Sofística
(uma biografia do conhecimento)
2 – Do conhecimento religioso, mítico ao racional.
São em colônias gregas situadas no que esse povo chamava de Ásia menor (atual Turquia), que encontramos os primeiros registros do esforço humano, buscando superar o conhecimento religioso e mítico, por intermédio do pensamento dito racional. Lá encontramos os seguintes homens e suas contribuições na explicação ao esforço de pensar.
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Tales
Contribuição fundamental: colocou o problema do princípio único originário de todas as coisas, afirmando que o princípio (ou arché) de todas as coisas é a água.
Anaxímenes
Contribuição fundamental: afirma que o princípio (ou arché) de todas as coisas é o ar.
Anaximandro
Contribuição fundamental: Afirma que o princípio (ou arché) de todas as coisas é o apeiron (o indefinido ou o infinito).
Heráclito
Contribuição fundamental: Afirma que o princípio (ou arché) de todas as coisas é o fogo. Afirma, ainda, a existência do princípio (logos) como unidade múltipla, guerra e paz, luta e harmonia, discórdia e justiça, contradição e síntese dos opostos. O fogo é a manifestação empírica do logos.
Parmênides
Contribuição fundamental: sua doutrina nega, energicamente, a possibilidade do movimento, da mudança e da multiplicidade.
Empédocles
Contribuição fundamental: Inaugura o pluralismo, rompendo com a tradição eleata (dos pensadores originários da cidade de Eléia). Afirma que as coisas têm origem em “quatro raízes”, batizadas com nomes divinais: o fogo (Zeus), o ar (Hera), a terra (Aidoneus) e a água (Nestis).
Anaxágoras
Contribuição fundamental: entende que o universo, na sua totalidade, é constituído por inumeráveis partículas, infinitamente pequenas, invisíveis, divisíveis ao infinito, às quais dá o nome de sementes ou homeomerias. Introduziu na filosofia grega a ideia de um princípio unificador e ordenador da matéria, o nous (inteligência) de natureza espiritual.
Pitágoras
Contribuição fundamental: para ele, os números e a oposição finito-infinito, eram o princípio (ou arché), a substância de todas as coisas
Demócrito
Contribuição fundamental: Desenvolveu a teoria dos átomos de seu mestre Leucipo. A realidade é composta de átomos (as menores partículas nas quais as coisas poderiam se dividir) e de vazio.
Nietzsche tem uma tese muito interessante sobre os pré-socráticos, que pode assim ser descrita:
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“A crítica de Nietzsche e Hegel sobre Tales de Mileto
Nietzsche através de seu texto "A filosofia na Época Trágica dos Gregos" se mostra um grande admirador da cultura e principalmente da filosofia grega. Mesmo elas tendo sofrido influências de elementos construídos por outros povos, os gregos usando de toda a sua inteligência, souberam construir a sua própria cultura e filosofia.
Falando sobre Tales de Mileto, considerado o primeiro filósofo grego, Nietzsche compara os saltos da imaginação de Tales com aquilo que ele chamou de "entendimento calculador". De acordo com Nietzsche, os pré-socráticos em seus estudos sobre a origem e a essência das coisas, submeteram os mitos ao pensamento lógico causal, sendo responsáveis pelo nascimento da filosofia. Segundo Nietzsche:
"A filosofia grega parece começar com uma ideia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo necessário deter-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas, em segundo lugar, porque faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisálida, está contido o pensamento: 'tudo é um'.".
Nietzsche diz que através de Tales podemos entender como procedeu a filosofia em todos os tempos. O pensamento filosófico possui extrema mobilidade, pois ele é alçado pela fantasia, usa os fatos apenas como apôio provisório, para depois, lançar-se à frente. Já o "entendimento calculador" caminha apenas depois de construir fundamentos sólidos: "a todo instante, detém-se desamparado, precisa antes construir fundamentos que sustentem seu passo pesado e cauteloso; por vezes isso não dá resultado, e então não há deus que possa auxiliá-lo a transpor o regato."
