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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

47.3 – Essência: forma ou matéria (fundo)?, por Antifonte.

 

Gilbert Romeyer-Dherbey esclarece:

 

Um testemunho de Aristóteles, no segundo livro da Física, coloca-nos logo no centro do pensamento de Antífon. Sabe-se que, para Aristóteles, os seres sensíveis são compostos de matéria e forma e que no seio do composto a forma desempenha o papel essencial, dado que é ela que confere a essência. A afirmação da superioridade ontológica da forma será decisiva para o destino da metafísica ocidental; ora, Antífon atribui esta superioridade não à forma, mas ao que Aristóteles chama a matéria; é ela que constitui a essência e a natureza dos seres. Antífon não emprega, como Aristóteles, o termo matéria, mas um conceito que parece ser-lhe exclusivo, isto é, o de arrythmiston: é o arrythmiston que constitui a natureza profunda dos seres, a sua verdadeira realidade. O primeiro problema que temos a resolver é, antes de mais, como compreender e traduzir este conceito. Arrythmiston significa o que é privado, ou antes, livre, de todo o rythmos, de todo o “ritmo”. Se não somos esclarecidos por esta nota é porque damos atualmente ao termo de “ritmo” um sentido completamente diferente do que possui o rythmos dos pensadores socráticos. Se o nosso “ritmo” nos remete antes para o domínio da música, portanto, da experiência auditiva, o rythmos, pelo contrário, refere-se à experiência visual das formas. O regresso ao primitivo sentido do “ritmo” passa por uma investigação sobre a etimologia da palavra. Influenciados pela sua conotação musical, os gramáticos fizeram-no derivar do verbo rhein, que significa “correr”. Jaeger foi um dos primeiros a por em questão a etimologia clássica analisando uma série de aparições de rythmos (ou rhysmos) em que o contexto prova que esta palavra não tem qualquer relação com “correr”, mas significa antes o contrário, a saber, a paragem entre limites que fecham um traçado. Aristóteles informa-nos que os atomistas empregavam o rythmos para designar o perfil dos átomos e usa “contorno” (schêma) como termo equivalente. E. Benveniste dedicou um artigo à “noção de ritmo na sua expressão linguística” em que aponta as vezes que aparece rythmos e os termos aparentados “desde a origem até o período ático”, concluindo que “o sentido permanente é: forma distintiva, figura proporcionada, disposição”. Benveniste acrescenta que Aristóteles, baseando-se em rythmos “forja arrythmistos, não reduzindo a uma forma, inorganizada(11). Julgamos que não foi Aristóteles que inventou arrythmiston, mas Antífon, como o demonstra o texto da Física onde o mesmo problema do ser da natureza é abordado. O rythmos é, portanto, o que poderíamos expressar por modelo, o contorno ou ainda a estrutura, a organização; aproxima-se muito de outro conceito de Antífon, o de diáthesis, disposição, ordem. O arrythmiston é, para retomar uma (p. 93) tradução heideggeriana, o “livre de estrutura”, ou talvez ainda o “fundo”, no sentido de Schelling (Grund). [Osório diz: rythmos (ritmo) em seu sentido antifoniano ou primitivo]

Isto dito, podemos abordar o texto do fragmento B 15, de acordo com o testemunho de Aristóteles:

Alguns julgam que a natureza e a essência dos seres que existem por natureza são o primeiro constituinte de cada um, por si mesmo livre de estrutura; por exemplo, a natureza da cama é a madeira, da estátua o bronze. A prova está, declara Aristóteles, em que se alguém enterrasse um leito e a putrefação pudesse fazer brotar um rebento, não se tornaria cama, mas madeira: um existe por acidente, é a ordem que depende da estrutura e do fabrico, enquanto que é a essência que subsiste continuamente adquirindo estes modelos".

No fundo deste argumento, talvez haja menos uma oposição entre o fabrico e a natureza que oposição entre figura e fundo (rythmos/arrythmiston). O que dissiparia o paradoxo assinalado por Ross do exemplo dos objetos fabricados usado para ilustrar a essência dos seres que existem por natureza: o jogo entre rythmos e arrythmiston acontece tanto no fabrico (téchnê) como na natureza em sentido estrito; a finalidade principal de Antífon, no exemplo da cama que se enterra, não é tanto provar a superioridade da natureza do fabrico como mostrar a preponderância do arrythmiston (o livre de estrutura, o fundo), sobre o rythmos (a estrutura, a figura). O exemplo de um objeto fabricado é aqui especialmente apropriado porque na arte a forma é ainda mais frágil e fugaz do que na natureza.

Portanto, a afirmação de Antífon que o que há de fundamental num ser, a sua natureza profunda é aquilo de que é primitivamente constituído, a massa elementar donde tudo o mais sai por modificações diversas. Esta massa elementar de que tudo é feito terá, para Aristóteles, o nome de “matéria primeira”. Antífon Ainda não lhe chama matéria (hyle) mas arrythmiston, “livre de estrutura”. Todas as figuras do universo não são mais do que os diversos contornos (rythmos) que ele adquire; adquire-os apenas porque não conserva nenhum; presta-se ao jogo das formas, mas depressa volta a si mesmo. É completamente passivo e adquire a marca do “ritmo”, mas apenas superficialmente; enquanto no fundo é completamente amorfo no sentido próprio do termo, isto é, rebelde à forma. O fundo volta ao fundo, retira-se para si e liberta-se, assim, da estrutura que, não estruturando mais nada, se aniquila. Portanto, a verdadeira realidade está no suporte desligado de estrutura; como as nuvens que passam de forma em forma, as figuras particulares são lábeis [Osório diz: transitório, instável, que caí, que escorrega] e passam facilmente de uma à outra.

