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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

22.12 – Divergência fundamental entre as Teorias de Platão e Aristóteles.

 

Disserta Fausto dos Santos:

 

Platão, da exigência de que algo permaneça estável - não sujeito ao constante devir do mundo sensível - para a efetivação do conhecimento, postula a existência das Formas. Sua ontologia está determinada pela teoria das Ideias. E esta está condicionada por questões como a perenidade da alma, que em um estado pré-empírico frui da contemplação do mundo inteligível, onde se encontram as verdadeiras realidades, cabendo à dialética discorrer sobre aquilo já conhecido contemplativamente pela alma. Portanto, quando pela boca de Sócrates, Platão nos adverte que, para atingirmos o conhecimento devemos nos dirigir às coisas mesmas, no fundo está nos dizendo que teremos mais chances de atingir o conhecimento se apreendermos, ou melhor, se recordarmos a Ideia antes contemplada no mundo inteligível da qual participa o objeto a ser conhecido na empiria, e sendo a linguagem, mais precisamente a dialética, a ciência discursiva das Ideias, ou seja, o modo terrestre de apresentar aquilo que já foi previamente conhecido em um estado metafísico, não deixa ela de possuir as mesmas características do mundo sensível no qual se efetiva, sendo, portanto, um instrumento, apesar de útil, corruptível e imperfeito para se atingir o puro pensar das ideias, a dianóia. (...) (fls. 111/112). [Osório diz: Resumo da Teoria das Ideias, de Platão. Muito bom!].

 

Gadamer (…)

 

Aristóteles, como sabemos, não concede a existência das Idéias platônicas. Para nosso filósofo, de um modo geral, elas seriam apenas uma reduplicação do mundo sensível, pois "[...] os Platônicos, com suas Formas, estão simplesmente criando coisas sensíveis eternas" (Met., III, 2, 997 b 10). E, além do mais, "[...] todas as provas que damos da existência das Formas nenhuma é convincente" (Met., I, 9, 990 b 10). Para o estagirita, se as coisas possuem uma essência estável - como de fato devem possuir, pois para alcançarmos o conhecimento é necessário que exista "algo cuja natureza é imutável” (Met., 1010 a 35) -, esta não pode estar separada das próprias coisas. É portanto às próprias coisas que devemos nos dirigir se queremos conhecê-las, para delas mesmas extrairmos, ou melhor, abstrairmos a estrutura estável intelectiva pela qual as coisas são aquilo que são. O mundo sensível, antes de ser uma cópia um tanto quanto imperfeita de um suposto mundo intelectivo ideal do qual deveríamos nos recordar, é o veículo através do qual chegamos ao conhecimento"; sendo a linguagem o modo de exprimir simbolicamente tanto o mundo sensível como a sua estrutura formal. (fls. 112/113) [Osório diz: Resumo da Teoria aristotélica do conhecimento – Teoria da significação (ontologia). Muito bom!].

Se para Platão os princípios supremos estão para lá da linguagem (Cf. Carta VII, 341 c-e), sendo acessíveis apenas "[...] para aqueles poucos capazes de encontrar a verdade sozinhos" (Carta VII, 341), ou seja, prescindindo inclusive do auxílio da linguagem; para Aristóteles, "[...] o mais certo de todos os princípios" (Met., 1005 b 20) não oculta nenhum mistério, sendo a todos acessível, pois é uma determinação da própria linguagem, o princípio da não-contradição. Bastando dizer algo para que ele se instaure, e, sem o qual, não somos “[...] mais que um vegetal" (Met., 1006 a 15). (fls. 112/113) [Osório diz: Divergência fundamental entre as Teorias de Platão e Aristóteles. Aqui, mais uma vez, Platão mostra sua faceta elitista/aristocrática (aqueles poucos”)]. (Fonte: Filosofia Aristotélica da Linguagem, Fausto dos Santos, Ed. Universitária Argos. Chapecó-SC, 2002, p. 111 a 113).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

22.11 – Resumo da Teoria aristotélica do conhecimento (ontologia).

 

Disserta Fausto dos Santos:

 

Platão, da exigência de que algo permaneça estável - não sujeito ao constante devir do mundo sensível - para a efetivação do conhecimento, postula a existência das Formas. Sua ontologia está determinada pela teoria das Idéias. E esta está condicionada por questões como a perenidade da alma, que em um estado pré-empírico frui da contemplação do mundo inteligível, onde se encontram as verdadeiras realidades, cabendo à dialética discorrer sobre aquilo já conhecido contemplativamente pela alma. Portanto, quando pela boca de Sócrates, Platão nos adverte que, para atingirmos o conhecimento devemos nos dirigir às coisas mesmas, no fundo está nos dizendo que teremos mais chances de atingir o conhecimento se apreendermos, ou melhor, se recordarmos a Ideia antes contemplada no mundo inteligível da qual participa o objeto a ser conhecido na empiria, e sendo a linguagem, mais precisamente a dialética, a ciência discursiva das Ideias, ou seja, o modo terrestre de apresentar aquilo que já foi previamente conhecido em um estado metafísico, não deixa ela de possuir as mesmas características do mundo sensível no qual se efetiva, sendo, portanto, um instrumento, apesar de útil, corruptível e imperfeito para se atingir o puro pensar das ideias, a dianóia. (...) (fls. 111/112). [Osório diz: Resumo da Teoria das Ideias, de Platão. Muito bom!].

 

Gadamer (…)

 

Aristóteles, como sabemos, não concede a existência das Idéias platônicas. Para nosso filósofo, de um modo geral, elas seriam apenas uma reduplicação do mundo sensível, pois "[...] os Platônicos, com suas Formas, estão simplesmente criando coisas sensíveis eternas" (Met., III, 2, 997 b 10). E, além do mais, "[...] todas as provas que damos da existência das Formas nenhuma é convincente" (Met., I, 9, 990 b 10). Para o estagirita, se as coisas possuem uma essência estável - como de fato devem possuir, pois para alcançarmos o conhecimento é necessário que exista "algo cuja natureza é imutável” (Met., 1010 a 35) -, esta não pode estar separada das próprias coisas. É portanto às próprias coisas que devemos nos dirigir se queremos conhecê-las, para delas mesmas extrairmos, ou melhor, abstrairmos a estrutura estável intelectiva pela qual as coisas são aquilo que são. O mundo sensível, antes de ser uma cópia um tanto quanto imperfeita de um suposto mundo intelectivo ideal do qual deveríamos nos recordar, é o veículo através do qual chegamos ao conhecimento"; sendo a linguagem o modo de exprimir simbolicamente tanto o mundo sensível como a sua estrutura formal. (fls. 112/113) [Osório diz: Resumo da Teoria aristotélica do conhecimento – Teoria da significação (ontologia). Muito bom!].

Se para Platão os princípios supremos estão para lá da linguagem (Cf. Carta VII, 341 c-e), sendo acessíveis apenas "[...] para aqueles poucos capazes de encontrar a verdade sozinhos" (Carta VII, 341), ou seja, prescindindo inclusive do auxílio da linguagem; para Aristóteles, "[...] o mais certo de todos os princípios" (Met., 1005 b 20) não oculta nenhum mistério, sendo a todos acessível, pois é uma determinação da própria linguagem, o princípio da não-contradição. Bastando dizer algo para que ele se instaure, e, sem o qual, não somos “[...] mais que um vegetal" (Met., 1006 a 15). (fls. 112/113) [Osório diz: Divergência fundamental entre as Teorias de Platão e Aristóteles. Aqui, mais uma vez, Platão mostra sua faceta elitista/aristocrática (aqueles poucos”)]. (Fonte: Filosofia Aristotélica da Linguagem, Fausto dos Santos, Ed. Universitária Argos. Capecó-SC, 2002, p. 111-113).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

22.10 – Aristóteles contra Platão.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

A qualidade da parte não é, como num corpo ou para Platão, a de ser adaptada ao todo e de permanecer em seu lugar; ela é somente a de ter uma qualidade qualquer, da qual o todo vai se apropriar. Em Platão, o todo otimiza as partes, fazendo de suas insuficiências como indivíduos a condição de sua qualidade, de sua qualificação como órgãos. Em Aristóteles, o todo otimiza as partes, retendo apenas suas qualidades e compondo-as. Com a imagem do piquenique (é assim que L.S.J. traduz tá symphoretá) retomada em 1286a29, é a diversidade por si só que constitui a [p. 91] qualidade, pois o que seria se, ao invés do "com", tivéssemos um "mesmo", e se todos trouxessem tomates?

