impressivas quanto as de outro homem qualquer, essa igual evidência e impressividade testemunhando de sua indistinguibilidade em relação às outras; por outro lado, o fato de que essas representações, além de impelirem ao assentimento, conduzem a ações que lhes são conformes, como é obviamente o caso da loucura, indica seu alto grau de evidência e impressividade. Em outras palavras, a análise das afecções da alma que constituem as representações não descobre nenhum traço característico, nenhuma diferença real [103] que permita efetivamente distinguir as representações ditas apreensivas daquelas a que se não confere esse estatuto.

 

A recusa do critério estóico da verdade sobre o mundo "exterior" não obstou, entretanto, a que os filósofos da Academia assumissem a base mesma da teoria da representação, sobre ela desenvolvendo sua doutrina "probabilista".3333 Carnéades, com efeito, retoma a noção de phantasía3434 e lembra seu caráter duplamente relativo: a representação é sempre de um objeto (um objeto sensível externo, por exemplo), mas ela é também de alguém (do homem no qual ela se dá). Sua verdade ou falsidade - da qual não temos critério - diz respeito à sua relação com o objeto; com relação, porém, ao sujeito que as experimenta, algumas representações lhe são aparentemente verdadeiras e se dirão persuasivas (ou "prováveis", pithanai), outras lhe são aparentemente falsas e se dirão não-persuasivas (ou “improváveis", apíthanoi). Entre as representações "prováveis", algumas são obscuras e vagas, outras ao contrário exibem a aparência de verdade de modo intenso, de uma intensidade que pode assumir diferentes graus, permitindo-nos distinguir entre representações mais ou menos "prováveis", conforme a sua maior ou menor vivacidade (cf. A.M. VII, 171-2).3535 E Carnéades toma, então, a representação "provável" como critério (cf., ibidem, p.173), não por certo para o conhecimento da realidade, mas para a conduta da vida e a aquisição da felicidade (cf., ibidem, p.166). Em face, porém, de questões não-triviais, mas de maior importância, não nos satisfaremos com regular nossa conduta por representações meramente "prováveis"; nesses casos, dado que nossas representações se combinam umas com as outras como os elos de uma cadeia, formaremos nosso juízo a partir da concorrência (syndrome) de várias representações e de sua integração consistente umas com as outras: nosso critério será, então, uma representação “inabalável" (aperispastos), isto é, uma representação que, além de "provável", está também integrada num sistema de representações consistente. Em questões de importância máxima, quando nossa própria felicidade está em jogo, exigiremos ainda mais de nossas representações, procedendo ao escrutinio sistemático e atento de cada uma daquelas que se acham mais estreitamente concatenadas com a representação que nos interessa, isto é, nós testaremos nossa representação, obtendo destarte uma representação com o grau máximo de confiabilidade: além de "provável" e "inabalável", ela estará também "testada" (diexodeuméne) (cf., ibidem, p.176-89).

[104]

 

[Osório diz: alguns dizem que não podemos negar a realidade. Mas o que te dá a realidade? Os sentidos. Mas Platão, que esses alguns apoiam, negava os sentidos!]

 

Ao conhecimento infalível dos estóicos sucede assim o conhecimento "provável" dos Acadêmicos. Assume-se sempre, por certo, a "exterioridade" e mantêm-se a teoria da representação e a concepção de verdade. Mas, ao preservar-se a noção de conhecimento como experiência "interior", fundada sobre a natureza peculiar de nossas afecções (páthe), descobre-se a impossibilidade de tomar as representações como base para um critério absoluto de verdade. As representações servirão apenas de critério para a vida cotidiana, a partir das diferenças que entre elas se manifestam no que respeita à aparência de verdade, com grau maior ou menor de vivacidade, individualmente ou concatenadas em sistema.

 

O ceticismo propriamente dito dará um passo adiante. De fato, os céticos não dirão, como os Acadêmicos, que a verdade é inapreensível e que dela não há critério em sentido absoluto; contentar-se-ão com a suspensão de juízo (epokhé), não querendo incidir num dogmatismo às avessas. Argumentarão fortemente contra as várias concepções de critério, mas não pensarão, como os Acadêmicos, que seus argumentos são conclusivos e definitivos. Em verdade, reconhecerão que os argumentos "dogmáticos" em favor da existência de critérios para o conhecimento da realidade e da verdade são tão fortes e persuasivos como os que se lhes podem opor; mas esta mesma isosthéneia entre argumentos "dogmáticos" e argumentos "céticos" contará em seu favor, compelindo-os irrecusavelmente à epokhé (cf. H.P. II, 79; A.M. VII, 443s). De qualquer modo, enfrentarão decididamente a problemática do critério e se ocuparão extensamente dela.

 

Considerando mais particularmente os critérios "lógicos" introduzidos para a pretensa apreensão da verdade, Sexto Empírico dentre eles distingue (cf. H.P. II, 16, 21; A.M. VII, 34-7, 261) o critério do agente (o homem, pelo qual se daria a captação da realidade e da verdade), o critério do instrumento (os sentidos (aisthéseis) e o intelecto (diánoia), por meio dos quais a realidade se apreenderia) e o critério da aplicação e uso (ou critério da representação (phantasía), cuja aplicação corresponderia ao uso daqueles instrumentos, já que se supõe que o homem apreende a realidade por meio de seus sentidos e intelecto, conforme à representação).

 

E Sexto investe contra todos eles.3636 Argumenta para mostrar o caráter inconcebível do homem, a partir da diaphonía existente entre os "dogmáticos" e da frequente ininteligibilidade de suas concepções do homem (cf. H.P. II, 22-8; A.M. VII, 263-82). Mesmo que fosse concebível, não seria o homem apreensível, já que não o são o corpo e a alma, que se dizem compô-lo (cf. H.P. II, 29). Aliás, sobre a própria existência da alma, há entre os filósofos controvérsia (cf., ibidem, 31). Dir-se-á que [105] julgamos as coisas pelos sentidos, ou pelo intelecto, ou por ambos conjuntamente? Ora, há diaphonía entre os filósofos no que concerne à realidade dos objetos dos sentidos, discute-se sobre a capacidade de apreensão dos sentidos ou sobre o caráter eventualmente "vazio" de suas afecções (cf., ibidem, 49-50). Se os sentidos apreendem algo, será tão-somente as suas afecções (cf., ibidem, 72, 74). Meramente passivos e em si mesmos irracionais (cf. A.M. VII, 293, 344), incapazes de se apreenderem a si próprios (cf., ibidem, 301-2), certamente incapazes de congregar as suas diferentes percepções, eles não podem certamente apreender a substância corpórea, nem mesmo as propriedades dos corpos, enquanto tais (cf., ibidem, 294-300). E Sexto também relembra (cf., ibidem, 345-6) os tropos de Enesidemo, que sobejamente enumeram as discordâncias entre as representações propiciadas pelos sentidos. Mas que dizer do intelecto? É, por certo, a parte menos evidente da alma (cf. H.P. II, 32-3), sendo grande a diaphonía sobre ele e sobre sua própria existência (cf. A.M. VII, 349-50; H.P. II, 57), questão que não se pode decidir nem apreender. Como poderia julgar adequadamente das outras coisas um intelecto que se contradiz sobre sua própria essência, sobre sua própria origem e localização? (cf. H.P. II, 58) Ora, o intelecto deveria ser capaz de previamente apreender-se a si mesmo, coisa que ele não consegue, antes de apreender seus pretensos objetos (cf. A.M. VII, 348, 310-3). Por outro lado, não se entende como ele poderia apreender a substância corpórea, ou os próprios sentidos, sem tornar-se irracional como eles e desmentir, assim, sua alegada racionalidade (cf., ibidem, 303-9). Recorrer-se-á acaso à ação conjunta do intelecto e dos sentidos? Mas os sentidos se opõem frequentemente ao intelecto e, de qualquer modo, quando neles se baseia, o intelecto é compelido a enunciados conflitantes (cf. H.P. II, 63). Além de que, intervindo entre os objetos externos e o intelecto, haverão os sentidos de estorvar o intelecto e de impedir que ele apreenda os objetos (cf. A.M. VII, 352-3).

 

O que pensar, enfim, da representação? Entendida como algo intermediário entre o intelecto e os objetos externos, ela se diz uma impressão ou alteração na parte regente da alma. Ora, uma tal representação é inconcebível e inapreensível: não somente as noções de impressão e alteração envolvem dificuldades insuperáveis, mas há também inegável diaphonía sobre a própria existência da parte regente da alma (cf. H.P. II, 70-1; A.M. VII, 370-80). Por outro lado, a doutrina da representação assume que o intelecto não tem contacto com os objetos externos e que a representação se dá através dos sentidos; ora, na medida em que estes somente apreendem, se tanto, as suas próprias afecções (páthe), não há propriamente representações dos objetos exteriores, mas tão-somente daquelas afecções, coisa outra que não a realidade exterior (cf. H.P. II, 72-3). Diz-se que a representação é um efeito do objeto representado (tò phantastón), que este é a causa da representação ao impressionar a faculdade sensitiva; mas, nesse caso, ao aplicar-se às representações, o intelecto estará recebendo tão-somente os efeitos dos objetos representados, não os [107] próprios objetos exteriores representados (cf. A.M. VII, 383). Falar-se-á acaso da existência de uma semelhança entre as afecções dos sentidos e os objetos externos, entre as representações e os objetos representados? Mas como poderá o intelecto saber dessa semelhança, se ele não tem acesso aos objetos externos, mas tão-somente às suas representações? (cf. H.P. II, 74; A.M. VII, 384-5) Como poderá alguém que não conhece Sócrates e vê o seu retrato saber que o retrato a ele se assemelha? (cf. H.P. II, 75; A.M. VII, 378) Aliás, as noções de representação apreensiva e de objeto real, tais como a filosofia estóica nô-las define, configuram uma circularidade manifesta: pois se define aquela como uma representação que provém de um objeto real e é a ele conforme, mas se define o objeto real como "aquele que provoca uma representação apreensiva" (cf. A.M. VII, 426). Por essas e muitas outras razões, dever-se-á reconhecer que os objetos externos são não-evidentes para nós e, por isso mesmo, incognoscíveis (cf., ibidem, 366). Mas também não há por que aceitar a doutrina "probabilista" dos filósofos da Academia (cf., ibidem, 435-8). Consideremos aquelas representações a que eles atribuem o máximo de confiabilidade, as representações "prováveis", "inabaláveis" e "testadas"; ora, assim como eles criticaram o critério da representação apreensiva, argumentando que se pode descobrir representações falsas exatamente semelhantes àquelas que se propõem como absolutamente verdadeiras e delas, portanto, indistinguíveis, analogamente se pode argumentar que, no exame das representações "prováveis", falsidades poderão subsistir ao lado do que é testado, escapando a nosso escrutínio. É sempre a relação com a verdade, qualquer que ela seja, que se descobre como irremediavelmente problemática, nenhuma razão permanecendo para que se atribua a alguma representação uma dose maior de credibilidade.

 

V

 

Poderia parecer que o ceticismo rejeitou toda a teoria estóica do conhecimento, desde os seus mesmos fundamentos. Mas essa impressão errônea não se mantém após um pouco de reflexão. Porque, se a postura e a argumentação cética mais atentamente se consideram, verifica-se que uma parte importante daqueles fundamentos se manteve incólume. Com efeito, toda a argumentação cética assume, sem questionálo, o ponto de vista estóico - e Acadêmico - segundo o qual, para haver conhecimento, é necessário haver um critério para decidir da adequação ou não-adequação das nossas assim chamadas representações aos objetos "exteriores", por elas alegadamente representados. Os estóicos propuseram a representação apreensiva, os Acadêmicos - mantendo aquele ideal de conhecimento, mas negando sua exeqüibilidade - substituíram-na pela representação "provável", os céticos procuraram incansavelmente mostrar que não temos como dar preferência a uma representação [107] sobre outra,3737 como superar a diaphonía entre elas, como não reconhecer a isosthéneia entre os discursos que as exprimem. Mas ipso facto estavam aceitando que a questão do conhecimento da realidade "exterior" somente se podia definir em função da natureza de nossas representações. Estas, é verdade, em decorrência da argumentação cética, se vêem privadas, por assim dizer, de seu caráter propriamente representativo, na medida em que sua efetiva representatividade é problematizada e se torna apenas virtual. Pois não se concebe como os sentidos ou o intelecto poderiam transcender as representações e, por todas as razões que vimos, a passagem para fora de nossas representações, para o "exterior", se encontra irremediavelmente interrompida. Mas isso quer dizer que se assumem as representações em si mesmas, enquanto dizem respeito tão-somente a nossas afecções: é a velha doutrina cirenaica que se retoma, segundo a qual apenas nossas afecções (páthe) são apreendidas, somente elas são infalíveis e indubitáveis (cf. H.P. I, 215; também A.M. VII, 191). Somente a elas, que se produzem de modo necessário e "conforme à representação" (katà phantasían), dá o cético seu assentimento (cf. H.P. I, 13). Entretanto, precisamente porque se problematiza a alegada representatividade, se falará menos em phantasía que em phainómenon e será esta noção que se terá agora como fundamental. Em suma, a phantasía se faz mero phainómenon e Sexto Empírico identificará o phainómenon, aquilo que nos aparece, que nos move involuntariamente ao assentimento conforme a representação passiva (katà phantasían pathetikén, cf., ibidem, I, p.19), com o que virtualmente seria uma representação, sua própria representação (cf., ibidem, I, p.22).3838 E o fenômeno tudo recobre, o sensível e o inteligível; dir-se-á fenômeno não apenas a aparência sensível que se presume remeter ao objeto exterior, mas também quanto sobrevém a nosso pensamento: ao discorrer sobre a escola cética ou ao proferir suas fórmulas, o cético está somente anunciando seus fenômenos e suas afecções do momento, tanto quanto um "dogmático" quando diz, por exemplo, ser ele próprio um critério de verdade (cf. H.P. I, 4, 15, 187, 190, 197, 203; A.M. VII, 336). O discurso não-tético dos céticos se faz mera expressão da fenomenicidade.

 

Assim, o ceticismo assumiu plenamente a distinção estóica e Acadêmica - entre o "interior" e o "exterior", aquele como dado, este como o que nele se representa. E mostrou - a meu ver de modo coerente e irrecusável - que não há como passar de um tal "interior" a um tal "exterior", que a análise do "interior" não nos leva a nenhuma porta de saída. Esse o sentido da problematização cética do mundo "exterior", esse o caminho que leva à epokhé. Será válido atribuir-se ao ceticismo uma teoria da mente? Creio que devemos matizar nossa resposta. Vimos que o ceti- [108] cismo recusou uma teoria do homem, assim como uma teoria dos sentidos ou do intelecto (diánoia). Entendeu que a diánoia dos dogmáticos é inapreensível ou, pelo menos, que há fortes argumentos contra a sua apreensibilidade. Mas, por outro lado, Sexto Empírico definiu a epokhé como um estado de repouso da diánoia, devido ao qual nada afirmamos nem negamos (cf. H.P. I, 10). Não há certamente, aí, nenhuma contradição. Entendida como parte da alma humana, como faculdade capaz de servir de instrumento para a apreensão dos objetos "exteriores", a diánoia se configura como uma entidade postulada pela filosofia "dogmática", sobre cuja existência os céticos suspendem obviamente o seu juízo. Mas quer parecer-me que, sem nenhuma infidelidade à postura cética, aquela expressão poderia usar-se para designar a própria multiplicidade e sucessão de nossas "representações", o feixe de nossas "afecções", o nosso "mundo interior" a que a manifestação da isosthéneia garante um "estado de repouso". A definição sextiana da epokhé parece-me apontar também nessa direção. E, ao dizer que, ao proferirmos nosso discurso, estamos apenas anunciando nossa própria afecção (páthos), uma "afecção humana",3939 Sexto parece-me caminhar, ouso dizê-lo, para uma identificação entre a diánoia, o eu fenomênico e o "homem".

 

Mas o ceticismo não dispunha, por certo, das categorias conceituais necessárias para um tal passo, que somente o empirismo moderno viria a dar explicitamente.4040 Pouco parece, no entanto, ter faltado para que a diánoia, uma vez expurgada sua concepção "dogmática", viesse a entender-se como a mente de nossa filosofia moderna. Todas as razoes acima me levam a dizer que uma teoria da mente está contida em germe na obra de Sexto Empírico. E não apenas em germe: estou convencido de que, uma vez reconhecido o compromisso do ceticismo com uma concepção mentalista e afastado um temor injustificado de anacronismo, uma vez removidos os preconceitos que podem criar obstáculo a uma interpretação mais adequada dos textos, uma análise mais aprofundada destes virá a mostrar que os filósofos céticos desenvolveram todo um conjunto de idéias exploratórias acerca do conteúdo de nosso mundo "interior" ou "mental", isto é - recorrendo a uma terminologia mais próxima à que utilizaram -, acerca das relações que se podem descobrir entre nossas múltiplas "afecções", manifestando as diferentes formas de integração e organização que se processam na esfera fenomênica. A etiologia de Enesidemo (cf. H.P. I, 180-5) e a doutrina cética do signo "rememorativo"4141 podem-se invocar sob essa [109] perspectiva e sua comparação com a teoria humeana da causalidade e conjunção constante se impõe absolutamente. Muitos outros textos sugerem toda uma teoria do conhecimento claramente empirista, com base em nossa apreensão dos "fenômenos".4242 Em resumo, dispomos de elementos mais que suficientes para asseverar que a problematização do mundo "exterior" levada a cabo pelo ceticismo grego de fato repousa, como à nossa reflexão teórica de há pouco nos aparecera que não poderia deixar de ser, sobre uma teoria mentalista do conhecimento. Eu diria mais: a postura cética me aparece como uma conseqüência "quase lógica" de uma tal teoria.

 

Não nos é possível, portanto, concordar com Rorty quando opõe (cf. Rorty, 1980, p. 46) o ceticismo grego ao "ceticismo à maneira da 1ª Meditação de Descartes", vendo naquele unicamente uma postura moral e um estilo de vida, enquanto somente a 1ª Meditação viria a colocar a questão "profissional" precisa: "Como sabemos que algo que é mental representa algo que não é mental? Como sabemos se o que o Olho da Mente vê é um espelho... ou um véu?". A novidade cartesiana consistiu, para Rorty (cf., ibidem, p.50), na introdução de uma noção de espaço interior único em que tudo que hoje chamamos de "mental" constituía "objeto de quase-observação": sensações corpóreas e perceptivas, verdades matemáticas, regras morais, a ideia de Deus etc. Somente com Descartes a mente humana teria sido pensada como um tal espaço interior (conforme um modelo em que "o intelecto inspeciona entidades modeladas sobre imagens retinianas", cf., ibidem, p.45), como uma espécie de arena interior com seu observador interior. Rorty entende que uma tal concepção, ainda que sugerida por diversos textos antigos e medievais, nunca fora, anteriormente ao século XVII, tomada suficientemente a sério de modo a formar a base para uma problemática (cf., ibidem, p.50). Ele concorda com os autores para quem o problema mente-corpo não se pusera no mundo grego4343, ou para quem a representação dos seres humanos como possuidores de um "dentro" e de um "fora" é basicamente moderna.4444 Ele se inclina decididamente a aceitar a tese de que o "ceticismo epistemológico" emergiu da teoria da percepção representativa criada por Descartes e Locke4545 e entende que o "problema do véu das idéias" - isto é, o problema das "idéias" como uma espécie de anteparo entre o sujeito e o mundo -, responsável pelo lugar privilegiado e central que a epistemologia assumiu na filoso- fia, é um problema que somente a "invenção da mente" no século XVII permitiu se [110] colocasse (cf., ibidem, p.50-1). Rorty hesita sobre o papel que o véu das idéias pode ter desempenhado no ceticismo antigo, mas crê, de qualquer modo, que foi meramente acidental e não central, como na tradição Locke-Berkeley-Kant; não lhe parece claro que o phainómenon cético tenha sido algo como uma idéia lockeana, incorrigivelmente posta diante da mente, e crê que o que mais desta se aproximou, no pensamento antigo, foi a representação apreensiva dos estóicos (cf., ibidem, p. 46, n.1446 46). É certo, porém, que Rorty não se apega dogmaticamente a suas teses: admite a possibilidade de que se venha a estabelecer que a novidade das doutrinas cartesianas da percepção representativa e do "espaço interior" dos seres humanos seja somente aparente e de que os estudos sobre a filosofia helenística e o papel do estoicismo no pensamento da Renascença venham a apontar para muito mais continuidades na história da filosofia que as que sua exposição concede.4747

 

Ora, tudo quanto vimos nas páginas anteriores acerca da teoria estóica da representação e de como ela foi utilizada pelo ceticismo antigo, que ao mesmo tempo parcialmente a preservou e a modificou, de qualquer modo a assumiu e incorporou à sua doutrina, tudo isso parece-me claramente demonstrar que Rorty tinha mais do que razão em suas hesitações. Porque podemos dizer com segurança que "as doutrinas cartesianas da percepção representativa e do 'espaço interior' dos seres humanos" não constituem, de fato, uma novidade. A "mente" não foi "inventada" no século XVII, o estoicismo e o ceticismo grego conheceram-na a seu modo. Tratar-se-ia, quando muito, de uma "reinvenção". E mesmo isso pode pôr-se francamente em dúvida: falta investigar melhor, não apenas o papel dos estóicos no pensamento da Renascença, mas também e creio que sobretudo - o grau de presença do "mentalismo" cético na vasta literatura renascentista que veiculou, comentou e fez reviver o ceticismo antigo, culminando na "crise pirrônica" dos contemporâneos de Descartes, à qual a filosofia do Cogito pretendeu pôr termo.

 

Seja como for, é certo que o ceticismo de Enesidemo e Sexto Empírico – como também, aliás, a filosofia "probabilista" da nova Academia - tem uma dimensão epistemológica fundamental e que, embora sob outra roupagem terminológica, o problema do véu das idéias nele está claramente presente. Por um lado, o phainómenon desempenhou efetivamente o papel de uma cortina e anteparo em face do mundo; e ele recobria todo o sensível e o inteligível, as representações da percepção sensível tanto quanto as concepções em geral (também a de Deus), as verdades das ciências e as regras de conduta, tudo, em suma, que hoje chamamos de "mental". Por outro lado, o problema do conhecimento foi claramente definido em termos de "inspeção [111] do mental", em termos de análise crítica do "interior" e de suas pretensões de significar a "exterioridade". O "dentro" e o "fora" dos seres humanos se pensaram explicitamente e, ressalvadas as restrições que cuidamos de acima definir, a distinção mente-corpo pode dizer-se que estava pressuposta. Mas é óbvio que o reconhecimento desses fatos em nada enfraquece o significado paradigmático da doutrina cartesiana: a problemática da mente adentrou a filosofia moderna via Descartes-e Locke, por certo.

 

Um último ponto requer ainda nossa atenção. Mostramos acima como a problematização do mundo "exterior" no ceticismo grego emergiu do privilégio previamente atribuído ao "interior", à esfera do "mental". Ora, o mesmo se passa, de modo muito nítido, com a problematização do mundo nas Meditações cartesianas, em que os textos não deixam margem a nenhuma dúvida: também aqui a suspensão de juízo se faz possível porque de algum modo se pressupõe desde o início a distinção entre "mente" e mundo, a oposição entre "mente" e corpo. Com efeito, Descartes emprega explicitamente o vocabulário da "exterioridade" e reconhece como um dado imediato tão-somente os "pensamentos" em seu "espírito". Assim, ao introduzir a ficção do gênio maligno, o filósofo supõe que todas as coisas que vê são falsas, que nada existe de quanto a memória lhe representa, que corpo, figura, extensão, movimento e lugar são meras ficções de seu espírito (cf. Descartes, 1953, Méditations); ele supõe que "todas as coisas exteriores que nós vemos não são senão ilusões e enganos" utilizados pela divindade para enganá-lo (cf., ibidem, p.272 (grifo meu)). Terá algum Deus posto em seu espírito "esses pensamentos"? (cf., ibidem, p.274, (grifo meu)) Descartes, aliás, confessa que, mesmo antes, nunca acreditara que certas coisas, como o poder de mover-se, de sentir e de pensar, pudesse atribuir-se à natureza corporal (cf., ibidem, p.276) [Osório diz: Quando se tem um nervo cortado, a mente, embora queira, não lhe dá movimento]. E toda a argumentação que conduz à certeza do Cogito se desenvolve sobre o pressuposto da identificação desse espírito com o eu pensante: "Há muito tempo tenho em meu espírito uma certa opinião, a de que há um Deus que pode tudo e por quem eu fui criado e produzido tal qual eu sou" (cf., ibidem, p.270 (grifos meus)); passando, em seguida, à hipótese de que a divindade possa enganá-lo, o filósofo continua: "suporei, portanto, que há, não um Deus verdadeiro, mas um certo gênio mau, ..., que empregou toda a sua indústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, ..., não são senão ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo como não tendo em absoluto mãos, olhos, carne, sangue, como não tendo nenhum sentido, mas crendo falsamente ter todas essas coisas. Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento, e se, por esse meio, não está em meu poder chegar ao conhecimento de nenhuma verdade, pelo menos está em meu poder suspender meu juízo" (cf., ibidem, p.272 (grifos meus)). Sobre uma tal pressuposição, a certeza do Cogito se explicita tranquilamente: "sem dúvida eu era, se eu me persuadi, ou se pensei somente alguma coisa. Mas há não sei que enganador muito poderoso e muito astuto, que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. [112] Não há, pois, absolutamente dúvida de que eu sou, se ele me engana" (cf., ibidem, p.275, grifos meus).

 

A certeza do Cogito é a certeza de um eu que a si mesmo se reconhece como "coisa que pensa" e a noção de "pensamento" recobre todo o domínio do "interior": "O que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente" (cf., ibidem, p.278).4848 As coisas imaginadas podem não ser verdadeiras, mas o poder de imaginar faz parte do "pensamento"; talvez sejam falsas as aparências dos sentidos, mas o sentir, em sentido próprio, não é outra coisa senão "pensar" (cf., ibidem, p.278-9).4949 E a análise do pedaço de cera levará Descartes a concluir que "não há nada que me seja mais fácil de conhecer que meu espírito" (cf., ibidem, p.283). A questão da realidade das coisas "exteriores" deverá decidir-se a partir da inspeção do "mundo interior". Assim, no início da 5ª Meditação, o filósofo escreve: "Mas, antes que eu examine se há tais coisas que existem fora de mim, devo considerar suas ideias, enquanto elas estão em meu pensamento, e ver quais são as que são distintas e quais são as que são confusas" (cf., ibidem, p.310, grifos meus).

 

Os textos parecem-me falar por si mesmos. Somente o privilégio conferido ao "mundo interior" e a identificação do eu com o "espírito" tornam possível a problematização do mundo que nos cerca, concebido como "exterioridade". É o pressuposto da "mente" que engendra o ceticismo sobre o mundo, assim como é a substancialização da "mente" que abre o caminho para a superação e rejeição do ceticismo e para a recuperação do mundo, restabelecendo nossas certezas "dogmáticas". E oportuno, porém, lembrar que esse expediente estava ao alcance de Descartes tão-somente porque - e malgrado as aparências em contrário - o ceticismo da 1ª Meditação foi, de fato, muito menos radical que o ceticismo grego. Pois vimos como a epokhé de Sexto Empírico era absolutamente universal: ela incidia sobre todas e quaisquer opiniões e doutrinas, as dos filósofos e as dos homens comuns; em particular, ela dizia também respeito às controvérsias sobre a existência da alma, sobre a existência e a natureza do intelecto, sobre o poder do intelecto de apreender-se a si próprio, sobre sua capacidade de apreensão dos objetos. Descartes efetuou, [113] em verdade, uma discriminação seletiva entre os argumentos céticos, ele a nenhum momento utilizou - nem mesmo examinou ou discutiu - aqueles argumentos que deveriam levá-lo à suspensão de juízo sobre os tópicos fundamentais e as certezas básicas sobre os quais se edificaria a sua filosofia. Somente em aparência, portanto, Descartes exacerbou a dúvida cética até o seu extremo limite.

 

VI

 

Comentamos, no início deste trabalho, o "axioma metodológico" assumido por muitas filosofias, segundo o qual deveríamos proceder a uma suspensão de juízo sobre o mundo "exterior", como condição mesma de uma abordagem crítica da problemática filosófica e para não prejulgar os resultados de nossa investigação. Lembramos também a circunstância de que, no mais das vezes, se faz essa exigência metodológica, ignorando-se - ou desprezando-se - o fato histórico de que a epokhé sobre o mundo, proposta pelo ceticismo grego e retomada na 1ª Meditação cartesiana, sua origem moderna, resultara, em ambos os casos, de uma sólida e exaustiva argumentação no sentido de mostrar a inevitabilidade da dúvida acerca de nossas certezas comuns sobre o mundo, assim como a aparente injustificabilidade destas últimas. Tudo se passa, dissemos, corno se esse itinerário não mais tivesse de ser percorrido e como se a validade das razões que os céticos e Descartes aduziram para justificar a epokhé não mais devesse ser reexaminada. Donde termos falado em "axioma metodológico".

 

Assim vistas as coisas, é natural, então, que nos recusemos a proceder àquela epokhé sem considerar atentamente as razões céticas que contariam a seu favor. Nosso reconhecimento da existência do mundo que se chama de "exterior" é algo para nós obviamente fundamental e define os parâmetros de nosso esquema conceitual básico. Não há, por isso mesmo, que aceitar, sem mais, que, em nome do espírito crítico e por uma exigência obscura de método, tenhamos de despir-nos de nossas certezas primeiras e mais sólidas. Não há por que conceder, sem mais, que fazer dessas certezas o ponto de partida do empreendimento filosófico seja prejulgar indevidamente os resultados finais desse empreendimento. Já que nada nos proíbe de efetuar, se necessário, à luz das conclusões a que chegarmos ao longo de nosso itinerário filosófico, uma revisão, mesmo se drástica, de nosso ponto de partida e daquelas certezas. A mera suspeita aventada da possibilidade de um prejulgamento e uma predeterminação viciosos não se pode estimar suficiente para impelir-nos a abandonar "metodologicamente", porque queremos filosofar, nossas convicções mais firmes de homem comum. Impomo-nos, portanto, como tarefa submeter previamente à análise e ao exame crítico os argumentos céticos que fundamentariam a alegada necessidade da epokhé, para somente em seguida decidir sobre ela.

[114]

 

Por outro lado, se é correta a análise que acima empreendemos da natureza filosófica da problematização do assim chamado "mundo exterior", tanto no ceticismo grego quanto no cartesianismo, temos uma razão a mais - e, quer parecer-nos, uma razão absolutamente decisiva - para rejeitar uma suspensão de juízo precipitada sobre o mundo. De fato, aquela problematização e o próprio vocabulário da "exterioridade" em que ela se exprime apareceram-nos, tanto à nossa reflexão teórica quanto à análise atenta dos textos, como indissociavelmente ligados a uma teoria "mentalista" do conhecimento, mesmo se não articulada, que vimos repousar sobre alguma forma de distinção radical entre "mente" e mundo (e, paralelamente, de oposição entre "mente" e corpo), sobre alguma forma de identificação entre o eu e a "mente" e sobre uma doutrina geral da representação. Ficou-nos, assim, patente que o ceticismo, em suas versões grega e cartesiana, encerra um inegável conteúdo filosófico positivo, em que pesem suas pretensões explícitas em contrário. E é daí, precisamente, que se engendra, por uma necessidade quase lógica, a problematização cética do mundo, concebido como "exterioridade".