Nietzsche faz uma comparação entre a elaboração linguística da intuição filosófica e os versos do poeta: "O filósofo busca ressoar em si mesmo o clangor total do mundo e, de si mesmo, expô-lo em conceitos; enquanto é contemplativo como o artista plástico, compassivo como o religioso, à espreita de fins e causalidades como o homem da ciência, enquanto se sente dilatar-se até a dimensão do macrocosmo, conserva a lucidez para considerar-se friamente como o reflexo do mudo, essa lucidez que tem o artista dramático quando se transforma em outros corpos, fala a partir destes e, contudo, sabe projetar essa transformação para o exterior, em versos escritos." É inevitável que cogitemos uma aproximação entre a filosofia e a poesia, por serem ambas, uma forma de expressão linguística. Nietzsche diz que o poeta usa a imagem de seu eu empírico como forma de expressão, constrói um símbolo, através do qual representa seu próprio estado. Ora, demonstrar o "sentir" por meio de uma representação subjetiva, é o mesmo que submeter o seu significado a uma restrição que a vocação da filosofia desconhece. O impulso ao conhecimento universal arrasta o filósofo fazendo com que ele aprenda o "sentir" em seu sentido mais geral. O discurso filosófico deve ser conceitualmente construído, e para isso, na filosofia, qualquer traço de subjetividade, ou seja, do eu lírico deve ser aniquilado. No entanto, só através da virtualidade linguística desenvolvida pelos poetas seria possível pensar a independência da filosofia em relação aos padrões da língua.
O "entendimento calculador", por sua vez, parte da hipótese, a ele mesmo desconhecida, de que há na estrutura linguística uma verdade, e por isso considera o uso da linguagem como meio necessário para se alcançar o conhecimento. A verdade do entendimento calculador é constituída de uma aplicação da representação linguística à realidade. Sendo assim, a adequação da representação ao objeto é distorcida, pois o próprio mundo objetivo é construído a partir das leis gramaticais. Logo, a aplicação da estrutura e representação linguística ao objeto de estudo da filosofia corresponderia à falsificação desse objeto. A própria intuição filosófica compreende esse fato, ou seja, intuir o fundamento da realidade, implica em reconhecer a sua imensurabilidade em relação ao pensamento conceitual e à linguagem. Devido a esse motivo, a relação entre a intuição filosófica e o discurso da filosofia só se dá, quando este não está preso as leis estabelecidas pela linguagem. Neste âmbito do discurso filosófico, a linguagem não deve absorver o seu objeto, obrigando-o a acomodar-se dentro de estruturas já existentes, mas deve apenas entrar em "contato superficial" com ele. Através desse contato, o discurso filosófico torna-se capaz de expressar o "sentir" na medida em que se liberta dos grilhões da linguagem. (Tal liberdade é infinitamente maior na literatura e em qualquer outra forma de arte).
Na obra "Fragmentos Póstumos", de Nietzsche, é atribuída à filosofia um caráter de atividade fundamentalmente poética: "A filosofia é uma forma de arte poética. [...] A descrição da natureza do filósofo. Ele conhece na medida em que poetiza, e poetiza na medida em que conhece. [...] Ela é a poesia além das fronteiras da experiência." Aqui fica claro que Nietzsche acredita que os filósofos devem recusar a validade das convenções linguísticas. Para Nietzsche, a expressão de Tales "tudo é água", foi o meio que ele encontrou para expressar a unidade, a singularidade de tudo o que é. E por estar submetido ao condicionamento da linguagem, Tales se comunicou falando da água.
Hegel e Nietzsche concordam que a proposição de Tales, que diz "a água é o absoluto", é filosófica e que com ela a filosofia se iniciou. Mas para Hegel, a frase é filosófica porque ela nos mostra que o "um é a essência, o verdadeiro, o único que é em si e para si". Ele diz que: "Os gregos consideram o sol, as montanhas, os rios, etc. como forças autônomas, honrando-os como deuses, elevados pela fantasia a seres ativos, móveis, conscientes, dotados de vontade. Isto gera em nós a representação da pura criação pela fantasia, animação infinita e universal, figuração, sem unidade simples."