Democracia ou aristocracia? (1281a 39-41). O alia alinha o argumento dos aristocratas ao dos democratas: a multidão guarda o melhor daqueles que a compõem, assim como os virtuosos em política reúnem neles as qualidades esparsas nuns e noutros. O segundo problema é o da relação entre o objeto pintado e a pluralidade de seus modelos. Tricot traduz: “os elementos disseminados aqui e ali foram reunidos sob uma mesma cabeça, já que, considerados pelo menos separadamente, o olho de uma pessoa em carne e osso, ou qualquer outro órgão de uma outra pessoa, são mais belos do que o olho ou o órgão desenhado”. A parte que serve de modelo é nesse caso superior à parte resultante: quer dizer que se perde alguma coisa quando se reúne, logo, que as qualidades da multidão ou do homem virtuoso são inferiores às qualidades tomadas uma a uma nos indivíduos. Ora, é o contrário que se deve demonstrar: a reunião reúne a cada vez somente o que há de melhor na multidão, no homem virtuoso, num quadro. Para Platão, a parte não deve ser ótima, é preciso mesmo que não o seja por si, a fim de que o todo o seja. Para Aristóteles, o todo só retém o ótimo: como testemunham aliás suas notas ad doc, Tricot cai aqui no platonismo. O litígio é muito circunscrito: trata-se da função de toü gegramménou, 14. Se ele é complemento do comparativo, kállion, então o olho do modelo é na verdade "mais belo do que o olho pintado". Se é um genitivo de posse, então escolheu-se por sua beleza o olho de um tal, reproduzido na pintura. Reconheçamos que a construção proposta por Tricot é aquela que vem imediatamente ao espírito; [p. 91]

Enfim, a diversidade pode ser mesmo substituída pelo número. É então a quantidade que é por si só uma qualidade, como testemunha, para além da louca imagem do corpo tentacular12, a última comparação que serve para justificar o fato de que "a massa dos cidadãos", quer dizer, "todos os que não têm nem riqueza nem qualificação para a virtude, nem mesmo uma" (to plëthos ton politôn. . . hósoi mete ploúsioi mete axioma échousin aretês mede hén, 1281b 24s.), participam do deliberativo e do judiciário:

pois todos têm, quando estão reunidos (synelthóntes), uma sensibilidade suficiente e, misturados com os melhores, eles ajudam a cidade, exatamente como um alimento que não foi purificado acrescentado a uma pequena quantidade de alimento puro torna o todo mais nutritivo; enquanto que a cada um tomado separadamente falta maturidade no julgamento (1281a 34-38).

Essa dietética está muito longe do modelo orgânico.

Talvez certas misturas físicas procedam assim a decantações, depurações automáticas: o resíduo se elimina por si só, caindo no fundo. Mas sem dúvida é mais correto supor que esteja aí a singularidade desse objeto que é a cidade, pois, qualquer que seja sua constituição ou seu regime, ela se define por ser "uma pluralidade de cidadãos" —, até mesmo a própria especificidade do político: constituir por si, entre todas as misturas, um tal procedimento de decantação. [p. 92]

12. Imagem retomada em III, 16, 1287b 25-31, a propósito do interesse de que haja muitos magistrados:

Pois cada magistrado julga bem quando foi bem formado pela lei e é sem dúvida absurdo que alguém veja com dois olhos, julgue com duas orelhas, aja com duas mãos e dois pés, melhor do que muitos com muitos; de fato, os monarcas se tornam muitos olhos, orelhas, mãos e pés: eles aliam a seu poder aqueles que amam seu poder e sua pessoa.

Seria interessante se perguntar como essa imagem de um corpo com pletora de órgãos se torna a da tirania;

A homónoia é assim o estado de equilíbrio produzido pelo exercício da singularidade e do interesse egoísta levado até o extremo: novamente a mistura democrática tira partido dos próprios defeitos. Há aí uma astúcia objetiva, não da razão, mas da democracia. Com a condição — é preciso talvez enfatizá-lo mais uma vez — de que o movimento não cesse: a democracia é o contrário de uma "ideia", consiste apenas no seu devir. Aí se encontra, para aquém de Aristóteles, a prática sofística, e inclusive o gesto exemplar de Heráclito narrado por Plutarco16: a seus concidadãos que lhe perguntavam o que pensava da homónoia, Heráclito teria respondido preparando um kykeón (mistura sem dúvida de água, de farinha de cevada e de menta), agitando-o "sem dizer uma só palavra... diante dos efésios estupefatos", antes de bebê-lo e de se retirar. Pois é a mistura, e o movimento criador de mistura, que faz consenso em democracia. [p. 94] (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 91 a 94).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

22.9 – Aristóteles do e no Crátilo e o mundo do sentido.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Essa apresentação, Apel, Habermas, Rorty, torna manifesto que é suficiente fazer cada vez menos para não ser uma planta: entrar no jogo da linguagem transcendental, sobreviver, falar por falar. O mundo do sentido não cessa de tragar seu exterior. Mas o ponto litigioso na exclusão permanece: é a obrigação de confundir alteridade e nada.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 221).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

22.8 – Aristóteles arrasa o Crátilo, de Platão.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Já que não é possível trazer para a discussão as próprias coisas, mas como utilizamos os nomes, ao invés das coisas, como símbolos, acreditamos que o que se passa com as palavras se passa também com as coisas, exatamente como as pedrinhas quando fazemos cálculos. Ora, não acontece o mesmo, pois as palavras e a quantidade de expressões são limitadas, enquanto as coisas são em número ilimitado. É então necessário que a mesma expressão e uma única palavra signifiquem várias coisas. Assim, do mesmo modo que aqueles que não são hábeis em manipular as pedrinhas são enganados pelos que sabem, também em relação ao que se diz, aqueles que não têm a experiência do poder das palavras raciocinam erradamente, seja quando eles mesmos discutem, seja quando escutam os outros. (Refutações sofísticas, l, l,165a 6-17). [Osório diz: com isso Aristóteles arrasa Platão e o Crátilo!]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 274).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

22.7 – As partes e o todo – Aristóteles.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Uma pluralidade de pessoas, que são, cada uma, homens sem valor político, é entretanto capaz quando está reunida (synelthóntas) de ser melhor que uma elite (ekeínon retoma toüs arístous mén, olígous dê, 1281a 40s.), não quando a tomamos uma a uma, mas todas juntas (ouch'hòs hékaston, alVhõs sympantas), como as refeições onde cada um traz seu quinhão, são melhores do que aquelas onde um só oferece tudo. Na verdade, quando há pluralidade (pollon gàr óntõn), cada parte possui uma parte de virtude e de sabedoria prática, e quando a pluralidade se reúne (synelthóntòri), exatamente como a multidão (íò plethos) se torna um único homem cheio de pés, cheio de mãos e cheio de sensibilidades, acontece o mesmo com as disposições morais e intelectuais (tá íthë kai tên diánoian). É por isso que a pluralidade julga melhor as obras musicais e poéticas: cada um julga uma [p. 90] parte e todos julgam o todo (álloi gàrdê páníes)11 (1281a42b 10).