 

Que os filósofos da epokhé não se tenham apercebido da presença desse conteúdo filosófico específico no cerne mesmo de sua postura cética deveu-se certamente à sua identificação profunda com todo um universo histórico de idéias, concepções e vocabulário, no qual vinham, entretanto, embutidas orientações e tendências de pensamento cuja particular especificidade lhes escapava. Isso é especialmente manifesto, como vimos, no ceticismo de Enesidemo e Sexto Empírico, herdeiro direto da problemática estóica. Em verdade, trata-se de um fenômeno que não é senão demasiado freqüente na história da filosofia, a cujo propósito é muito conveniente lembrar as palavras de Rorty, ao recordar a lição que aprendeu de alguns de seus mestres: "que um 'problema filosófico' era um produto da adoção inconsciente de postulações (assumptions) construídas no vocabulário em que o problema era enunciado - postulações que tinham de ser questionadas antes que o próprio problema fosse considerado seriamente" (cf. Rorty, 1980, Preface, p.XIII).

 

Em face de tudo isso, não apenas se requer que examinemos e discutamos as razões céticas para a epokhé antes de a ela aderirmos, mesmo se "metodologicamente" tão-só. É também necessário que se discuta a própria aceitabilidade de uma forma de problematização do mundo que se revela solidária de uma concepção "mentalista" do conhecimento. No final das contas, é esta mesma concepção que se tem de examinar e submeter à análise crítica, ao invés de assumi-la "por implicação". E, quando se atenta na ampla discussão que contemporaneamente se processa em torno da problemática da mente, fica particularmente evidente que seria mais que ingênuo rendermo-nos precipitadamente a não sei que intuição do "mental".

 

O ceticismo constitui, sem sombra de dúvida, uma das questões mais cruciais para a reflexão filosófica e não há como obscurecer sua importância. Mas não é possível seriamente enfrentá-lo se a ele antecipadamente nos rendemos. Endossar o [115] mito da suspensão metodológica de juízo sobre o mundo é uma das formas dessa rendição. E filosoficamente das mais perigosas. Porque a filosofia não mais recupera o mundo, a não ser por artifício. A recuperação cartesiana do mundo, baseada no apelo à perfeição e bondade divinas,5050 aparece-me como um desses artifícios.

 

VII

 

- Como você sabe que existe o mundo exterior?

 

- O que quer dizer "exterior"? Como um homem comum, eu me reconheço no mundo e como parte do mundo.

 

- Mas você pode estar plenamente seguro, por exemplo, de que tem um corpo? Não lhe parece que pode haver sérias razões para duvidar de sua existência, assim como da existência dos outros objetos físicos?

 

- Confesso que tenho grande dificuldade em entender a expressão "duvidar de que eu tenha um corpo". Eu me reconheço como um corpo, pelo menos também como um corpo. Eu sou este corpo e não vejo como não referir o pronome "eu" a este corpo que eu sou. Daí a minha dificuldade. O que pode querer significar "duvidar de que este corpo que eu sou tenha um corpo"? Ou, se você quiser: "duvidar de que este corpo que eu sou seja um corpo"?

 

-Mas você se recusa, então, a discutir a questão da exterioridade do mundo ou da real existência do corpo.

 

- Não. Mas entendo que essas questões se devem considerar sob outro prisma.

 

- De que maneira?

 

- Tomando-as, não como questões que se devam diretamente enfrentar e tentar resolver, mas como formulações que filósofos propuseram num certo vocabulário, às vezes mal dissimulando certos pressupostos. Tome o exemplo da dúvida sobre o próprio corpo. Se um filósofo pergunta como eu posso estar certo de que tenho um corpo, ele está evidentemente pressupondo que eu me posso conceber sem meu corpo, que eu não devo identificar-me com meu corpo, que eventos tais como minhas dúvidas, certezas, pensamentos não dependem de meu corpo. Ora, todos esses pressupostos são teses filosóficas bem precisas que temos de examinar para ver se merecem, ou não, nossa aceitação; se há argumentos sérios, ou não, para sustentá-las. Você entende por que não posso responder diretamente àquela pergunta? E isso vale para todas as perguntas do mesmo tipo.

 

- Você não está excessivamente cético?

 

- Eu diria exatamente o contrário.

[116]

(Fonte: Oswaldo Porchat Pereira. Rumo ao ceticismo. Unesp. São Paulo. 2007, p. 90 a 116).

 

1 1 Este texto foi publicado em Análise n.4, Lisboa, 1986, p.75-109; também em Discurso n.16, São Paulo, 1987, p.33-68; e em PORCHAT PEREIRA, O. Vida comum e ceticismo. São Paulo: Brasiliense 1993, p.121-65. Uma versão para o espanhol - "Escepticismo y Mundo Exterior" - foi publicada em Cuadernos de Filosofía y Letras, Bogotá, 1989, p.127-62.

2 2 As considerações que seguem resumem alguns pontos que abordamos em "Saber Comum e Ceticismo", cf. p.73-88.

 

3 3 Popkin nos remete a DESCARTES, R. Objectiones Septimae cum Notis Authoris sive Dissertatio de Prima Philosophia, Oeuvres, A.-T. VII, p.550.

4 4 Leia-se o cap. IX ("Descartes, Conqueror of Scepticism", p.172-92) de POPKIN, R. H. 1979.

5 5 Popper, a quem se deve a atual voga do termo "justificacionismo", caracteriza como justificacionistas aqueles filósofos que sustentam "roughly speaking, that whatever cannot be supported by positive reasons is unworthy of being believed, or even of being taken in serious consideration", cf. POPPER, K. 1974, "Truth, Rationality...", p.228.

6 6 Para Rorty, foi com o empirismo lockeano que a epistemologia fundamentacionista emergiu como o paradigma da filosofia, cf. RORTY, R. 1980, p.59. Mas é certo que o racionalismo cartesiano não é menos fundamentacionista em sua epistemologia.

7 7 Em "Saber Comum e Ceticismo" cf. p.73-88, procurei mostrar como esse modelo é complementado pela "moral provisória" do Discurso do Método, a que corresponde, por sua vez, no ceticismo antigo, a adoção "adoxástica" da vida comum (koinòs bíos). A noção cartesiana de "morale par provision" é enriquecida por Gellner, que nos fala de uma "ética do conhecimento provisória", a qual constitui a outra face da suspensão de juízo sobre o mundo característica da postura epistemológica pós-cartesiana, cf. GELLNER, E. 1974, p.43.

8 8 Sexto Empírico identifica aqui o "fenômeno" e sua representação, não distinguindo entre o que nos aparece e o que seria virtualmente nossa representação do que nos aparece. Em outras palavras, nossas representações são os próprios objetos de nossa experiência. A respeito dessa identificação entre phantasía e phainómenon por Sexto Empírico, em contraposição a Enesidemo, que os distinguiu, leiam-se as excelentes considerações de STOUGH em seu livro Greek Skepticism, University of Califórnia Press, 1969, p.115-25.

9 9 Anteriormente aos céticos, os cirenaicos haviam sustentado, como nos lembra Sexto Empírico, a infalibilidade de nossas afecções (páthe) e somente delas, cf. A.M. VII, 191.

10 10 Cf. H. P. I, 227: "Quanto às representações, nós dizemos que elas são iguais quanto à credibilidade ou não-credibilidade, no que respeita à razão (lógos)".

11 11 O tropo da diaphonía é, como se sabe, um dos cinco tropos gerais da argumentação cética que se devem a Agripa, cf. H.P. I, 164-77.

12 12 Sobre "dogma" no sentido de assentimento a um dos objetos não-evidentes de que se ocupam as ciências, cf. H.P. I, 13.

13 13 Cf. H.P. II, 182: "pois as coisas controversas, na medida em que são controvertidas, são não-evidentes".

14 14 E o cético descobre que a ataraxía, que ele buscava na verdade sobre as coisas, sobrevém como por acaso à epokhé sobre a verdade e a realidade, cf. H.P. I, 26-30.

15 15 Sobre a inexistência de um critério de verdade, cf. H.P. II, 18-21; sobre os vários significados de "critério", cf. I, 21s; II, 14-7. Para uma discussão geral da problemática do critério, cf. II, 22-79 e todo o A.M. VII.

16 16 Sexto Empírico usa diferentes expressões para referir-se às coisas exteriores, tò éxothen hypokeímenon, (cf. H.P. I, 15), tò ektòs hypokeímenon (cf. H.P. I, 48, 61, 99, 102, 113, 117, 128, 134, 144), to hypokeímenon (cf. H.P. I, 47, 58, 59, 78, 80, 87, 106, 140), tò ektós (cf. H.P. I, 46, 80, 99), to pragma (cf. H.P. I, 107, 118, 132, 140), tò ektòs hypokeímenon pragma (cf. H.P. I, 163).

17 17 Cf., por exemplo, H.P. I, 61, 78, 93, 124, 132 etc.

18 18 Correspondendo, respectivamente, aos 1° (cf. H.P. I, 40-78), 2° (cf. I, 79-91), 3° (cf. I, 91-9), 4° (cf. I, 100-17) e 5° (cf. I, 118-23) tropos de Enesidemo. O argumento dos sonhos, utilizado no 4° tropo (cf. I, 104), não recebe aqui um tratamento privilegiado, como na 1ª Meditação de Descartes. Recebe-o, no entanto, na crítica de Carnéades à noção estóica de representação apreensiva, cf. A.M. VII, 402-3.

19 19 Leia-se todo o cap. 4 ("Skepticism of Aenesidemus"), p.67-105.

20 20 Sexto Empírico insiste na distinção entre a filosofia cética e a filosofia acadêmica de Arcésilas e Carnéades, cf. H.P. I, 3 e, mais particularmente, 226-35.

21 21 Sobre os deuses, cf. A.M. IX, 13-194 e H.P. III, 2-12; sobre a causalidade e a passividade, cf. A.M. IX, 195-330 e H.P. III, 13-29; sobre os princípios materiais, cf. H.P. III, 30-7; sobre os corpos, cf. A.M. IX, 359-440 e H.P. III, 38-55; sobre o movimento e o repouso, cf. A.M. IX, 37-168 e H.P. III, 63-97, 102-8, 115-8; sobre o devir e o perecer, cf. A.M. X, 310-51 e H.P. III, 109-14; sobre o lugar, cf. A.M. X, 6-36 e H.P. III, 119-35; sobre o tempo, cf. A.M. X, 169-237 e H.P.III, 136-50; sobre o número, cf. A.M. X, 248-309 e H.P. III, 151-7.

22 22 Sexto desenvolve considerações análogas acerca da existência do lugar, cf. H.P. III, 135.

23 23 Referindo-se ao que chama de "teoria oficial" sobre a mente ("o dogma do Fantasma na Máquina", cuja origem atribui à filosofia cartesiana) e à concepção de um mundo mental em oposição ao mundo físico, em ambos os quais se desenrolaria a história particular de cada pessoa, escreve Ryle: "It is customary to express this bifurcation of his two lives and of his two worlds by saying that the things and events which belong to the physical world, including his own body, are external, while the workings of his own mind are internal", cf. RYLE, G. 1949, p.14.

24 24 Como na seguinte passagem de Malebranche, a propósito dos corpos exteriores: "Nous avons… plus de raison de croire qu'il y en a, que de croire qu'il n'y en a point. Ainsi il semble que nous devions croire qu'il y en a", cf. MALEBRANCHE, N. 1976, III, 63.

25 25 Cf. RORTY, R. 1980, p.49: "skepticism in the manner of Descartes' First Medilation was a perfectly definite, precise, 'professional' question: How do we know that anything which is mental represents anything which is not mental?". Rorty entende, porém, que o ceticismo antigo não formulou essa pergunta "profissional".

26 26 Lembre-se a comparação humeana da mente com um teatro: "The mind is a kind of theatre, where several perceptions successively make their appearance; pass, re-pass, glide away, and mingle in an infinite variety of postures and situations", cf. HUME, D. 1992, p.253.

27 27 Cf. HUME, D. 1992, Appendix, p.634: "When I turn to myself, I never can perceive this self without some one or more perceptions; nor can I ever perceive any thing but the perceptions. 'Tis the composition of these, therefore, which forms the self". Acerca dos homens em geral, cf., ibidem, p.252: "they are nothing but a bundle or collection of different perceptions which succeed each other with an inconceivable rapidity, and are in a perpetuai flux and movement". Sobre a mente, cf. ibidem, p.207: "what we call a mind, is nothing but a heap or collection of different perceptions, united together by certain relations, and suppos'd, tho' falsely, to be endowed with a perfect simplicity and identity".

28 28 Sobre o significado da noção de phantasía para a teoria estóica do conhecimento, diz Stough: "The notion of impression (phantasía) is of major importance in the Stoic theory. It is central to their account of the origin of knowledge and is, accordingly, the most important component in the resulting definition" (cf. STOUGH, Ch. L. 1969, p.36). Preferimos traduzir phantasía por "reprsentação" antes que por "impressão", como faz Stough.

29 29 Cf., também A.M. VII, 152, 402, 426. Sexto explica demoradamente essa definição em 248-60.

30 30 Cf., ibidem, 383: "A representação é um efeito do objeto representado (tò phantastón) e o objeto representado é a causa da representação".

31 31 Deixamos de lado, por não dizer diretamente respeito a nosso propósito, a difícil teoria estóica dos lektá ("exprimíveis"), entidades incorpóreas tais como as proposições (axiómata), que produzem na alma as "representações racionais" (phantasíai logikai), através das quais pode a razão a elas aceder, cf. A.M. VIII, 69s; Sexto expõe a crítica cética dessa teoria em 75s; 258s; 404s.

32 32 Sobre a crítica de Arcésilas à noção estóica de representação, cf. A.M VII, 150-8; sobre a de Carnéades, cf. 159-66, 402s.

33 33 Cf. STOUGH, Ch. L. 1969, p.41: "But the Academics made no effort to repudiate the psychology at the base of the doctrine (isto é: da doutrina estóica do conhecimento). In fact, they accepted the theory of impressions as such and the perceptual model that it suggests".

34 34 Sobre a doutrina da representação de Carnéades, cf. A.M. VII, 166s.

35 35 É impossível não fazer a aproximação entre a doutrina da representação de Carnéades e a teoria humeana das percepções e da crença, tal como exposta no livro I do Tratado da Natureza Humana.

36 36 Sobre o critério do agente (o homem), cf. H.P. II, 22-47 e A.M VII, 263-342; sobre o critério do instrumento (sentidos e intelecto), cf. H.P. II, 48-69 e A.M VII, 343-69; sobre o critério da representação, cf. H.P. II, 70-79 e AM VII, 470-9. Os argumentos que, de modo sucinto e resumido, exponho no texto são tirados dessas passagens

37 37 Tal é, com efeito, a temática constante dos vários tropos de Enesidemo, cf., por exemplo, H.P. I, 87, 112, 117 etc.

38 38 Cf. p.93 e n.8.

39 39 Cf. H.P. I, 203: "de modo que a proferição da frase não é dogmática, mas o anúncio de uma afecção humana (anthropeíou páthous), que aparece a quem a experiencia".

40 40 Vejam-se os textos de Hume referidos, acima, na nota 27.

41 41 A noção de signo é discutida amplamente em H.P. I, 97-133 e A.M. VIII, 141-299. Os céticos suspendem o juízo sobre a existência dos signos "indicativos" propostos pela filosofia "dogmática", mas reconhecem plenamente os signos "rememorativos", com base na conjunção constante entre "fenômenos" de que se tem experiência na vida comum, cf. H.P. I, 100-2; A.M. VIII, 151-8.

42 42 Sobre o empirismo de Sexto Empírico, cf. STOUGH, Ch. L. 1969, p. 107s.

43 43 É o caso de MATSON, W. em "Why Isn't the Mind-Body Problem Ancient", em FEYERABEND, P.; MAXWELL, G. (Eds.). Mind, Matter and Method: Essays in Philosophy and Science in Honor of Herbert Feigl, Minneapolis, 1966, citado por Rorty em RORTY, R. 1980, p.47 e n.15. Rorty, cf., ibidem, p.51, n.21.

44 44 É o caso de MATTHEWS, G. em "Consciousness and Life", em Philosophy 52, 1977, citado por

45 45 Essa é a tese de E. Gilson e J. H. Randall referida por RORTY, R. cf. ibidem, p.49, n.19.

46 46 Nessa nota, Rorty exprime suas reservas com relação à tese de Stough (cf. STOUGH, Ch. L. 1969, p.24), segundo a qual Pirro via o phainómenon como uma cortina entre o sujeito e o objeto.

47 47 Rorty diz (cf. RORTY, R. 1980, p.51, n.21) que deve essa sugestão a M. Frede.

48 48 Com base nesse e noutros textos de Descartes que vão no mesmo sentido, Rorty afirma: "Once Descartes had entrenched this way of speaking it was possible for Locke to use 'idea' in a way which has no Greek equivalent at all, as meaning 'whatsoever is the object of the understanding when a man thinks' or 'every immediate object of the mind in thinking"" (cf. RORTY, R. 1980, p.48). Entretanto, como vimos acima, o phainómenon cético assemelha-se de perto à idéia lockeana.

49 49 Cf., ibidem, p.284: "ainda que as coisas que eu sinto e que eu imagino não sejam talvez absoluta- mente nada fora de mim e em si mesmas, estou entretanto seguro de que esses modos de pensar, que chamo de sentimentos e imaginações, enquanto são somente modos de pensar, residem e se encontram certamente em mim" (grifos meus).

50Cf., por exemplo, DESCARTES, R. 1953, Méditations, p. 324-5.

56

Don Quixote

Olavo Bilac1

 

É em Argamasilla, humilde burgo da Mancha, não longe da água escassa do Guadiana.

 

Felipe II, “o Demônio do Sul”, acaba de morrer, no Escorial, catorze vezes sacramentado, abraçado à imagem do Deus do Amor, que a sua ferocidade transformou num Moloch devorador de vidas.

 

A Inquisição triunfa. A Espanha definha. A Invencível Armada com seus cinquenta mil homens de terra e mar, e os seus três mil canhões, em cento e cinquenta navios formidáveis, partida de Lisboa, entre repiques de sinos, para assombrar e assolar o norte da Europa, e naufragada nas costas de Inglaterra, engolida pelas ondas, no mais horrendo desastre naval que a História registra arrastou consigo para o fundo do oceano a fortuna de Espanha, a ambição do Rei Inquisidor, e o império universal sonhado por Carlos V... A miragem das riquezas da América arrebata da terra a gente válida que as guerras pouparam. A gente que fica vive ansiando e penando, num pesadelo. Nos campos, a lavoura morreu. A alegria desertou as cidades. Ainda os poetas cantam; mas o pensamento desapareceu da poesia, exilado pelo despotismo; a literatura é apenas a palavra vazia e retumbante; Gôngora é um semideus; tudo é inversão, tudo é metáfora, tudo é futilidade; e o poeta, para não morrer de fome, ou para não ser assado vivo, tem de comprimir e sufocar o seu talento, e há de implorar para os seus versos, em dedicatórias que rastejam e lambem o pó do chão, o apoio

[100]

compadecido de um Grande, O Escorial, levantado há pouco, em cumprimento de um voto do Rei, tem, para relembrar o martírio de São Lourenço, a forma de uma grelha imensa: os pés são as quatro torres; o cabo é o torreão da fachada oriental; e, sobre os jardins, alinham-se os dezessete claustros, como as barras da grade candente sobre renques de brasas. Essa arquitetura simbólica é a representação fiel do colossal assador, em que, há duzentos anos, se está estorcendo e chiando o corpo da miseranda Espanha, consumido a fogo lento...

 

Ora, em Argamasilla, num escuro ergastulo da casa de Medrano, há um homem, um prisioneiro, que veio acabar na prisão uma vida errante, de aventuras, de perigos, de combates e de aflições. O cárcere é imundo, sem ar e sem luz. O encarcerado é fraco, desprotegido, prematuramente envelhecido pelos trabalhos, física e moralmente arruinado pelo desespero.

 

Este homem, que foi outrora um brioso e galante mancebo, temido de homens e amado de mulheres, de ágil corpo afeito às caminhadas e às pelejas, barbas de ouro fulgido, olhos chispantes de alegria e coragem, risonha boca espirrando o sangue da saúde, robusto de braço e leve de pés, - é hoje um quase ancião, enfermo e estropiado. Na batalha de Lepanto, um arcabuzaço lhe mutilou a mão direita; enterrou-lhe outro golpe duas costelas na arca do peito; no hospital de Messina, curtiu longamente a dor das feridas e a dor do isolamento; em Corfu, em Navarino, em Túnis, devoraram-lhe o estômago as fomes, abrasara-lhe as sedes a garganta, aguaram-lhe e envenenaram-lhe o sangue as febres malignas. Muitas vezes, do navio em que afrontava a morte, viu outros navios, incendiados pelos brulotes ou estripados pelos esporões, ansiarem e desaparecerem nas águas, com uma palpitação de agonia nas velas ofegantes, como grandes aves fulminadas no voo; assistiu muitas vezes as abordagens ferozes, em que o convés de cada barco ficava alcatifado de corpos humanos, retalhados e esmigalhados pelo tropel dos combates, entre gritos de cólera e uivos de dor; viu muitas vezes o mar tingir-se, num largo raio, da púrpura do sangue vivo; viu vitórias e derrotas, naufrágios e apoteoses… Depois, quando a nostalgia, o cansaço, a miséria, o nojo da matança o traziam de novo à Espanha bem-amada, viu-se apresado por um troço de piratas, carregado de ferros, e foi remar como cativo nas galés da Argélia: e teve, então, cinco anos de cativeiro e desespero, com intervalos fugazes de vida e esperança - vida para reagir contra a morte, esperança de resgate ou evasão, vida e esperança bem cedo desfeitas sempre pela desilusão, aniquiladas pelo duro trabalho ao sol candente, sob o peso das grilhetas, sob o suplicio das tagantadas, na vergonha e na amargura...

 

Vede-o agora, aqui, na sua prisão de Argamasilla. Já não são mouros os seus carcereiros. São espanhóis, são cristãos, são irmãos. Não o quis a Morte, para presa sua, no redemoinho de fumo e sangue de Lepanto, nem na podridão do hospital de Messina, nem na infâmia das galés de Argel. A Miséria e a Glória, irmãs gêmeas no amor e no desamor, marcaram este homem para outro des- [101] tino. Aqui o tendes, encarcerado por dívidas, pagando o crime de ser pobre… Argamasilla é uma aldeia esquecida; a Corte está longe, em Valladolid; Felipe I mal acha tempo para acudir ao desmantelo do vasto império: ninguém pensa no pobre guerreiro mutilado, que aqui está com a barba de ouro mudada em barba de neve, mísero inválido, sem dinheiro, sem amigos, sem proteção…

 

Notai, porém: da antiga beleza varonil, alguma coisa lhe ficou, o lume do olhar, em que o sonho acende fagulhas divinas, e a malícia da boca desdentada, devastada pelo escorbuto, onde ainda se fixa um sorriso de superior ironia e de infinito orgulho. O encarcerado escreve... Ao tímido fulgor do raio de sol, que entra a custo pela seteira do cárcere, ou à luz mortiça da lâmpada, a sua mão vai traçando no papel linhas febris. As vezes os seus olhos choram; mas sempre a sua boca sorri: e sorrisos e lágrimas vão ficando gravados nas folhas que juncam o solo. Nelas, como num seio inerte e vazio repentinamente animado por um sopro criador, vão caindo e vivendo os mundos infinitos de revoltas, de angústias, de sarcasmos, de motejos, e ao mesmo tempo de piedade, que este homem tem dentro de si. É a criação de um universo moral que palpita, ganha corpo, fulgura, rumoreja, troveja, entre as quatro paredes da masmorra estreita!

 

Tudo quanto formou e agitou até aqui a alma espanhola toda a graça da terra; toda a pureza do céu; a fusão das raças, a serenidade romana, a brutalidade dos visigodos e dos suevos, a bravura dos árabes, o fanatismo dos conquistadores católicos; o amálgama dos dialetos, formando uma língua sensual e fogosa, que tem arrulhos de pomba para o beijo e ululos de fera para a blasfemia; a epopeia brilhante do Cid; o encanto da Renascença importada da Itália; a glória de outrora e as humilhações de agora tudo se funde, tudo se ilumina, tudo arde, passando através do gênio deste homem, que amassa em lágrimas o coração e o cérebro, para criar a Epopeia do Riso. Dias do cárcere, escuros como noites! Noites da masmorra, compridas como séculos, podeis correr uniformes e imutáveis! Podeis doer, velhas feridas do soldado! Podeis pesar, anos de desconsolo e isolamento! Podes pedir pão, estômago nunca bem alimentado! Podes pedir descanso, corpo nunca repousado! Podes pedir amor, alma nunca entendida! - o Criador não vos sente nem vos escuta: Cervantes está escrevendo o D. Quixote!

 

Quando este livro se tornou conhecido, na sua primeira parte (que é a sua verdadeira alma, porque é filha legítima da miséria de Cervantes), um riso formidável, mais espalhado e farto do que aquele que, quase um século antes, saudara o aparecimento do Gargantua, de Rabelais, sacudiu, num frenesi de alegria toda a Europa do século xvii, cansada das guerras, das depredações, das fogueiras e do luto. Foi o desafogo da alma humana! E há três séculos que esse riso está dando, como um ciclone, a volta do planeta. Não se pode dizer com segurança quantas edições já teve o romance imortal. Em todas as línguas, em quase todos os dialetos que se falam na superfície da terra, os homens têm podido ler, com entusiasmo, as aventuras do engenhoso fidalgo e do seu gracioso escudeiro. Para desmascarar um impostor, que tentara completar o D. Quixote, [102] Cervantes publicou, em 1615, a segunda parte da novela, que, assim acabada, continuou a ser traduzida e imitada, fazendo a conquista de todas as raças.

 

Não sei quem disse que todos os homens, ainda os menos melancólicos, os mais acessíveis à alegria, têm em si uma grossa caudal de lágrimas, ao lado de um fio escasso de risos... A verdade é que, em cem escritores, há noventa e nove que sabem comover e fazer chorar, e apenas um capaz de divertir e fazer rir. E ninguém jamais divertiu a humanidade como Cervantes! Milagre do gênio: extrair da própria miséria a alegria universal!

 

O segredo da vis cômica que reside no D. Quixote é conhecido. Nunca a inteligência humana criou uma representação tão clara e verdadeira do eterno contraste que rege a vida: a aproximação da asa, que quer o céu, e da pata, que se aferra ao chão. Sozinho, D. Quixote seria apenas um desequilibrado, possuído da mania da bravura; sozinho, Sancho seria apenas um camponês bocal e velhaco; juntos, porém - como, por um caso de teratologia, dois frutos dispares na mesma árvore -, D. Quixote e Sancho são a Vida... Cervantes amalgamou, nessas duas figuras, que são gêmeas apesar da sua contenda de origem e essência, os símbolos da dualidade moral. É a águia e o bácoro, a alma e a besta, o cérebro e o estômago, o sonho e o apetite...

 

O contraste é exagerado, no livro, até o delírio do cômico e do abstruso.

 

O herói é alto, esguio, espectral, como um desfolhado pinheiro no inverno; o escudeiro é baixo e roliço, como um suculento repolho no outono.

 

As duas alimárias, que atravessam a novela, reproduzem a antítese: Rocinante, pele e ossos, tem o desprezo das pancadas, a fome orgulhosa, o padecimento taciturno, como quem sabe que a vida, para ser nobre, tem de ser trabalhada e sofredora; a outra, o asno de Sancho, cerdas e ádipo, empaca no perigo, orneja com convicção diante dos campos verdes, como quem considera que todos os animais só vivem para amar a vida e as coisas boas da vida… [Osório diz: Repetem seus donos!]

 

D. Quixote ama uma sombra, uma visão, uma deusa gerada no seu cérebro, uma entidade intangível, em quem concorrem todas as perfeições da majestade e da graça. Sancho tem em casa uma mulher, que fulmina um boi com um soco, e uma filha que, para arrotear os campos, vale por dois homens. Dulcineia, que não existe, é para D. Quixote a suprema beleza, digna das homenagens de todos os reis da terra: "Dize-me, Sancho amigo, que estava fazendo, quando a viste, aquela rainha da Formosura? Estava ensartando pérolas, ou bordando em seda com canutilho de ouro alguma prenda para o seu cavaleiro? - Não, meu amo, estava joeirando duas fangas de trigo num pátio! - Mas, assim que a encontraste, Sancho amigo, não sentiste um divino odor, uma suave fragrância? Em verdade lhe digo, meu senhor, que senti um cheiro de... suor! - Era o teu próprio cheiro, desalmado! Que eu bem sei o perfume que deve ter aquela rosa entre espinhos, aquele lírio do campo... "Tal é, para D. Quixote, a Dulcineia irreal. Para Sancho, a anafada Mari Gutiérrez, bem real e bem rude, é o que vale e vale o que é: "Saiba vossa mercê, meu amo, que ain- [103] da que Deus chovesse reinos e reinos sobre a terra, nenhum deles assentaria bem sobre a cabeça de Mari Gutiérrez!..."2 21

 

D. Quixote é leal e inocente como uma criança que não conhece a maldade: todos o enganam, porque ele é o primeiro a enganar-se. Sancho é matreiro e velhaco: tem a esperteza do símio, a voracidade do rato, a astúcia da raposa; se acredita na missão do amo, é porque espera da sua liberalidade o governo de uma ilha, um condado, ou, ao menos, um saco de dobrões para o dote de Sanchica, ou uma albarda nova para o seu jumento, ou três frangos para o seu quintalejo. D. Quixote é a cigarra, Sancho é a formiga. Um adora o aço das espadas, que, ainda quando se enferruja, concentra em si o fulgor da glória; o outro adora o ouro das moedas, que não se enferruja nunca, e concentra em si todos os gozos da vida. O herói passa a existência a ler, e come pouco; quando jejua, jejua com o calado orgulho de Rocinante; o escudeiro não sabe ler, e devora: quando não come, protesta e orneja como o asno. Um quer salvar das refregas a honra e a espada; o outro, os alforjes em que traz o queijo e a cebola. Sonhar e batalhar é a ansia de D. Quixote; comer e dormir é o ideal de Sancho.

 

Roto, faminto, pisado, lanceado, escalavrado, D. Quixote vai pelos campos e pelas azinhagas, por montes e vales, por aldeias e desertos, buscando viúvas e órfãos que careçam de amparo, donzelas que requeiram defesa, inocentes que padeçam fome e sede de justiça, e caminha dentro do seu sonho radiante, como dentro de um Halo fúlgido, através do qual vê tudo transformado e encantado. Os moinhos de vento são tribos de Briaréus, de cem braços e cinquenta ventres. As vendas miseráveis, cheias de arrieiros e vaganaus, são castelos; o moço de estrebaria, que vem abrir a porta, é o homem de armas, que alça a ponte levadiça; o estalajadeiro, oleoso e bronco, é o senhor feudal, que, de volta das guerras cruentas, repousa na administração do seu feudo; e, à hora da partida, se Maritornes aponta à janela, é a nobre donzela chorosa que se despede do cavaleiro ingrato. A bacia amolgada, que o barbeiro, acometido e assustado, deixa cair na pressa da fuga, é o elmo encantado, que Reinaldo de Montalvão conquistou ao rei Mambrino. Os odres de couro, estripados a pontaços de espada, espirrando vinho grosso, são os corpos dos gigantes vencidos, golfando sangue. No teatrinho de Maese Pedro, este títere pequenino e esfarrapado é o verdadeiro Carlos Magno em carne e osso; aquele outro, brandindo uma vareta de pau, é o glorioso Rolando, em cujo punho a invencível Durindana faísca e gira, despedindo raios... E, numa roda-viva de golpes, de quedas, D. Quixote não sente as pauladas e as pedradas que o contundem e racham. E notai que todo esse arrebatamento de alma é sincero, como real e sincera é a sua bravura; D. Quixote nunca mentiu; o que ele viu na cova de Montesinos, foi realmente visto pelos seus olhos alucinados; e, quando, no caminho de Saragoça, os seus olhos se fixam nos olhos do leão que o Governador de Orã envía ao Rei de Espanha, é a fera quem tem medo…

[Osório diz: Bilac traceja bem as diferenças entre Dom Quixote e Sancho Pança]

[104]

Enquanto isso, que faz Sancho Pança? Diz rifões e come... O seu nariz, empinado e ansioso, fareja longe o cheiro suave dos quartos de cabrito que se assam nos ranchos dos pastores, dos nacos de toucinho que se desfazem nas panelas das estalagens, e dos requeijões com que ele suja e profana o elmo de Mambrino. Quando o amo arremete em fúria contra o inimigo, o escudeiro vai contemplar a batalha do alto de uma árvore, e de la deixa cair, entre gemidos e conselhos, a voz da prudência. O dia mais negro da vida de D. Quixote foi aquele em que ele teve, ultrajado e vencido, com a viseira sob a ponta da lança do Cavaleiro da Lua Branca, de prometer que se retiraria da carreira das armas; e o dia, entre todos triste, na vida de Sancho, foi aquele em que ele teve de sair das bodas de Camacho sem haver provado o gosto do gordo novilho assado, em cujo ventre dormiam, À maneira de recheio, doze leitões cozidos…

 

Ah! quem não há de rir da loucura de um, da animalidade do outro, da graça dos dois?