Para Hegel, esse segregar-se de uma infinidade de princípios, ou seja, toda essa representação de que um objeto singular é algo que subsiste para si, que possui autonomia, é substituída. E, assim, está posto que só existe um universal, o universal ser em si e para si, e de acordo com Hegel, o pensamento de que apenas o um é. O infinito, Deus, é um só, pois se fosse dois haveria a finitude, seria singular e o singular é passageiro, é finito, voltando novamente a tornar-se universal. Para Hegel, nada é em sua singularidade.
“A filosofia grega parece começar com uma idéia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo necessário deter-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar, porque faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisálida, está contido o pensamento: "Tudo é um". A razão citada em primeiro lugar deixa Tales ainda em comunidade com os religiosos e supersticiosos, a segunda o tira dessa sociedade e no-lo mostra como investigador da natureza, mas, em virtude da terceira, Tales se torna o primeiro filósofo grego. Se tivesse dito: "Da água provém a terra", teríamos apenas uma hipótese científica, falsa, mas dificilmente refutável. Mas ele foi além do científico. Ao expor essa representação de unidade através da hipótese da água, Tales não superou o estágio inferior das noções físicas da época, mas, no máximo, saltou por sobre ele. As parcas e desordenadas observações da natureza empírica que Tales havia feito sobre a presença e as transformações da água ou, mais exatamente, do úmido, seriam o que menos permitiria ou mesmo aconselharia tão monstruosa generalização; o que o impeliu a esta foi um postulado metafísico, uma crença que tem sua origem em uma intuição mística e que encontramos em todos os filósofos, ao lado dos esforços sempre renovados para exprimi-la melhor — a proposição: "Tudo é um".
É notável a violência tirânica com que essa crença trata toda a empiria: exatamente em Tales se pode aprender como procedeu a filosofia, em todos os 6 Os Filósofos Trágicos. Este título, que deve ser tomado estritamente em sentido nietzschiano, não é de Nietzsche: apenas obedece a uma indicação do autor, que diz: "Os filósofos antigos, os eleatas, Heráclito, Empédocles, são filósofos trágicos". Também não se trata de um livro de Nietzsche, mas de uma reunião de textos sobre os pré-socráticos. Os cinco primeiros pertencem ao ensaio A Filosofia na Época Trágica dos Gregos, de 1873 (edição Krõner, vol- I). Os três últimos são notas e planos de curso, do vol. XIX das Obras Completas* (edição de 1903). Assim prevenido de que este é um livro artificial, o leitor poderá também desmontá-lo* e aproveitá-lo em pelo meros dois sentidos muito fecundos: como suplemento ao estudo dos pré-socráticos ou como via de acesso à compreensão de Nietzsche. (N. do T.) " E o que se fez nesta edição, destacando cada parte para o respectivo pré-socrático comentado. (N. do E.) tempos, quando queria elevar-se a seu alvo magicamente atraente, transpondo as cercas da experiência. Sobre leves esteios, ela salta para diante: a esperança e o pressentimento põem asas em seus pés. Pesadamente, o entendimento calculador arqueja em seu encalço e busca esteios melhores para também alcançar aquele alvo sedutor, ao qual sua companheira mais divina já chegou. Dir-se-ia ver dois andarilhos diante de um regato selvagem, que corre rodopiando pedras; o primeiro, com pés ligeiros, salta por sobre ele, usando as pedras e apoiando-se nelas para lançar-se mais adiante, ainda que, atrás dele, afundem bruscamente nas profundezas. O outro, a todo instante, detém-se desamparado, precisa antes construir fundamentos que sustentem seu passo pesado e cauteloso; por vezes isso não dá resultado e, então, não há deus que possa auxiliá-lo a transpor o regato.