A qualidade da parte não é, como num corpo ou para Platão, a de ser adaptada ao todo e de permanecer em seu lugar; ela é somente a de ter uma qualidade qualquer, da qual o todo vai se apropriar. Em Platão, o todo otimiza as partes, fazendo de suas insuficiências como indivíduos a condição de sua qualidade, de sua qualificação como órgãos. Em Aristóteles, o todo otimiza as partes, retendo apenas suas qualidades e compondo-as. Com a imagem do piquenique (é assim que L.S.J. traduz tá symphoretá) retomada em 1286a29, é a diversidade por si só que constitui a [p. 91] qualidade, pois o que seria se, ao invés do "com", tivéssemos um "mesmo", e se todos trouxessem tomates?

Democracia ou aristocracia? (1281a 39-41). O alia alinha o argumento dos aristocratas ao dos democratas: a multidão guarda o melhor daqueles que a compõem, assim como os virtuosos em política reúnem neles as qualidades esparsas nuns e noutros. O segundo problema é o da relação entre o objeto pintado e a pluralidade de seus modelos. Tricot traduz: “os elementos disseminados aqui e ali foram reunidos sob uma mesma cabeça, já que, considerados pelo menos separadamente, o olho de uma pessoa em carne e osso, ou qualquer outro órgão de uma outra pessoa, são mais belos do que o olho ou o órgão desenhado”. A parte que serve de modelo é nesse caso superior à parte resultante: quer dizer que se perde alguma coisa quando se reúne, logo, que as qualidades da multidão ou do homem virtuoso são inferiores às qualidades tomadas uma a uma nos indivíduos. Ora, é o contrário que se deve demonstrar: a reunião reúne a cada vez somente o que há de melhor na multidão, no homem virtuoso, num quadro. Para Platão, a parte não deve ser ótima, é preciso mesmo que não o seja por si, a fim de que o todo o seja. Para Aristóteles, o todo só retém o ótimo: como testemunham aliás suas notas ad doc, Tricot cai aqui no platonismo. O litígio é muito circunscrito: trata-se da função de toü gegramménou, 14. Se ele é complemento do comparativo, kállion, então o olho do modelo é na verdade "mais belo do que o olho pintado". Se é um genitivo de posse, então escolheu-se por sua beleza o olho de um tal, reproduzido na pintura. Reconheçamos que a construção proposta por Tricot é aquela que vem imediatamente ao espírito; [p. 91]

Enfim, a diversidade pode ser mesmo substituída pelo número. É então a quantidade que é por si só uma qualidade, como testemunha, para além da louca imagem do corpo tentacular12, a última comparação que serve para justificar o fato de que "a massa dos cidadãos", quer dizer, "todos os que não têm nem riqueza nem qualificação para a virtude, nem mesmo uma" (to plëthos ton politôn. . . hósoi mete ploúsioi mete axioma échousin aretês mede hén, 1281b 24s.), participam do deliberativo e do judiciário:

 

pois todos têm, quando estão reunidos (synelthóntes), uma sensibilidade suficiente e, misturados com os melhores, eles ajudam a cidade, exatamente como um alimento que não foi purificado acrescentado a uma pequena quantidade de alimento puro torna o todo mais nutritivo; enquanto que a cada um tomado separadamente falta maturidade no julgamento (1281a 34-38).

 

Essa dietética está muito longe do modelo orgânico.

Talvez certas misturas físicas procedam assim a decantações, depurações automáticas: o resíduo se elimina por si só, caindo no fundo. Mas sem dúvida é mais correto supor que esteja aí a singularidade desse objeto que é a cidade, pois, qualquer que seja sua constituição ou seu regime, ela se define por ser "uma pluralidade de cidadãos" —, até mesmo a própria especificidade do político: constituir por si, entre todas as misturas, um tal procedimento de decantação 13. [p. 92]

12. Imagem retomada em III, 16, 1287b 25-31, a propósito do interesse de que haja muitos magistrados:

Pois cada magistrado julga bem quando foi bem formado pela lei e é sem dúvida absurdo que alguém veja com dois olhos, julgue com duas orelhas, aja com duas mãos e dois pés, melhor do que muitos com muitos; de fato, os monarcas se tornam muitos olhos, orelhas, mãos e pés: eles aliam a seu poder aqueles que amam seu poder e sua pessoa.

Seria interessante se perguntar como essa imagem de um corpo com pletora de órgãos se torna a da tirania;

A homónoia é assim o estado de equilíbrio produzido pelo exercício da singularidade e do interesse egoísta levado até o extremo: novamente a mistura democrática tira partido dos próprios defeitos. Há aí uma astúcia objetiva, não da razão, mas da democracia. Com a condição — é preciso talvez enfatizá-lo mais uma vez — de que o movimento não cesse: a democracia é o contrário de uma "ideia", consiste apenas no seu devir. Aí se encontra, para aquém de Aristóteles, a prática sofística, e inclusive o gesto exemplar de Heráclito narrado por Plutarco16: a seus concidadãos que lhe perguntavam o que pensava da homónoia, Heráclito teria respondido preparando um kykeón (mistura sem dúvida de água, de farinha de cevada e de menta), agitando-o "sem dizer uma só palavra... diante dos efésios estupefatos", antes de bebê-lo e de se retirar. Pois é a mistura, e o movimento criador de mistura, que faz consenso em democracia. [p. 94]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 90 a 94).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

22.6 – Aristóteles e a escravidão.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

O escravo seria assim não mais um corpo, mesmo animado, mas algo como o corpo da alma. É preciso ainda acrescentar que a modulação lógica do sem lógos continua ao infinito, pois Aristóteles logo precisa que "as partes da alma existem em todos esses seres (i.e, o escravo, a mulher e a criança), mas que elas existem neles diferentemente: o escravo não tem absolutamente a faculdade de deliberar, a mulher a tem mas sem poder de decidir, a criança a tem mas não totalmente" (10-14). Sem dúvida, a melhor maneira de caracterizar a relação do escravo com o lógos, que o possui então sem possuí-lo, seria dizer que é sensível a ele: é por isso que não se deve "privar os escravos de lógos dando-lhes apenas ordens", é preciso, ao contrário, lhes "colocar coisas no espírito" (nouthetêtéon), "juízo na cabeça", diríamos, ainda mais do que às crianças (1260b5-7).” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 112).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

22.5 - A linguística aristotélica, onde é derrotada por Górgias.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Aristóteles precisa (…) o sentido dessa expressão: "Digo que as palavras colocam diante dos olhos as coisas a cada vez que elas as significam em ato" (hósa energoúnta semaínei, 1411b24s.). Os exemplos mais extremos são tirados de Homero, que diz em ato não somente os seres animados, mas chega a animar o próprio inanimado: “'as vagas abauladas, galhadas de espuma, umas à frente, outras atrás'” — essas palavras transformam tudo em movimento e em vida, e o movimento é o ato" (141a9s.). Já que a enérgeia, o "ato", é, como nos ensinam a Metafísica e a Física, o que há de mais ente para Aristóteles, ao mesmo tempo ser do ente e ente por excelência, deus mesmo, é preciso convir que a metáfora, em sua melhor forma, faz ver as coisas em seu máximo de ser, faz com que se assemelhem ao que são.” [p. 242]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 242).