 

Mas, decerto, já vos aconteceu algumas vezes o que a mim me tem acontecido muitas vezes, quando leio D. Quixote. Ides lendo, ides rindo, e, de repente, há uma singular e inesperada tristeza, que vos gela o riso nos lábios. Sacudis essa melancolia importuna, e, considerando de novo a esgalgada figura grotesca do combatedor de moinhos e a brejeirice do escudeiro balordo, ensaiais de novo um riso satisfeito... Em vão! A vontade de rir passou; qualquer coisa, vaga e imprecisa, veio quebrar o encantamento; foi um ríctus de dor, foi um abafado gemido de tortura, foi um sufocado ranger de dentes, que vieram revelar o fingimento da alegria que parece animar o livro. E sentis, então, suspendendo o riso sacrilego, que a novela graciosa tem, como todas as obras de arte que o Gênio marcou com o seu cunho inconfundível, um duplo sentido. E, aqui, o sentido oculto, aquele que não percebem as crianças e os adolescentes que leem D. Quixote, aquele que somente os homens maduros, trabalhados pela vida e pelas suas decepções, podem perceber, é amargo como o fel, frio como o gelo, e duro como o aço...

 

Este livro é a sátira mais feroz e dolorosa com que jamais se amaldiçoou a baixeza da condição humana. Os seus 116 capítulos são as 116 estações da Via-Sacra do Ideal. O Sonhador caminha de desilusão em desilusão e de desastre em desastre. Tudo quanto de belo o seu sonho cria e anima fica logo desfeito em fealdade e em vulgaridade. Já não há, na terra, aventuras dignas de tal aventureiro! Nem ao menos as lutas em que ele se empenha têm um fim trágico e nobre; o herói não rola no sangue rola no pó; não é acutilado ou picado por montantes ou piques de heróis é amassado por asas de moinhos, moído às pauladas por arrieiros brutos, espezinhado por manadas de carneiros, apedrejado por tunantes e recoveiros...

 

Porque sofre tanto este homem? Porque é justo e porque é bom…

 

Na sua aldeia, antes da alucinação que o levou a sair pelo mundo a correr andurriais e a criar aventuras, todos o amavam. Depois de exaltado pela leitura [105] dos livros de cavalaria, houve nele uma hipertrofia da bondade; a sua misericórdia dilatou-se, generalizou-se, já não se contentando com dar alívio aos que sofriam perto da sua casa; considerou que o mal imperava em toda a terra, que toda a parte ardiam lágrimas, que não havia uma polegada da superfície do globo que não estivesse manchada pela iniquidade. Acicalou uma velha espada, desenferrujou um velho coto de lança, pôs uma viseira de papel sobre um morrião abolado, e saiu a endireitar as coisas tortas da vida...

 

Quereis ver, a um tempo, qual era o seu sentimento de justiça, e qual era o seu amor da bondade? Relede os seus conselhos a Sancho Pança, quando este balordo, inchado de ambição e de orgulho, vai governar a sua ilha da Barataria. Trezentos anos – três séculos! – passaram sobre a letra desses conselhos; mas a sabedoria que neles reside tem uma perpétua mocidade e uma inalterável frescura. Quem ainda hoje se arvorasse em conselheiro e mentor de um governante inexperiente poderia e deveria repetir-lhe, sem a menor alteração, estas profundas e sóbrias sentenças, que não ficariam mal se fossem gravadas, à maneira dos dísticos romanos, nas paredes de todas as casas de governo:

 

"Achem em ti mais compaixão, Sancho fiel, as lágrimas do pobre, porém não mais justiça que as alegações do rico. Procura descobrir a verdade entre os soluços e as importunações do primeiro, como entre as dádivas e as promessas do segundo. Onde houver lugar para a equidade, não carregues a mão no rigor da lei. Se houveres de dobrar a vara da Justiça, que seja com o peso da misericórdia, e não com o dos favores. Quando tiveres de julgar o pleito de um inimigo, aparta de ti a lembrança da injúria recebida e pensa apenas na verdade da causa alheia, porque os erros, que daí nascerem, as mais das vezes serão sem remédio. Se alguma linda mulher vier pedir-te justiça, afasta os teus olhos das suas lágrimas, afasta os teus ouvidos dos seus lamentos, se não quiseres que a tua razão se afogue no seu pranto, e a tua virtude nos seus suspiros. Se a alguém tiveres de castigar com atos, não o maltrates com palavras, pois já basta ao desditoso a pena do suplício, sem o suplemento das ofensas. Considera o culpado que cair debaixo da tua jurisdição como criatura miserável, sujeita às condições da nossa triste natureza; e, enquanto te couber, por tua parte, sem fazer agravo à parte contraria, mostra-te piedoso e clemente, porque, malgrado sejam iguais todos os atributos de Deus, mais resplandece, a meu ver, o da misericórdia que o da justiça!.." [Osório diz: Lula]

 

Tal é, assim pensa, assim discreteia o homem, para cujo suplício entram em ação todos os paus nodosos arrancados às arvores e todas as pedras apanhadas no chão da Mancha.…

 

É tão bárbaro, tão contínuo, tão constante o sofrimento deste homem bom, na sua louca jornada através da maldade humana, que às vezes uma revolta levanta o espírito do leitor contra a crueldade com que o seu criador o criou para a tortura e para o ridículo. Já um crítico alemão escreveu que, imaginando e compondo o D. Quixote, Cervantes revelou quase possuir a fria maldade de um inquisidor... Sim! naqueles tristes dias e naquelas tristes noi- [106] tes da sua prisão de Argamasilla, Cervantes sabia que estava escrevendo um livro cruel. Houve e há quem, para em si mesmo se vingar dos seus erros e dos seus pecados, se suplicia com cilícios e disciplinas, em penitências terríveis: era isso o que Cervantes fazia, quando, com um gozo satânico, inventava e multiplicava os padecimentos do seu herói. D. Quixote era uma exteriorização da personalidade de Cervantes; aquele trabalho de criação era um suplicio voluntário. E era a si mesmo que o poeta falava, quando falava à sua ficção: "Ah! tu queres ser bom, bravo, generoso, misericordioso, sonhador, numa época em que a vida e a felicidade somente são compatíveis com a maldade, a hipocrisia e a baixeza? Pois sucumbe às pedradas e aos golpes do ridículo, Cavaleiro da Triste Figura! Erra pela vida, exposto ao riso e ao sarcasmo! E, quando sentires que a morte se aproxima, confessa o teu erro, e morre, como deverias ter vivido, sem coração e sem cérebro, equiparado pela animalidade aos teus contemporâneos!" [Osório diz: PQP]

 

Lúgubre, trágica, desesperadora filosofia, a que se encerra nesta Epopeia do Riso!.. Vede como a bravura de D. Quixote é humilhada, e a sua abnegação ultrajada; cada benefício seu é pago com uma ingratidão, cada beijo com uma dentada, cada esmola com um insulto. O exaltado amor da Verdade e da Justiça, que o leva a arriscar a vida em mil lances, para castigar o crime, restabelecer a equidade e premiar a virtude, é monstruoso, extra-humano, ridículo. O mal é eterno, a injustiça é eterna... Sempre há de haver viúvas e órfãos roubados, inocentes perseguidos, humildes oprimidos!... O que é natural, sensato e humano é a submissão de Sancho, a sua prudência feita de egoísmo e de medo, o seu desejo de gozar a vida em paz, comendo, bebendo, dormindo, juntando dinheiro e gordura, deixando que as viúvas e os órfãos morram à míngua, que os inocentes sofram, que os humildes sucumbam sob a tirania dos grandes... O heroísmo é loucura, a abnegação é loucura, o amor do Belo, do Perfeito e do Justo absoluto é loucura!... O bom senso é a indiferença, é a acomodação perfeita às condições inalteráveis da vida, é a resignação ante o mal inevitável… [Osório diz: PQP de novo! Lula e Luiz Francisco Fernandes de Souza!]

 

Lede o episódio do ovelheiro André, esbordoado pelo amo. Era vão, a voz da cautela, pela boca medrosa e rude de Sancho, adverte o Justiceiro: "Senhor! não se meta em pendência de amo e criado!..".322 O Justiceiro impede que o malvado esbordoe o rapaz, ordena-lhe que lhe pague o salário devido e dali se vai com o ânimo tranquilo e a consciência satisfeita. Dias depois, reaparece o criado: “Ai, senhor cavaleiro! Não somente o bárbaro não me pagou o que me devia, mas, assim que vossa mercê se apartou, tantos açoites me deu que me deixou como um São Bartolomeu aspado! Por amor de Deus, quando outra vez me encontrar, não me socorra nem me ajude; deixe-me com a minha desgraça, que desgraça maior será a proteção de vossa mercê, a quem o céu amaldiçoe, assim como a quantos cavaleiros andantes andam pelo mundo!..

[107]

Assim, todo o esforço em prol do Bem é vão! Quem se mete a Redentor sacrifica os que quer redimir e sai crucificado... É a acerba filosofia deste livro, que, há trezentos anos, faz a humanidade rir!

 

E a página mais dolorosa é a última... O exaltamento caiu, a febre cessou, o sonho expirou: D. Quixote morre, entre os seus, na sua cama, sem viseira e montante, sem armadura e broquel, arrependido do engano em que viveu, envergonhado do bem que quis fazer, reconciliado com o bom senso e com a estúpida vulgaridade da vida. A pata, que se aferra ao chão, venceu a asa, que buscava o céu…

 

E é porque compreendeis e medis bem a amargura da filosofia encerrada neste livro, que uma súbita melancolia vos acomete quando o ledes. Já se disse que há duas idades para ler D. Quixote: há a primeira, em que o poema apenas faz rir, e a segunda, em que ele obriga a pensar. Que as crianças e os adolescentes continuem a rir, vendo as desastradas quedas em que o herói baqueia do alto do cavalo esquelético, e vendo o tormento em que se remexe a gordura de Sancho no tumulto das batalhas, e ouvindo as saborosas práticas em que o exaltamento do amo visionário e fidalgo contende com a chocarrice do escudeiro pacato e vilão! Riamos, nós também, mas pensemos, no intervalo de duas risadas.

 

Há três séculos se diz e escreve que Cervantes, compondo o D. Quixote, quis matar e matou a cavalaria andante, e o amor dos seus poemas e romances, remanescentes ridículos da idade média. É bem verdade que, às vezes, o nosso maior prazer é magoar e matar aquilo que mais amamos…

 

Cervantes era uma alma da Idade Média. Essa grande época da História, tão mal estudada, tem sido atrozmente caluniada. Quem diz "Idade Média” quer dizer: uma síncope da civilização, um túnel de treva entre duas paisagens luminosas, uma parada do progresso humano. Foi, entretanto, essa época que assistiu ao desabrochar da Indústria e da Caridade, as duas fontes de que fluem o trabalho para os validos e o amparo para os inválidos. Todo o conforto material, que fruímos hoje é um resultado das invenções dessa era tão injustamente malsinada. O papel a bússola, o relógio, a pólvora, o calçamento é a iluminação das ruas, os espelhos, as rendas, a gravura, a imprensa, nasceram nesses séculos que chamamos bárbaros; e foi a Idade Média que criou os primeiros hospitais, e os primeiros asilos para crianças e velhos. [Osório diz: Defesa da Idade Média]

 

Mas o que Cervantes mais amou, no ciclo medieval, foi o culto da bravúra, do amor, do cavalheirismo e da poesia. Naqueles longos discursos, que D. Quixote, sempre cego e alheado das coisas da vida comum, dirige aos pastores, aos lavradores, às gentes incultas e espantadas, que o ouvem com desassossego e receio, está palpitando o entusiasmo do batalhador de Lepanto que escrevia uma novela entre dois combates e rimava um soneto ao rebramar dos tiros de canhão. Esse espírito ousado e brilhante, tecido de energia e de ternura, de coragem e de lirismo, não podia amar a escura época de terror, de fanatismo e de dissimulação em que viveu; a época, que ele amava, era a outra, a que se [108] extinguira, a da apoteose do amor e do perigo.... E, como era absurdo esse amor, como essa paixão por uma era morta era monstruosa, o medieval, transviado no começo da idade moderna, vingou-se, ou pensou vingar-se da sua desgraça, ferindo, mordendo, despedaçando o próprio objeto do seu amor.

 

Cervantes, porém, não matou a Idade Média, que já estava morta, até porque não há homem capaz de matar o Tempo que nos mata, e porque as revoluções, as crises, as transformações históricas se fazem independentemente da vontade humana. E não matou também a Cavalaria, a alma ardente e apaixonada da idade média, porque o "quixotismo" é imortal.

 

Épocas há em que o sonho, o ideal, o amor das coisas e das ideias nobre a ânsia de realizar proezas materiais e morais, a ambição de nobilitar a vida, desaparecem e morrem, deixando-se sufocar, aqui pela ignorância, ali pelo fanatismo religioso, além pelo despotismo político. Então D. Quixote, torturado e desiludido, faz penitência, transige, submete-se, arrepende-se, nivela-se com os homens que só nominalmente ocupam o degrau superior da escala animal, e morre, reconciliado com as torpezas do interesse mesquinho. Mas, daí a pouco, o Cavaleiro desperta no fundo da sua cova escura, levanta a lápide do túmulo, empunha o montante, embraça o escudo, e sai a batalhar a sua eterna batalha, de novo exposto às pedradas, às quedas, às decepções e aos infortúnios. Eu não creio que a imbecilidade e a injustiça possam um dia ter um termo: mas não creio, tampouco, que possa morrer o ideal, que eternamente protesta contra a eterna imbecilidade e a injustiça eterna!…

 

Ó alma triste e incompreendida, sobre-humanamente boa e infinitamente desgraçada de D. Quixote! Tenho para mim que, quando um poeta como Cervantes consegue arrancar do cérebro uma figura animada, viva, palpitante, humana como a tua, a ficção se transmuda em realidade, e fica vivendo sobre os homens e entre eles. Não há apenas um mundo físico, acessível aos nossos sentidos: há também um mundo moral, tão verdadeiro como o outro, povoado de criaturas cuja existência só nos é revelada por este singular e misterioso sentido poético, que cada homem possui, mais ou menos apurado, e cuja análise escapa à fisiologia. Tu vives, D. Quixote!

 

Tu vives, e estás aqui, nesta casa em que residem, perpétuas, a recordação, a glória, a vida moral de poetas e guerreiros, que fundaram e imortalizaram uma raça, e tiveram, como tu, a inflamar-lhes o ânimo, esse amor do ideal, essa fé na bravura e na bondade, que te valeram tantos desastres! Vives, e ouves-me, que não estamos aqui para rir do Cavaleiro da Triste Figura, mas para amar a sua alma ardente e generosa!

 

Louco sublime! Eu sou filho de uma pátria moça e cálida, continuamente aquecida pelo sol que cria miragens. Ainda não formada de todo, ainda hesitante e incompleta, a minha raça não será o que é: cada dia que passa, traz um novo elemento para a sua formação. Mas nós já temos, do passado, uma herança feliz.. Os nossos avós saíram pelos mares, a descobrir mundos, a afrontar perigos, [109] a fundar civilizações; os nossos pais, já nascidos aqui, internaram-se pelo sertão cerrado, sem bússolas e sem guias, combatendo as feras, e assentando entre as brenhas selvagens as primeiras cidades. A tua alma estava com eles, D. Quixote! Não os animavam a prudência, a bufonaria, o decantado bom senso de Sancho Pança; animava-os o teu Impeto heroico, impelia-os a tua loucura divina! Sejam quais forem as transformações que hajam de mudar a nossa constituição orgânica de povo, conserva-nos este anseio de glória, esta ambição de subir, esta vontade de brilhar, este "quixotismo" que está na massa do nosso sangue! Não queremos ser uma raça de Sanchos, adoradora do Estômago! Queremos realizar grandes feitos, queremos ser, como tu, vingadores de iniquidades, protetores de órfãos, defensores de oprimidos, justiceiros sem maldade, e misericordiosos sem fraqueza! Não queremos ter a existência quieta e ignominiosa de um pântano de águas mortas: queremos ter, como tu, a existência agitada dos rios e dos mares, correndo, vibrando, fulgindo, cantando, sofrendo – vivendo! E, se formos apedrejados e vilipendiados como tu, não nos queixaremos: nem só os vencedores merecem respeito e carinho; e às vezes um vencido, tal seja a causa que defende, é, na sua humilhação, mais glorioso do que todos os triunfadores…

Inspira-nos e protege-nos, louco sublime!

[110]

 

Fonte: “Miguel de Cervantes Saavedra. D. Quixote de La Mancha. Nova Aguillar. Rio de Janeiro. 2016.

 

Obs.:

1 20 Conferência proferida no Gabinete Português de Leitura em 12 de junho de 1905. Conferências Literárias, Rio de Janeiro: Kosmos, 1906. Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (Rio de Janeiro, 1865-1918) foi o maior expoente do parnasianismo brasileiro, tendo deixado também uma obra relevante como cronista e contista. Foi um dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras.

2 21 Respeitam-se neste texto as citações originais de D. Quixote (N. O.)

3 22 Há aqui um equívoco e uma citação apócrifa, pois o episódio do castigo de Andrés ocorre na primeira saída de D. Quixote, quando ele ainda não conta com a companhia de Sancho. (N. O.)

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A poesia do mundo

 

O que distingue um poeta de alguém que fazer versos é complexo. O fogo interno faz toda diferença [Osório diz: em quem lê ou em que escreve?]

 

Leandro Karnal

 

O talento mais raro do mundo é o poético. Eu brinco que o destino concede [Osório diz: têm autores que dizem que não existe inspiração. Creio que o destino, aqui citado, é a inspiração!] a um ser o talento de versos, em cada país, em cada geração e, por vezes, pula-se uma. Qualquer pessoa alfabetizada pode escrever rimas e frases poéticas. É claro! Um aluno que tenha feito poucos anos de piano pode dedilhar melodias inéditas a partir de escalas. Posso correr alguns metros sem ser atleta. Já recoloquei botões em camisas durante uma viagem, mas isso não me torna um hábil costureiro. Poesia é um desafio maior...

 

A primeira coisa que publiquei na vida foram poesias. Era uma brochura coletiva da escola, na época em que eu estava no segundo ano do Ensino Médio (o antigo Segundo Grau). Ainda tenho um exemplar e desejo diariamente que ninguém mais o tenha. Os textos que fiz, aos 15 anos, com intenção poética, eram proféticos: registraram a absoluta incapacidade de tanger a lira dos versos.

 

Alguém mais azedo dirá: “Você, ao escrever prosa, é também um mau escritor”. Eu me defendo: “Se você acha minha prosa ruim, precisaria ler minha poesia. Diante da minha veia poética, as minhas crônicas são brilhantes por pura perspectiva”.

 

Dizem que Machado era melhor autor de contos e romances do que poeta. Gosto muito de alguns sonetos do autor, contudo confesso: amo os contos dele. A poesia é o laboratório da língua e a redefinição das palavras em arranjos originais. Ela combina forma com conteúdo e causa um impacto estético duplo. [Osório diz:eis o x da questão!] Isso eu encontro de forma intensa em Castro Alves, em Fernando Pessoa, em Rimbaud, em Florbela Espanca e em Carlos Drummond de Andrade. E, mesmo nesses mestres da arte poética, existem oscilações quanto à qualidade [Osório diz: exatamente! Têm autores genias de uma única obra entre inúmeras que publicaram].

 

A arte de compor versos rimados ou brancos é uma tarefa complexa. Há ritmo, inteligência, complexidade no simples e até grandiloquência [Osório diz: outro x da questão. Mário Quintana, para citar um dos meus admirados, escrevia com uma simplicidade encantadora. Têm outros que não passo da primeira poesia, dada a dificuldade linguística imposta impiedosamente ao pobre leitor que teve a infelicidade de encontrar um autor que escreve para o próprio umbigo!].

 

Na obra de Gonçalves Dias, o ritmo chega a ser alucinante. Um poema de Victor Hugo parece uma catedral pronta e imensa: irretocável. Manuel Bandeira moderniza tudo e recria o linear com genialidade. Amo T. S. Eliot e entendo quem o deteste [Osório diz: mais como?! Sendo assim! Que seria do Corinthians se todos tivessem o bom gosto de admirar apenas o São Paulo?]. Certos sonetos de Shakespeare obrigam-me a releituras repetidas para captar os andaimes invisíveis do bardo.

 

Noto uma tradição. O advogado consagrado ou o médico de carreira exemplar, em algum momento, decide que é hora de lançar um livro de poesias. Vejam: grandes autores foram médicos e advogados. De cabeça, penso em Guimarães Rosa; em Lygia Fagundes Telles. Nosso arcadismo colonial e nosso romantismo têm muitas relações com as letras jurídicas de Coimbra e com o Largo de São Francisco em São Paulo. Porém, o nobre causídico e o dedicado esculápio, após 30 anos escrevendo textos jurídicos ou lendo revistas científicas, veem chegada a hora de lançar seus excertos do Parnaso... Alguns deveriam repensar o projeto [Osório diz: será? Vai que um espírito bondoso gosta! Salvar uma pessoa não é salvar a humanidade? Salvar um poeta, gostando dele, pode ser a salvação da poesia!].

 

Para não se imaginar que este cronista está atacado de um espírito ranzinza em excesso, a única chance de um Álvares de Azevedo ou um Augusto dos Anjos é a existência de muitos maus poetas [Osório diz: perfeito! É a peneira (leitores) e seus furos (gostos) que decidirão quem passa e quem fica]. Precisamos de massa crítica, de pretensões sociais amplas para que, a cada cem tentativas, uma dê certo [Osório diz: basta ter consciência disso: não há lugar para todos. Que se lança ao mar da poesia pode não chegar ao seu destino! O naufrágio faz parte!]. Milhares de pessoas claudicam com os dedos ao piano (como eu faço em casa) a fim de que, esporadicamente, surja um Tom Jobim ou um Nelson Freire. Talvez o princípio valha para toda forma de produção. Milhões de pessoas cozinhando; poucos chefs geniais.

 

Eu diria a todos e todas que, como no meu caso, não foram acompanhados da musa poética no nascimento [Osório diz: voltamos a questão inspiração ou dom! Ocorre o mesmo com quem pretende jogar futebol. Nem todos, aliás muito poucos, nascem Maradona!], tentem ser criativos nas declarações familiares de amor; que introduzam no limite do esforço falas bem engendradas e românticas. Usem as metáforas possíveis, exponham citações, aprendam a sair do óbvio. Com graça e elegância [Osório diz: saber o que é graça e elegância é complicado, já que alguns autores fazem sucesso com coisas escabrosas! Para alguns, ainda hoje, há repulsa a Augusto dos Anjos!], a vida fica melhor se forem erguidos brindes intensos e boa poesia. A noite de amor cresce quando se destaca o brilho dos olhos da amada – como janelas de luz que redimem a existência. Treinem! Suas vidas podem ser trespassadas pela inspiração dos grandes mestres [Osório diz: pode! Mas treino não ganha jogo, já disseram grandes craques que não gostavam de treinar! No futebol, penso, um perna de pau jamais chegara a Garrincha, mesmo com todo o treino que o tempo acordado lhe permitir]. Nós, sem verve poética, temos o privilégio de aprender e aproveitar. Uma palavra mais rara, um eco de vogais em rima e certa graça com leveza podem tornar o almoço dominical mais interessante. Há liberdade em cozinhar sem ser um profissional do fogão; somos livres para correr sem aspirar à medalha de ouro olímpica [Osório diz: perfeito! Afinal, não dizem um homem deve ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro? Vá lá!].

 

O último argumento é contraditório. Um verdadeiro poeta ignora opinião de cronistas de jornal e insiste [Osório diz: um não verdadeiro também! Vai que ele encontra um Anton Ego, o cronista do Ratatouille]. Um autor que sente o fogo criativo dos versos vai seguir, mesmo com as advertências densas de todas as Cassandras literárias [Osório diz: pois se ele se abater com o primeiro revés, tá lascado. Gabriel García Márquez foi rejeitado!]. Por vezes, como Sousândrade, pode escrever versos para o século seguinte. O que de fato distingue um poeta de alguém que faz versos é sutil e complexo. Apesar disso, posso afirmar que o verdadeiro poeta ou músico precisa criar, pensar sua obra, estando um pouco alheio ao mundo [Osório diz: regra geral, o mundo costuma ser mal humorado para com todos, especialmente para com os jovens sonhadores]. A musa é interna, e a massa pode concordar ou não. O artista prossegue. Os outros? Deleitam-se com a vaidade de um livro poético publicado para distribuir a clientes no fim do ano. O tempo é o juiz das qualidades criativas [Osório diz: amigos, familiares, círculos religiosos, divulgadores, imprensa, partidos políticos, costumam ajudar muito o tempo fazer sua parte!]. O fogo interno faz toda a diferença. Um poeta nunca perde a esperança.

 

Fonte: Estadão, 05.02.2023.

5

Como nasce e se difunde o Conhecimento.

 

Como tal, me ocupo das coisas materiais e concretas na mesma medida que qualquer investigador das coisas naturais. Porém, como pré-historiador devo tratar meus objetos sempre e exclusivamente como expressões e encarnações concretas dos pensamentos e ideias do homem; em uma palavra, do conhecimento”. Por outra parte, como pré-historiador, não posso ocupar-me com indivíduos, tal como podeira fazê-lo um historiador da literatura; meus objetos devem ser sempre membros de uma classe dada. Assim, não poderia identificar a primeira locomotiva e ainda menos a seu inventos, Stevenson. Poderia, naturalmente, advertir que a “Rocket I” foi uma das primeiras mostras da classe dos objetos que chamamos locomotivas, porém, sem o auxílio de documentos escritos jamais poderia provar si foi ou não realmente a primeira. O único critério para classificá-la seria o fato de que se construíram muitas outras locomotivas desde então e se seguem construindo-as ainda, e de que todas reúnem as mesmas qualidades fundamentais da “Rocket I”, apesar das melhores introduções posteriores. E o que vale para as máquinas de trilhos também vale para invenções muito anteriores e aparentemente mais simples, como as facas e os machados. A primeira faca feita pelo homem devia ser, sem dúvidas, de pedra, e eu, como pré-historiador, posso conhecer muitas classes antiquíssimas de facas de pedra; posso dividir as classes em subclasses e tipos. Porém, nunca poderei identificar o exemplar mais antigo desse tipo: a primeira faca que se fez.

[7]

 

Contudo, por que é possível reconhecer uma classe de objetos chamados “locomotivas” e outra classe de coisicas chamadas “facas”? E a “Rocket I” tivesse sido única, tinha sido drenada através da minha rede de classificação arqueológica. Porém Robert Stevenson encontrou um mercado para locomotivas; teve aprendizes e imitadores. Por estas razões a “Rocket I” foi o primeiro indivíduo de uma classe de objetos chamados “locomotivas”. Em termos mais técnicos, a “Rocket I” satisfez a demanda de uma sociedade de pessoas interessadas no transporte de mercadorias e passageiros, com um capital à sua disposição para pagar locomotivas e vias. Ao mesmo tempo Stevenson fundou uma escola de engenheiros e desenhistas, os quais, depois de estudar os inventos daquele, puderam reproduzi-los e melhorá-los. Dito em menos palavras: a invenção de Stevenson solucionou uma necessidade social e foi adotada e perpetuada por uma corporação de engenheiros e técnicos que se tinham capacitado sob as diretivas do inventor. Se ninguém tivesse necessitado de locomotivas ou se Stevenson não lhes houvesse ensinado a desenhá-las e fabricá-las, a “Rocket I” seria somente uma curiosidade e não um tema de estudo e classificação arqueológica.”

 

[Osório diz: A primeira locomotiva a vapor chamou-se “Rocket I” e foi construída por Stevenson1. O autor vai se aferrar em que as invenções, inovações são possíveis apenas se a sociedade necessitar delas!]

 

(Fonte: Sociedad y conocimiento, V. Gordon Childe. Traducción de Josefina B. de Frondizi. Ediciones Galatea Nueva Visión. 1958, p. 7 e 8).

1 A locomotiva Rocket, também conhecida como Stephenson's Rocket, era uma locomotiva a vapor de arranjo de roda 0-2-2. Foi projetada por Robert Stephenson e construída em sua empresa, a Robert Stephenson and Company, localizada em Newcastle upon Tyne, Inglaterra, visando a Rainhill Trials, uma competição importante nos primeiros dias das ferrovias de locomotivas a vapor, ocorrida em outubro de 1829 para escolher o melhor design para a Liverpool and Manchester Railway. Os participantes tinham que viajar 56 km, abastecer com combustível e água e retornar carregando uma carga pesada. A Rocket triunfou com uma velocidade média de 24 km/h, vencendo a disputa contra outros quatro competidores. (Fonte: https://nauticurso.com.br/shop/index.php?route=product/product&product_id=1313&tag=Locomotiva++Stephenson%27s+Rocket+Kit+para+montar#:~:text=A%20Rocket%20triunfou%20com%20uma,mais%20avan%C3%A7ada%20de%20seu%20tempo. Vista em 02.02.23).

 

SUPREMA ENTREVISTA

 

Professor Tercio Sampaio Ferraz Jr.1

 

Processo de escrita, artes e afetos

 

Suprema. Professor, o senhor é um dos mais notáveis juristas brasileiros. Entre suas principais obras, temos a renomada Introdução ao Estudo do Direito, fundamental para a formação de diversos acadêmicos do Direito em todo o Brasil. Quanto à construção da obra, como se desenvolveu seu processo de escrita? Quais foram suas principais motivações e referências? Em sua visão, qual é a maior contribuição desse trabalho?

 

TSF. A elaboração foi feita a partir de um convite da editora Atlas. Tomei por base as aulas que ministrava na Faculdade de Direito da USP. Mas o livro foi escrito em Lisboa, em cuja Universidade era professor convidado de filosofia do direito. Diante do grande número de obras conhecidas, tomei como um desafio escolher um enfoque diferente e original. Tinha em mente a Teoria Pura do Direito e a virada de foco que nela Kelsen trazia. Com Theodor Viehweg aprendera a importância da retórica para o direito. Mas aí também estava contido o linguistic turn *da filosofia contemporânea, o que desenvolvi na perspectiva pragmática e comunicacional de meus estudos linguísticos. Talvez uma contribuição significativa tenha sido tornar visível como o estudo do direito pode e deve aliar o conhecimento dogmático com o zetético em cada um dos seus tópicos tradicionais.

 

Suprema. Em uma de suas entrevistas,2 o senhor menciona a sua admiração pelos poetas do Largo São Francisco e seu encanto pela velha e sempre nova Academia, como carinhosamente é denominada a Faculdade de Direito da USP. Quais são suas lembranças afetivas da faculdade? Há um poeta/uma poetisa e um poema presente em sua memória até os dias de hoje?