O que, então, leva o pensamento filosófico tão rapidamente a seu alvo? Acaso ele se distingue do pensamento calculador e mediador por seu vôo mais veloz através de grandes espaços? Não, pois seu pé é alçado por uma potência alheia, lógica, a fantasia. Alçado por esta, ele salta adiante, de possibilidade em possibilidade, que por um momento são tomadas por certezas; aqui e ali, ele mesmo apanha certezas em vôo. Um pressentimento genial as mostra a ele e adivinha de longe que nesse ponto há certezas demonstráveis. Mas, em particular, a fantasia tem o poder de captar e iluminar como um relâmpago as semelhanças: mais tarde, a reflexão vem trazer seus critérios e padrões e procura substituir as semelhanças por igualdades, as contigüidades por causalidades. Mas, mesmo que isso nunca seja possível, mesmo no caso de Tales, o filosofar indemonstrável tem ainda um valor; mesmo que estejam rompidos todos os esteios quando a lógica é a rigidez da empiria quiseram chegar até a proposição "Tudo é água", fica ainda, sempre, depois de destroçado o edifício científico, um resto; e precisamente nesse resto há uma força propulsora e como que a esperança de uma futura fecundidade.
Naturalmente não quero dizer que o pensamento, em alguma limitação ou enfraquecimento, ou como alegoria, conserva ainda, talvez, uma espécie de "verdade": assim como, por exemplo, quando se pensa em um artista plástico diante de uma queda d'água, e ele vê, nas formas que saltam ao seu encontro, um jogo artístico e prefigurador da água, com corpos de homens e de animais, máscaras, plantas, falésias, ninfas, grifos e, em geral, com todos os protótipos possíveis: de tal modo que, para ele, a proposição "Tudo é água" estaria confirmada. O pensamento de Tales, ao contrário, tem seu valor — mesmo depois do conhecimento de que é indemonstrável — em pretender ser, em todo caso, não-místico e não-alegórico. Os gregos, entre os quais Tales subitamente destacou tanto, eram o oposto de todos os realistas, pois propriamente só acreditavam na realidade dos homens e dos deuses e consideravam a natureza inteira como que apenas um disfarce, mascaramento e metamorfose desses homens-deuses. O homem era para eles a verdade e o núcleo das coisas, todo o resto apenas aparência e jogo ilusório. Justamente por isso era tão incrivelmente difícil para eles captar os conceitos como conceitos: e, ao inverso dos modernos, entre os quais mesmo o mais pessoal se sublima em abstrações, entre eles o mais abstrato sempre confluía de novo em uma pessoa. Mas Tales dizia: "Não é o homem, mas a água, a realidade das coisas"; ele começa a acreditar na natureza, na medida em que, pelo menos, acredita na água. Como matemático e astrônomo, ele se havia tornado frio e insensível a todo o místico e o alegórico e, se não logrou alcançar a sobriedade da pura proposição "Tudo é um" e se deteve em uma expressão física, ele era, contudo, entre os gregos de seu tempo, uma estranha raridade. Talvez os admiráveis órficos possuíssem a capacidade de captar abstrações e de pensar sem imagens, em um grau ainda superior a ele: mas estes só chegaram a exprimi-lo na forma da alegoria. Também Ferécides de Siros, que está próximo de Tales no tempo e em muitas das concepções físicas, oscila, ao exprimi-las, naquela região intermediária em que o mito se casa com a alegoria: de tal modo que, por exemplo, se aventura a comparar a Terra com um carvalho alado, suspenso no ar com as asas abertas, e que Zeus, depois de sobrepujar Kronos, reveste de um faustoso manto de honra, onde bordou, com sua própria mão, as terras, águas e rios. Contraposto a esse filosofar obscuramente alegórico, que mal se deixa traduzir em imagens visuais, Tales é um mestre criador, que, sem fabulação fantástica, começou a ver a natureza em suas profundezas. Se para isso se serviu, sem dúvida, da ciência e do demonstrável, mas logo saltou por sobre eles, isso é igualmente um caráter típico da cabeça filosófica. A palavra grega que designa o "sábio" se prende, etimologicamente, a sapio, eu saboreio, sapiens, o degustador, sisyphos, o homem do gosto mais apurado; um apurado degustar e distinguir, um significativo discernimento, constitui, pois, segundo a consciência do povo, a arte peculiar do filósofo. Este não é prudente, se chamamos de prudente àquele que, em seus assuntos próprios, sabe descobrir o bem. Aristóteles diz com razão: "Aquilo que Tales e Anaxágoras sabem será chamado de insólito, assombroso, difícil, divino, mas inútil, porque eles não se importavam com os bens humanos". Ao escolher e discriminar assim o insólito, assombroso, difícil, divino, a filosofia marca o limite que a separa da ciência, do mesmo modo que, ao preferir o inútil, marca o limite que a separa da prudência. A ciência, sem essa seleção, sem esse refinamento de gosto, precipita-se sobre tudo o que é possível saber, na cega avidez de querer conhecer a qualquer preço; enquanto o pensar filosófico está sempre no rastro das coisas dignas de serem sabidas, dos conhecimentos importantes e grandes.