 

Linguística aristotélica, onde é derrotada por Górgias.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

É precisamente esse caráter de algo que não podemos contra-atacar dos sofismas, desde que nos prendamos à língua, que força Aristóteles, em Gama, a um diagnóstico severo e à uma estratégia terrorista: os sofistas "falam por (prazer de) falar" e, na medida em que negligenciam ou recusam-se a se curvar às imposições da significação, quer dizer, da univocidade, é como se não falassem absolutamente. Como se sabe, os sofistas são "semelhantes às plantas". De fato, exigem, para serem convencidos do princípio da não-contradição, uma refutação que os coaja, mas que o próprio Aristóteles julga "impossível" fornecer; ser-lhes-ia necessário "uma refutação do que é dito nos sons da voz e nas palavras": uma refutação, para encurtar, que não considerasse nem o exterior a dizer, o referente, nem o interior a exprimir, a intenção, mas somente o próprio dizer, o significante. O sofista "gorgianiza", quer dizer, prende-se às identidades sonoras, à homofonia que gera as figuras, como se a materialidade significante fosse a dádiva mesma da linguagem, que se trata não de sujeitar e de ultrapassar, mas no máximo de entender e explorar.

[Osório diz: a linguagem para os sofistas deve: (a) considerar o exterior a dizer {o referente}; (b) o interior a exprimir {a intenção} e (c) considerar o próprio dizer {o significante}]. Mas, não esqueçamos Górgias: palavras não são coisas! “Tudo que se vê é o que o discurso diz”, mas palavras não são coisas!. Aqui é onde Górgias arrasa Aristóteles e toda sua empreitada, mesmo que se aceite o jogo do significado]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 277).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

22.4 - O princípio de não-contradição e sua confusão.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Face à ontologia, a tese sofística e a tese lacaniana são apenas uma: o ser é um "efeito de dizer", "um fato de dito" (Encore, 107). É exatamente sobre esse ponto, nesse posicionamento, que Lacan me parece dever ser chamado sofista. Bem entendido, os sofistas, à diferença de Lacan, foram bem mais exclusivamente práticos, pedagogos e oradores, não deixando reflexões sobre a sua prática. Por outro lado, já se percebeu isso, é [p. 304] sempre também com pesar que Lacan constata que não é parmenideano, platônico, aristotélico, heideggeriano, filósofo. Enfim, é evidente, Lacan dispõe de outros conceitos, em particular os da subjetividade e os da linguística. Mas se os dois mundos são, apesar de tudo, comparáveis, é exatamente e para resumir, porque os sofistas e Lacan têm o mesmo outro, o regime filosófico “normal” do discurso. Indiquemos simplesmente que a definição mais adequada desse regime normal deve ser construída a partir o libro Gama da Metafísica de Aristóteles, onde a demonstração do princípio de não-contradição só se sustenta pela confusão expressar entre "dizer" e "significar alguma coisa que tenha o mesmo sentido para si mesmo e para outrem". Essa identificação é explicitamente elaborada por Aristóteles como um contragolpe à sofística. É então menos plausível que um regime antearistotélico e um regime pós-aristotélico como a psicanálise possam se comunicar em seu não, e mesmo seu anti, aristotelismo.

Para explicitar essa posição que se pode nomear, com um termo de Novalis, "logológica", tentarei colocar lado a lado citação lacaniana supostamente mais familiar ao leitor analista e citação sofística.

O ser é um fato de dito: isso significa simplesmente que não há nenhuma realidade pré-discursiva. Cada realidade se funda e se define por um discurso" (Encore, 33). É preciso inverter o sentido do sentido, que não vai do ser ao dizer, mas do dizer ao ser, ou, nos termos do Tratado do não-ser de Górgias: "Não é o discurso que indica o exterior, mas o exterior que vem revelar o discurso" (Sextus Empiricus, Adv. Math., VII, 85). Assim, "a realidade", "o exterior", em uma palavra o ser, longe de ser anterior, se conforma, sempre posteriormente, ao discurso que efetuou sua predição, e tem sua existência, assim como Helena, essa concreção fetichizada de sopro, apenas por ter sido discursado. [Osório diz: texto maravilhoso. O ser como efeito do dizer!]

Que o ser seja um fato de dito convida a tomar precauções no que concerne à significação. A precaução elementar que levaria a refletir sobre a especificidade do escritor é, sem dúvida, a de "distinguir a dimensão do significante". "Distinguir a dimensão do significante só tem importância por formular que, aquilo que vocês ouvem, no sentido auditivo do termo, não tem [p. 306] nenhuma relação com o que isso significa" (Encore, 31). E assim como a logologia não procede do ser ao dizer mas do dizer ao ser, não se irá do significado ao significante, mas inversamente: “o significado não é o que se ouve. O que se ouve é o significante. O significado é o efeito do significante” (p. 34).

Os sofistas não utilizaram, como os estóicos, esse tipo de terminologia. Por outro lado, é manifesto que sua crítica da ontologia se apoia na autonomia de um discurso definido como som, em termos de ouvir e de escutar — a voz de Helena:

Da mesma forma que a vista não conhece os sons da voz, o ouvido não ouve cores mas sons, e aquele que diz diz mas não uma cor nem uma coisa... Pois, para começar, ele não diz uma cor, mas um dizer. De modo que não existe nem conceber nem ver cor, não há mais do que ruído, há apenas ouvir (Tratado do não-ser, 10).

A psicanálise, como a sofística, faz soar o significante, é por isso que Lacan lacaniza e Górgias, seus contemporâneos diziam com não menos odioamoração, "gorgianiza". Com efeito, o grande recurso do significante é o de baralhar a certeza do sentido — desde Aristóteles, sentido único, "o um sentido" — jogando com o equívoco: "A interpretação... não é interpretação de sentido, mas jogo com o equívoco. É por isso que coloquei ênfase sobre o significante na língua (Roma, 552). Poder-se-ia reler, para censurar L'Etourdit, as Refutações sofísticas de Aristóteles onde, após ter deplorado o pecado original da língua há menos palavras do que coisas e falamos, em suma, como com as pedrinhas utilizadas para fazer cálculos —, ele acua o equívoco característico dos sofismas. Os sofismas que dizem respeito a confusões no pensamento são fáceis de refutar, utilizando as características ontológicas, lógicas e físicas para definir; mas contra os que dizem respeito apenas à elocução (léxis), por exemplo, ao acento, ao encadeamento e à divisão das sílabas e das palavras, à cadência da voz, logo, aos puros jogos de significante, Aristóteles pode fazer apenas um simples retorno ao emissor e um banimento para, exatamente, a insignificância. Insignificância que entretanto o chiste sabe bem tornar falante.

Que o ser seja um fato de dito convida a tomar precauções no que concerne à significação. A precaução elementar que levaria a refletir sobre a especificidade do escritor é, sem dúvida, a de "distinguir a dimensão do significante". "Distinguir a dimensão do significante só tem importância por formular que, aquilo que vocês ouvem, no sentido auditivo do termo, não tem [p. 306] nenhuma relação com o que isso significa" (Encore, 31). E assim como a logologia não procede do ser ao dizer mas do dizer ao ser, não se irá do significado ao significante, mas inversamente: “o significado não é o que se ouve. O que se ouve é o significante. O significado é o efeito do significante” (p. 34).

Os sofistas não utilizaram, como os estóicos, esse tipo de terminologia. Por outro lado, é manifesto que sua crítica da ontologia se apoia na autonomia de um discurso definido como som, em termos de ouvir e de escutar — a voz de Helena:

Da mesma forma que a vista não conhece os sons da voz, o ouvido não ouve cores mas sons, e aquele que diz diz mas não uma cor nem uma coisa... Pois, para começar, ele não diz uma cor, mas um dizer. De modo que não existe nem conceber nem ver cor, não há mais do que ruído, há apenas ouvir (Tratado do não-ser, 10).