 

TSF. Quando terminava meu curso colegial, encantava-me a ligação de nossos poetas com a Faculdade do Largo São Francisco. Tinha também a presença da Revolução Constitucionalista de 1932, que meu pai, tendo nela lutado, nela me fazia pensar. Era a mostra do agasalho feito de amizade e mocidade, capaz de cobrir, sob um único teto, gente de tanta parte, do norte ao sul do País, de dentro e de fora, numa irmandade que Paulo Bomfim expressou com vibrante emoção:

 

Onde estais com vossos ponchos,

os fuzis sem munição,

os capacetes de aço,

os trilhos do trem blindado

o lema de vossas vidas,

a saga dos vossos passos,

ó jovens de 32!

 

Suprema. O senhor, que é membro da Academia Paulista de Letras, começou a escrever poesias desde a adolescência e, inclusive, tem um livro de poesias publicado, chamado Para sempre e sempre. Como foi o processo de escrita desse livro, que é também uma coletânea de cartas à sua esposa? O senhor ainda costuma escrever poesias? O que inspira o senhor durante a escrita literária? Pretende publicar outros livros dessa natureza?

 

TSF. Escrevo poesia desde meus doze anos, mas nunca publicara um livro. Até que, nos meus setenta anos, recebi como presente de minha mulher, Sonia, um envelope. Apalpei-o e perguntei: um livro? Sim, era tudo que para ela compusera durante quarenta anos. O título veio de uma dedicatória que lhe fizera em um livro publicado por volta de 1988. Continua a escrever. Sempre para Sonia, Dela depende uma eventual publicação. Sempre e sempre…

 

Suprema. Durante o período em que cursava a graduação, o senhor chegou a atuar na novela A Cabeçuda, da TV Cultura (emissora dos Diários Associados),3 no papel de um padre. Por que decidiu não continuar a carreira de ator? O que a atuação trouxe de ensinamentos ao senhor?

 

TSF. A TV foi um episódio que vinha ao cabo de experiências de meus tempos de estudante no Colégio São Luís. Nelas aprendi a empostar a voz, mostrar a emoção, dominar a gesticulação. Mas minha maior vocação era a docência. Nela podia me descobrir também como ator. O ensino me fez perceber o palco da vida, o que fui sentindo desde meus tempos de estudante na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, quando era chamado a apresentar seminários. E, da Faculdade de Direito, tinha os exemplos marcantes de Goffredo Telles Jr. e Miguel Reale, artistas da palavra.

 

Suprema. Além da literatura, da atuação, sabemos também que o senhor é um apreciador da música clássica. Como as artes se fazem presente no seu cotidiano? O senhor acredita que o seu fascínio pelas artes de uma forma geral agrega algo de diferente na sua forma de enxergar sua vida no Direito? E fora dele? Como ambas as esferas coexistem?

 

TSF. Sempre estudei ouvindo música, desde criança. Acabei percebendo que a função significativa não é um privilégio da língua e da fala fonética. Há de se reconhecer, de todo modo, que o ouvir uma música transcende a audição no sentido fisiológico. Certamente é possível traçar um paralelo entre a capacidade orgânica do ouvido (altura do som, intensidade, velocidade etc.) e uma sequência musical, mas não seria isso que explicaria os efeitos na sensibilidade humana. A música, como o direito, é um mistério, o mistério do princípio e do fim da sociabilidade humana.

Por essa via algumas curiosas aproximações entre música e direito merecem atenção. De que maneira o silêncio pode ser compreendido como um campo de possibilidades musicais ou uma pura manifestação comunicativa? Som e silêncio são elementos complexos da música e do direito. “Quem cala consente?” Eis uma indagação tipicamente jurídica. As pausas, as ausências, os vazios são prenhes de relevância. Num interrogatório, alguém pode recorrer ao direito de ficar em silêncio. E na música? Antes da música e para que haja música, deve haver silêncio. Nessa esteira, haveria na música, como no direito, gêneros e classes de silêncio. Prudentes, maliciosos, complacentes, inesperados, planejados, denunciantes, românticos, de desprezo, de admiração, de ódio, de amor?

 

Suprema. Sua esposa, Sonia, seus filhos e seus netos sempre estiveram muito presentes em sua vida. Qual o papel e a importância desempenhada por seus afetos (familiares, amigos) para o seu desenvolvimento profissional?

 

TSF. Com meus pais aprendi a ser como sou. De minha mãe, aprendi que o trato modesto das coisas da vida deveria ser o bom caminho para o convívio humano. De meu pai, que o apreço à cultura tanto mais dignificaria a existência quanto mais fosse recebida com humildade. Minha vida foi sempre como uma grande família. Philein, amar, tem muitas facetas. Meu encontro com os grandes filósofos gregos me ensinou que a palavra philos (amigo) expressa muitas relações. Philein, o verbo, ora se traduz por “sentir afeição”, ora “comportar-se de modo amigável”, mas também “ser hospitaleiro”, “dar o devido tratamento a um hóspede”, sentir que o outro é um outro, estranho que seja, mas a quem se deve acolhimento respeitoso. É nessa polissemia de significados que somos philos: na família, nas relações sociais, na comunidade.

 

Trajetória, estudos e docência

 

Suprema. Em seus tempos como aluno universitário, o senhor traçou uma trajetória interessante ao cursar Filosofia e Direito ao mesmo tempo. O que lhe motivou a estudar os dois cursos? Como, em sua experiência, a Filosofia contribuiu em seus estudos jurídicos e como o Direito contribuiu em seus estudos filosóficos?

 

TSF. Foi no primeiro ano da Faculdade que o encantamento das aulas de Goffredo Silva Telles me levou a prestar o vestibular para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Não resisti ao apelo do mestre e decidi que os caminhos convergiam. Cursar duas Faculdades da USP, simultaneamente, podia ser um problema, me diziam. Mas em tempos de uma burocracia escriturária, própriaainda da era de Gutenberg, sem sistema informático, não resisti à vontade de enfrentá-lo. E a confluência dos caminhos, direito e filosofia, rendeu resultados.

O apelo filosófico que invoca um olhar para a ciência como paradigma do conhecimento, de certo modo, também remove o encontro entre o ser humano e o mundo. A ciência descobre e esconde. A ciência do direito parece toda norma, mas é preciso o olhar para a filosofia do direito, que funciona, assim, como um antagonista da doutrina, destruindo seu possível nimbus de auto-evidência e constantemente se esforçando para melhorar sua qualidade através da análise e da crítica. O direito, por sua vez, traz para a filosofia a experiência da vida. Foi nessa confluência que se abriu para mim a percepção de que a fonte imediata do direito era a capacidade humana de julgar. E que o julgar é, no fundo, um ato dramático: quem sou eu para dizer como deve ser o outro?

 

Suprema. Após concluir suas graduações no Brasil, o senhor embarcou em um novo desafio: o doutorado em Mainz, na Alemanha. Como foi para o senhor a vivência acadêmica em outro país tão distinto do Brasil? Quais dificuldades enfrentou? Alguém ou algo o incentivou a encarar esse desafio?

 

TSF. Sair do Brasil, estudar fora, era um desafio e uma aspiração legítima. Afinal, como dissera Álvares de Azevedo em um discurso pronunciado no dia 11 de agosto de 1849, em sessão comemorativa da criação dos cursos jurídicos,

 

o desenvolvimento escolastico nas Universidades de além-mar, applica-se inteiramente a nós, pois ainda após do dia 11 de Agosto de 1827, éra das Academias Jurídicas Brasileiras, temos sido reflexos das praticas e usanças européas. Litteratura, sciencias, artes, tudo isso aprendemos lá.

 

Nessa esteira, fui para a Alemanha, aprender, com Theodor Viehweg, a importância da retórica para o direito e, por essa via, o linguistic turn da filosofia contemporânea. Mas a língua, a princípio, pareceu-me um obstáculo intransponível. Levei pelo menos um ano para ultrapassá-lo. Mas valeu: quando cheguei, mal conseguia pedir um copo d’água. Ao final, após três anos, na entrevista tradicional de todo doutorando com o diretor da Faculdade, conversando sobre minha tese, ele me perguntou se eu pretendia seguir em Maiz uma carreira; respondi que me sentia no dever de voltar a meu país; ao que, surpreso, ele, pegando meu dossiê, me disse: ah desculpe-me, pensei que o senhor fosse alemão. O obstáculo virara um trampolim.

 

Suprema. Segundo manifestado em outras ocasiões, o senhor ingressou na faculdade de Direito motivado muito mais pelo que a Faculdade de Direito do Largo São Francisco representava do que pelo interesse em si no universo jurídico. O encantamento pelo Direito teria surgido somente após dez ou quinze anos de formado. A que o senhor atribui esse encantamento, ainda que tardio?

 

TSF. Sempre tive uma vocação filosófica. O direito era antes um objeto de contemplação e docência. A virada para o cotidiano jurídico foi fruto das dificuldades de sobreviver, no Brasil, como simples professor. E no exercício profissional, o que era necessidade acabou se tornando encantamento, ao revelar-me no dia a dia o desafio concreto da justiça. Foi aí que aprendi que a justiça é um problema, mas um problema que ganha articulação a partir das decisões. O conteúdo está aberto, depende da decisão que vai ser tomada. Mas não aparecem separados, estão mutualmente em convergência, um provocando o outro. Justiça é problema e, como problema, ganha consistência conceitual a partir de tomadas de decisão que vão identificar o que é justo e o que é injusto, porém, de novo, de forma problemática! É problema cuja resposta paradigmática é, de novo, um problema a resolver.

 

Suprema. Além de professor, em sua trajetória profissional, destacam-se o desempenho de funções como Procurador-Geral da Fazenda Nacional, secretário executivo do Ministério da Justiça, chefe de departamento jurídico da Fiesp, diretor jurídico de empresa multinacional, árbitro de arbitragens nacionais e internacionais, parecerista e advogado. Como a Filosofia se manifestou e se manifesta nessas experiências tão diversas? O que a Filosofia do Direito tem a agregar nesses espaços?

 

TSF. Com Goffredo Silva Telles aprendi que quem sabe só o direito, referindo-se às suas técnicas, é uma triste coisa. Com isso me iniciei desde cedo nessa percepção afetiva do direito, como um braço que acolhe, que estreita fortemente, para ao final lançar-nos ao mundo em liberdade, liberdade de preservar as leis como são, para transformá-las em justas como devem ser. E isso exigia de mim um saber aberto, sem permanência especializada, mas sempre aurindo da especialidade tudo que precisava.

 

Suprema. O início do exercício da advocacia lhe foi desafiador? Como o senhor enxerga a realidade da advocacia brasileira na atualidade? Considera que há muita diferença em relação ao período em que iniciou na profissão?

 

TSF. Quando me formei, advogado era um profissional, não um funcionário. O escritório era o lugar do seu exercício. Hoje tornou-se uma peça num grande empreendimento empresarial. Antes, sentado em sua banca, o desafio era ser procurado. Hoje, o mundo advocatício é um mercado a ser explorado.

 

Suprema. Entre suas preferências e ocupações, são nítidos o seu apreço e a sua paixão pelo ensino. Como se desenvolveu seu interesse pela docência? Poderia compartilhar conosco qual (e como) foi sua primeira experiência lecionando? Qual a importância que o ato de lecionar tem na sua trajetória profissional e pessoal?

 

TSF. Quando estudava na Alemanha e me preparava para o doutorado em filosofia, meu pai me escreveu: um amigo seu, sabendo que eu estava por lá, recomendava que eu me dedicasse a um ramo jurídico que começava a ascender no Brasil: direito tributário. Esse amigo era Modesto Carvalhosa. Confesso que não segui o conselho. Doutorei-me em filosofia mesmo. Vencera a paixão pela docência.

 

Filosofia e ensino jurídico

 

Suprema. Em oportunidades anteriores, o senhor já mencionou que o que lhe encantou inicialmente no Direito foi a zetética. Essa, portanto, viria a ser justamente parte da premissa principal da sua obra Introdução ao Estudo do Direito, na qual o senhor se vale da dicotomia “dogmática x zetética” – pensada, inicialmente, pelo seu mestre na Universidade de Mainz, o Professor Theodor Viehweg –, para apresentar o Direito como uma experiência social concreta. O que lhe despertou tanto o interesse nessa dicotomia?

 

TSF. A distinção remonta ao ceticismo grego e pode ser encontrada, pronunciadamente, em Quintiliano. Quintiliano, ao falar dos objetivos da ars oratoria, distingue entre questões legais e racionais (quaestio legalis ac rationalis), define as primeiras como finitae (finitas) e as segundas como infinitae (infinitas). Essa distinção, na diferenciação entre pensamento dogmático e pensamento zetético, vem à tona mais tarde com Viehweg, quando se preocupa com a orientação funcional das formas de pensar. O pensamento zetético, próprio de pesquisa científica, diz ele, é de caráter sempre provisório. Elabora suas premissas em forma experimental, as modifica e, se necessário, as abandona. Tem uma função principalmente cognitiva, através da qual ele é estruturado e determinado. No pensamento dogmático, as respostas, uma vez obtidas, são isentadas de questionabilidade e definidas absolutamente, pelo menos por um determinado período de tempo (pense-se na noção de doutrina dominante e de jurisprudência pacífica), tendo por função orientar a ação.

Entre dogmática e zetética há uma constante correlação. Quando certas respostas dogmáticas são isentadas de uma discussão, suas respectivas formulações, em um dado momento, indicam apenas um estágio de argumentação para lidar com um problema determinado. Um sistema dogmático com efeito diretivo para a ação emerge de um sistema zetético que o critica e força sua superação em uma nova perspectiva dogmática. Percebe-se, então, que o conceito de pensamento zetético é mais amplo em comparação com o dogmático, no conjunto do pensar jurídico (no seu sentido mais amplo), pois um pensamento zetético também é possível no campo das questões em que uma sistematização dedutiva e fechada vigora, sem perda, porém, da referência ao problema, como ocorre, por exemplo, no campo das ciências sociais.

O maior interese veio dessa possibilidade de se compreender melhor a disciplina jurídica como um todo, mais precisamente, em termos de dogmática jurídica (direito privado, direito público, direito civil, direito penal etc.), mas também de pesquisa científica (como sociologia do direito, antropologia jurídica, história do direito) e filosofia do direito (teoria jurídica como pesquisa dos fundamentos).

 

Suprema. Com a Filosofia do Direito, o senhor conseguiu unir dois dos seus grandes interesses: a Filosofia e o Direito. O senhor acredita que o Direito carece de maior intersecção com outras áreas das Ciências Humanas, como a sociologia, a economia, a política, etc.? Como as universidades podem promover uma formação mais interdisciplinar para o estudante de Direito?

 

TSF. Uma dogmática jurídica abrange os dogmas gerais de uma dogmata legal específica e que garantem sua uniformidade. É ela que confere sentido a noções fundamentais materiais como liberdade, igualdade, vida, segurança, propriedade, meio ambiente, consumo, concorrência, mas também formais, como validade, eficácia, hierarquia normativa, nulidade, revogação, direito adquirido, coisa julgada, ato perfeito etc. Dentro dos sistemas jurídicos atuais, a doutrina costuma estar ancorada constitucionalmente. Possibilita, desse modo, a manutenção do sistema dogmático como tal na alternância de situações, atuando como teoria geral de toda a criação jurídica (incluindo a criação jurídica judicial) e como teoria da interpretação para todas as interpretações. Como arcabouço extremo da dogmática jurídica, serve como regra de interpretação para todas as sentenças e termos nelas contidos.

Uma dogmática jurídica obviamente não pode desenvolver e cultivar qualquer opinião jurídica. Em vez disso, só pode cumprir sua função social de regular o comportamento se sua doutrina básica, a teoria nela contida, puder ser suficientemente apoiada por fundadas razões. Deve, portanto, ser legitimada de forma especial. Tal legitimação pode ser alcançada por meio de diferentes bases, sujeitas ao escrutíneo zetético. No entanto, se, diante de um fundamento, dificuldades necessariamente surgem, provocadas pela pesquisa zetética em face da insuficiência das respostas dogmáticas, é preciso deixar claro que a zetética não substitui a dogmática. Quanto mais exigente e crítico o pensamento zetético se torna, menos ele serve para orientar a ação: ele só pode oferecer conhecimento fragmentário, que está longe de ser suficiente para cumprir a função de um sistema dogmático.

Seguindo essa consideração, pode-se definir as tarefas e limites das disciplinas jurídicas zetéticas (ciências sociais em sentido amplo), enquanto oferecem à dogmática jurídica uma doutrina básica. Teorias jurídicas devem ser consideradas a partir de uma atitude zetética, meros esboços para quaestiones infinitae, que são claramente distinguíveis em sua função e status de orientação para a ação. Referem-se, assim, a um importante papel: manter continuamente a pesquisa, fazendo da doutrina dogmatizada seu objeto de constante indagação crítica.

 

Suprema. Em sua opinião, o ensino da Filosofia do Direito sofreu alterações significativas desde a época em que o senhor se graduou? Se sim, quais? Como podemos incentivar os estudantes a se engajarem mais na disciplina? Em que aspectos o ensino da Filosofia do Direito e do Direito em geral, no Brasil, ainda precisa avançar?

 

TSF. Filosofia do Direito era uma disciplina de apoio, exigindo muito dos docentes para que fosse valorizada. Noto hoje uma significativa transformação particularmente no Brasil (lembro de um fato: no Congresso Internacional de Filosofia do Direito de 2011, em Frankfurt, de cuja abertura tive o prazer de participar, o maior contingente de inscritos, obviamente depois dos alemães, era de brasileiros).

Não só a percebo como matéria de concursos públicos na área jurídica, como um interesse crescente enquanto instrumento crítico ou de inovação. Isso acontece em suas várias manifestações, por exemplo, na lógica (ver o crescente interesse pela inteligência artificial), na ética (o tema dos direitos humanos está presente na discussão dos sentidos de dignidade), na política (a delimitação e alcance da democracia no Estado Democrático de Direito), na metodologia (para além dos métodos dogmáticos, o papel da zetética na interpretação do direito) etc.

O incentivo ao estudante exige um professor engajado, isto é, que saiba mostrar na própria experiência jurídica os aspectos filosóficos relevantes sem ficar em monótonas reproduções de sistemas filosóficos.

 

Suprema. Como um dos alunos mais próximos aos professores Goffredo Telles Júnior e Miguel Reale, o senhor considera que eles tiveram alguma influência em sua decisão de exercer a docência? Há algum ensinamento ou lembrança da relação com esses professores que o senhor destacaria?

 

TSF. O encantamento das aulas de Goffredo Silva Telles e as lições de Miguel Reale constituíram uma orientação significativa. Com eles fui despertado para o apelo filosófico. Muito aprendi com ambos.

Lembro-me, mais tarde, de ter sido chamado por meus mestres, Miguel Reale e Goffredo Silva Telles, para uma reunião no Departamento. O concurso para a vaga de titular estava aberto e Teófilo Cavalcanti, sucessor nato de Goffredo, havia falecido. Fui então concitado a escrever uma tese para concorrer à titularidade.

Lembro-me do mestre Goffredo, que foi nosso paraninfo, a repetir, ao final de seu curso, que o direito, como o amor, tem suas raízes enterradas no coração humano, mas, ao mesmo tempo, de ter sido capaz de vir a fazer da sua palavra um aríete, ao pronunciar, no pátio da Faculdade, sua memorável Carta aos Brasileiros, contra um regime autoritário que, a partir daí, começou a fenecer.

Numa aula, já no quinto ano, Miguel Reale, o mestre jurista e filósofo, perguntava um dia, sem muita expectativa de uma resposta, se alguém sabia como Aristóteles definia a justiça. Para sua surpresa, levantei a mão e fui desfiando tudo que aprendera da leitura da Ética a Nicômaco. Pouco depois, eu juntamente com Celso Lafer, esse amigo de tantos anos, éramos convidados por ele a participar de suas aulas de filosofia jurídica em seu curso na pós-graduação. Fomos aprender a ler Vico, La scienza nuova. Justamente Vico, citado em epígrafe por Viehweg em seu livro Tópica e Jurisprudência, a quem muito devo.

 

Suprema. Uma das funções que o senhor ocupa atualmente consiste em ser consultor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Como pesquisador, professor e autor de diversas obras jurídicas e filosóficas, quais comentários o senhor teceria sobre o panorama do incentivo à pesquisa no país? Quais seriam os principais desafios para os estudantes que pretendem seguir a vida acadêmica? O que o senhor considera que pode ser feito para incentivar a pesquisa no Brasil?

 

TSF. Lamentavelmente, os manuais mais usados entre nós ensinam a adotar o estilo de citação de opiniões, de repetição parafrástica de textos legais ou de jurisprudência de tribunais. Este é um mau procedimento. O que o estudante tem de perceber são as incertezas nos dispositivos que regulam as situações. O método deveria exigir um olhar para uma investigação de pressupostos, mostrando uma visão ampliada da mera dogmática. Nesse contexto, é relevante ressaltar a necessidade de fazer da pesquisa uma investigação de estruturas integradas. Não se trata de fazer do jurista um sociólogo ou um economista ou um filósofo, mas de orientá-lo para um aspecto inquiridor dos fundamentos como meio de alargamento das condições de decidibilidade de conflitos. A dogmática deve absorver a pesquisa empírica de outras ciências, utilizando-a para fins próprios.

 

Democracia, Liberdade de Expressão e Ordem Econômica

 

Suprema. O senhor se formou tanto em Direito como em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) em 1964, ano marcado pela deposição do presidente João Goulart pelo golpe que daria início à ditadura militar que marcou a história do Brasil. Como foi para o senhor, na juventude, recém-formado filósofo e bacharel em Direito, deparar-se com esse momento? De alguma forma esse momento alterou seus planos acadêmicos, profissionais e pessoais?

 

TSF. Minha geração acadêmica, de 1964, passou cinco anos a aprender o direito como um exercício de liberdade. Havíamos aprendido o espírito de lidar com o direito como alguém que se empenha, para lembrar Kant, a “suplicar a aquiescência de cada um dos demais” na esperança de um sentimento comum. Mas começávamos nossa vida profissional em meio aos constrangimentos de um autoritarismo asfixiante. O Brasil não tinha pena de morte, mas a morte acabava sendo imposta como resultado de intermináveis suplícios, em nome de um interesse soberano, atos de tortura acobertados por alguma razão de estado contra os ditos atos de subversão. E foi esse duro aprendizado que nos fez revolver o nosso juízo. Afinal, logo compreendíamos que a razão de estado não poderia constituir a regra das coisas, nem pressupunha ditames políticos na forma de normas que usurpam as normas do próprio direito. Ao contrário, tem por condição de possibilidade o pressuposto de que as questões elementares da democracia tenham um mínimo de evidência. Aprendemos, então, que um direito estabelecido arbitrariamente de fato constitui-se e pode mesmo servir a alguma finalidade. Pode gozar de império, ser tomado como válido e ser inexoravelmente efetivo. Mas aprendemos, também, que o direito não tem seu sentido nem no império nem na própria efetividade. Pois só assim se explica a revolta, a inconformidade humana diante do arbítrio. E que aí repousa, ao mesmo tempo, a sua força e a sua fragilidade. É possível implantar um direito à margem da justiça. Aí está a fragilidade. Todavia, é impossível evitar a percepção do arbítrio e a consequente revolta do espírito. E aí está a força.

 

Suprema. Em sua fala de encerramento na mais recente edição do Seminário da Feiticeira,44 realizada no ano 2019, o senhor menciona a possibilidade de, talvez, as noções de “povo” e “nação” não estarem mais funcionando, em razão de uma crescente falta de identificação com esses conceitos pela sociedade moderna. Ainda na mesma fala, menciona a função da República, de fazer valer as vontades do povo, e indica o Presidente como o principal agente representativo dessas vontades. No presente ano eleitoral em que estamos (2022), com as vindouras eleições para Presidente da República e vários outros cargos políticos, quais seriam suas expectativas? Possui alguma preocupação diante da polarização que temos visto nos últimos anos?

 

TSF. A democracia é uma forma de governo que precisa de um grande equilíbrio e de uma grande maturidade e que está permanentemente exposta a todos os perigos de todas as espécies de intolerância, razão pela qual a democracia moderna é um desafio no mundo. Como Bobbio destaca, na democracia representativa é a representação “fiduciária” (sem mandato imperativo) e os “interesses gerais” do indivíduo como cidadão, mais do que a representação de interesses específicos ou corporativos de cada indivíduo, que contam. Estes dois elementos estão relacionados justamente porque representam o interesse geral e não os interesses particulares de seus eleitores. Neste mundo de hoje, ameaçado pelo horror de revivals autoritários e ameaças contra quem não é forte, o cidadão deverá estar empenhado em entender ou ao menos tentar entender, mas de uma forma ativa, não contemplativa, que o representante a ser eleito, para representar, tem de ter um valor próprio, uma dignidade e uma autoridade próprias, ou seja, as qualidades de um senhor e não de um serviçal de interesses alheios ou próprios.

 

Suprema. Sabemos que a internet tem se tornado um grande espaço de discussões e manifestações de opinião. Entre elas, há inúmeras que poderiam inclusive ser consideradas agressivas aos Direitos Fundamentais ou, essencialmente, à ética. Como filósofo, como o senhor percebe esse novo espaço de debate proporcionado pela internet? O senhor considera que a disseminação de fake news, desinformação e discursos de ódio, protegida sob o falso manto da liberdade de expressão, prejudica nossa habilidade de discutir ideias? Se sim, de que forma poderíamos solucionar esse problema?

 

TSF. A pergunta toca numa questão tecnicamente muito mais complexa, que exige o entendimento da proteção de dados enquanto circuito comunicacional.Nesse sentido, é significativamente importante reconhecer que não se poderia, sob o pretexto de dificultar a propagação de conteúdo ilícito ou ofensivo na web, reprimir o direito da coletividade à informação. Sopesados os direitos envolvidos e o risco potencial de violação de cada um deles, o fiel da balança deveria pender para a garantia da liberdade de informação assegurada pelo art. 220, § 1º, da CF/88, sobretudo considerando que a internet representa, hoje, importante veículo de comunicação social de massa.

Pode-se ter, nesse quadro, uma intuição dos problemas gerados num ambiente, por exemplo, de eleição política. O problema não está na captura de dados cadastrais, dados de identificação como nome, endereço, profissão, idade, estado civil, filiação, número de registro público oficial etc., mas de metadados, aqueles dados e registros gerados a partir de uma comunicação, que não constituem a mensagem em si, como data, hora, duração, frequência, remetentes e destinatários, localização geográfica, código de identificação do dispositivo (como IMEI) etc.

A possibilidade de colher essas informações gera um “log” no sistema, ou seja, gera-se uma marcação de que o indivíduo “X” acessou a informação “Y” em determinada data e horário, permitindo-se a que essa informação seja disponibilizada em relatórios e posta a serviço de composição de scores/modelagens de informação para criação de perfis, para análises estatísticas e, por óbvio, para a reiteração de mensagens do mesmo gênero no endereço acionado etc.

Trata-se, pois, de uma informação extremamente relevante para o jogo político. Afinal, com essas informações, o interesse político na propagação de “opinião” pode confirmar se as mensagens serão ou não “convenientemente” absorvidas.

Isso traz algumas consequências. Essas informações, em conjunto com outras informações relevantes para a análise da viabilidade política de candidatos, são levadas em consideração para avaliação de risco e decisão final de orientação eleitoral. Como variável de scores, elas constituem, assim, uma ferramenta que tem como objetivo auxiliar a tomada de decisão, ao indicar, por meio de uma pontuação, qual a chance de determinado perfil de eleitores optar por essa ou aquela tendência.

O problema de como tratar juridicamente o uso de metadados “produzidos” mediante fake news lida, na verdade, com questões ontológicas sobre a essência de uma tecnologia ou de uma aplicação na internet. Uma alternativa seria tratar o problema em termos de liberdade e seus “limites”, problema difícil de resolver#se quando se percebe no horizonte a conformação da sociedade como imensos sistemas virtuais dos quais a liberdade parece ter sido despersonalizada e que se regularão apenas por modelos sempre mais uniformizadores do arbítrio dos indivíduos, já então reduzidos a uma tecla de acesso e despojados de sua razão de ser como portadores do ethos.

 

Suprema. Nos últimos anos, acompanhamos diversas operações destinadas a investigar e a combater a corrupção no Brasil. Enquanto filósofo, qual a importância que o senhor atribui à ética para o desenvolvimento de um país? Que medidas acredita que podem ser tomadas para fortalecer a probidade dos cidadãos e das instituições?

 

TSF. Embora, nos dias de hoje, corrupção seja um tema, tratado na legislação e verberado moralmente, talvez não se trate propriamente de um problema jurídico nem mesmo ético, mas de uma cultura a ser enfrentada. Qualquer um conhece esse jogo de luz e penumbra, que acompanha, com sua carga de ambiguidade, a tênue escala de expressões existente no vocabulário brasileiro: cervejinha, gorjeta, jeitinho, caixinha, ajudinha, lubrificar, taxa de urgência, por fora, esquema, rolo, molhar a mão, mamata, negociata, propina, falcatrua, caixa dois etc.

 

No Brasil, a chamada corrupção sistêmica que se produz quando as incorreções se tornam regra e os paradigmas traçados pela lei viram exceções. Na corrupção sistêmica a administração adquire um código oculto, que valida e alimenta as violações do código expresso, a tal ponto que os que não compartilham das práticas venais são intimidados e obrigados a guardar silêncio. O que não é diferente, aliás, nas administrações empresariais.

Que fazer então?

Embora não o único, um importante aliado contra a corrupção talvez seja o mercado financeiro. Uma administração econômica legítima e sustentável deve estar submetida ao juízo dos investidores. Para isso são necessários os auditores independentes, as agências de rating e as autoridades financeiras. A experiência mostra que a administração empresarial nada mais teme que o mau juízo de investidores financeiros. Mas onde fica a transparência nas empresas privadas? E nas empresas públicas?

Estruturas empresariais autocráticas, privadas ou públicas, não resolvem o problema e devem ser criticadas, o que é, especialmente, uma tarefa para o jornalismo econômico. Muito ajuda na luta contra a corrupção uma imprensa livre, com jornalistas especializados em questões econômicas: em uma democracia que funciona isso é uma obviedade.

 

Atual contexto sanitário e futuro

 

Suprema. A pandemia impactou e ressignificou demasiadamente a forma como os indivíduos passaram a se relacionar. O contato humano ficou por muito tempo bastante limitado: os sorrisos escondidos por baixo das máscaras, apertos de mãos e abraços interditados. Como foi para o senhor vivenciar esse momento? Como essa nova forma de se relacionar e de se comunicar impactou nas suas relações cotidianas?

 

TSF. Uma epidemia viral afeta nossas interações mais elementares com outras pessoas e objetos ao nosso redor, incluindo nossos próprios corpos; faz com que se evite tocar coisas que podem ser invisíveis (sujas?), não tocar em corrimãos, não se sentar em bancos públicos, evitar abraçar as pessoas ou apertar as mãos. Leva-nos até a ter mais cuidado com gestos espontâneos: não tocar no nariz ou esfregar os olhos. É a ideia de contágio, que está na base das medidas excepcionais de emergência. As universidades e escolas fecham, paramos de nos reunir e conversar e apenas trocamos mensagens digitais: as máquinas substituem todo o contato – todo o contágio – entre os seres humanos.

Mas o efeito do vírus não é tanto o número de pessoas que ele mata. O efeito do vírus está na paralisia relacional que se espalha ou que se torna enormemente expansiva na forma virtual: infecções virais trabalham lado a lado em dimensões reais e virtuais.

De um lado, como ameaça global, ela dá origem a uma solidariedade global, nossas pequenas diferenças se tornam insignificantes, todos trabalhamos juntos para encontrar uma solução. Por outro lado, o vírus nos isola e nos individualiza. Não gera sentimentos coletivos fortes. De alguma forma, todos se importam apenas com sua própria sobrevivência.

A sensação é de que efetivamente terminamos por passar de uma sociedade escrita para uma sociedade cibernética, de uma sociedade orgânica para uma sociedade digital, de uma economia industrial para uma economia intangível, uma sociedade que gerencia e maximiza a vida das populações em termos de interesse nacional, na forma de controle disciplinar e arquitetônico, para lembrar Foucault.