Mas o conceito de grandeza é mutável, tanto no domínio moral quanto no estético: assim a filosofia começa por legislar sobre a grandeza, a ela se prende uma doação de nomes. "Isto é grande", diz ela, e com isso eleva o homem acima da avidez cega, desenfreada, de seu impulso ao conhecimento. Pelo conceito de grandeza, ela refreia esse impulso: ainda mais por considerar o conhecimento máximo, da essência e do núcleo das coisas, como alcançável e alcançado. Quando Tales diz: 'Tudo é água", o homem estremece e se ergue do tatear e rastejar vermiformes das ciências isoladas, pressente a solução última das coisas e vence, com esse pressentimento, o acanhamento dos graus inferiores do conhecimento. O filósofo busca ressoar em si mesmo o clangor total do mundo e, de si mesmo, expô-lo em conceitos; enquanto é contemplativo como o artista plástico, compassivo como o religioso, à espreita de fins e causalidades como o homem de ciência, enquanto se sente dilatar-se até a dimensão do macrocosmo, conserva a lucidez para considerar-se friamente como o reflexo do mundo, essa lucidez que tem o artista dramático quando se transforma em outros corpos, fala a partir destes e, contudo, sabe projetar essa transformação para o exterior, em versos escritos. O que é o verso para o poeta, aqui, é para o filósofo o pensar dialético: é deste que ele lança mão para fixar-se em seu enfeitiçamento, para petrificá-lo. E assim como, para o dramaturgo, palavra e verso são apenas o balbucio em uma língua estrangeira, para dizer nela o que viveu e contemplou e que, diretamente, só poderia anunciar pelos gestos e pela música, assim a expressão daquela intuição filosófica profunda pela dialética e pela reflexão científica é, decerto, por um lado, o único meio de comunicar o contemplado, mas um meio raquítico, no fundo uma transposição metafórica, totalmente infiel, em uma esfera e língua diferentes. Assim contemplou Tales a unidade de tudo o que é: e quando quis comunicar-se, falou da água!”. (Fonte: NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica dos Gregos, § 3. Em: Os Pré-Socráticos. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1973. p. 16/18).
A frase famosa de Protágoras – pronunciada no contexto acima, onde homens considerados sábios (Tales consta dentre os Sete Sábios da Grécia) não se entendem, cada um dizendo coisas diferentes, como água e fogo, por exemplo –, e que já recebeu inúmeras interpretações, especialmente aquelas que buscam desqualificar o autor e não compreender seu pensamento, é perfeita. Diz ele:
“O homem é a medida de todas as coisas” (metron).
Nada mais apropriado que, naquele contexto de desentendimento entre os sábios, afirmar que “o homem é a mediada de todas as coisas”, isso por uma simples e fundamental razão: o homem é o único animal que valora!