A psicanálise, como a sofística, faz soar o significante, é por isso que Lacan lacaniza e Górgias, seus contemporâneos diziam com não menos odioamoração, "gorgianiza". Com efeito, o grande recurso do significante é o de baralhar a certeza do sentido — desde Aristóteles, sentido único, "o um sentido" — jogando com o equívoco: "A interpretação... não é interpretação de sentido, mas jogo com o equívoco. É por isso que coloquei ênfase sobre o significante na língua (Roma, 552). Poder-se-ia reler, para censurar L'Etourdit, as Refutações sofísticas de Aristóteles onde, após ter deplorado o pecado original da língua há menos palavras do que coisas e falamos, em suma, como com as pedrinhas utilizadas para fazer cálculos —, ele acua o equívoco característico dos sofismas. Os sofismas que dizem respeito a confusões no pensamento são fáceis de refutar, utilizando as características ontológicas, lógicas e físicas para definir; mas contra os que dizem respeito apenas à elocução (léxis), por exemplo, ao acento, ao encadeamento e à divisão das sílabas e das palavras, à cadência da voz, logo, aos puros jogos de significante, Aristóteles pode fazer apenas um simples retorno ao emissor e um banimento para, exatamente, a insignificância. Insignificância que entretanto o chiste sabe bem tornar falante.

 

Para o prazer/em pura perda

 

É preciso refletir ainda sobre a ficção de palavra, creio, para levantar um último problema: o da ética. Lacan o assinala em Encore: "A ficção a partir da palavra... foi daí que parti quando falei da ética" (p. 107). Em sua intervenção de Roma, ele esboça uma bipartição entre a posição que se deve, em virtude de seu próprio nome, qualificar de filosoficamente moral: a do Da-Sein, que ele mesmo ocupava então; e a do analisando, que se define por ter a dizer seja o que for: "Ele se regozija com alguma coisa... porque tudo indica, tudo deve mesmo lhes indicar que vocês não lhe pedem de forma alguma apenas para "daisenar", para estar aí como eu estou agora, mas antes e bem ao contrário, para experimentar essa liberdade de ficção de dizer seja o que for" (p. 558). De um lado então o "o ser aí", "o aí do ser", seu "pastor", o homem de Parmênides a Heidegger via Aristóteles; do outro, o discurso puro, embriagado, "hibrístico", sobre o qual Aristóteles não sabe se ele caracteriza uma planta (aliás: que faz exatamente o lírio do campo? se pergunta Lacan, 556), ou bem um deus, mas que em todo caso bane o sofista, e seria necessário acrescentar, o analisando, fora da comunidade filosófico-humana [Osório diz: mas ele pertence a essa comunidade! Falta recurso para caracterizá-lo? Classificá-lo?]. Por não poder descrever aqui a Metafísica de Aristóteles, contentar-me-ei em citar a condenação de Heidegger quando comenta "o princípio de contradição [Osório diz: “o ser é, o não-ser não é” - Parmênides. “O ser não pode ser e não ser - Aristóteles] enquanto [p. 308] princípio do ser": "Ao sabor de afirmações contraditórias que o homem é capaz de de produzir à vontade sobre uma só e mesma coisa, ele mesmo sai de sua própria essência para entrar na não-essência: rompe toda relação com o ente enquanto tal"' (Nietzsche, l, 468, trad. Klossowski). Aí se vê o motivo das reticências de Lucan que, por ser analisando, não é por isso menos homem. Mas não se poderia duvidar que ele tome mais frequentemente o partido de "alíngua onde o gozo se deposita" 556) e não participe por esse fato da presunção dos primeiros sofistas: "Gabo-me por ser capaz de fazer, em uma frase, qualquer palavra dizer qualquer sentido" (p. 55). Mais uma vez com o remorso que faz com que, gozando, não se tenha o coração alegre:

Tenho a impressão de que a linguagem é verdadeiramente o que só pode avançar torcendo-se e enrolando-se, deformando-se de um modo do qual não posso dizer que eu não dê aqui o exemplo. Não se deve acreditar que, para aceitar seu desafio, para marcar em tudo que nos concerne a que ponto dependemos dela, não se deve acreditar que eu faça isso com muita alegria no coração. Preferia que isso fosse menos tortuoso (p. 560).

O que o leva a concluir: "Perdão por ter falado tanto tempo" (p. 567).

Aristóteles fazia a distinção entre os antigos físicos, cheios de boa vontade mas perdidos na aporia do sensível e que se enredam na contradição para dizer mais adequadamente o devir, e os sofistas irredutíveis: estes não podem ser persuadidos, mas com eles é preciso usar de "violência", pois é preciso "refutar o que há nos sons da voz e nas palavras". Essa violência é, aliás, perfeitamente inoperante, eles continuam, imperturbáveis a enunciar os contraditórios, "estimando que têm o direito de dizer contrários desde que o digam" (Metafísica, Gama, 6, 1011a 15-16). É que eles falam lógou chárin, como se poderia traduzir, "graças ao discurso", "em vista do discurso", "pelo prazer de falar". Lacan define a psicanálise como Aristóteles a sofística, com uma inversão reveladora dos séculos aristotélicos, da reticência cristã em relação ao dionisíaco, mas também ao prazer da perda e ao próprio odioamoração: "A psicanálise, a saber a objetivação daquilo que o ser falante passa ainda o tempo a falar em pura perda" (Encore, 79)”. [p. 309]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 304 a 308).

 

9

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

22.3 - Princípio de não-contradição de Aristóteles.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

1.2. O dedo de Crátilo (1**)

 

Crátilo, declara Aristóteles, "acreditava que não se deve dizer nada, e apenas agitava o dedo”. Gostaria de interpretar tanto o seu silêncio quanto o seu gesto.

O contexto nos ensina muito. Trata-se do capítulo 5 do livro Gama da Metafísica, onde Aristóteles tenta estabelecer o primeiro princípio da ciência do ser enquanto ser, célebre pelo nome de princípio de não-contradição. Ora, esse princípio primeiro, tão [p. 27] conhecido que "aquele que busca compreender um ente, qualquer que seja, o possui necessariamente", esse princípio então, não apenas alguns mal-educados pedem que seja demonstrado, como também, mais paradoxalmente, todos os grandes ancestrais filosóficos e literários, à exceção de Platão, recusaram-no pura e simplesmente.

O capítulo 5 propõe uma taxinomia desses adversários do princípio. A cisão maior passa-se entre "os que falam sob o efeito de uma aporia" e que podemos convencer "por persuasão", e "os que falam pelo prazer de falar", que podemos somente "coagir" refutando "o que é dito nos sons da voz e nas palavras" (1009a 16-22). Estes últimos são marginalizados, relegados aos confins da humanidade: sofistas puramente sofistas tão improváveis quanto plantas que falam. Mas os primeiros, que Aristóteles quer vencer em combate leal, quer dizer, racional, se distinguem por sua vez dependendo de duas eponímias [Osório diz: Nome das coisas tirado doutras coisas ou pessoas] diferentes: Heráclito o físico e Protágoras o sofista. A aporia chega aos físicos como Anaxágoras e Demócrito quando crêem observar que "os contrários pertencem ao mesmo tempo aos mesmos objetos". Ela chega aos sofistas, como Empédocles, Demócrito, o próprio Parmênides, Anaxágoras, Homero, desde que suponham que "todos os fenômenos são verdadeiros". A superposição dos exemplos faz por si só compreender que essas duas posições dão na mesma. Elas têm a mesma causa: é preciso e é suficiente, da parte do sujeito, fazer equivaler pensamento e sensação, quer dizer alteração (1009b 12s.: dia to hypolambánein phrónësin mèn tén aísthësin, taúten d'einal alloío-sirí) e, da parte do objeto, entes e sensíveis (1010a 2s.: tá d'ónta hypélabon eïnai tá aisthëtá mónorí). Têm também o mesmo efeito desesperante:

 

Em que um dos mais penosos é a consequência, pois se os que mais fixaram os olhos no verdadeiro e em sua possibilidade; e aqueles dos quais acabamos de falar são bem os que o buscam e o amam mais; se esses têm semelhantes opiniões e fazem essas declarações sobre a verdade, como exigir que os que empreendem filosofar não percam a coragem? Pois procurar a verdade seria perseguir pássaros em pleno voo (1009b 33-1010 a l)21. [p. 28] [Osório diz: Aristóteles está apenas desesperado na tentativa de salvar a filosofia/ciência! Nem que para isso ele não tenha argumentos racionais e concatenados, mas reste apenas uma quase “agressividade”, que o faz lutar pelo fim (salvar) e não pelo meio (como salvar)].