 

Suprema. Nos permita retornar ainda aos encontros na Praia da Feiticeira, em Ilhabela, no Estado de São Paulo. Assistindo a algumas edições do Seminário disponíveis na internet,55 é possível observar um clima amistoso e intimista que nos convida a uma conversa franca e dialética. Qual foi a inspiração que o levou a organizar esses encontros? Qual a importância que o senhor atribui às trocas filosóficas entre amigos e alunos que ocorrem nesse espaço? Com a pandemia do coronavírus e o consequente cancelamento das edições nos últimos dois anos, o senhor sente falta dos seminários?

 

TSF. Os encontros na Praia da Feiticeira começaram por iniciativa de meu amigo Jorge Forbes, que inclusive teve a ideia de trazer Gilles Lipovetsky para discutirmos a pós-modernidade. Depois foram tomando outros rumos, mais voltados para temas do nosso cotidiano, mas sempre procurando um entrelaçamento pluridisciplinar das perspectivas. Mas o que efetivamente garantia o interesse interna e externamente sempre foi o espírito de encontro de amigos numa paisagem tropical exuberante. Pena que a pandemia tenha interrompido a sequência. Mas voltaremos.

 

Suprema. Nessa questão do ensino, e pensando a partir do momento atual provocado pela pandemia de coronavírus, a educação passou por várias mudanças e adaptações, entre elas a institucionalização do ensino online. Dito isso, como lhe parece esse novo cenário da educação remota adaptada? Como o senhor interpreta a massificação do uso da internet e das tecnologias digitais no que tange às nossas interações sociais? Quais os ganhos e quais as perdas o senhor observa nessa forma de ensino?

 

TSF. A digitalização elimina a realidade. A realidade é experimentada graças à resistência que oferece. A digitalização, toda a cultura like, suprime a negatividade da resistência. E na era pós-ficcional de notícias falsas e deepfakes, surge uma apatia em relação à realidade.

Nesse quadro, o ensino on line tem a vantagem de vencer as distâncias. Torna#se mais acessível e permite um intercâmbio mais amplo. Mas perde muito no contato. Às vezes parece com uma refeição virtual: uma mesa-plataforma, em que todos saboreiam alimentos sem paladar e aroma.

 

Suprema. Neste primeiro semestre de 2022, o senhor retornou às aulas na pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da USP, para lecionar sobre “Inteligência Artificial e a Jurisprudência do Futuro”, disciplina que, certamente, está na vanguarda dos estudos jurídicos. Qual a sensação de retornar às salas de aula? Como se deu a escolha dessa matéria?

 

TSF. Não retornei ao presencial. Por conta de uma imunossupressão, sou obrigado ainda a permanecer no virtual. Quem sabe no próximo semestre…

A disciplina foi iniciativa de Juliano Maranhão, que se dedica particularmente ao tema. Minha participação ocorre por meu interesse pelo fenômeno. Com a inteligência artificial, inaugura-se uma relação tecnicamente sui generis. Com a substituição da escrita pelo dígito, o mundo de imagens substitui o mundo de conceitos; o espaço público do direito torna-se o espaço da aparência em novo sentido: show, espetáculo; a rigor, em vez de reading, roaming. Embora o software escrito em linguagem natural (código fonte) e o software traduzido em linguagem de máquina (código objeto) sejam equivalentes com respeito ao processamento informático ao qual se dirigem, não são equivalentes no que se refere ao conteúdo informativo por eles expresso. Enquanto o programa em código objeto não expressa qualquer justificação das funções que os comandos exercem no programa, o programa em linguagem natural (código fonte) lhe confere acesso à justificação (metaprograma), na medida em que permite a compreensão de cada instrução e sua função no programa, que por sua vez leva o programador a compreender a função do programa como um todo (metametaprograma). Nesse novo mundo o direito passa a exigir novas formas de pensar: eis o desafio!

 

Suprema. Após uma grandiosa trajetória pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, o senhor recebeu o título de Professor Emérito. Quais sentimentos lhe perpassaram ao tomar conhecimento da notícia de que receberia esse tão importante reconhecimento? Que mensagem o senhor deixaria para as futuras gerações de professores de Direito no Brasil? E aos estudantes?

 

TSF. Na Faculdade, lecionei durante 42 anos, dos quais 30 anos como professor titular. A despeito de ter sido titular por concurso, ao defrontar-me com o ato que me fazia professor ex merito, um título que honorifica pela condição ímpar da instituição que o concede, confesso que só pude expressar uma sentida gratidão, de gratidão como expressão vocabular de algo verdadeiramente inefável, que é dado à sensibilidade e que nela se recolhe como um refúgio da intimidade: uma espécie de alegria que inunda a alma e nos torna mudos.

Mas que dizer às novas gerações?

Na complexa sociedade tecnológica de nossos dias, tudo parece ocupar-se basicamente do futuro. No direito, a questão não está mais em controlar o desempenho comportamental tal como foi realizado, mas como ele se realizará. Vivemos uma civilização que joga sua capacidade criativa em fórmulas, cujos máximos valores são a eficiência dos resultados e a alta probabilidade de sua consecução. E, no campo jurídico, o tribunal, tradicionalmente uma instância de julgamento e responsabilização do homem por seus atos, pelo que ele fez, passa a ser chamado para uma avaliação prospectiva e um “julgamento” do que ele é e do que poderá fazer.

O desafio está em como travar, diante desse mundo transformado, essa luta milenar entre o direito e o fato e ver nesse duelo aquele amálgama da ideia pura com a realidade humana, que faz pacificamente penetrar o direito no fato e o fato no direito: esse o verdadeiro trabalho confiado às novas gerações.

 

Referências

 

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 2. ed., rev., atual. São Paulo: Forense, 2017. 269 p. (Série fora de Série)

AZEVEDO, Álvares de. [Discurso recitado no dia 11 de agosto de 1849 na sessão acadêmica comemorativa do aniversário da criação dos cursos jurídicos no Brasil]. In: Obras de Manoel Antônio Alvares de Azevedo. Rio de Janeiro: Garnier, 1862. v. 2 – prosa. p. 1-18. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm/5029/1/002384-2_COMPLETO.pdf. Acesso em: 23 maio 2022.

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 11. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009. 207 p. (Pensamento Crítico, 63)

BOMFIM, Paulo. Os jovens de 32. Disponível em: https://tj-sp.jusbrasil.com.br/noticias/126652409/os-jovens-de-32> Acesso em: 23 maio 2022.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23 maio 2022.

FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 11. ed., rev., atual., ampl. São Paulo: Atlas, 2019. 339 p.

FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Para sempre e sempre. 2. ed. São Paulo, Manole, 2012. 220 p.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica Roberto Machado.11. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2021. 431 p.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8. ed., 7. tir. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2019. 427p.

QUINTILIANO. Instituições oratorias. 2. ed. corr. e emendada. Paris: Livraria Portuguesa de J. P. Aillaud, 1836- .

TELLES, Goffredo Silva. Carta aos brasileiros 1977: manifesto de repúdio da ditadura, e de exaltação do “Estado de Direito Já”. São Paulo: J. De Oliveira, 2007. 95 p. Edição comemorativa do 30º aniversário da Carta.

VICO, Giambattista. Princípios de [uma] ciência nova. São Paulo: Abril Cultural, 1974. 188 p. (Os Pensadores, 20)

VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico#científicos. Porto Alegre: S. A. Fabris, 2008. 126 p.

 

Fonte: 26 SUPREMA – Revista de Estudos Constitucionais, Brasília, v. 1, n. 2, p. 17-26, jul./dez. 2021. ISSN 2763-8839. https://doi.org/10.53798/suprema.2021.v1.n2.a61

 

1 FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Suprema entrevista: Professor Tercio Sampaio Ferraz Jr. Suprema: revista de estudos constitucionais, Brasília, v. 2, n. 1, p. 27‑45, jan./jun. 2022.

*Sobre veja algo em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Virada_lingu%C3%ADstica.

2 A entrevista, realizada pelo Professor Henderson Fiirst, Conselheiro Científico da Suprema, encontra-se disponível em http://genjuridico.com.br/2019/05/28/resenha-introducao-estudo-do-direito/.

3 A primeira telenovela da TV Cultura foi A Cabeçuda, lançada no dia 2 de outubro de 1960. Produzida por Lúcia Lambertini, a novela ia ao ar todas as segundas e sextas-feiras, às 20:30. Diário de S. Paulo, São Paulo, 5 out. 1960. 1° Seção, p. 9. (Citado por Eduardo Amando de Barros Filho). Disponível em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/93375/barrosfilho_ea_me_assis.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 23 maio 2022.

4 Disponível em: http://genjuridico.com.br/2020/07/07/encerramento-do-seminario-da-feiticeira-2019/.

5 Disponível em: http://genjuridico.com.br/seminariodafeiticeira/.

 

A morte como piada

 

COLUNISTA

Eugênio Bucci

Jornalista e professor da ECA-USP, Eugênio Bucci escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto



  • Um ser humano, sobretudo na hora da morte, merece de nós a nossa melhor expressão de respeito

     


Eugênio Bucci, O Estado de S.Paulo

27 de janeiro de 2022.

 

O falecimento do escritor Olavo de Carvalho, na terça-feira, repercutiu nas redes sociais de um modo carnavalesco, brincalhão, satírico e apavorante. Uma avalanche de festejos virtuais fez da notícia fúnebre uma festa popular, como quando as torcidas comemoram a vitória do seu time num desses certames futebolísticos. Anedotas floresciam em toda parte, das mais chulas às mais elaboradas. Uns se divertiam com a boutade de que a onda de calor destes dias se deve à porta do inferno, escancarada para receber o novo inquilino. Outros preferiram replicar o post segundo o qual o morto, ao se instalar no endereço escaldante, havia declarado que o inferno é plano. Os mais líricos recuperaram um poema famoso do uruguaio Mario Benedetti, escrito em 1963, chamado Obituário com hurras: “Murió el cretino / vamos a festejarlo”. Por muitas horas, o escárnio divertido, espirituoso e ácido manteve seu ânimo. E foi isso, apenas isso, que me soou apavorante (esta é a palavra). Se a morte de alguém, seja esse alguém quem for, é motivo para o nosso regozijo mais ostensivo, a que teremos nos reduzido?

 

É claro que a minha percepção individual não pode ser generalizada. Aliás, nada aqui se pretende generalizante. Quando falo em redes sociais, estou me referindo apenas ao que delas posso ver ou saber, ou seja, falo de recortes exíguos e franjas infinitesimais de uma superindústria inapreensível. Olho as redes mais ou menos como os mendigos que viam televisão em frente às vitrines do Mappin. Eu as observo pelo lado de fora. Mesmo assim, mesmo vendo tão pouco, não gostei de ver a bolha que orbito exultando copiosamente porque alguém morreu.

Em outras bolhas, com as quais me identifico menos ainda, proliferaram homenagens hagiográficas ao falecido. Não primaram pela sobriedade. Em nota conjunta, a Secretaria Especial da Cultura e a Secretaria Especial de Comunicação Social afirmaram que ele deixa um legado de “contribuição inestimável ao pensamento filosófico e ao conhecimento universal”. Haja grandiloquência governamental. Procurando inflar com artifícios rasteiros a magnitude da obra alegadamente filosófica do escritor, o texto constrange, como se também tivesse a estrutura de uma piada, desta vez involuntária. O chefe de Estado decretou luto oficial de um dia.

Entre uns e outros, Olavo de Carvalho morreu como signo em disputa. O que se pode dizer, objetivamente, é que ele contribuiu para conferir amálgama discursivo para aglutinações (coagulações) de forças contrárias à democracia no Brasil, tecendo um fio de amarração ideológica que se estende dos estertores da ditadura militar (especialmente da banda mais fascista do regime, aquela que se opôs agressivamente contra a abertura política liderada por Ernesto Geisel) até as entranhas do credo bolsonarista atual. Os textos de Carvalho, bem como seu intenso proselitismo na internet, contribuíram para sintetizar uma unidade que poderíamos chamar de protoconceitual para a verbosidade violenta das milícias digitais. São elas que agora o cultuam como um totem inexpugnável e oco. Para outras bolhas, as que debocham de seu funeral, o morto terá sido uma fraude intelectual a ser desbaratada e esquecida. Pode ser que exista razão no diagnóstico, mas a atitude de tripudiar sobre o caixão ainda insepulto passa da conta.

A essa altura, não há sentido em cobrar boas maneiras de quem quer que seja – e, de minha parte, seria um embuste eu presumir que possa ter comigo a baliza da urbanidade. Não tenho essa pretensão. Meu ponto é um só: registrar o fato, terrivelmente incômodo, de que as expressões de ódio (como essa que caçoa do sepultamento do adversário) se alastraram horizontalmente, a ponto de se tornar um denominador comum da linguagem política. Tenho a impressão de que o ódio, ou alguma parte dele, parte essencial, já nos subjugou a todos. O pior é não haver o que fazer, não há como reverter o quadro, e isso é o que mais apavora.

A gente sabe que os tiranos, quando morrem, viram objeto do nojo popular. O cadáver de Mussolini ficou exposto à fúria dos populares em Milão, em 1945. Foi chutado e levou cusparadas. Depois disso, no entanto, a civilização, pelos trilhos da democracia, ergue barreiras que sublimam a fúria legítima em justiça e, depois, assenta a justiça em paz. Na Normandia, os soldados alemães que combatiam pelo nazismo jazem no Cemitério de La Cambe, sem que seus túmulos sejam profanados. Tem de ser assim. Se não sabemos nos deter diante do limite da morte, não somos civilizados.

O bolsonarismo já deu todos os sinais de que despreza a vida, os direitos e as liberdades. Seu líder máximo zombou muitas vezes dos que morreram de covid. Isso é deplorável e indigno. Mas os que se opõem a essa escola odiosa nunca deveriam ceder ao mesmo padrão de ódio. Deveríamos ser os primeiros a saber que, no fundo de cada crápula, ainda tenta respirar um ser humano. Deveríamos saber que esse ser humano, sobretudo na hora da morte, merece de nós a nossa melhor expressão de respeito.

JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

[Osório diz: Concordo com tudo que foi dito no texto acima! Só pondero o seguinte: o falecido só colheu o que plantou como diz “o legislador popular, conhecido como vulgo”! Os jogadores somente deram sequência às regras do jogo que o próprio finado ajudou a implantar e a manter em circulação!]

 

e

 

O imbecil privado

 

Sérgio Augusto, O Estado de S. Paulo

 

Com panca de caubói, ele transfigurou-se numa usina de mentiras e insultos

 

 


29 de janeiro de 2022.

 

Os anticomunistas mais fanáticos e perigosos costumam ser aqueles que já militaram do outro lado, não porque íntimos das entranhas da baleia mas porque raramente se conformam com ter sido “enganados” pelos prosélitos da antiga crença [Osório diz: kkkkk. Verdade!]. Passionais e agressivos, apelidei-os, faz tempo, de “cornos ideológicos”, tendo em mente cornudos antológicos como Carlos Lacerda, que foi um inflamado integrante da Juventude Comunista antes de se transformar no mais incendiário anticomunista do País.

 

Tudo no Brasil se deteriorou tanto nos últimos anos que o Lacerda que nos coube ter neste início de milênio foi o dublê de professor, “filósofo” e astrólogo Olavo de Carvalho. Se acreditasse em bruxarias, juraria que o guru do bolsonarismo acabou vítima de um canjerê coletivo. Sua morte, no início da semana, foi saudada nas redes sociais até por quem considera a empatia um dever de todos para com todos, sem exceção daqueles que a desqualificam e hostilizam.

 

Só o vi uma vez, de longe, na missa de sétimo dia de Paulo Francis, em fevereiro de 1997, mesmo ano em que, com outros escribas, partilhamos a seção de ensaios da revista Bravo!. Ainda nos tangenciamos como prefaciadores da reedição dos romances de Aldous Huxley.

 

As duas vezes em que nos falamos, por telefone, foi para colher impressões e lembranças de minha convivência com Otto Maria Carpeaux. Ele preparava uma coletânea de ensaios de Carpeaux para a Topbooks, que resultou, aliás, num belo trabalho editorial. Aí veio o novo século e nunca mais nos cruzamos.

 

Ainda bem. Pois seria constrangedor ter de lidar com o monstro ressentido que Olavo pôs na praça e foi lapidando. Olavo não era “polêmico”, era picareta. Sua magnum opus O Imbecil Coletivo, é um subproduto do Manual do Perfeito Idiota Latino-americano, do jornalista Carlos Alberto Montaner, guzano conspirador exilado na Espanha, que por algum tempo teve livre trânsito na imprensa daqui.

 

Para Gregório Duvivier, o escatológico panfletário da nossa extrema direita “não conseguiu ter razão um dia sequer”. Olavão foi “o catalisador do que de pior já se pensou e projetou para o Brasil”, lascou Paulo Roberto Pires no site da revista 451.

 

Tabagista militante, negacionista com ascendente em terraplanismo e fixação anal, o embusteiro com pança de caubói e caçador transfigurou-se numa usina de mentiras, insultos e idiotices (a pandemia não existe, vacinas matam, a Pepsi é fabricada com fetos abortados etc), o que explica por que o governo, rompendo seu macabro silêncio sobre milhares de outras mortes por covid, decretou luto oficial em sua homenagem. Prevaleceu a gratidão.

 

[Osório diz: Olavo morreu: agora alguns já podem se vacinar!

 

Ele não vai mais “chupar o c*" de quem não se vacinar, como havia prometido ao Caetano!

 

Parece que é mais uma conta que o velhaco não pagou.

 

Talvez a fixação anal ajude a compreender a recusa da vacina: os chupados não poderiam se vacinar, sob pena do astrólogo colocar a boca chupadora no trombone, como fez com aquele seu ex-aluno português!

 

Inté,]

 

Obs.:

 

Hannah Arendt e George Orwell

O Totalitarismo de Hannah Arendt na obra "1984" de George Orwell

 

Márcio J. S. Lima1

 

RESUMO: Por muitas vezes a literatura funciona como um reflexo do pensamento filosófico. Enquanto obra de arte, ela opera como um dispositivo capaz de expressar na prática aquilo que, em certa medida, os conceitos filosóficos não conseguem explicar. A literatura, então, acaba por se tornar um modo prático pelo qual o pensamento filosófico pode ser compreendido. Com base no exposto, o presente artigo tem como objetivo apresentar o totalitarismo segundo Hannah Arendt para, em seguida, relacioná-lo com o ambiente distópico encontrado na obra 1984. Em outras palavras, buscaremos analisar o conceito de sistema totalitário à luz do pensamento da filósofa e depois comprovar se este sistema pode ser encontrado na obra literária de George Orwell. Para tanto, utilizaremos duas obras em nosso estudo: As Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt e 1984 de George Orwell. Como se trata da análise conceitual de uma obra literária, advertimos o leitor para a presença de spoilers.

Palavras-chave: Totalitarismo. As origens do Totalitarismo. 1984

 

INTRODUÇÃO

 

As Origens do Totalitarismo foi publicado em 1951, com o título O Fardo de Nossos Tempos. Nele Hannah Arendt traça um panorama histórico e conceitual dos movimentos políticos totalitários existentes no século XX: o nazismo na Alemanha e o bolchevismo na Rússia. Já o livro 1984, publicado em 1949, apresenta os possíveis desdobramentos desses [Osório diz: Ainda não li as duas obras citadas! Aliás, como tantas outas… Entretanto, se não o fiz, muito se deve ao seguinte: George Orwell, salvo engano é um comunista arrependido! Essas são terríveis quando começam a cuspir no prato que comeram. Isso não significa que Stalin seja alguém a ser aplaudido, digo apenas que ambos (Stalin e Oewell) tinham algo em comum e uma hora trilharam caminhos opostos, pelo que “ouvi dizer”. Quero ler a biografia do “cara de cavalo” para formar uma opinião, digamos, mais consistente dessa afirmativa. Quanto à Hannah Arendt, segundo li em: https://www.osoriobarbosa.com.br/artigos/contos-escritos-de-amigos/item/3203-as-contradicoes-de-hannah-arendt-po-russel-jacoby, ela nunca concluiu nenhuma obra, no que se pode comparar a Leonardo da Vinci, dizem. Mas, o que mais me chama a atenção, é o seu “amor” por Martin Heidegger um nazista que nunca renunciou ao nazismo e é tido pelo filósofo mais importante do século XX. Eu desconheço qualquer crítica dela ao filósofo]

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movimentos situados numa sociedade marcada pelo controle, pela propaganda e pelo uso do terror.

 

Tanto na obra de Arendt quanto na de Orwell, podemos perceber as características mais relevantes dos regimes totalitários: a figura marcante do líder, o poder da propaganda, a manipulação das informações e a exigência constante da guerra. [Osório diz: Tudo que os USA e outros democráticos não façam hoje (2021)!]

 

As respectivas obras, cada qual seguindo um gênero específico, mostram como o domínio e a busca pela manutenção do poder foram capazes de maltratar a natureza humana no século XX. Além das duas grandes guerras, o século em questão deixou sua marca na história como aquele em que surgiram os sistemas totalitários. A impressão que fica é que pela primeira vez o controle, a dominação e o terror foram utilizados racionalmente para subjugar e cercear a liberdade em prol de um Estado totalitário. [Osório diz: A dominação econômica o USA pratica no mundo todo e o terror, em especial, no Oriente Médio. Qual a diferença].

 

É neste sentido que nos propomos analisar os textos supracitados nas linhas que se seguem. Nosso escopo é dissecar as obras 1984 e As Origens do Totalitarismo no sentido de extrair delas os pontos de convergências daquilo que se refere ao totalitarismo. Nossa metodologia será a análise das obras com a finalidade de apresentar as duas versões da história por meio de prismas diferentes: a literatura de Orwell e a filosofia de Arendt [Osório diz: Este alerta é importantíssimo, já que pessoas tomam 1984 como uma descrição fática! Arendt, salvo engano, não dizia filósofa!, mas isso nada tem de especial, pois filósofo não é dono de verdade alguma...]. Com esse intuito, pretendemos corroborar a hipótese de que, tanto numa quanto na outra, estão presentes as características daquilo que, do século XX em diante, convencionou-se chamar totalitarismo.

 

1 O TOTALITARISMO E SUA RELAÇÃO COM A LITERATURA

 

Em sua obra As Origens do Totalitarismo, Hannan Arendt (1989, p. 375) define o totalitarismo como “a dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida”. Dessa forma, o totalitarismo penetra todo o âmbito social, cultural e econômico do Estado suprimindo a liberdade do individuo e determinando sua conduta. Para tanto, o uso do terror se torna um elemento de fundamental importância, tanto na legitimação quanto na manutenção do sistema. O terror deixa de ser apenas um meio de extermínio e amedrontamento da oposição, como era nas tiranias do passado, e se torna um instrumento cotidiano de manipulação e controle das massas [Osório diz: Isso não vale apenas para Stalin e Hitler, mas para Bush Jr. e Trump também! Ou não?].

[98]

 

Assim sendo, fora a vigilância permanente exacerbada, o totalitarismo apresenta certas peculiaridades, que podem ser facilmente relacionadas com a obra 1984, e que são próprias do seu modo de proceder tais como: a figura central de um líder; a manipulação e divulgação da informação através da mentira e de uma imprensa própria; e necessidade da guerra [Osório diz: As lições de “Stalin e Hitler” se perpetuaram nos seus sucessores ao redor do mundo!], entre outros. Estes fatores são perceptíveis na obra de George Orwell. Mas de que modo o totalitarismo pode ser relacionado com o livro 1984? O que podemos encontrar na leitura do romance de Orwell que pode ser comparado ao Totalitarismo de Hannan Arendt? Há um totalitarismo, tal como descreve Hannan Arendt em As Origens do Totalitarismo, na obra de George Orwell? Acreditamos que, pelo menos de maneira genérica, ninguém negue isto.

 

George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair [Osório diz: Também queria saber o que Orwell dizia de Stalin quando este estava aliado da Inglaterra contra Hitler! Calou-se?], publicou o romance 1984 em 1949, marcando, por sua vez, o imaginário social de uma época em que o mundo havia sido aterrorizado pela Segunda Guerra Mundial e que havia se deparado com os regimes do fascismo na Itália, nazismo na Alemanha e comunismo na URSS. Aqui o romance, enquanto expressão artística [Osório diz: Não esqueça disto leitor, em especial que o Orwell talvez, por ter sido um deles, seja um magoado pelo abandono a que foi relegado! A ver.], parece descrever e antever o território distópico em que um Estado Totalitário se apresenta. Descreve porque relata, de modo artístico e fictício, as atrocidades nazi-fascistas que assolaram o século XX. Antevê porque denuncia previamente as consequências daquilo que possa vir a se tornar um Estado Totalitário no futuro.

 

A obra conta a história de Winston Smith, um sujeito de 39 anos de idade que transtornado e inconformado com o sistema sócio-político da Oceania, seu país, começa a desenvolver pensamentos subversivos. Ele é funcionário do Ministério da Verdade [Osório diz: Bem engraçado esse nome pois, mesmo implicitamente todos os ministérios são da verdade, pois ninguém se assume que seja “Ministério da Mentira”] onde realiza a falsificação de arquivos e notícias do governo. Em um determinado momento da narrativa, Winston começa a escrever coisas estranhas:

 

Seus olhos tornaram a focar a página. Descobriu que estivera escrevendo, num gesto automático, ao mesmo tempo que a memória divagava. E não era mais a letra desajeitada e miúda de antes. A pena correra voluptuosamente sobre o papel macio, escrevendo em grandes letras de imprensa:

ABAIXO O GRANDE IRMÃO

ABAIXO O GRANDE IRMÃO

ABAIXO O GRANDE IRMÃO

ABAIXO O GRANDE IRMÃO

ABAIXO O GRANDE IRMÃO

[99]

Muitíssimas vezes, enchendo meia página. (ORWELL, 1996, p. 21).

 

A partir daí a narrativa se desenrola numa atmosfera de frieza, suspense e distopia que é extraordinariamente lapidada pela destreza e maestria do autor.

 

2 A FIGURA DO LÍDER [Osório diz: Bush, Trump etc.]

 

No sistema totalitário, a figura do líder funciona como elemento crucial na legitimação e na execução do poder. Sobre a participação do líder nestes sistemas, Hannah Arendt (1989, p. 414) nos diz que “o caráter totalitário do princípio de liderança advém unicamente da posição em que o movimento totalitário, graças a sua peculiar organização, coloca o líder, ou seja, da importância fundamental do líder para o movimento” [Osório diz: Nos USA essa colocação do líder já faz parte da própria instituição presidencial]. Para Souza (2007, p. 251), “cabe ao líder a tarefa de suprema importância de definir quem é o inimigo a ser liquidado”. Em outras palavras, o líder é aquele que aponta, que traça estratégias de domínio e que manobra o exercício do poder. Geralmente o líder é visto como o herói, o salvador, o messias que vai “libertar” o povo “sofrido” [Osório diz: As democracias, como diz a China, tem se valido dessas guerras com essa mesma finalidade. Veja-se o artigo na nota que se segue]*.

 

Em 1984, a figura do líder é abordada por Orwell a partir do personagem denominado O Grande Irmão. Sobre ele, o autor faz a seguinte descrição: “Em cada patamar, diante da porta do elevador, o cartaz da cara enorme o fitava na parede. Era uma dessas figuras cujos olhos seguem a gente por toda a parte. O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia a legenda”. (ORWELL, 1996, p. 07). O Grande Irmão estava em toda parte. Numa determinada passagem da obra, ele é descrito como alguém de cabelo e bigode negro. Um personagem de força e misteriosa calma. Uma entidade de aspecto quase divino por quem os membros do núcleo do partido tinham grande devoção [Osório diz: Eis o retrato falado do Trump, só muda a cor dos cabelos]. Era o protetor destemido e invencível. Sua postura soava como uma rocha na luta contra os inimigos e quando aparecia na teletela22 arrancava reações emotivas dos que lhe seguia. George Orwell descreve a reação dos membros do departamento ao vê-lo em uma de suas aparições:

[100]

 

Nesse momento, todo o grupo se pôs a entoar um cantochão ritmado “G. I.!... G. I.!... G. I.!” Repetido inúmeras vezes com uma longa pausa entre o G e o I – um som cavo e surdo, curiosamente selvagem, no fundo do qual se parecia ouvir batida de pés nus e o rufo dos atabaques. (ORWELL, p. 20).

 

O comportamento do líder é ardiloso e ao mesmo tempo sutil. Ele não se apresenta para as massas como um tirano ou um déspota. Sua presença não denota sede de poder, nem tampouco, interesse em manipular seus governados. De acordo com Hannah Arendt (2012, p. 455), o líder “é nada mais e nada menos que o funcionário das massas que dirige […]” [Osório diz: Aliás, “todo poder emana do povo”! Este é uma dos tiranos apenas?]. Tal qual o Grande irmão, o líder faz parecer que está à disposição das massas. Ele parece estar pronto para servir, para salvar e para guiar um povo cujo movimento depende unicamente desse funcionário “salvador” [Osório diz: Um político amazonense, anos 80, 90, 2000, 2010, dizia: “Eu não quero, mas se o povo quiser, eu estou aqui”! Grande fdp!].

 

Como funcionário, o líder sabe que, ao menor sinal de fracasso ou insucesso, pode ser substituído. Sua estabilidade depende justamente do seu carisma e poder de persuasão. Nesse sentido, ele depende das massas tanto quanto esta depende dele. “Sem ele, elas não teriam representação externa; sem as massas o líder seria uma nulidade”. (ARENDT, 2012, p. 456). Segundo Hannah Arendt (2012, p. 456), foi nesse contexto que Hitler, num discurso perante a SA, proferiu as seguintes palavras: “Tudo o que vocês são, o são através de mim; tudo o que eu sou, sou somente através de vocês” [Osório diz: Qual político não diz isto? Talvez só troquem as palavras!].

 

Outro fator de fundamental importância a se observar na figura do líder totalitário é o seu dom especial para confundir ficção e realidade [Osório diz: É o caso do livro de Orwell, como dito na página 98 deste artigo]. Talvez essa seja uma de suas principais características. Em sistemas totalitários, o líder se apresenta bastante hábil na arte de, dentro das ideologias em curso, elencar os aspectos mais propícios à fundamentação de um mundo completamente fictício; mas que é passado às massas como mundo real, possível e verdadeiro [Osório diz: O que são os projetos dos governos? Em especial aqueles que nem saem do papel, como se diz].

 

Aliás, o próprio conceito de Verdade [Osório diz: mais adiante, em nota de rodapé esse conceito será explicado pelo auro] adquire novos contornos dentro dessa lógica. A Verdade passa a ser aquilo que se encontra em conformidade com a narrativa fundamentada pelo líder. “Sua arte consiste em usar e, ao mesmo tempo, transcender o que [101] há de real, de experiência demonstrável na ficção escolhida, generalizando tudo num artifício que passa a está definitivamente fora de qualquer controle possível por parte do indivíduo”. (ARENDT, 2012, p. 296-297).

 

A totalidade da liderança é proveniente do status quo estabelecido pelo Movimento totalitário. É o Movimento, apoiado pelas massas, que confere ao líder a qualidade de figura suprema e necessária. É o Movimento que, com o apoio das massas, delega o grau de importância do líder. Há, portanto, um jogo de troca e interesse entre o líder e as massas [Osório diz: A democracia (“um homem, um voto”) é o quê? Não existe esse jogo?]. “Comprova essa asserção o fato de que, tanto no caso de Hitler como no de Stálin, o verdadeiro princípio de liderança só se cristalizou lentamente, em paralelo com a gradual ‘totalização’ do movimento”. (ARENDT, 2012, p. 500). Desse modo, na obra de Orwell, tal fato também é digno de constatação, pois o próprio Partido também se encarregava de apresentar, em suas histórias, o Grande Irmão como aquele que havia liderado e protegido a Revolução [Osório diz: Mas isso ocorre apenas nos sistemas totalitários? Por que “Deus deve salvar a rainha”? Ela protege a quem?].