Protágoras, em um determinado momento, percebeu as opiniões externadas pelos filósofos que o antecederam ou lhe eram contemporâneos, e pode comprovar que eles divergiam completamente nessas opiniões sobre o que seria a origem de todas as coisas, o princípio de tudo. Vejamos:
Para Tales de Mileto: era a água.
Para Anaximandro: era o ápeiron.
Para Anaxímenes: era o ar.
Para Xenófanes: era a terra.
Para Heráclito: era o fogo.
Para Pitágoras: era o número.
Para Empédocles: eram os quatro elementos (água, terra, fogo e ar).
Para Anaxágoras: eram as homeomerias.
Para Demócrito: eram os átomos.
Ora, estes homens eram os sábios, um deles, Tales é um dos Sete Sábios da Grécia, como, então, deveria comportar-se um homem diante de opiniões completa e diametralmente opostas?
Somente restou ao não menos sábio Protágoras chegar à conclusão que chegou! Qual seja, que “o homem é a medida de todas as coisas”.
Giovanni Reali assim explica o único comportamento que era possível a um pensador arguto como Protágoras:
“Dizer que, sem os sofistas, Sócrates e Platão são totalmente impensáveis significa dizer que os sofistas representam algo totalmente novo e, de algum modo, operaram uma revolução com relação aos filósofos da physis: é esta revolução, junto com as razões que a produziram, que agora devemos esclarecer.
Em primeiro lugar, para compreender o surgimento e o desenvolvimento do fenômeno da sofística, é preciso ter presentes os resultados particulares aos quais chegou a especulação naturalista. Estes tinham então chegado ao ponto de se anularem mutuamente: os resultados do eleatismo contradiziam os do heraclitismo; os resultados dos pluralistas contradiziam os dos monistas; ulteriormente, as soluções dos pluralistas se excluíam mutamente, se não nos fundamentos, pelo menos na determinação do pensamento. Parecia, então, que todas as possíveis soluções tinham sido propostas e não eram pensáveis outras: os princípios são um, muitos, infinitos ou até mesmo não existem princípios (eleatas); tudo é móvel, tudo é imóvel; tudo depende de um ordenamento inteligente de uma Mente, tudo deriva de um movimento mecânico; e assim se poderia prosseguir no elenco das antíteses às quais chegara a filosofia da physis. Até a tentativa de alguns pensadores de retomar e voltar a defender, com oportunas correções, o pensamento de um ou outro dos antigos mestres (por exemplo, a tentativa de Hípon de defender Tales, ou a de Diógenes de Apolônia de defender a doutrina do ar de Anaxímenes) demonstra, como vimos acima, que, então, todas as vias estavam batidas e que a pesquisa do princípio de todas as coisas tinha esgotado todas as possibilidades e tocado os próprios limites. Era fatal, portanto, que o pensamento filosófico deixasse de lado a physis, e deslocasse o próprio interesse para outro objetivo. [Osório diz: a encruzilhada do conhecimento e o kairós dos sofistas. A grande sacada de Protágoras!].
O novo objetivo foi, justamente, aquele que os naturalistas descuidaram por completo, ou só marginalmente tocaram, vale dizer, o homem e tudo o que há de tipicamente humano. Diz muito bem Nestle: "[...] para os sofistas o homem e suas criações espirituais estão no centro da reflexão. Também para eles vale aquilo que Cícero' diz de Sócrates: `Ele fez descer a filosofia do céu sobre a terra, introduziu-a nas cidades e nas casas e obrigou-a a refletir sobre a vida e os costumes, sobre o bem e o mal'. Para o homem como ente individual e como membro da sociedade é que se volta a atenção da sofística"'. E por isso compreende-se que os temas dominantes da especulação sofística tenham se tornado a ética, a política, a retórica, a arte, a língua, a religião, a educação, tudo aquilo que nós hoje chamamos de cultura humanista. Com os sofistas, em suma, começa aquele que, com expressão correta, foi chamado de período humanista da filosofia antiga”. (Fonte: Sofistas, Sócrates e Socráticos Menores. Editora Loyola: São Paulo, 2009, p. 25-26).