 

Crátilo se cala algumas linhas depois:

 

Vendo essa natureza totalmente em movimento, e nada que muda no domínio, em todo caso, do que muda em todos os pontos e de todas as maneiras, não se pode, pensa eles, dizer verdade. Foi bem sobre esse modo de tomar as coisas que floresceu a opinião mais extrema sustentara por todos aqueles dos quais falamos, a dos que declaram heraclitizar, e tal como devia ser a de Crátilo, que acreditava que não se deve, afinal, nada dizer, mus apenas agitava o dedo; ele reprovava Heráclito por dizer que não podemos entrar duas vezes no mesmo rio: nem mesmo uma, acreditava.

 

O que significa, antes de mais nada, o heraclitismo de Crátilo?

 

É preciso notar previamente a prudência de Aristóteles acerca do Heráclito histórico, como se o Obscuro estivesse sempre a distância de discípulo, a distância de interpretação. Assim, desde o capítulo 3, logo após o enunciado do princípio e para confirmar que é "o mais firme de todos", Aristóteles acrescenta que "é impossível que quem quer que seja sustente que o mesmo é e não é como alguns pensam que Heráclito diz; pois não é necessário que, o que alguém diz, ele o sustente também" (1005b 23-26). Duplo distanciamento nesse caso: entre o que Heráclito disse verdadeiramente e o que alguns pensam que disse, de um lado, e depois entre o que Heráclito poderia ter dito, e o que verdadeiramente assumiu pensar.

Aqui mesmo trata-se, com um hápax [Osório diz: “uma só vez”], daqueles que declaram "heraclitizar". Assim, o julgamento aristotélico se põe em questão. Heráclito tem na verdade Crátilo como objeto: Crátilo, representando a opinião mais extrema, seria mais heracliteano que Heráclito. Ele retomaria a citação heracliteana mas para lhe censurar sua pusilaminidade e para ir ainda mais longe. Como entender essa citação: "não podemos entrar duas vezes no mesmo rio" (potamôi ouk éstin embênai dïs tôi autôï)! Trata-se de um fragmento transmitido por Plutarco por outra via (Sobre o E de Delfos, 392b = 91b DK), mas que o próprio Sócrates utiliza no Crátilo (402a). Invocando a propósito dos nomes de Cronos e Réia "os antigos e sábios ditos" de Heráclito e de Homero, ele continua: "Heráclito diz em algum lugar que tudo passa e nada permanece e, comparando os entes ao correr de um rio, diz que não poderíamos entrar duas vezes no mesmo rio". Sócrates aceitou cratilizar para Hermógenes: trata-se para ele de encontrar[p. 29] como diz perfeitamente Gérard Genette retomando Proust — "os nomes escondidos nas palavras", ou ainda descobrir as eponímias sob as etimologias2 e de mostrar assim que as palavras "manifestam efetivamente a essência do objeto" (393d); assim Réia "flui" (rheí) e a citação heracliteana está aí para confirmar a correção natural da linguagem.

Ora, parece que a função dessa citação na boca do Crátilo de Aristóteles é absolutamente contrária. Ela serve, não para fundar a correção natural da linguagem, mas para demonstrar sua inadequação radical: se o mundo é heracliteano, então nada se pode dizer de verdadeiro e, conseqüentemente, o filósofo deve se calar. Dizer que não poderíamos entrar duas vezes no mesmo rio é dizer simplesmente, validando a equivalência entre os entes e o fluxo, que não poderíamos perceber duas vezes os mesmos entes. Resta entretanto o rio propriamente dito: se não é "o mesmo rio", porque fluem sem cessar as águas do devir, não deixa de ser sempre um "rio". Para Sócrates, a esse ponto de seu cratilismo, todos os nomes dizem com efeito o fluxo, Réia como epistémé, a ciência, seguidor fiel de pistas; e é assim, pela forma como o lógos faz sempre aparecer o mesmo no outro, que poderíamos interpretar a tensão heracliteana entre os contrários. Dizer agora, como o Crátilo aristotélico, que não poderíamos entrar aí "nem mesmo uma vez", é dar a entender que é impossível demarcar o rio, ou que o fluxo não tem margens: não apenas os entes, quer dizer, os sensíveis fluem, mas também o pensamento, quer dizer, a sensação, se altera. Não há identidade no fluxo, no voo do que é: não somente não há lugar para uma predicação, um julgamento de conhecimento, mas não há nem mesmo lugar para essa atribuição mínima de identidade que é o nome, designando um objeto e pronunciado por um sujeito. É então preciso interpretar com determinação o extremismo de Crátilo: seu "não se deve, afinal, dizer nada" tem o rigor de um imperativo filosófico. Isso ocorre porque Crátilo se situa na exigência aristotélica de adequação entre dizer e ser, porque ele é um verdadeiro filósofo que só pode se calar, e seu silêncio faz dele o mais consequente dos pré-socráticos.

Resta ainda interpretar seu gesto do dedo. Em uma das duas outras ocorrências3 em que evoca Crátilo, Aristóteles apre- [p. 30] sentar-nos, para ilustrar que os "detalhes são persuasivos porque os fatos que conhecemos tornam-se símbolos daqueles que ignoramos”, os fatos", um Crátilo furioso: "Esquines diz de Crátilo que ele partiu sibilando (diasízõri) furiosamente e agitando os punhos" (!<"" iheroín diaseíõn) (Retórica, III, 16, 1417b 1-3). O silêncio de Crátilo, ruidoso e agitado, deixa assim ouvir um evitar da fala. Silêncio e gesto são ainda mais minimais, ou radicais, na Metafísica: Crátilo "apenas agita o dedo" (tòn dáktylon ekínei iiionon). Onde, em uma palavra-valise que uma "viagem à Cratília" nos autorizaria a forjar, ressoa sob Kratylos, Crátilo, Kratylos, dáctilo "o dedo", e mesmo alguma coisa como krateï dákíylos, o dedo que comanda, ou a potência do dedo. Podemos imaginar — com a condição de afastarmos as interpretações cínicas que, por serem obscenas, não seriam talvez sem pertinência — dois gestos. De início, para nós, o do "shhh!". Indicador diante da boca para impor e se impor silêncio; Crátilo consequente se cala e ordena que se faça o mesmo. Mas, de forma mais verossímil, o gesto da deíxis: o indicador, ao menos ele bem nomeado, apontado para o que passa, não designa sequer o pássaro, nem mesmo seu voo, mas sua transformação, seu desaparecimento.