 

3 O PODER DA PROPAGANDA

 

A figura do líder não seria possível sem o trabalho maciço da propaganda. Ela possibilita divulgar, como “verdade”, as mentiras propagadas pelo Partido [Osório diz: Isto me lembra o que disse aquele ministro: “O que é bom a gente mostra, o que é ruim a gente esconde”! Ele não era ministro de nenhum regime totalitário e, parece, não falava só por si, mas por seus colegas mundo a fora!]. Segundo Hannah Arendt (2012, p. 474), apenas “a ralé e a elite podem ser atraídas pelo ímpeto do totalitarismo; as massas têm de ser conquistadas por meio da propaganda”. A ralé por falta de espírito crítico forte e pensamento reflexivo [Osório diz: Daí não ser interessante educar essa ralé!] e a elite por interesses particulares [Osório diz: Contra os quais “ninguém” ousa escrever! Sob pena de perder os patrocínios e as publicações de suas obras de endeusamento do sistema ao qual servem! Ninguém publica os adversários!]; mas o todo, o maior número possível, a parte inteira... essa só consegue aderir ao totalitarismo por meio de uma ação motivada pela propaganda. O partido necessita chegar até aqueles que consomem outras fontes de informações, aqueles que ainda não foram hipnotizados pelas falsas promessas do movimento totalitário. E essa adesão é conquistada mediante o uso da propaganda [Osório diz: E os valores (monetários) investidos em propagandas? E a indústria cultural? As músicas, os filmes os costumes das metrópoles? Ou neles não estão embutidas propagandas? Ou são propagandas libertárias? kkkk].

 

Em 1984, ao que parece, Orwell não explora com afinco a questão da propaganda [Osório diz: A obra em si já é uma propaganda!]. Na narrativa, o totalitarismo já está consolidado. Hannah Arendt (2012, p. 474) nos relata que:

[102]

 

Quando o totalitarismo detém o controle absoluto, substitui a propaganda pela doutrinação e emprega a violência não mais para assustar o povo (o que só é feito nos estágios iniciais, quando ainda existe a oposição política), mas para dar realidade às suas doutrinas ideológicas e às suas mentiras utilitárias [Osório diz: Mentiras utilitárias! Mentiras utilitárias! Como mentiras e utilidades podem se dar as mãos! Basta que tais mentiras pertençam ao sistema que apoio?].

 

A fase de angariar novos adeptos à causa já foi superada. Agora só resta manipular e redistribuir as informações. Numa importante passagem da obra, Orwell (1996, p. 41) nos conta como isso acontecia [Osório diz: Aqui o autor parece tomar a fantasia (literatura) por realidade, pois não?]:

 

Assim que fossem reunidas e classificadas todas as correções necessárias a um dado número do Times, aquela edição era reimpressa, destruído o número original, e o exemplar correto colocado no arquivo em seu lugar. Esse processo de alteração contínua aplicava-se não apenas a jornais, como também a livros, publicações periódicas, panfletos, cartazes, folhetos, filmes, bandas de som, caricaturas, fotografias – a toda espécie de literatura ou documentação que pudesse ter o menor significado político ou ideológico.

 

Entretanto, podemos perceber que o autor faz referências ao Ministério da Verdade. O Ministério da Verdade é o órgão responsável pela instrução, diversão, belas-artes e, principalmente, as notícias. Um dos, ou até mesmo o principal, objetivo das notícias era enfatizar as “glórias” do Grande Irmão e do Partido. É pouco provável que o Ministério da Verdade divulgasse alguma notícia que maculasse a imagem do Grande Irmão ou do Partido. Isso mostra, como a notícia também pode se configurar como um meio propagandístico [Osório diz: Vemos isso todos os dias na Veja, no OESP, na Folha, no Globo etc.]. O próprio Partido também se encarregava dessa manipulação de imagens, pois como Orwell (1996, p. 37) nos relata, “Nas histórias do Partido, o Grande Irmão naturalmente figurava como chefe e guardião da Revolução desde o princípio”.

 

A máquina propagandística do Regime totalitário também não mede esforços para denegrir a imagem daqueles que porventura sejam contrários à sua ideologia [Osório diz: Isso em 2019, 2020, 2021 e nada indica que vá mudar no futuro. Que tal mudar o denegrir, Mestre?]. Utilizam a propaganda para atacar abertamente seus “inimigos”,33 além de esconder os reais problemas sociais da população como a fome e o desemprego [Osório diz: No mundo da “liberdade” (USA, Inglaterra etc., essas mazelas não existem! Todo mundo tem casa, come, bebe e não passa frio! Tinha até um louco chamado “Chaves” (da Venezuela) que enviada combustível para americanos do norte não passarem frio, mas era louco, como se disse!]. Desse modo, a propaganda se constitui como uma ferramenta de apoio ao domínio e ao controle da população.

[103]

 

Já em outros casos, a propaganda, além de funcionar como uma forma de conquistar apoio entre as camadas que ainda não foram completamente cooptadas; serve também para ganhar visibilidade lá fora, nos países que não são totalitários. “Nesse ponto, os discursos de Hitler aos seus generais, durante a guerra, são verdadeiros modelos de propaganda caracterizados principalmente pelas monstruosas mentiras com que o Führer entretinha os seus convidados na tentativa de conquistá-los”. (ARENDT, 2012, p. 475) [Osório diz: Algum exemplo concreto desses discursos? (Não conheço a língua alemã). E Heidegger, que morreu sem negar o nazismo, nunca viu isso?].

 

Há uma relação muito tênue entre a propaganda e a doutrinação. Porém, tal relação depende da amplitude de seu movimento e da pressão exterior. Por conseguinte, se o movimento é ameno, mais enfático deve ser a prática da propaganda. Do mesmo modo, quanto maior a pressão vinda de fora, maior deve ser a concentração de energia em propagandas. Em Regimes totalitários, propaganda e doutrinação são, portanto, duas faces da mesma moeda. A propaganda é o elemento de visibilidade lá fora. Já a doutrinação, aliada ao terror, é o elemento de dominação interna. “Em outras palavras, a propaganda é um instrumento do totalitarismo, possivelmente o mais importante, para enfrentar o mundo não totalitário; [...]” (ARENDT, 2012, p. 476).

 

Outra característica da propaganda totalitária diz respeito à disseminação do medo e da ameaça. A propaganda comunista de Stalin, por exemplo, ameaçava com a possibilidade de se perder “o trem da história, de se atrasarem irremediavelmente em relação ao tempo de esbanjarem suas vidas inutilmente”. (ARENDT, 2012, p. 478). Já os nazistas ameaçavam com falsos discursos de degeneração da raça, incompatibilidade com as leis da natureza e da vida e com o “perigo” semita [Osório diz: Há quem diga, por pura maldade, claro, que o capital internacional pertence aos semitas!].

 

Na máquina de propaganda totalitária [Osório diz: Na máquina não-totalitária, temos a escravização moderna!], a ciência tem um lugar secundário [Osório diz: No Brasil dos últimos três anos também! Veja-se o caso das vacinas e o governo federal]; ou seja, a propaganda ganha enfoque publicitário e a “obsessão dos movimentos totalitários pelas demonstrações ‘científicas’ desaparece assim que eles assumem o poder”. (ARENDT, 2012, p. 478). Em seu lugar é criada uma pseudociência. Uma falsa ciência [Osório diz: Ciência verdadeira devem ser a Religião e a Astrologia!] que aqui entra em cena com uma única finalidade: legitimar as ideias e o discurso ideológico do Regime. A pseudociência é o ponto crucial para que a propaganda adquira autenticidade. Nela a origem ideológica do bolchevismo ou a teoria da raça pura do nazismo são de pronto justificadas. É aqui que a propaganda alcança um novo estagio, a saber, a criação de um mundo fictício.

[104]

 

O teor científico da propaganda – aqui chamada por nós de pseudociência – possibilita a mentira e, por consequência, a construção da ficção. O que nos tempos atuais conhecemos por pós-verdade [Osório diz: Quais estados/países atuais (2021) usam? Claro que a URSS de Stalin e a Alemanha de Hitler].44 A realidade começa a perder sentido e todo tipo de teoria passa a merecer espaço na propaganda totalitária.

 

A eficácia desse tipo de propaganda evidencia uma das principais características das massas modernas [Osório diz: Isso!]. Não acreditam em nada visível, nem na realidade da sua própria experiência; não confiam em seus olhos e ouvidos, mas apenas em sua imaginação, que pode ser seduzida por qualquer coisa ao mesmo tempo universal e congruente em si. O que convence as massas não são os fatos, mesmo que sejam fatos inventados, mas apenas a coerência com o sistema do qual esses fatos fazem parte. (ARENDT, 2012, p. 485). [Osório diz: Isso em 2021.]

 

E assim a propaganda perpetua a ideologia dominante. Ela se torna, por si só, a responsável pela imagem não apenas do líder, mas também, do Partido e do Regime totalitário [Osório diz: Isso somente nos regimes totalitários. Nada com os Democratas e Republicanos e os líderes que buscam eleger e elegem]. É possível perceber, tanto em 1984 quanto em As Origens do Totalitarismo, que os “autores, apesar das diferenças, abordam o controle dos seres humanos, a destruição da vida pública, da capacidade política e, também, da vida privada pela mentira que se organiza e instrumentaliza pela propaganda e pela ideologia”. (NASCIMENTO, 2020, p. 02-03) [Osório diz: Mundo atual, 2021 ...].

 

4 A MANIPULAÇÃO DE INFORMAÇÕES [Osório diz: O Ministério da Saúde do Brasil em 2020 e 2021 ...]

 

Outra característica forte do totalitarismo concerne à manipulação de informação por meio de uma imprensa própria [Osório diz: Não precisa ser própria, hoje temos a imprensa paga: comerciais, anúncios, divulgação e tantos outros subterfúgios], à supressão do conhecimento e à mentira [Osório diz: Como temos poucos regimes totalitários em 2021, isso seria coisa do passado, mas está mais presente que nunca no mundo atual, o mundo das comunicações]. Aliás, como já vimos, a mentira é a base de fundamento para que o totalitarismo esteja a todo momento se

 

 

 

legitimando. É de forma determinada e obstinada que os líderes estão sempre escolhendo as possibilidades mais provenientes para o desenvolvimento de uma realidade meramente fictícia. Portanto, é preciso a todo instante manipular a verdade e propagar a falta de conhecimento entre a população. O que acontece quase sempre por meio de uma impressa própria [Osório diz: ou paga para isso, sob o nome de patrocínio ou propaganda institucional].

 

Esta manipulação de informação é evidenciada na obra de Orwell por meio do Ministério da Verdade, uma instituição já citada aqui anteriormente, cuja atribuição é o controle daquilo que se deve conhecer. O próprio Winston Smith trabalha no Ministério da Verdade realizando falsificações de notícias e de arquivos oficiais. O Ministério da Verdade determinava os aspectos culturais e sociais da sociedade. Orwell (1996, p. 09-10) diz que era um “dos quatro ministérios que entre si dividiam todas as funções do governo”. Era o Ministério da Verdade responsável pelas “notícias, instrução e belas-artes [...]”.

 

Em 1984 os fatos históricos [Osório diz: Fatos históricos da ficção, da literatura...] são constantemente manipulados. Aos moldes do Regime, o passado é a cada dia atualizado, datado e documentado para que as antigas profecias do Partido não entrem em contradição com a realidade. A história passa então a ser, nas palavras de Orwell (1996, p. 41), “um palimpsesto, raspado e reescrito tantas vezes quantas fosse necessário”. Assim, era impossível que algo saísse do controle. Qualquer fraude ou erro de previsão causado pelo partido, ao ser apagado e reescrito na história, era incapaz de vir a público enquanto verdade dos fatos [Osório diz: Ninguém, ou poucos, diz que Hitler permitiu a retirada de todos os judeus da Alemanha! Golda Meir narra isso! Porfírio Rubirosa, o playboy embaixador da República Dominicana também, tendo sendo este o único país que aceitou receber os judeus].

 

Uma das frases mais célebre de 1984 é exatamente a que define o lema do Partido: “Quem controla o passado, controla o futuro, quem controla o presente, controla o passado” [Osório diz: Isto serve para todos, não apenas para os regimes totalitários e todos se servem disso!]. Em outras palavras, se você controla o presente, controla o passado e se controla o passado, consequentemente irá controlar o futuro. Assim sendo, o modo mais eficaz de se manter o controle é por meio da manipulação de informações, dos fatos e da história [Osório diz: A imprensa, hoje toda ela, praticamente, judaica, aprendeu isso! No que não há o que condenar. A condenação deve ser feita à ralé que não se instrui para poder ver isso]. E é isso que o Regime Totalitário faz na obra orwelliana. Em uma determinada passagem da obra, Winston Smith descreve tal acontecimento:

 

Já não sabemos quase nada sobre a Revolução e os anos anteriores à Revolução. Todos os registros foram destruídos ou falsificados, todo livro reescrito, todo quadro repintado, toda estatua, rua e edifício rebatizados, toda data alterada. E o processo continua, dia a dia, minuto a minuto. A história parou. Nada existe, exceto um presente sem-fim no qual o Partido [106] tem sempre razão. Eu sei naturalmente, que o passado e falsificado, mas jamais me seria possível prová-lo, mesmo sendo eu o autor da falsificação. Depois de feito o serviço não sobram provas. A única prova está dentro de minha cabeça, e não sei com certeza se outros seres humanos partilham minhas recordações. (ORWELL, 1996, p. 145-146)

 

Na análise de Hannah Arendt, os Regimes Totalitários do século XX, também tiveram como objetivo a sujeição do processo histórico. A história oficial, na perspectiva desses regimes, é erroneamente interpretada e necessita com urgência de revisão. Revisar para adequar aos moldes ideológicos que o Regime prega. E assim o faz. Incomensuráveis mentiras e mirabolantes falsidades são criadas a fim de que as afirmações fictícias sejam legitimadas. Os fatos históricos são manipulados e adequados a discursos narrativos de forma quase livre e espontânea [Osório diz: Só pelos regimes totalitários? Claro que não, por todos]. Temos então, o exercício da manipulação do tempo – presente, passado e futuro – de acordo com os anseios, propósitos e objetivos do Regime. Nesse contexto:

 

A essa aversão da elite de intelectuais pela historiografia oficial, à sua convicção de que nada impedia que a história, fraudulenta como era, fosse usada como brinquedo por alguns malucos, deve acrescentar-se o terrível fascínio exercido pela possibilidade de que gigantescas mentiras e monstruosas falsidades viessem a transformar-se em fatos incontestes, de que o homem pudesse ter a liberdade de mudar à vontade o seu passado, e de que a diferença entre a verdade e a mentira pudesse deixar de ser objetiva e passasse a ser apenas uma questão de poder e de esperteza, de pressão e de repetição infinita. (ARENDT, 2012, p. 466). [Osório diz: Algumas leis, em alguns países, já proíbem a contestação de cetos fatos “ditos históricos”! Como sair disso? E não são países totalitários! Quando a verdade vos libertará? kkkk]

 

É dito que a história é escrita pelos vencedores ou por quem está no poder [Osório diz: E no estágio atual (2021), não são os totalitários que mandam no mundo!]. Nos Regimes Totalitários essa máxima é elevada à enésima potência; pois os fatos históricos são manipulados e falseados apenas para legitimar a ideologia propagada pelo Regime.

 

5 A EXIGÊNCIA DA GUERRA [Osório diz: Estados Unidos e Cina na atualidade! A guerra ao Iraque, ao Afeganistão etc. Israel é um Estado Americano feito para isso!]

 

A necessidade de se estar sempre em guerra também é uma constante nos governos totalitários. É próprio do totalitarismo a invasão e dominação dos espaços que estão bem além dos seus limites. A guerra é então o dispositivo encontrado como procedimento para o domínio de toda população, bem como a eliminação de todos aqueles que lhes são

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considerados rivais. Expansão de ideologia, expansão de território [Osório diz: Do dito mercado, que deve ser inesgotável para o capitalismo e a busca por matérias primas], eis o escopo dos regimes totalitários. Uma luta diária pelo domínio e pela perpetuação do poder. Para tanto, mesmo que o regime esteja plenamente consolidado, necessário se faz a criação de um inimigo popular [Osório diz: Os Estados Unidos e a sua “Guerra ao terror”!], a ideia de expansão e a exigência da guerra.

 

Na narrativa de Orwell, o cenário mundial é marcado pela disputa perene entre três superpotências. Três blocos hegemônicos que dominam o mundo: a Oceânia, a Lestásia e a Eurásia. Enquanto a primeira está em guerra com a segunda, a terceira permanece em paz, como aliada de uma delas. Mas logo que a guerra acaba, a potência inimiga se torna aliada e a potência aliada se torna inimiga. Uma nova guerra tem início. Deste modo, o regime está sempre a combater algum “mal”, algum “inimigo” e, com isso, se manter sempre na tensão, sempre no poder [Osório diz: USA e seus antigos aliados: Iraque e Afeganistão!].

 

Procedendo assim, em determinado período a Lestásia e a Eurásia se tornam aliadas e lutam contra a Oceania. Tempos depois, a Eurásia se une a Oceania e guerreia contra a Lestásia. Em seguida, a guerra acaba e a Oceania se torna aliada da Lestásia e enfrenta a Eurásia. Assim, a guerra entre os blocos acontece de forma ininterrupta. Numa hora são aliadas, na outra são inimigas [Osório diz: Iraque e Afeganistão]. Contudo, Orwell (1996, p. 35) chama atenção para o fato de que em “nenhuma manifestação pública ou particular se admitia jamais que as três potências se tivessem agrupado diferentemente”. Como vimos anteriormente, a manipulação da história era uma constante nesses regimes que, por meio do encobrimento das informações, controlavam o presente por meio da manipulação do passado.

 

No que concerne à questão da guerra constante entre as superpotências, podemos afirmar que esta técnica ajuda o Regime Totalitário [Osório diz: Só a eles? Essa leitura nega os acontecimentos recentes!] a estar sempre no controle das massas; pois o terror psicológico, o “medo” da invasão [Osório diz: Estados Unidos usa Cuba como o inimigo! Pode a micro ilha promover uma invasão a qualquer momento!] e a presença constante de uma superpotência inimiga unem a população em torno do regime dominante, fazendo deste o grande “protetor” da nação. Na obra orwelliana, a guerra pode até nem estar acontecendo. Pode ser que seja mais uma das mentiras forjadas pelo partido e seu regime, mas a notícia e a atmosfera de guerra precisam estar no ar. “Não importa que de fato haja uma guerra e, como não é possível uma vitória decisiva, pouco importa que a guerra vá bem ou mal. O que importa é que possa existir o estado de guerra” [Osório diz: No Brasil e outros países latinos americanos o tal inimogo é o: COMUNISMO!]. (ORWELL, 1996, p. 180).

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A Ideologia dominante do Estado Totalitário é a ideologia do “nós contra os outros”. Uma vez no poder, o regime trabalha, desesperadamente, pela adesão das massas na sua causa. O indivíduo, enquanto parte constitutiva das massas, é convidado a todo tempo a aceitar e colaborar com a idéia de que o mundo, a sua volta, tornou-se seu inimigo e precisa, a qualquer custo, defender-se do mal. Aqui entra mais uma vez a fidelidade ao partido e aolíder que propagam as idéias de guerra, de domínio e de expansão territorial, pois é o discurso criado pelo partido e divulgado pelas massas que vai legitimar a idéia de dominação.

 

A luta pelo domínio total de toda a população da terra, a eliminação de toda a realidade rival não totalitária, eis a tônica dos regimes totalitários, se não lutarem pelo domínio global como objetivo último, correm o serio risco de perder todo o poder que porventura tenham conquistado. (ARENDT, 2012, p. 531) [Osório diz: … e dos Regimes Econômicos também!].

 

Desse modo, se na ficção de Orwell um Estado Totalitário, vale-se da guerra – ainda que nem sempre seja real – para se manter no poder e no controle; em As Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt (2012, p. 554) nos mostra que “literaturas nazista e bolchevista provam repetidamente que os governos totalitários visam conquistar o globo e trazer todos os países para debaixo do seu jugo” [Osório diz: Os Estados Unidos fazem isto: nada fora dos interesses de suas empresas!]. A guerra, portanto, faz parte da manutenção dos Regimes Totalitários.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A obra As Origens do Totalitarismo é um registro histórico de um evento. Nela está exposto todo mecanismo por traz de um acontecimento marcante no século XX. Sua linguagem é marcada pelo método analítico, suas abordagens são conceituais e seus dados são levantados segundo o rigor da pesquisa científica [Osório diz: Não é isso que diz Russel Jacoby em “As contradições de Hannah Arendt”, como indicamos acima, mas como é briga de “cachorros grandes”, pulo essa parte!]. Aqui Hannah Arendt esclarece, para as gerações posteriores, o modus operandi do totalitarismo no século XX.

 

1984 é um livro literário, ou seja, um livro no qual o autor não tem compromisso com a rigidez dos conceitos nem com o tratamento de dados técnicos. Trata-se, portanto, de [109] uma obra de arte, e a arte não possui fidelidade à metodologia científica. A literatura é livre. Não está presa às regras, métodos ou modelos. Enquanto arte, ela apenas flui [Osório diz: Muito bom ouvir isto, já que alguns, de má-fé, leem a obra citada do tal Orwell como uma descrição da verdade nua e crua, como fazem, aliás, com o gravador eletrônico Platão! Resumo: é só uma criação mental do autor! Pode até ser boa, mas é uma mera ficção, embora o mundo capitalista a venha empregando cada vez mais e seus arautos escondendo isso].

 

Entretanto, há um fato inegável nas duas obras. Tanto em 1984 quanto em As Origens do Totalitarismo observamos os efeitos devastadores dos sistemas totalitários. Orwell e Arendt, cada qual ao seu modo, abordam de forma clara e concisa as consequências de se levar, de maneira radical, o homem a servo do Estado [Osório diz: O homem só existe por conta da existência do Estado, embora eu vá ficar mal com os “anarquistas”, mas isso é papo para outro dia!].

 

As duas obras possuem como legado, a virtude de sempre estar a nos lembrar o quanto os sistemas totalitários podem nos ser nocivo. Cada obra, a sua maneira, seja de modo filosófico seja de modo literário, ficou registrada em nossa história como guardiões de memória. São como lembretes fundamentais para que jamais esqueçamos daquilo que outrora produzimos.

 

[Osório diz: Quem tiver a honra de me dar a hora de ler minhas ponderações poderá pensar que sou um advogado do “Regimes Totalitário”, porém nego isso veementemente! Apenas quis mostrar que a arma do argumento e da opressão é usada por todos os regimes, inclusive por aqueles que se dizem libertários. Com José Régio, em seu “Cântico negro”, digo:

Vem por aqui” — dizem-me alguns com olhos doces,

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom se eu os ouvisse

Quando me dizem: "vem por aqui"!

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali...

 

A minha glória é esta:

Criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.

Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre a minha mãe.

 

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos...

 

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,

Por que me repetis: "vem por aqui"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí...

 

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

 

Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

 

Ide! tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátrias, tendes tetos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.

Eu tenho a minha Loucura!

 

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

 

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou.

É uma onda que se alevantou.

É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou,

Sei que não vou por aí.]

 

REFERÊNCIAS

 

ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo, São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

NASCIMENTO, Carlos Eduardo Gomes. Ideologia e propaganda: a educação como resistência à mentira organizada a partir do pensamento de Hannah Arendt. Revista Interdisciplinar em estudos de Linguagem. Disponível em: <https://ojs.ifsp.edu.br/index.php/riel/article/view/1309/977> Acesso em: 27 jun 2020.

ORWELL, George. 1984. Tradução de Wilson Velloso, 23. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1996.

SOUZA, Ricardo Luiz de. Hannah Arendt e o totalitarismo: o conceito e os mortos. Revista Politeia: Hist. e Soc. Vitória da Conquista v. 7 n. 1 p. 243-260. 2007. Disponível em: < http://periodicos2.uesb.br/index.php/politeia/issue/view/292> Acesso em: 27 fev 2020.

 

Fonte: Revista Paranaense de Filosofia, v. 1, n. 2, p. 97-110, Jul./Dez., 2021. ISSN: 2763-9657. Universidade Estadual do Paraná.

1 1 Doutor em Filosofia pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia UFPB-UFPE-UFRN. Graduado em História e Filosofia. Professor da SEECT do Estado da Paraíba. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

* O 'neocolonialismo' disfarçado de democracia.

 

Yang Wanming

(é embaixador da China no Brasil - 2021)

 

No passado, os colonizadores ocidentais saqueavam recursos e riquezas, impunham religião e cultura e destruíam brutalmente civilizações tradicionais ao redor do mundo, deixando uma página sombria na História da humanidade. [Osório diz: Quem poderá, de boa fé, negar isto?]

 

No século XXI, o colonialismo e o hegemonismo continuam a resistir aos avanços da nossa era. Certos países estão obcecados pela ideia de "superioridade civilizacional", engajam-se em grupos hegemônicos sob o pretexto da democracia, tentando ditar o progresso mundial, seguindo uma agenda própria, e consagrar seus valores como único critério universal. Usar a “democracia" para praticar a hegemonia é uma violação dos valores democráticos e, em essência, constitui um “neocolonialismo". [Osório diz: Quem poderá, de boa fé, negar isto?]

 

O neocolonialismo está bem presente. Tenta implementar o neomonroísmo na América Latina. Plantou "revoluções coloridas” na Eurásia e instigou a “Primavera Árabe" no Oriente Médio. Entre seus efeitos, há atentados à soberania nacional, confrontos entre diferentes religiões e culturas, escalada de hostilidades regionais e tumultos sociais, assim como numerosas crises humanitárias. Sob o disfarce de democracia, o "neocolonialismo" é a origem de muitas turbulências no mundo de hoje. [Osório diz: Quem poderá, de boa fé, negar isto?]

 

 

A História e a realidade demonstram que o “padrão democrático" não passa de desculpa usada por certos países para promover o "neocolonialismo", além de uma ferramenta para alcançar seus interesses estratégicos. O uso de meios desprezíveis, como infiltração e opressão, intervenção militar, subversão política e sanções econômicas a fim de promover uma “transformação democrática” noutros países é, por si só, uma traição aos valores da democracia. Com a convocação da Cúpula dos Líderes sobre Democracia, Os Estados dos Unidos julgam os méritos da democracia dos outros países por seus próprios parâmetros e tornam a democracia uma arma para dividir o mundo em blocos confrontantes. [Osório diz: Quem poderá, de boa fé, negar isto?]

 

Os Estados dos Unidos julgam os méritos da democracia dos outros países por seus próprios parâmetros

 

A democracia é um valor comum de toda a humanidade, e não um privilégio de determinado país. Com diferentes percursos históricos, os países têm culturas, sistemas sociais e valores diferentes, e não será possível existir uma única forma de praticar a democracia. Da mesma forma, cabe ao povo de cada país avaliar a qualidade da democracia aplicada pelo Estado. Enquadrar todos os países num único modelo, ou até usar a força para impor o próprio modelo democrático, só conseguirá prejudicar a diversidade civilizacional e cultural do mundo. [Osório diz: Quem poderá, de boa fé, negar isto?]

 

A China sempre desenvolve a democracia socialista, ou seja, uma democracia popular em todo o processo, cobrindo todos os aspectos democráticos, como eleições, consultas políticas, tomada de decisões, governança e supervisão. O povo chinês tem garantido por lei o direito de votar e participar da gestão do Estado, desfrutando amplos, reais e efetivos direitos democráticos. Nos assuntos internacionais, a China defende a construção de uma comunidade global de futuro compartilhado, bem como os valores comuns de humanidade de paz, desenvolvimento, equidade, justiça, democracia e liberdade. Respeita o direito de cada nação a explorar e desenvolver uma via de democracia de forma soberana, advoga a democracia e o Estado de Direito nas relações internacionais, além de combater toda formade hegemonismo e política de poder. [Osório diz: Quanto a isso já não sei opinar!]

 

Numa época em que se sobrepõem mudanças sem precedentes nos últimos cem anos e a pandemia do século, todos os povos, mais do que nunca, são interdependentes, e seus destinos estão interligados. A China está disposta a trabalhar com a comunidade internacional para resistir às práticas de falsa democracia, que abrem o caminho para o neocolonialismo, preservar os valores comuns de toda a humanidade e levar adiante o progresso humano. [Osório diz: Temos que avaliar bem isso! A China tem uma população de bilhões, a precisar de alimentos e matérias-primas. Será que também não age por interesses próprios e, se possível, invade e domina outros “Tibet”? Isso não desdiz os pontos acima em que ela aponta para Inglaterra e Estados Unidos, os maiores ladrões do mundo, até agora!]

22 Artefato tecnológico cuja finalidade se encerrava em transmitir a programação oficial do governo (para disciplinar), bem como filmar tudo aquilo que acontecia a sua frente (para punir aquele que porventura descumprisse as normas estipuladas pelo sistema). Desse modo, o aparelho se tornava uma ferramenta completa de vigilância, pois ao mesmo tempo ordenava também observava o comportamento da população. As teletelas eram acessórios obrigatórios em todas as residências e não podiam ser desligadas. A ideia de uma sociedade vigiada e disciplinada, mesmo que abordada de forma diferente, foi, posteriormente, tratada e explorada por Michel Foucault, sobretudo, em sua obra Vigiar e Punir. Nela o filósofo francês analisa a vigilância e a punição do ponto de vista das diversas entidades estatais como: os hospitais, as escolas e, principalmente, as prisões. De acordo com Foucault, mesmo as sociedades ditas democráticas, praticam, de forma muito sutil, o processo de vigilância e punição dos corpos por meio de tais entidades [Osório diz: Esse artefato, hoje, é o celular e o Facebook! Mas, alguns, dizem que isso é coisa do Stalin e do Hitler! Pode até ser, mas quem os usa, hoje, 2021, não são eles! Os “totalitários” parecem ter sido excelentes professores aos homens da atualidade! Veja-se isso sobre a democrática Londres: https://epocanegocios.globo.com/colunas/IAgora/noticia/2021/02/surpreendentemente-londres-tem-mais-cameras-de-vigilancia-do-que-pequim.html] .

3 3 Esses “inimigos” são criados como bode expiatório para assegurar o apoio incondicional e o controle da população. Hannah Arendt (2012, p. 489) conta que a “mais eficaz ficção da propaganda nazista foi a história de uma conspiração mundial judaica”. Assim, Hitler tinha os judeus, Stalin tinha a conspiração trotskista e, na obra 1984 de Orwell, o Grande Irmão tinha Goldstein como seu grande inimigo.

4 4 O termo pós-verdade é um neologismo utilizado para descrever determinadas informações em que fatos são criados e modelados com o objetivo de convencer a opinião pública. Na pós-verdade, os eventos são distorcidos para que, por meio de um forte apelo às emoções e às crenças particulares, as pessoas sejam convencidas da narrativa criada. Mesmo sendo muito citada no campo político, atualmente, a pós-verdade também se estende para outras esferas propagadoras de informações como: institutos de pesquisas, jornais e até pessoas comuns que embasam suas ideias pela distorção dos fatos, pela exacerbação do senso comum e, na maioria dos casos, pela má-fé [Osório diz: Aqui o autor me poupou todo o trabalho, em especial de contestar o “conceito de verdade” da página 101].

Arendt e Heidegger

As contradições de Hannah Arendt.

Russel Jacoby**

 

Fama da pensadora repousa em argumentos opostos em suas duas principais obras sobre o mal radical e o banal

 

Uma rua leva seu nome em sua homenagem. Conferências consecutivas a celebraram. Novos livros a defendem vigorosamente. Hannah Arendt, que em outubro teria completado 100 anos, pertenceu ao restrito mundo dos heróis filosóficos. E toda essa atenção que ela desperta não foi granjeada apenas depois da sua morte, em 1975. Em vida, recebeu graus honoríficos de instituições como Princeton, Smith, e outras faculdades e universidades. A Dinamarca concedeu-lhe o prêmio Sonning pelo 'admirável trabalho que beneficiou a cultura européia', também recebido por Albert Schweitzer e Winston Churchill. Em suas conferências, os estudantes se aglomeravam nos corredores e às portas de entrada da sala.