Hegel, no capítulo da Fenomenologia do Espírito, intitulado "A certeza sensível, ou o isto e minha visada do isto", descreveu magistralmente a auto-refutação, a autocontradição constitutivas da deíxis, e a maneira pela qual a certeza sensível que aparece como o conhecimento mais rico "se revela expressamente como a mais abstrata e a mais pobre verdade": "O aqui é por exemplo a árvore. Eu me volto, essa verdade desapareceu e se transformou em verdade oposta: o aqui não é uma árvore, mas antes uma casa"4. O fluxo que derruba a deíxis está ligado à inadequação radical da linguagem ao sensível:

 

Eles visam esse pedaço de papel... mas o que visam, eles não dizem. Se, de um modo efetivamente real, quisessem dizer esse pedaço de papel que visam e se quisessem propriamente dizê-lo, então isso seria uma coisa impossível, porque o isto sensível que é visado é inacessível à linguagem que pertence à consciência, ao universal em si (ibidem, p. 91).

 

Hegel conclui: "é a linguagem que é o mais verdadeiro". E é por isso que um Crátilo consequente, que "quer propriamente [p. 31] dizer" o mundo de Heráclito, deve dar-se por vencido e baixar os braços.

Do silêncio de Crátilo e do seu sentido filosófico encontram-se as marcas, como uma prova antecipada, no diálogo platónico que leva seu nome. Crátilo fala pouco aí: um quinto do diálogo (entre 428b e 440c). No resto do tempo, fazem-no falar. É em primeiro lugar Hermógenes, que prefacia ao enunciar para Sócrates a tese de Crátilo, e lamenta que Crátilo não explique nada:

 

quando eu questiono e desejo saber o que ele quer dizer, ele não explica nada e me trata com ironia, fingindo meditar alguma coisa em seu foro interior, como se tivesse sobre isso um saber que, se ele quisesse enunciá-lo claramente, faria com que eu lhe desse meu acordo e dissesse o mesmo que ele diz (383b-384a).

 

Crátilo, segundo todas as aparências, pensa, sabe, mas quase não fala; e, quando fala, não é como um filósofo mas como um oráculo que se deve interpretar (ten Kratylou manteían: 385a 5), não menos do que Sócrates aliás, quando se põe a cratilizar (cf. 411 b, 428c). Pois é em seguida não mais Crátilo mas Sócrates quem cratiliza para Hermógenes e se deixa levar pelo entusiasmo dos nomes. Depois, quando Sócrates entra efetivamente em diálogo com Crátilo em pessoa, arrebata-o no fluxo heracliteano a ponto de transformá-lo em Hermógenes ("Não é verdade que concordas contigo mesmo e que a correção do nome se torna para ti uma convenção?", 435b). Assim deportado pela maré das palavras socráticas, Crátilo, uma vez mais se cala: "Tomarei, diz Sócrates, teu silêncio por aquiescência".

Mas é sobretudo o final aporético do diálogo, seu adiamento campestre, que exige análise. Sócrates acaba de estabelecer sua própria tese aparentemente modesta, que é preciso partir não dos nomes, mas das próprias coisas — e Crátilo concorda com isso (439b). Propõe então a Crátilo reexaminar o "turbilhão" heracliteano à luz do "devaneio" (439a) socrático do belo em si, da ideia. Se tudo passa, não se pode atribuir corretamente a nada (proseipein auto orthBs, 439d) nem nomeação ("é isto": hóti ekeïno estiri) nem predicação ("é assim": hóti toioütori). Não se trata mais apenas de uma projeção da vertigem do sujeito sobre o objeto, turbilhão, catarro (440d, cf. 411b-c), mas de uma tripla impossibilidade radical: se tudo se transforma, quer dizer, muda [p. 32] de forma, de eidos, então não poderia haver nem conhecimento (ouk àn eíë gnÕsis), nem conhecedor (oúte to gnõsómenon), nem conhecido (oúte to gnõsthêsómenori àn eíe, 440b). Eis o heraclitismo levado ao extremo que professam na Metafísica os extremistas como Crátilo. Ora, Crátilo, que Sócrates nesse momento trata à moda normanda* [Osório diz: “significa responder nem sim nem não”] e afaga como a um cavalo ("pode ser que sim, pode ser que não", "examina com coragem", "não te rendas facilmente", "tu és jovem", "na flor da idade", "conduz a investigação e se encontrares", etc.) persevera: "Prefiro bem mais o que Heráclito diz". Cai então a conclusão socrática: "Vai aos campos! De resto, Hermógenes acompanhar-te-á" (440e). Pois se não se trata apenas de emitir ou de escutar sons, mas de dizer alguma coisa e de conhecer, se a linguagem deve dizer o que é, seja por natureza ou por convenção, para Sócrates como para o Crátilo consequente de Aristóteles, a posição heracliteana é insustentável, quer dizer, muda: férias filosóficas, longe da agora, no vazio do campo. [Osório diz: diálogos de Platão que têm os sofistas como “personagens” principais: Górgias, Protágoras, Sofista, Hípias, Hípias Menor, Crátilo...]

Mas por que Crátilo não se cala por si mesmo, em Platão como em Aristóteles? Dito de outro modo, qual é a cada vez sua relação com a sofística?

Aristóteles coloca Crátilo ao lado de Heráclito e de Protágoras, entre aqueles que ele necessariamente conseguiu persuadir da verdade do princípio. A demonstração por refutação é, com efeito, tão econômica que é preciso e é suficiente que o adversário do princípio satisfaça à definição do homem, "animal dotado de lógos", para ser refutado: é suficiente que ele fale, quer dizer, segundo a série das equivalências aristotélicas, que "diga alguma coisa" (légoi ti, 4, 1006a 22), quer dizer ainda que ele "signifique alguma coisa para si mesmo e para outrem" (sema-neínein gê ti kal autõi kal állõi, 4, 1006a 21). Convencer-se-á assim todo partidário do mobilismo ou do relativismo de que alguma coisa ao menos escapa à mudança: a palavra que ele pronuncia, que não pode ter e não ter ao mesmo tempo o mesmo sentido.

Temos aqui, a meu ver, um ponto de clivagem maior entre Platão e Aristóteles. Na verdade Sócrates propõe abandonar aí as palavras para falar das coisas, e sonha com o bom em si "sempre semelhante a si mesmo": o modelo da identidade platônica é a ideia. Aristóteles, reconhecendo naturalmente que "o [p. 33] mesmo vinho é ora doce, ora não doce", seja porque o vinho ou porque o bebedor tenha mudado, estipula que "não é certamente o doce, tal como é a cada vez que é, que tenha jamais mudado" e que "o que for doce terá necessariamente tal natureza" (5, lOlOb 23-26): o modelo da identidade aristotélica é o sentido da palavra. De Platão a Aristóteles: do Doce em si ao "doce" entre aspas.

Daí a importância da posição de Crátilo, visto que, se Crátilo se cala, o dispositivo aristotélico desaba. Há assim duas maneiras de escapar à persuasão de Aristóteles. A primeira é esse silêncio obstinado de Crátilo que não dá margem à refutação. Mas o preço a pagar é exorbitante: "um tal homem enquanto tal é de saída semelhante a uma planta" (1006a 15). Crátilo não é mais especificamente um homem, mesmo se permanece genericamente um vivo; descortês e associal, é inumano por vontade filosófica. [Osório diz: por aí se ver que as palavras transformam uma coisa em outra!]