 

Arendt se ajustou ao papel de herói filosófico. Era uma refugiada judia alemã submersa na educação clássica e conhecedora do mundo. Com suas freqüentes referências a termos gregos ou latinos, seus escritos irradiaram reflexão. Ela não temeu abordar grandes temas - a justiça, o mal, o totalitarismo - ou se envolver em questões políticas de atualidade, como a Guerra do Vietnã, direitos civis, o julgamento de Adolf Eichmann. Era ao mesmo tempo metafísica e realista, profunda e sexy. Alfred Kazin, crítico de Nova York, lembra de Hannah como uma mulher de grande charme e vivacidade - mesmo uma femme fatale.

 

Porém, se sua estrela brilha tão intensamente é porque o firmamento intelectual americano está muito obscurecido. Afinal, quem ou onde estão os outros filósofos políticos? O último grande filósofo político americano, John Dewey, morreu em 1952. Desde então a filosofia americana, com exceção, em parte, de Richard Rorty, desvaneceu nos temas técnicos; no campo da filosofia política, a maior das suas figuras, John Rawls, continua abstrato e com visão estreita. Seu trabalho pode ter contribuído para acelerar os batimentos cardíacos atenuados dos filósofos acadêmicos, mas não comoveu o restante de nós.

 

Aqueles pensadores que pertenceram à geração européia de Hannah Arendt não conseguiram atrair tanto quanto ela. Podemos citar dois exemplos claros: Jean-Paul Sartre, que, por causa do seu extremismo perene e da sua política imprevisível, hoje desperta cada vez menos entusiasmo; e Isaiah Berlin que, por causa da extrema prudência e grande moderação, inspira muito pouco. Ao contrário de Hannah Arendt, Berlin evitou tanto o compromisso político como escrever livros sobre grandes temas. (Na verdade ele nunca escreveu realmente um livro.) Enquanto Hannah Arendt escreveu obras como A Condição Humana, que teve como subtítulo Um Estudo dos Dilemas Cruciais Enfrentados pelo Homem Moderno, Berlin escreveu ensaios como Alleged Relativism in Eighteen - Century European Thought e Two Concepts of Liberty. Enquanto Arendt assumiu posição, Berlin vacilou.

 

Não é unicamente a paisagem sombria geral que faz brilhar a estrela de Arendt. Seu trabalho consegue cintilar, especialmente os seus ensaios. No entanto, com a grande exceção de Eichmann em Jerusalém, seus maiores livros sofrem de uma grande nebulosidade. Ironicamente, quanto mais filosófica Arendt procurou ser mais obscura se tornou. Mesmo depois das mais atentas leituras, é difícil saber o que ela está tentando dizer. Isso vale tanto para A Condição Humana como As Origens do Totalitarismo, livro que concentrou pela primeira vez as atenções sobre ela. Mas Hannah Arendt se beneficia da crença generalizada de que obscuridade filosófica sinaliza profundidade filosófica.

 

Seus devotos às vezes reconhecem que As Origens do Totalitarismo é um livro desorganizado e malsucedido. Ela pretendia apresentar o nazismo e o stalinismo como representantes gêmeos do totalitarismo, mas deixou de fora o stalinismo até a conclusão. Algumas sessões do livro, sobre imperialismo e racismo, coerentes e intuitivas, carecem de uma relação com o totalitarismo stalinista, que não derivou nem de um nem de outro.

 

Para defender seu argumento, ela juntou nazismo e stalinismo com um palavrório filosófico sobre ideologia e solidão. De certa forma a 'solidão' das massas estimula o totalitarismo. 'Embora seja verdade que as massas são obcecadas por um desejo de fugir da realidade porque, nesse desabrigo essencial não conseguem mais suportar os aspectos incompreensíveis, acidentais dessa realidade, também é verdade que o anseio pela ficção tem alguma relação com essas capacidades da mente humana, cuja consistência estrutural é superior ao mero acontecimento'. Hum!

 

Arendt conseguiu a sua obscuridade honestamente. Foi estudante de fato e amante de Martin Heidegger, filósofo existencialista alemão que, como sofista crítico, transformou o fato da morte em um segredo profissional dos filósofos. Embora sua ligação com Heidegger tenha ocasionado muita fofoca de alto nível - na universidade de hoje o caso do Herr Doktor Heidegger com uma formidável estudante de 18 anos seria ainda mais atroz do que as simpatias que ele nutriu pelo nazismo - o que estão em questão são as lealdades intelectuais dela. Arendt nunca rompeu conceitualmente com Heidegger e até pretendia dedicar A Condição Humana a ele. Não o fez, explicou numa carta dirigida a Heidegger, porque as coisas não 'andaram muito bem' entre eles. Porém, ela quis que ele soubesse que o livro 'se devia inteiro praticamente a ele, em todos os aspectos'.

 

De fato, o idioma 'heideggeriano' semi-religioso sobre angústia, solidão e desenraizamento influenciou o trabalho dela. As massas que apoiaram Hitler (e Stalin) não sofreram por falta de emprego ou de fome, mas de 'solidão'. O totalitarismo 'se baseia na solidão, na experiência de não se pertencer absolutamente ao mundo, o que é uma das experiências mais radicais e desesperadas do homem'.

 

Certamente Eichmann em Jerusalém, sua obra mais famosa e mais controvertida, é bem diferente. Um trabalho lúcido e contundente. Vale observar que foi o único de seus livros escrito por encomenda para a revista The New Yorker, aparecendo pela primeira vez em 1963 como uma série de ensaios separados sob a rubrica de Repórter à Solta. Talvez o fato de escrever para o lendário editor da The New Yorker, William Shawn, famoso pelos cortes implacáveis do texto, levaram Hannah Arendt a engavetar seus escritos filosóficos grandiloqüentes.

 

O que também é espantoso no caso de Eichmann em Jerusalém, e a frase que lançou a obra, 'a banalidade do mal', é até que ponto Arendt mudou completamente suas idéias desde seu livro As Origens do Totalitarismo. Nesse livro ela concluía que o totalitarismo oferecera ao mundo algo inteiramente novo.

 

O totalitarismo procura 'a transformação da própria natureza humana'. Foi um 'mal radical', um fenômeno fora de 'toda a nossa tradição filosófica... Nós na verdade não temos nada a que recorrer para compreendermos um fenômeno que... destrói todos os padrões que conhecemos'.

 

No entanto, quando, dez anos depois, ela cobriu o julgamento de Eichmann em Israel, chegou a uma conclusão oposta. A natureza humana não fora transformada; o mal totalitário não era radicalmente novo, mas extremamente prosaico. 'Não se pode extrair qualquer profundidade diabólica ou demoníaca de Eichmann', ela escreveu. Como sugeriu o corrosivo filósofo e crítico Ernest Gellner, 'Depois dela ter apresentado um tipo de exposição de totalitarismo que era metade o Trial (O Julgamento) de Kafka, e metade Wagner, a mediocridade de Eichmann veio impressioná-la e confundi-la.'

 

Assim, os dois livros mais famosos de Arendt apresentam argumentos opostos, já que ela nunca os conciliou. Seus subordinados tergiversam sobre as contradições, ou tentam afetadamente harmonizar a noção do mal banal e radical. Outros são menos flexíveis. Gershom Scholem, estudioso do misticismo judaico, protestou numa carta dirigida a ela, dizendo que seu livro totalitário fornecera uma tese 'contraditória' para sua reportagem sobre Eichmann. 'Naquela época, aparentemente você ainda não tinha feito a sua descoberta, de que o mal é algo banal.' Arendt concordou. 'Você está certo. Mudei de idéia e há muito tempo não falo de mal radical.' A honestidade dela é restauradora mas arruína seu estudo Origins. Significa que seu mais importante livro - o relatório sobre Eichmann - continua algo singular dentro da sua obra; não é apenas seu livro menos filosófico, mas sua noção do mal debilita a teoria do seu livro anterior.

 

Seus defensores não são tão francos como ela própria é, e tentam dissimular essa fissura. 'Contra Scholem, que afirma que o mal radical e a banalidade do mal são coisas contraditórias, quero defender a compatibilidade dessas concepções do mal', escreveu o filósofo Richard J. Bernstein. Não se deve esquecer que, neste ponto, Arendt concordou com Scholem. Outro estudioso sugere que Arendt sofreu com o 'mal-entendido' da sua própria obra e a de Kant, onde o termo 'mal radical' apareceu pela primeira vez. Um terceiro defensor resolve a contradição usando a frase 'A banalidade do mal radical'. Ele adota o idioma usado por Arendt, e nos informa que 'Arendt sugeriu que a banalidade do mal radical reside no repúdio da nossa própria nulidade, nossa própria solidão e impossibilidade de ser'.

 

O sucesso de Arendt, no fim das contas, repousa em Eichmann em Jerusalém, como também em alguns ensaios meticulosos e esboços biográficos sérios. Algumas vezes ela ficou lamentavelmente fora de foco, como no caso de suas reflexões sobre fatos ocorridos em Little Rock, Arkansas, onde viu, de forma vaga, uma 'força de mobilização popular' (e a violação dos 'direitos de privacidade') quando o presidente Eisenhower usou tropas federais para obrigar a integração escolar. Por outro lado, seus ensaios sobre sionismo e Israel comportam uma releitura. Hannah Arendt foi uma crítica vigorosa do militarismo sionista. Em 1948, advertiu que o sionismo intransigente poderia vencer a próxima guerra, mas questionou a que isso levaria. 'Os judeus vitoriosos viverão cercados por uma população árabe totalmente hostil, isolados dentro de fronteiras sempre ameaçadas, absorvidos com sua autodefesa', escreveu em The Jew as Pariah (O judeu como pária).

 

Essas observações estão entre as que mais se destacaram no seu trabalho. Diz muito sobre a cultura e a erudição de Arendt o fato de que, num recente livro do seu mais importante defensor e biógrafo, esses ensaios passaram despercebidos. E no livro Why Arendt Matters, de Elizabeth Young-Bruehl, que procura mostrar sua importância para a política contemporânea, os corajosos ensaios de Arendt sobre Israel e o sionismo não mereceram atenção, muito menos uma discussão.

 

Arendt se identificava como uma escritora free lance e às vezes contestava o fato de ser chamada de filósofa. De fato, ela estaria melhor situada fora dos círculos intelectuais de Nova York, esses escritores e críticos de meados do século 20 difíceis de categorizar.

 

Foi amiga de Mary McCarthy, parceira de Philip Rahv e Edmund Wilson, e contribuiu para revistas como Commentary, Partisan Review, New York Review of Books, Dissent e, naturalmente, a The New Yorker, periódicos dos intelectuais de Nova York. Um pouco do vigor polêmico e coragem do grupo influenciou seus melhores trabalhos, seus ensaios e Eichmann em Jerusalém. E são mais do que suficientes para celebrar Arendt. E são também seus trabalhos menos filosóficos.

 

Tirando esses livros, sua obra consiste de tomos confusos influenciados pelo jargão existencialista. Ela é celebrizada hoje porque todos as nossas celebridades estão cerceadas e neutralizadas. Certa vez, Isaiah Berlin comentou - ele era bastante cauteloso para fazer comentários impressos - que Arendt foi a mais superestimada filósofa do século. Berlin devia saber. Mesmo se compartilha a honra, poderia estar parcialmente correto.

 

Fonte: OESP, 24.12.06, Tradução de Terezinha Martino

 

 

* Russel Jacoby é professor residente do departamento de história da Universidade da Califórnia em Los Angeles. É autor do livro, recentemente lançado, Picture Imperfect: Utopian Thought for an Anti-Utopian Age

Cérebro sinapses

 

Ideologia.

V. Gordon Childe

 

 

PREFÁCIO

V. GORDON CHILDE

Edimburgo, outubro de 1941. / Brasil 1977, p. 4

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Arqueologia e História

 

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100

 

A HISTÓRIA escrita constitui um registro irregular e incompleto do que a humanidade realizou, em certas partes do mundo, nos últimos cinco mil anos. O período por ela compreendido representa, na melhor das hipóteses, cerca da centésima parte do tempo de existência do homem em nosso planeta.

...

Nossa espécie, o homem no sentido mais amplo, conseguiu sobreviver e multiplicar-se principalmente pelo aperfeiçoamento de seu equipamento, como demonstrei minuciosamente em A Evolução Cultural do Homem. Tal como ocorre com outros animais, é sobretudo por meio de seu equipamento que o homem atua sobre o mundo exterior e reage em função dele, obtém seu sustento e escapa aos perigos em linguagem técnica, adapta-se ao meio ou mesmo ajusta o meio às suas necessidades. O equipamento do homem, porém, difere significativamente dos recursos utilizados pelos outros animais, que os transportam em si mesmo, como parte do corpo. O coelho tem patas adequadas para cavar, o leão tem garras e dentes para estraçalhar sua caça, o castor tem presas agudas, a maioria dos animais tem pelos ou cabelos que os mantêm aquecidos tartaruga carrega até mesmo a casa às costas. O homem não dispõe de quase nenhum equipamento desse gênero e perdeu mesmo alguns de tais recursos, que lhe eram naturais nas épocas pré-históricas. Foram substituídos por instrumentos, órgãos não-corporais que fabrica, utiliza e despreza, segundo suas conveniências…

 

Tal como nos outros animais, há decerto uma base fisiológica corporal para o equipamento do homem, e que pode ser [10] resumida em duas palavras, mãos e cérebro. Dispensadas do trabalho de transportar o corpo, nossas patas dianteiras transformaram-se em instrumentos delicados, capazes de uma surpreendente variedade de movimentos sutis e precisos. Para controlá-los e colocá-los em relação com as impressões recebidas de fora pelos olhos e outros órgãos dos sentidos, tornamo-nos possuidores de um sistema nervoso complicado e de um cérebro excepcionalmente grande e complexo.

 

... O homem tanto pode fazer as ferramentas como as armas. Em resumo, o equipamento hereditário do animal é adequado à execução de um número limitado de operações, num determinado meio. O equipamento não-corpóreo do homem poder ser ajustado a um número quase infinito de operações – “pode ser”, note-se, e não "é”.

...

Até a mais simples ferramenta feita de um galho partido ou uma pedra pontuda é fruto de uma longa experiência de tentativas e erros, impressões recebidas, lembradas e comparadas. A habilidade de fazer uma ferramenta foi conquista-[11] da pela observação, recordação e experiência. Pode parecer um exagero, mas é bem certo dizer que qualquer instrumento é uma materialização da ciência, pois representa a aplicação prática de experiências lembradas, comparadas e reunidas, tais como as sistematizadas e sumariadas nas fórmulas, descrições e prescrições científicas.

 

Felizmente, a criança não precisa acumular experiência ou fazer por si mesma todas as tentativas e erros. Na verdade, a criança não herda, ao nascer, um mecanismo de nervos que tenha sido moldado no plasma germinativo da raça e que a predisponha, automática e instintivamente, aos movimentos corporais apropriados. Herda, entretanto, uma tradição social. Seus pais e as pessoas mais velhas lhe ensinarão como fabricar e utilizar o equipamento, segundo a experiência acumulada por numerosas gerações anteriores, e que constitui em si mesmo uma expressão concreta dessa tradição social. Qualquer instrumento é um produto social, e o homem é um animal social.

Tanto nas sociedades humanas como nas animais, as gerações mais velhas transmitem às novas, pelo exemplo, a experi- [12] ência coletiva acumulada pelo grupo que, por sua vez, aprenderam com os pais. A educação animal pode ser feita totalmente pelo exemplo: o pinto aprende como bicar e o que bicar, imitando a galinha. Para as crianças, que tanto têm a aprender, o método imitativo seria fatalmente lento. Nas sociedades humanas, a instrução é dada tanto pela explicação como pelo exemplo; aperfeiçoaram elas, gradualmente, instrumentos de comunicação entre seus membros. Com isso, produziram uma nova espécie de equipamento que pode, adequadamente, ser chamado de espiritual.

 

Devido à estrutura da laringe, dos músculos da língua e outros órgãos, os seres humanos, bem como alguns outros animais, são capazes de emitir uma escala muito variada de ruídos, tecnicamente chamados de sons articulados. Vivendo em sociedade e dispondo de um cérebro comunicativo, o homem pôde dotar esses sons de significados convencionais [Osório diz: Era isso o que defendia o sofista Protágoras! A convenção é o que sustenta a linguagem]. Eles se transformaram em palavras, sinais de ação e símbolos para objetos e acontecimentos familiares aos demais membros do grupo. (Note-se, incidentalmente, que os gestos também podem ter, pelo mesmo processo, um significado, embora menos adequado.) Os gritos dos pássaros e o balido das ovelhas têm, sob esse ponto de vista, um sentido. Ao ouvir tal sinal, os membros do rebanho reagem de modo adequado. Significa para eles pelo menos um sinal de ação e provoca uma reação correspondente no seu procedimento. Entre os homens, as palavras faladas (e também os gestos) têm a mesma função,numa escala tremendamente mais rica.

 

As primeiras palavras do homem talvez tivessem um sentido evidente em si mesmas. A palavra “bem-te-vi” reproduz o grito do pássaro do mesmo nome. Paget [Osório diz: “James Paget, foi um cirurgião e fisiologista britânico que juntamente com Rudolf Virchow fundou a ciência da patologia. Seu nome é comumente pronunciado de maneira incorreta no Brasil. A pronúncia correta é “pædʒət”. Existem três doenças nomeadas em sua homenagem.”, retirado da internet] lembra que a forma dos lábios ao pronunciarem uma palavra pode constituir a representação mímica da coisa indicada. De qualquer modo, tais sons auto-indicadores não nos levariam muito longe. A maioria das palavras, mesmo as utilizadas pelos mais selvagens povos, não têm nenhuma semelhança com aquilo que significam. São puramente convencionais [Osório diz: Mais Protágoras!], isto é, seu significado lhes foi atribuído artificialmente por um acordo tácito entre os membros da sociedade onde são usadas. O processo torna-se explícito quando uma reunião de químicos concorda em atribuir determinado nome a um elemento novo. Normalmente, [13] porém, o processo de aparecimento de palavras é muito mais sutil.

 

É exatamente por que o sentido das palavras é assim convencional que as crianças têm de aprender a falar, ou seja, aprender os sentidos atribuídos pela sociedade, da qual participa, aos ruídos que pode fazer. Trata-se de uma contribuição substancial à formidável lista de coisas que uma pobre criança tem de aprender. Há para tal aprendizado uma correlação física nos traços do cérebro. (Quando tais traços são atingidos, a vítima não pode compreender o que lhe dizer, isto é, não pode recordar os significados atribuídos aos sons que ouve.) Até mesmo os mais antigos crânios mostram uma protuberância do cérebro nas regiões da fala, de modo que a linguagem parece ser uma característica humana tão antiga e universal como a confecção de instrumentos.

 

A linguagem transforma o processo da tradição social. A explicação acelera o processo de educação. Pelo exemplo, a mãe pode mostrar aos rebentos o que fazer quando surgir um animal selvagem. Para muitos filhotes, porém, essa lição prática é fatal. Pela explicação, ela pode ensinar antecipadamente como agir frente ao animal selvagem - método de instrução que poupa muitas vidas. De modo geral, imitando os companheiros podemos aprender como agir num caso concreto e presente. Com o auxílio da linguagem, podemos aprender a enfrentar uma emergência antes que ela surja. A linguagem é o veículo para a transmissão da herança social da experiência resultado de tentativas e erros, do que pode acontecer e o que fazer - e é através daquela que esta se acumula e é transmitida. Pela herança social a criança não só participa da experiência adquirida pelos seus ancestrais – que bem pode ser transmitida "pelo sangue", pela herança biológica também da experiência do grupo. Não só os pais podem descrever para seus descendentes as crises de sua vida e como puderam atravessá-las, mas todos os membros da sociedade, utilizando-se das mesmas convenções de linguagem, podem contar a seus companheiros o que viram, ouviram, sofreram e fizeram. A experiência humana pode ser participada. Ao aprender a fazer e usar o equipamento, a criança está sendo iniciada nessa experiência.

[14]

 

A linguagem é mais do que um simples veículo da tradição. Ela afeta o que transmite. O sentido socialmente aceito de uma palavra (ou outro símbolo) é quase necessariamente algo abstrato. A palavra “banana” representa uma classe de objetos tendo em comum certas qualidades visíveis, tangíveis, aromáticas e sobretudo comestíveis. Ao usá-la, fazemos abstração de detalhes (ou seja, os ignoramos como irrelevantes) – o número de manchas em sua casca, a posição que tem na bananeira ou no cacho, e assim por diante- que são qualidades de qualquer banana real. Toda palavra, por maior e mais material que seja seu sentido, tem um caráter algo abstrato. Pela sua própria natureza, a linguagem implica uma classificação. Praticamente, por exemplo, aprendemos a imitar com precisão e em detalhe uma determinada série de movimentos de manipulação. Pela explicação, podemos aprender quais os movimentos a executar, mas teremos ainda uma certa margem de variação. Na engenharia, o contraste entre o aprendizado prático e a educação universitária se resume essencialmente nisso. A linguagem faz com que a tradição seja racional.

 

O raciocínio foi definido como “a capacidade de resolver problemas sem passar pelo processo material da tentativa e do erro". Ao invés de procurar fazer determinada coisa com nossas mãos e talvez queimando os dedos, executamos o processo mentalmente, com ideias - imagens ou símbolos das ações que seriam necessárias. Outros animais além do homem agem como se raciocinassem nesse sentido. Se dermos a um macaco uma banana colocada dentro de um tubo, aberto nas extremidades mas bastante comprido para que não possa atingi-la, ele logo descobrirá como empurrar a banana com uma vara e retirá-la por uma das extremidades, sem perder tempo numa série de movimentos inúteis. O macaco terá imaginado a banana em várias posições não-existentes, antes de descobrir como tirá-la. Não teve, porém, de afastar-se muito da situação concreta que enfrentava. O que distingue o raciocínio humano é o fato de poder ir muito além da situação prática, o que não acontece com nenhum outro animal. A linguagem constituiu sem dúvida um grande auxílio para isso.

 

O raciocínio e tudo o que chamamos de pensamento, inclusive o do macaco, representam operações mentais com [15] aquilo que os psicólogos chamam de imagens. Uma imagem visual, um quadro mental de uma banana, digamos, está sempre sujeita a ser o quadro de uma determinada banana num determinado ambiente. A palavra, como explicamos, é mais geral e abstrata, tendo eliminado as características acidentais que dão individualmente a qualquer banana real. As imagens mentais das palavras (representação do som ou dos movimentos musculares necessários para sua pronúncia) são instrumentos muito cômodos para o raciocínio. O pensamento realizado com sua ajuda possui necessariamente aquela qualidade de abstração e generalização que falta ao pensamento do animal. O homem pode pensar, bem como falar, sobre a classe de objetos chamados “bananas", ao passo que o macaco não vai além da "banana no tubo”. Dessa forma, o instrumento social denominado linguagem contribuiu para o que, com grandiloquência, se chamou de “a emancipação do homem da servidão do concreto”.

 

Raciocinar é operar com símbolos mentais e não com coisas ou atos no mundo exterior. As palavras convencionais são símbolos, embora não sejam os únicos existentes. Podemos agrupá-los e combiná-los de todas as formas em nosso pensamento, sem mover um músculo. A palavra "ideia” é geralmente usada para aquilo que as palavras, e outros símbolos, denotam, querem dizer, ou referem. Num certo sentido, “banana” não se refere a nada do que vemos, tocamos, cheiramos ou mesmo comemos, mas apenas a uma ideia a “banana ideal”. Essa ideia é, felizmente, representada por bananas comíveis e bem substanciais, mesmo que nenhuma delas se equipare ao padrão da banana ideal. Mas, em sociedade, o homem dá nomes e fala de ideias que na realidade não podem ser vistas, cheiradas, tocadas ou comidas, como a banana - ideias como a águia de duas cabeças, o maná, a eletricidade, a causa [Osório diz: Isto é o que dizia Górgias!]. São, todas elas, produtos sociais como as palavras que as expressam. As sociedades comportam-se como se elas representassem coisas reais. Na verdade, o homem parece levado a ações muito mais difíceis e exaustivas pela ideia da águia de duas cabeças, imortalidade ou liberdade, do que pela mais suculenta das bananas[Osório diz: Isto demonstra que Platão combatia ideias com ideias, sendo que, para seus seguidores, apenas as ideias dele eram reais (podiam ser vistas, cheiradas, tocadas ou comidas, pois são as ‘verdadeiras’) as ideias dos demais “são falsas”). .

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Sem incorrer em qualquer sutileza metafísica [Osório diz: “Olha o Platão aqui gente”!], ideias socialmente aprovadas e mantidas, que inspiram tais ações, devem ser tratada pela História como tão reais quanto os fatos arqueológicos mais substanciais. Na prática, as ideias formam um elemento tão ponderável ao ambiente de qualquer sociedade humana quanto as montanhas, árvores, animais, clima e o resto da natureza exterior. Isso quer dizer que as sociedades se comportam como se estivessem reagindo a um meio espiritual, da mesma forma pela qual reagem ao meio material. Para tratar esse meio espiritual procedem como se necessitassem de um equipamento espiritual, da mesma maneira que necessitam de ferramentas. [Osório diz: O discurso de um político pode levar à guerra! Rios, montanhas, ouro, por si sós, não!]

 

O equipamento espiritual não está limitado às ideias que se traduzem em instrumentos e armas que podem, com êxito, controlar e transformar a natureza exterior, nem à linguagem, que é o veículo das ideias. Inclui também aquilo que frequentemente se denomina ideologia da sociedade suas superstições, crenças religiosas, fidelidades e ideais artísticos. Para a defesa de ideologias e inspirado pelas ideias, o homem toma atitudes nunca observadas entre outros animais. Há pelo menos cem mil anos aquelas estranhas criaturas conhecidas como homens de Neandertal enterravam cerimoniosamente os filhos e parentes mortos, fornecendo-lhes alimentos e instrumentos. Todas as sociedades humanas de hoje, por mais selvagens que sejam, executam certos ritos por vezes extremamente dolorosos e se abstêm de prazeres ao seu alcance. Os motivos - e estímulos - a tais ações e abstenções hoje, e presumidamente no passado também, são ideias socialmente aprovadas, de gênero idêntico ao denotado pelas nossas palavras “imortalidade”, “mágica”, “deus”. Elas são estranhas ao resto do mundo animal, presumivelmente porque os brutos não usam um simbolismo linguístico, e portanto são incapazes de formar ideias abstratas. [Osório diz: Muito bom este parágrafo sobre ideologia]

 

As pederneiras de há mais de cem mil anos parecem ter sido feitas com um cuidado e uma delicadeza que não eram necessários à simples eficiência utilitária. Parece que seu autor desejava um instrumento que não só fosse útil como belo [Osório diz: Pederneira - Sílex (pedra) que, atritada, é capaz de produzir faíscas, logo, o fogo]. Há mais de 25.000 anos o homem começou a pintar o corpo e pendurar no pescoço conchas e contas, feitas com grande tra- [17] balho. Hoje, em todo o mundo, as pessoas arrancam os dentes, atam os pés, deformam os corpos com cintas ou se submetem a outras mutilações em obediência à espécie da moda. Esse comportamento parece peculiar a espécie humana. Resulta de uma ideologia, à qual dá expressão.

 

Com o auxílio de ideias abstratas, portanto, o homem evoluiu e passou a necessitar de novos estímulos à ação, além das imposições universais da fome, do sexo, do ódio e do medo [Osório diz: Os quais são cultivados pelas ideologias]. E todos esses novos motivos ideais passaram a ser necessários à própria vida. Uma ideologia, por mais distanciada que esteja das necessidades biológicas mais prementes, é na prática biologicamente útil – ou seja, favorável à sobrevivência da espécie. Sem esse equipamento espiritual, as sociedades não só tendem a desintegrar-se, mas também os indivíduos que a formam podem deixar de interessar-se pela vida. A “destruição da religião” entre os povos primitivos é sempre lembrada como uma das principais causas de sua extinção em contato com a civilização branca. Rivers escreveu a respeito dos habitantes das ilhas Eddystone: "Impedindo a prática das caçadas de cabeças, os novos governantes (ou seja, os britânicos) aboliram uma instituição que tinha suas raízes na vida religiosa do povo. Os nativos reagiram a essa medida tornando-se apáticos. Deixaram de reproduzir-se na proporção suficiente para evitar a diminuição da população da ilha.

 

Evidentemente as sociedades humanas “nem só de pão podem viver”. Mas se “as palavras saídas da boca de Deus” [Osório diz: As aspas] não promovem direta ou indiretamente o crescimento e a prosperidade biológica e econômica da sociedade que as santifica, essa sociedade, e com ela o seu deus, acabará desaparecendo. É essa seleção natural que garante que, com o tempo, os ideais de uma sociedade serão “apenas traduções e inversões, feitas é na mente humana, do que é material". A religião dos habitantes das ilhas Eddystone dava-lhes um motivo para viver e mantinha em funcionamento um sistema econômico. Na prática, porém, a caçada de cabeças mantinha sempre reduzido o número de habitantes da ilha. Tornava, portanto, desnecessárias as melhorias no equipamento material, e acabou deixando os ilhéus à mercê dos conquistadores britânicos. É do ponto [18] de vista do grupo social que a ideologia é julgada pela seleção histórica. O veredicto, entretanto, pode tardar muito.

 

A ideologia é, evidentemente, um produto social, As palavras em que se baseiam suas ideias foram criadas pela vida em sociedade e não teriam existido fora dela. Além disso, as ideias devem sua realidade, sua capacidade de influir na ação, à aceitação que tiveram na sociedade. Crenças aparentemente absurdas podem surgir e manter-se desde que todos os membros do grupo as aceitem e aprendam, desde a infância, a acreditar nelas. Não ocorrerá a ninguém pôr em dúvida uma crença universalmente aceita [Osório diz: Ou ocorrerá a poucos!]. Poucos de nós temos mais razões para acreditar nos germes do que nas feiticeiras. Nossa sociedade inculca a primeira dessas crenças e ridiculariza a segunda, mas outras invertem os julgamentos. É certo que alguns especialistas conhecidos viram os germes no microscópio. Mas um número maior de especialistas, na Europa medieval e na África negra, viu feiticeiras em atividade. A superioridade da nossa crença se evidenciará se, com o tempo, os antissépticos e vacinas [Osório diz: O livro é de 1941! E pensar no Brasil de 2021...] conseguirem evitar melhor a morte do que as encantações e a queima de feiticeiras, permitindo com isso o crescimento social.

 

Manter a sociedade unida e em plena atividade não é a menos importante das funções de uma ideologia. E pelo menos nesse aspecto ela age sobre a tecnologia e o equipamento material. Pois como o equipamento espiritual, o equipamento material não é um produto social apenas pelo fato de surgir de uma tradição social. Na prática, a confecção e utilização de instrumentos também demandam a cooperação entre os membros da sociedade. Hoje, é evidente que o europeu e o americano modernos só conseguem alimentação, abrigo, indumentária e satisfação de outras necessidades como resultado da cooperação de uma vasta e extremamente complicada organização, ou economia. Se nos desligássemos dela, viveríamos mal e provavelmente morreríamos de fome. Teoricamente, o "homem primitivo", com suas necessidades mais simples e equipamento mais rudimentar, podia prover a si mesmo. Na prática, porém, até os mais rudes selvagens vivem em grupos organizados para cooperar na procura de alimentos e no preparo de equipamento, bem como na realização de cerimônias. Entre [19] os aborígines australianos, por exemplo, encontramos uma divisão do trabalho entre os sexos, na caça e na provisão, bem como na confecção de implementos e vasos. Há também uma divisão do produto dessa atividade cooperativa.