A segunda escapatória é o ruído não menos irredutível dos que falam sem intenção de significar. Na verdade, mesmo que façamos com que a refutação tenha como objeto os sons que eles pronunciam, ela — já que é um silogismo que deve concluir pelo contraditório — não poderia valer contra os que "estimam ter o direito de dizer coisas contrárias desde que eles as digam" (6, 1011a 16). Mas o preço a pagar é sempre o mesmo: "Não é possível para esse tipo de homem nem pronunciar nem enunciar (oúte phthénxasthai oúte eipein), pois ele quer dizer simultaneamente isto e não-isto. E se nada sustenta, mas crê tanto quanto não crê, em que diferiria ele dos seres puramente naturais (pephykótõn) das plantas (phytori)?” (1008b B-12). Só que, à diferença de Crátilo, esses verdadeiros sofistas são inumanos não por cegueira filosófica, mas por decisão ética, por "intenção" justamente (1004b 24s.), e seu discurso imbatível é prezado demais na cidade. Falar sem dizer nada é uma maneira vantajosa de se calar; face a eles, o Crátilo aristotélico permanece a encarnação; da idiotia filosófica.

Ora, é bem importante que seja o Crátilo falante de Platão, Crátilo e não Sócrates, quem instaure por conta própria a cisão entre falar como um homem e fazer ruído como um sofista. A pergunta de Sócrates: "Será que todos os nomes são estabelecidos corretamente?", sabe-se que Crátilo responde: "Ao menos todos os que são nomes" (429a, fim). Nesse ponto, Sócrates reconhece a já batida tese sofística de que é impossível dizer falsi- [p. 34] dades (pseudê légein., 429d). Tese que Crátilo sustenta de boa vontade à maneira de Antístenes, de Górgias, de Eutidemo, de Dlonisodoro, do Estrangeiro, no modo ontológico: "Dizer isto que se diz, como não seria dizer (d)o ente?" (429d 4; grifo meu)5. Mas Sócrates faz com que ele abandone aí essa argumentação esnobe ou chique demais (kompsóteros: 429d 8), não sem lhe fizer uma pergunta suplementar (tósonde, 429d 9), que parece, como frequentemente, ainda mais sutil: "Se não te parece possível dizer falsidades, não te parece possível entretanto proferi-las?"

O que introduz então essa substituição? Trata-se, para Sócrates, de esquivar a equivalência parmenideana do légein ao eînai, do dizer e do ser, que torna possível a demonstração sofística6: ao banir o légein por demais filosófico em benefício de uma série de verbos cada vez mais contextualizados, cada vez mais pragmaticamente marcados, ele tenta deslocar a problemática, da ontologia para uma prática da enunciação. Há aqui um redobrar de sutileza, já que, se o sofista combateu de início a filosofia com a ajuda das próprias armas da filosofia, é agora o filósofo que busca combater o sofista com a ajuda das próprias armas da sofística [Osório diz: Contradição Platônica]. Assim se deve, creio, interpretar a sequência quase intraduzível: légein, verbo parmenideano, ontológico, filosófico ("dizer"); phánai, não no sentido veritativo ("afirmar", trad. Méridier), mas como chamando a atenção para o ato de "proferir", para a presença da enunciação mais do que para a validade do enunciado; eipeîn, que implica uma comunicação com outrem, até mesmo um diálogo ("falar"), precisado por proseipeîn, "dirigir a", que coloca sem equívoco possível, em situação concreta, face a um interlocutor determinado; dirige-se uma saudação e esse é justamente o exemplo tomado por Sócrates: "Bom dia, Hermógenes", dirigido a Crátilo. Como Crátilo assim implicado não se sentiria obrigado a confessar que essa saudação ao menos [p. 35] se engana de endereço?7 Para compreender o jogo socrático, é importante não separar, como faz por exemplo Méridier em sua tradução, essas diversas modalidades de enunciação que Sócrates reúne como equivalências: o homem que te saúda assim com o nome de Hermógenes "diria essas palavras, ou proferi-las-ia, ou enunciá-las-ia, ou dirigi-las-ia assim não a ti mas a Hermógenes que aqui está, ou a ninguém?" Sócrates, introduzindo ao mesmo tempo a modalidade e o alvo da enunciação, seu "como", consegue com esse subterfúgio uma refutação da demonstração sofística tão batida quanto ela. Se com efeito sempre se diz o ente, é necessário ainda, para dizer a verdade, dizê-lo como é preciso, ou como ele é. Opera aqui, no plano da pragmática, uma análise do falso e do não-ser como alteridade, análoga à que leva o estrangeiro ao plano sintático-semântico interno à frase ("Teeteto, voa", cf. Sofista, 263a-d).

Só que a resistência de Crátilo é notável e, por uma vez, sem dúvida a única em todo o diálogo, vitoriosa. Ele recusa sucessivamente cada um desses verbos que implicam uma enunciação, logo também um sentido enunciado, e propõe em seu lugar phlhéngesthai, "emitir sons". Essa saudação não é dirigida, ele protesta, mas terá sido apenas "emitida como ruído". E quando Sócrates tenta, contentando-se com esse verbo minimal, reintroduzir a problemática da verdade — "Serão verdades ou falsidades que ele emite?" —, Crátilo a recusa para ir ainda mais longe, phthéngesthai parecendo-lhe, como para Aristóteles ainda há pouco8, demasiado humano. Ele se refugia em psophein, "ressoar", como uma porta, pedras, um instrumento musical, mas sem nenhum dos acentos da voz humana, dessa phônê, que se arrisca sempre, mesmo apesar dela a ser semantikê: aquele que saúda assim "ressoa vibrando a si mesmo em vão, como se vibrasse algum vaso de bronze ao bater nele". Operação estritamente física: o sino de Crátilo vale bem a planta da Metafísica.

Será necessário concluir daí que Crátilo o heracliteano já é, em Platão, aristotélico? Vejamos antes a principal consequência [p. 36] da posição de Crátilo no diálogo: se todos os nomes são correios, todos os que ao menos são nomes, então "pode-se dizer absolutamente que, quando sabemos os nomes, sabemos também as coisas" (453d 5s.). A exclusão dos falsos nomes da classe dos nomes permite se ater apenas aos nomes. Ora, que os nomes, ou as palavras, sejam suficientes, é exatamente a posição — não de Aristóteles, que não cessa de trabalhar para dissipar a homonímia constitutiva da linguagem e fonte principal dos sofismas9 — mas realmente do sofista aristotélico, daquele que fala lógou chárin, contentando-se com as palavras como se existisse apenas linguagem. Na realidade, a hýbris ontológica de Crátilo, perfeita correção dos nomes, perfeita adequação da linguagem, não é senão o avesso, ou melhor, o direito filosófico, da meontologia sofística, as duas posições chegando à mesma palavra de ordem: apenas os nomes e unicamente eles. Mas a juventude platônica de Crátilo acredita ainda ser possível essa correção perfeita, enquanto sua idade aristotélica lhe impõe um silêncio não menos idealista. Assim compreendem-se ao mesmo tempo a força da injunção socrática, segundo a qual é preciso falar das coisas e não dos nomes, e a sutileza da posição aristotélica que imbrica coisa e nome no dispositivo intersubjetivo da significação. Elas nos ensinam que há duas maneiras simétricas e ligadas de abster-se do ser: sustentar até o silêncio ou até o ruído que a linguagem é o ser.

9. O mal radical da linguagem e, na verdade, que os nomes sejam necessariamente em menor número que as coisas (cf. Ref. Sof., I, 165 a 12-14). [Osório diz: a palavra folha, por exemplo, serve tanto para a folha da parreira quanto para a folha de papel! E a palavra “manga”, tem “n” acepções]. [Osório diz: é aqui que Aristóteles matou o Crático platônico]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 27 a 37).

 

1 **( * ) Artigo publicado em Revue de Philosophie Ancíenne, V. 2, 1987.

2 11. Todas as traduções do livro Gama são de Michel Narcy e Barbara Cassin, em La décision du sens (Vrin);

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