 

Até mesmo o estudante da cultura material terá de ocupar-se da sociedade como uma organização cooperativa para produção de meios de satisfazer suas necessidades, de reproduzir-se - e de produzir novas necessidades. Ele deseja ver sua economia em funcionamento. Mas ela é afetada pela sua ideologia, à qual também afeta. O “conceito materialista da História” afirma que a economia determina a ideologia. É mais seguro e mais certo repetir com outras palavras o que já dissemos: uma ideologia só pode sobreviver ao tempo se contribuir para o funcionamento regular e eficiente da economia. Se o dificultar, a sociedade e com ela a ideologia – perecerá [Osório diz: Não é isso que diz Marx, segundo José Paulo Netto! “Isso é uma caricatura grosseira do pensamento de Marx. Em Marx não existe determinismo econômico e nem determinismo de espécie alguma.” Vejam em: https://www.youtube.com/watch?v=ReJm17GZoHw]. Mas o reconhecimento pode ser adiado por muito tempo. Uma ideologia obsoleta pode dificultar a economia e impedir sua transformação por um tempo muito mais prolongado do que os marxistas admitem [Osório diz: Não é isso que diz Marx, segundo José Paulo Netto! Leiam o 5º parágrafo do “Manifesto Comunista”! “Dessa luta ou sai uma nova sociedade ou desaparecem as classes em luta.” “Tem duas saídas: a primeira é a vitória do proletariado, a segunda é a destruição das classes em luta.”].

 

Idealmente, a tradição social é uma única: o homem de hoje é o herdeiro teórico de todas as idades, e recebe a experiência acumulada por todos os seus antecessores. Esse ideal, porém, está longe da realização prática. A humanidade não forma uma sociedade única, hoje, estando pelo contrário dividida em muitas sociedades diferentes. Todas as provas disponíveis são de que essa divisão é ainda maior do que no passado, pelo menos no que a Arqueologia pode verificar. Cada sociedade pode ter não só convenções linguísticas diferentes, mas convenções também diferentes sobre o equipamento espiritual, e até mesmo sobre o material, pois cada uma delas preservou, transmitiu e estabeleceu e estabeleceu tradições peculiares próprias.

 

A babel das línguas é hoje uma evidência penosa. Basta lembrar aqui que cada língua é produto de uma tradição social, e age sobre outras formas tradicionais de comportamento e pensamento. Menos familiar é o processo pelo qual as divergências de tradição atingem até a cultura material. Os norte-americanos utilizam-se dos garfos e facas de modo [20] diferente dos ingleses, e essa diferença encontra uma expressão concreta nos detalhes insignificantes dos próprios garfos e facas. Na Irlanda e no País de Gales os trabalhadores rurais usam pás de cabos longos, ao passo que na Inglaterra e na Escócia os cabos são muito mais curtos. O trabalho realizado é, em cada caso, o mesmo, embora o manuseio do instrumento seja, evidentemente, diverso. As diferenças são puramente convencionais. Refletem divergências na tradição social, que sendo expressas concretamente nas formas da ferramenta empregada, pertencem aos limites da Arqueologia e podem ser seguidas até o passado remoto, no qual não encontramos registros escritos que permitam o reconhecimento de diferenças linguísticas.

 

(Fonte: O que aconteceu na história, V. Gordon Childe. Tradução de Waltensir Dutra. Zahar. Rio de Janeiro. 1977, p. xx)

(Fonte da imagem: https://www.metropoles.com/mundo/ciencia-e-tecnologia-int/sinal-desconhecido-e-descoberto-no-cerebro-humano.)

Conhecimento

O sujeito, a verdade e a crítica ao pensamento moderno.

 

Márcio José Silva Lima1

 

 

THE SUBJECT, THE TRUTH AND THE CRITICAL TO MODERN THOUGHT

 

Resumo: O presente trabalho visa discutir a constituição do eu-sujeito fundado na Modernidade a partir do pensamento cartesiano, bem como a sua crítica e suas implicações no conceito de verdade. Para tanto, como elemento instigante na reflexão sobre o tema, apresentaremos a análise de Heidegger acerca da sentença de Protágoras em que profere o homem como medida de todas as coisas. Abordaremos também a crítica nietzschiana ao eu-sujeito fundamentada por ele nas obras A Genealogia da Moral, Além do Bem e do Mal e nos aforismos publicados na obra A Vontade de Poder. Em seguida teceremos considerações acerca do conceito de verdade que na Modernidade tornou-se sinônimo de comprovação científica.

 

Palavras-chave: Modernidade. Eu-sujeito. Verdade.

 

Abstract: This paper aims to discuss the constitution of the self-subject founded in Modernity from Cartesian thought, and their critique and its implications on the concept of truth. Therefore, as a thought-provoking element in the reflection on the subject, we present Heidegger's analysis of Protágoras sentence that gives the man as the measure of all things. We will also explore the Niet ean critique of self-subject foui by in the works The Genealogy of Morals, Beyond Good and Evil and aphorisms published in the book The Will to Power. Then we will weave considerations on the concept of truth in Modernity has become synonymous with scientific evidence.

 

Keywords: Modernity. self-subject. Truth.

 

1. Introdução

 

O pensamento moderno é profundamente marcado pela questão do “sujeito”, ou seja, o cogito cartesiano capaz de, por meio de uma autonomia da consciência, ser responsável pela ação do pensar no homem. Ao que parece, este pensamento é inaugurado ainda no século XVII por René Descartes que em suas Meditações Metafísicas apresenta ao mundo uma res cogitans que, em oposição à res extensa, determina a atividade do pensamento. Assim sendo, seguindo ainda a dualidade socrático-platônica (sensível-inteligível) o pensamento moderno põe o homem numa situação cujo limite é marcado pela relação bipolar entre uma coisa que pensa e uma coisa palpável, que se mensura, que se observa e que possui extensão.

 

Mais tarde, Emmanuel Kant vai, de certa forma, afirmar que em matéria de conhecimento, esse sujeito que pensa, essa res cogitans encontrada no homem, poderá realizar representações acerca da extensão, do objeto conhecido/cognoscível. Em outras palavras, esta consciência presente no homem e capaz de pensar o objeto poderá fazer/realizar representações do fenômeno – mesmo que fique de fora o conhecimento sobre o númeno, a coisa em si. Levando em consideração o raciocínio de Descartes e Kant acerca da ação humana, percebemos que para ambos o homem é possuidor de uma consciência capaz de representar o mundo externo. Essa consciência, portanto, permite ao homem a constituição do “eu”, pois enquanto sujeito, ele pode manipular o mundo externo e representar o fenômeno.

 

Por conseguinte, o sentido que orienta o pensamento moderno é o cartesiano. Nele a realidade é dividida em dois grandes polos: o âmbito do sujeito e o âmbito do objeto. O sujeito, por sua vez, é a substancia ativa e nele o homem é identificado com o cogito, com a coisa pensante. Por sua vez, o homem enquanto ente que pensa, encontra-se marcado pela autonomia e pode ser capaz, responsável e senhor da sua ação. Daí então, este ente que pensa e que possui autonomia pode enfim representar. Neste sentido, "a representação é, na verdade, um voltar-se do "cogito” sobre si mesmo, que assim se re-toma e então re-apresenta o objeto segundo o modo de ser do sujeito”. (FOGEL, 2009, p. 66).

 

2. O sujeito como medida de todas as coisas

 

Em plena Modernidade partiu de Martin Heidegger, filósofo do século XX, uma análise contundente e, ao mesmo tempo intrigante, acerca deste tema. No segundo volume de sua obra dedicada a Nietzsche, Heidegger disserta acerca da autonomia do sujeito moderno. Para tanto, inicia seu pensamento refletindo sobre a famosa sentença de Protágoras: "O homem é a medida de todas as coisas, das que são, que elas são, das que não são que elas não são” (PROTÁGORAS apud HEIDEGGER, 2007, p.100). A sentença seria então uma comprovação do pensamento cartesiano na antiguidade? Estaria o sofista Protágoras assumindo uma posição do homem enquanto sujeito que age sobre todas as coisas? Vejamos as reflexões heideggerianas sobre o caso.

 

Para Heidegger, "cairíamos em um engano fatídico" ao tentar compreender a sentença de Protágoras aos moldes do pensamento cartesiano. Na Modernidade acreditamos que temos acesso ao ente simplesmente pelo fato do “eu” – o cogito [198] enquanto sujeito que pensa - poder representar o objeto. No entanto, este modo de compreensão ignora aquilo que se encontra na dimensão do desvelamento do ente. Porém, o ente, muitas vezes compreendido como objeto, está para o homem, enquanto Dasein, como aquilo que se desvela, aquilo que está no âmbito do aberto. Para que o homem consiga representar aquilo que está posto diante de si, é preciso pois, um acontecimento mais originário, algo que pressupunha desvelamento.

 

É nesta perspectiva que o homem se torna a medida de todas as coisas, uma vez que é nesta dimensão do real que ele é tomado por aquilo que acredita representar. Neste caso, não é ele quem “mede” todas as coisas, no sentido de mensurar, quantificar e agir sobre elas como a ciência moderna faz. O que a sentença mostra é que o homem está na “medida” de todas as coisas, ou seja, pelo e através do desvelamento o homem é tocado por todas as coisas. A autonomia do sujeito aqui já é um evento secundárioi. Não há um sentido que seja juiz nem dos outros entes enquanto objeto, nem de seu ser enquanto consciência autônoma. “O modo como Protágoras define a relação do homem com o ente é apenas uma circunscrição acentuada do desvelamento do ente na totalidade à respectiva esfera da experiência do mundo”. (HEIDEGGER, 2007, p. 103).

 

Segundo o filósofo alemão, na sentença de Protágoras o “eu” é determinado por meio de seu pertencimento ao desvelamento do ente. É aquilo que se desvela, que aparece e se desencobre do ente que o sujeito, por assim dizer, pode conhecer. Há, portanto, o cunho essencial da presença diante do sujeito. A verdade (alethéia) possui o caráter de desvelamento, pois trata não de uma adequação do intelecto à coisa (veritas est adaequatio intellectus et rei), mas tão somente, algo próprio e constitutivo daquilo que é desvelado. A “medida” de que trata a sentença apresenta o sentido próprio de moderação, a saber, moderação do desvelamento, moderação daquilo que se desvela como ente para o sujeito.ii

 

Esta seria a maneira grega de se compreender a sentença de Protágoras, não como um sujeito de quem todas as coisas dependem. Não como um sujeito capaz e responsável por “medir”, “moderar” todo o objeto, mas como um ente Dasein) que lançado ao mundo, nele está, pelo desvelamento, na medida de todas as coisas. Vê-se por aí que a posição metafísica moderna se apresenta de forma diferente da posição metafísica dos gregos. Para estes, a concepção de um sujeito autônomo tal qual como conhecemos na Modernidade era inexistente. O guerreiro, por exemplo, que em batalha guerreava não lutava por autonomia própria, mas porque Ares o guiava. O mancebo quando apaixonado, acreditava assim estar pelo efeito devastador de Eros. O próprio [199] Sócrates afirmava possuir um Daemon, uma espécie de gênio pessoal que lhe orientava. Ou seja, sempre estavam à medida de algo exterior a eles. Este algo exterior, Heidegger chama desvelamento.iii

 

A partir do pensamento cartesiano, o conceito de “sujeito” antes Hypokeimenon, depois Subiectum – encontra-se essencialmente ligado ao homem e, justamente nesta perspectiva, os demais entes se transformam em objetos desse homem/sujeito. Agora, diferentemente de outrora, o Subiectum não é mais o nome nem o conceito utilizado para definir os entes: animais, plantas, pedra. O Subiectum transformara-se em Sujeito e o sujeito concerne aquilo que é atribuição do homem enquanto fundamento de todo o representar. Aqui o conhecer adquire também uma nova compreensão, pois na perspectiva cartesiana, conhecer é aquilo que de forma indubitável é representado pelo sujeito. Para isso, torna-se importante a existência do método (methodus), “nome para o pro-cedimento assegurador e conquistador que se abate sobre o ente, a fim de assegurá-lo como objeto para o sujeito”. (HEIDEGGER, 2007, p. 127).iv

 

Com o homem sendo essencialmente “sujeito”, capaz de representar os entes enquanto objeto e a “verdade” sendo compreendida enquanto uma certeza derivada da ação calculadora, este mesmo homem passa a ter uma relação de conquista e de assenhoramento com o mundo circundante. Aqui a sentença de Protágoras possui um valor diferente daquele estabelecido pelo modo grego de pensar.v No modo cartesiano é o homem quem atribui o padrão de medida. É ele quem determina “a partir de si e em direção a si mesmo” aquilo que pode ser considerado acerca do mundo enquanto objeto. Entretanto, Heidegger nos chama atenção para o fato de que o homem moderno não seja considerado como um mero "eu egoísta isolado” mas um "sujeito" lançado a caminho do cálculo e da representação ilimitada do ente.vi

 

Portanto, com base no exposto, podemos demonstrar o modo como Heidegger distingue as representações metafísicas fundamentais no pensamento de Protágoras e de Descartes. Segundo ele:

 

1. Para Protágoras o homem é determinado em seu ser-próprio por meio da pertinência à esfera daquilo que é desvelado. Para Descartes o homem é determinado enquanto si próprio por meio da retomada do mundo no representar do homem.

2. Para Protágoras, a entidade do ente é - no sentido da metafísica grega - o presentar-se no desvelado. Para Descartes, a entidade significa: representidade por meio do e para o sujeito.

[199]

3. Para Protágoras, a verdade significa desvelamento daquilo que se presenta. Para Descartes, a certeza da representação que se re-

presenta e assegura.

4. Para Protágoras, o homem é a medida de todas as coisas no sentido da restrição comedida à esfera do desvelamento e aos limites do velado. Para Descartes, o homem é a medida de todas as coisas no sentido da presunção da supressão dos limites da representação em direção a certeza que se assegura de si. O padrão de medida submete tudo aquilo que pode valer como sendo ao cálculo da representação. (HEIDEGGER, 2007, p. 128).

 

3. A crítica ao Eu-sujeito como causa da ação

 

Anterior ao pensamento de Heidegger, na primeira dissertação da Genealogia da Moral, Nietzsche nos assevera que é sob a sedução da linguagem que entendemos – ou mal entendemos – que em todo atuar há um atuante. Segundo ele, não há, pois, distinção entre o corisco e o clarão. O corisco não é um sujeito atuante que age sobre o clarão. Não existe um substrato, um “ser” que atua, que faz acontecer. (NIETZSCHE, 2009, p. 33). O agente pelo qual compreendemos na Modernidade, a saber, um sujeito que pratica a ação é apenas uma “ficção” que acrescentamos à ação. A ação já é tudo! Nós modernos duplicamos a ação, pois a tratamos como causa e efeito.

 

E assim se comporta a nossa ciência. Acreditamos que no seu desenvolver-se há uma causa e um efeito, ou seja, um sujeito e um objeto que reage a tal ação. Mas, de fato não é isso que ocorre. De acordo com Nietzsche, o eu-sujeito que age, que pensa e que faz acontecer é somente uma construção gramatical criada pela linguagem. É aquilo que ele denomina como uma “crença da nossa razão”. Em sua obra A Vontade de Poder, o sujeito é apontado como uma invenção, “não é nada de dado, mas sim algo a mais inventado, posto por trás”. (NIETZSCHE, 2008, p. 260).

 

O sujeito é então, o interprete que nós modernos pomos por trás da interpretação. Esta ação se refere ao próprio pensar. Ao pensar acreditamos que exista um eu como causa desse pensar. Pensamos que o pensamento parte de uma autonomia da consciência que decide o que pensar, como pensar e quando pensar. Acostumamos-nos a proceder desse modo, todavia, para Nietzsche, “por mais que essa fícção possa agora ser costumeira e indispensável – isso, somente, não prova nada contra o seu caráter fictício: uma crença pode ser condição da vida e, apesar disso, ser falsa”. (NIETZSCHE, 2008, p. 260).

 

Contudo, é no parágrafo 484 da mesma obra que o filósofo trágico aguça sua crítica chegando ao cartesianismo, ou seja, ao modelo de pensamento cartesiano no qual Contudo, é no parágrafo 484 da mesma obra que o filósofo trágico aguça sua crítica chegando ao cartesianismo, ou seja, ao modelo de pensamento cartesiano no qual [201] define que por trás de todo ato, inclusive o ato de pensar, haja um eu, um sujeito que seja a causa da ação2. Assim, Nietzsche utiliza a palavra latina Cartesius para se referir a Descartes ao declarar que “pelo caminho de Cartesius não se chega a algo absolutamente certo, mas só a um fato de uma crença muito forte” (NIETZSCHE, 2008, p. 261). Por isso, ao pensar imaginamos que haja um pensante por trás – penso logo existo (cogito ergo sun) – postulamos a crença em uma substância a priori, em algo que subjaz ao pensar, entretanto, ao mesmo tempo, somos acolhidos por uma crença.

 

Como já foi dito anteriormente, esta crença, para Nietzsche, provém de uma ação formulada pelo nosso hábito gramatical. A constituição da nossa linguagem definida a partir da relação sujeito/predicado remete para todo o fazer um agente causador. Foi esta maneira gramatical de pensar que levou o homem (enquanto o sujeito que age, o eu consciente) a “agir” sobre a natureza (encarada, nas mãos do sujeito, como um objeto) e a interpretar-se como a medida de todas as coisas. Passamos a compreender o mundo a partir da lógica do sujeito e objeto, aquele que age e pratica a ação e aquele que sofre a ação, que é causa da ação, portanto observável, mensurável e manipulável. E assim se comporta o homem moderno, sobretudo naquilo que concerne à atividade científica.

 

Nessa perspectiva, Nietzsche vai dizer que o sujeito é a terminologia que nossa crença gramatical construiu para fundamentar uma unidade subjacente que determina o real. A partir dessa unidade subjacente acreditamos ser capazes de descrever a realidade e atribuir a ela valor de verdade. Achamos que estamos à frente de todas as coisas. Somos impelidos a imaginar que, como agente causador, podemos comandar a natureza,determiná-la e fazê-la se comportar conforme nossas ações.

 

Sujeito”, “objeto”, “predicado” - essas separações foram feitas e agora recobrem, como esquemas, todos os fatos que aparecem. A falsa observação fundamental é a de que creio que sou eu quem faz algo, que sofre algo, quem “tem” algo, quem "tem” uma propriedade. (NIETZSCHE, 2008, p. 284).

 

Nietzsche ainda pergunta se a crença no conceito de sujeito e predicado não seria uma grande tolice? O sujeito como causa não seria um delírio? Para ele, não possuímos nenhuma experiência de uma causa. O que ocorre é que esse conceito causa nasce da convicção subjetiva de que nós somos a causa. Quando falamos, caminhamos, levantamos o braço... acreditamos que somos a causa. Entretanto, para Nietzsche, isso [202] incorre em erro, em mal entendido, pois procuramos erroneamente um agente para a causa, para o fazer e para o acontecer.

 

Causa" não acontece, em absoluto: no tocante a alguns casos, em que nos pareceu dada, a partir dos quais a representamos como compreensão do acontecer, está provado o altoengano. Nosso "entendimento de um acontecer” consiste em que um sujeito inventado é responsabilizado pelo fato de que algo tenha acontecido e de como aconteceu. (NIETZSCHE, 2008, p. 285).

 

Em Além do Bem e do Mal Nietzsche ainda faz as seguintes indagações: “De onde retiro o conceito de pensar? Por que acredito em causa e efeito? O que me dá o direito de falar em um Eu como causa, e por fim de um Eu como causa de pensamento?" (NIETZSCHE, 2005, p. 21). Já no parágrafo seguinte, o filósofo alemão reafirma que isso é superstição. De acordo com ele, acreditar em um sujeito que controla seus próprios pensamentos é pura superstição, uma vez que o pensamento vem quando ele quer e não quando eu quero. Nesse caso, o sujeito eu não é a condição do predicado penso. (NIETZSCHE, 2005, p. 22).

 

O pensar e, consequentemente, o agir provém não de uma autonomia do sujeito, um eu que pensa ou que pratica uma determinada ação. Para que se dê pensamento e ação é preciso que se dê primeiramente afecção, ou seja, um afeto (pathos) que leve o homem a obedecer. A obediência só se dá na escuta que é própria do afeto. Estar na escuta é estar disponível para a afecção, para o instante extraordinário em que a Vida nos toca e nos faz sentir como agentes causadores. É só mediante a afecção que podemos produzir pensamentos, praticar a ação e até mesmo achar que somos o eu-sujeito responsável pela causa de tudo.

 

A questão da verdade

 

As noções modernas de sujeito e objeto levaram-nos a compreender a verdade como próprio e constitutivo daquilo que se pode observar, mensurar e quantificar. A verdade se apresentou como o resultado de uma operação realizada por meio de um método capaz de descrever, de forma minuciosa, aquilo que se está verificando. Se antes a verdade consistia naquilo que era definido pelo pensamento metafísico, agora, já na Modernidade, o que prevalece é aquilo que concerne à atividade científica. As [203] "verdades” passaram, por meio da análise científica, a serem comprovadas, legitimadas e validadas.

 

Houve então, uma inversão de critérios. O que antes era tarefa da metafísica, agora é campo das ciências. O que cabia à reflexão, à contemplação e à dedução definir, agora é objeto da análise meticulosa, da observação empírica e da descrição científica. E, para tanto, foram de fundamental importância, as noções modernas de sujeito e objeto. Um sujeito capaz de pensar e de agir de forma independente, autônomo, que se julgasse liberto de preconceitos, capaz de manipular o objeto e extrair dele todos os seus mistérios.

 

Mas seria a ciência moderna capaz de descrever a realidade e retirar dela sua verdade? Em que consiste a verdade? Seria a verdade o produto de uma metodologia? Não seria a verdade um valor que atribuímos às coisas? Concluímos que sim! O próprio Nietzsche no parágrafo 481 de A Vontade de Poder quando diz que “não há fatos, só interpretações, oferece-nos subsídios para sustentar a hipótese de que aquilo que fundamenta a verdade na era moderna pode estar profundamente ligado ao contexto cultural de uma época. A verdade pode estar inserida no âmbito das atividades culturais e como tal receber critérios de valores que determinam não apenas a verdade, mas também, a falsidade, o bem e o mal, o melhor e o pior.

 

Mas o que dizer das verdades apresentadas, explicadas e comprovadas pela ciência moderna como, por exemplo, a lei da gravidade ou o movimento dos astros? O que dizer daquilo que a ciência informa acerca do planeta terra, dos ecossistemas e da anatomia humana? Haveria uma verdade legítima naquilo que as ciências declaram? Para responder, novamente recorremos aquilo que está ligado à cultura3. É o modo de pensar e de agir de uma época e de um povo quem define os critérios de verdades. Assim sendo, verdades que já foram apresentadas pela própria ciência já chegaram a ser reavaliadas, a exemplo da exclusão de Plutão da categoria de planeta do nosso sistema solar.

 

O que há são interpretações, a realidade, as coisas estão aí e a elas são atribuídas culturalmente, por meio de interpretações, critérios de verdades. Talvez o que muda seja o método utilizado para definir isto ou aquilo como verdade. No passado o método pode ter sido o teológico, hoje pode ser o científico, mas, independente disso, as coisas [204] sempre se comportaram do mesmo jeito, o real sempre foi o mesmo. O que estava fadado a mudanças, mudou! O que havia de permanecer, permaneceu! A realidade com todas as suas permanências e transitoriedade sempre esteve aí. O real com suas infinitas possibilidades sempre permitiu ao homem criar – num momento extraordinário de afecção – destruir e recriar valores e com eles, estipular a verdade.

 

Mas haveria então, verdades absolutas? Falar de verdades absolutas é buscar explicações acerca daquilo que fundamenta o real. Esse é o papel da filosofia desde suas origens na Grécia Antiga, a busca pelo fundamento daquilo que rege a realidade. Todavia, para formular seus conceitos, os filósofos foram afetados também pela cultura de sua época. Assim, as verdades filosóficas foram elaboradas a partir de conceitos próprios, mas que, de alguma forma, foram influenciados pela cultura. A razão filosófica ao longo de toda história da filosofia buscou alcançar a verdade absoluta do real, porém ela mal percebeu que todos os conceitos formulados sobre tal verdade tiveram como pano de fundo a influência cultural.

 

No Crátilo, Platão diz que verdadeiro é o discurso que diz as coisas como são. Já seu contraponto, a saber, o falso é aquele que diz as coisas como não são. A grande questão desta sentença está contida justamente no seu discurso. Dizer, por meio do discurso, o que as coisas são ou não são e daí extrair sua veracidade requer a formulação de juízos e os juízos, por sua vez, são determinados e construídos culturalmente. Nesse caso, o discurso sobre a verdade daquilo que é ou não é prefigura uma tomada de posição que desde já muito antes é estabelecida pela cultura.

 

Também Aristóteles, certa vez mencionou que quando negamos aquilo que é, e afirmamos aquilo que não é, incorremos no falso. Em contrapartida, ao afirmarmos aquilo que é, e negarmos aquilo que não é, estamos no âmbito da verdade. Entretanto, para negarmos ou afirmarmos algo, necessitamos de toda uma gama de experiências que só pode nos ser transmitida culturalmente. Isto quer dizer que a verdade ou a falsidade das coisas dependem do juízo que é formado sobre elas. Tal juízo, por sua vez, provém daquilo que absorvemos de forma cultural através da história.

 

Em outras palavras, queremos dizer que ao sermos lançados ao mundo, somos situados num ponto do tempo e do espaço e, com isso, de forma involuntária, absorvemos os costumes, os hábitos, o pensamento, a linguagem, o comportamento, as crenças e o raciocínio que nos levam a elaborar critérios de verdades. O sujeito que ao observar, mensurar e descrever o objeto delimita sua falsidade ou sua verdade, já se [205] encontra contagiado por uma carga cultural que determina sua posição diante da verdade. E o que estaria por trás disso tudo? A abertura, a afecção!

 

Pela abertura homem é afetado por criação. Em seguida, ele passa a criar modos de vida, costumes, hábitos, conhecimentos, linguagem. Também surgem novas interpretações, perspectivas e valores e são justamente estes valores que irão delimitar os critérios utilizados por um determinado grupo social para definir aquilo que é compreendido como verdade. Neste sentido, falar de verdade, tal como a compreendemos na Modernidade, é falar de um juízo, pois esta verdade implica uma não-verdade e quando afirmamos uma ou outra, o que está por trás da nossa decisão é aquilo que nos foi passado pela cultura de um tempo, de um povo e de um lugar em que estamos inseridos. No fundo, não somos nós quem decide acerca da verdade sobre isso ou aquilo a partir de uma autonomia do sujeito ou de uma verdade absoluta que nos é revelada. Apenas somos influenciados pela nossa cultura e a partir dela interpretamos as coisas e a chamamos de falsas ou verdadeiras. O que já é um evento secundário.vii

 

4. Considerações finais

 

Ao que parece, a autonomia do sujeito ainda continua sendo uma temática não superada. Filósofos contemporâneos na linha de Nietzsche e Heidegger como Foucault, Derrida e Deleuze permaneceram nessa crítica do sujeito – autônomo, dominador e calculador do real – e foram por vezes denominados pós-modernos. Por outro lado, a proposta de compreender o homem como sujeito dotado da capacidade de representar impulsionou a forma como muitos refletiram sobre a metafísica moderna. O bom de tudo isso talvez seja a não superação do pensamento filosófico, pois através do choque de ideias e da ação dialética do pensamento a filosofia permanece viva para o surgimento e criação de novas reflexões e, como diria o próprio Nietzsche, novas perspectivas.viii

 

No que se refere à verdade, concluímos que esta se encontra profundamente ligada à questão cultural. É a cultura de uma época e de um povo quem determina os critérios de verdades a serem seguidos como referencial. Foi assim na Antiguidade, na Idade Média e agora na Modernidade - ou Pós-modernidade. Acreditamos que é o modo de pensar de uma época que influencia diretamente na forma como pensamos.ix É a partir daí, que elaboramos, por meio de perspectivas, aquilo que nos aparece como a verdade – mesmo que com o passar dos tempos, tal verdade caia em desuso.

[206]

 

Isso, no entanto, não se afasta daquilo que Heidegger nos apresentou como desvelamento. O desvelamento é aquilo que proporciona o desenvolvimento da cultura de onde, a partir dela, provém os valores de verdades. A única diferença é que aquilo é que compreendemos por verdade, já é também um fenômeno secundário causado pelo desvelamento. Neste caso, há uma verdade (alétheia) por trás de nossa verdade. Há um desvelamento que nos leva culturalmente a formar os critérios de nossas verdades.x

 

Referências

 

DESCARTES, R. Meditações. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores)

 

FOGEL, G. Que é filosofia?: filosofia como exercício de finitude. Aparecida-SP: Ideias & letras. 2009.

 

HEIDEGGER, M. Nietzsche II. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

 

KANT, I. Crítica da razão pura. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores)

 

NIETZSCHE, F. W. A genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das letras/companhia de bolso, 2009.

_____ Além do bem e do mal. Tradução de Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das letras/companhia de bolso, 2005.

_____ A vontade de poder. Tradução de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

 

Fonte: Kínesis, Vol. VIII, nº 18, Dezembro 2016, p.197-207.

 

Fonte da imagem: https://abstartups.com.br/.

 

1 Doutorando pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia UFPB-UFPE-UFRN. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

2 Embora Descartes nunca houvesse utilizado, em sua Meditações, a palavra sujeito.

3 Cultura é aqui compreendida como o conjunto de modos de vida, regras e comportamento adquiridos pelo homem a partir de sua convivência em sociedades. São os costumes, hábitos, linguagens e conhecimentos desenvolvidos por um determinado povo em um determinado lugar e em uma determinada época.

i [Osório diz: Discordo totalmente! Sem o homem não há conhecimento. O homem é o único animal que conhece. Portanto, ele jamais pode ser “um evento secundário” em termos de conhecimento. Mesmo o “aqui” não salva a afirmativa].

ii [Osório diz: Teríamos, então, o homem desvelando a si mesmo antes de tudo o mais – e em primeiro lugar {sic}, o que acaba por levar, ainda, à frase de Protágoras e sua consequência: o homem em primeiro lugar, mesmo que antes de pensar sobre os objetos pense antes sobre si, quando, novamente, teríamos o homem sendo objeto de seu próprio pensamento].

iii [Osório diz: Mas é justamente isto que Protágoras desdiz!].

iv [Osório diz: Descartes avançou apenas na explicação de Protágoras! Assim como os modernos, dentre os quais, a título de exemplo, Anthony Kenny, o fazem para salvar (ou tentar salvar) Platão, embora Descartes seja bem modesto no sentido de “salvação”].

v [Osório diz: Protágoras não é grego nesse sentido! Protágoras é divergente dos gregos Sócrates/Platão/Aristóteles. Ele não é um grego igual aos demais, ao contrário. Sua vinculação grega é com Heráclito].

vi [Osório diz: Górgias, em suas três teses até hoje “ilesas” {não contraditadas}, diz o contrário! Heidegger aí, fica na mesma “boa” intenção de querer consertar o mundo, tal qual Sócrates].

vii [Osório diz: Seria aí um “secundário principal”! Tudo a partir de Protágoras e Górgias. É que o autor não considera a “cultura”, mas a cultura é também uma construção do homem, o qual pode, individualmente, somar com seus pensamentos para “aumentar” a cultura ou para mudá-la, como fez Galileu!].

viii [Osório diz: Nietzsche foi um sujeito que mudou a cultura que o cercava, como Galileu também o fez!].

ix [Osório diz: Essa influência exercida pela cultura sobre o pensador pode levá-lo a dela discordar e, assim, mudá-la. A cultura não é estanque, é móvel, está em fluxo constante, justamente pela ação de daqueles que a constituem, a criam].

x [Osório diz: Tudo sem esquecer que quem desvela é, também, o “próprio” homem!].

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