É o que devia tentar provar a solução de Antífon da quadratura do círculo; a realização da rectificação da curva demonstra, com efeito, a possibilidade da passagem de uma forma geométrica a outra, sendo a sua verdadeira realidade a homogeneidade do espaço no qual elas são reabsorvidas. O que é fundamental é, pois, o fundo, e haveria que evitar a dizê-lo em termos privativos, como a metafísica platônico-aristotélica tem uma tendência invencível a fazer. A passividade é liberdade porque é total e, no mesmo movimento em que cede à estrutura, também se esquiva. O arrythmiston é positivo porque rejeita toda a particularidade, toda a determinação; Antífon poderia ter dito, como mais tarde Espinosa, “a determinação é negação”. O que se desliga da estrutura é, portanto, um universal: face à pobreza do particular, constitui toda a riqueza do mundo; é a reserva na qual os “ritmos” se abastecem para organizar tudo o que determina a figura e toma contorno, isto é, ostentação na beleza. Por conseguinte, não há que esquecer que “privada das suas reservas, (a natureza) teria organizado mal muitos dos seres belos”. O arrythmiston é “reserva” no duplo sentido do termo: o de reservatório onde nos abastecemos, mas também o contido na expressão “estar na reserva”, isto é, recusar-se a elaborar figura; todo o rythmos, finalmente, não é para Antífon mais do que um figurante. A indeterminação adquire aqui um sentido positivo que o helenismo dominante, o das filosofias da essência, não nos preparou para acolher. É por isso que os comentadores não viram que o sujeito subentendido no fragmento B era, com toda a evidência, o arrythmiston e não “o deus”, ou ainda, o ser eleático. No primeiro livro da Verdade e, sem dúvida, depois de ter revelado o mistério do “livre de estrutura”, Antífon acrescentava: “é por isso que não tem necessidade de nada, nem recebe nada de qualquer outro, mas é indeterminado e sem falha”. O conceito de ápeiron, retomado de Anaximandro e figurando num contexto que este não desaprovaria, refere-se claramente ao arrythmiston de que é quase o equivalente; pelo contrário, os deuses do politeísmo, cujo nome significa “os visíveis”, representariam de preferência a suprema determinação. O privado de estrutura é auto-suficiente e, aliás, não confere nada, já que é a ele que tudo é concedido. Assim fica eliminado o privilégio do acabado; a incompletude para Antífon anda a par da suficiência. Esta consequência inabitual foi reencontrada em nossos dias por Gombrowicz: o homem não é movido pela sede do absoluto, tem uma finalidade “mais secreta, sem dúvida, de certo modo ilegal: a sua necessidade de Não-acabado, ...da Imperfeição, ... da Juventude”. O que há de admirável é que a juventude não é caracterizada por Gombrowicz sob um ponto de vista psicológico, mas adquire um significado de certo modo cosmológico esta juventude “de que a insuficiência, o inacabado, se transformava num poder elementar”. Pode encontrar-se em Proust uma análise parecida quando explica a poesia, que se poderia chamar “arrítmica”, da rapariga em flor: “a adolescência é anterior à solidificação completa e daqui resulta que se experimente junto das raparigas este refrigério que proporciona o espetáculo das formas prestes a mudar incessantemente, de se movimentar numa instável oposição que faz pensar nesta perpétua recriação da natureza”.

Portanto, o arrythmiston é, podia dizer-se, a juventude da natureza. Com efeito, a auto-suficiência do “livre de estrutura” tem como consequência subtrai-lo ao tempo: se algo nunca se junta a ele, permanece idêntico a si mesmo, isto é, inalterável, diferentemente dos diversos “contornos” (rhythmoi) que toma, os mais só existem sucessivamente e não passam de configurações transitórias. O arrythmiston é estável e permanente, indestrutível e imortal; sendo substrato, está, pois, fora do tempo e, inversamente, o tempo, que é passagem, não pode ser substrato. É por isso que o tempo não tem realidade serão para o ser limitado que é medido por ele e para o indivíduo particular que o pensa, porque este indivíduo tem um nascimento e uma morte [Osório diz: o tempo não tem realidade]. O fragmento B9 exprime esta substração ao tempo do arrytmiston, que é substrato (hypostasin): “o tempo é pensado e medido, não substrato”. É nesta atmosfera de intemporalidade que há que compreender o que dizíamos da juventude do “livre de estrutura”: é jovem na medida em que, fugindo ao envelhecimento e à morte, existe sempre. Cera que desfaz todas as suas impressões retirando-se delas, é indestrutível porque é a destruição. O “ritmo” tem sorte contrária. Ronsard é antifoniano sem o saber quando escreve: “a matéria permanece e a forma perde-se”. A mudança assim concebida é antes, como mostra Nicolau Grimaldi, da ordem da metamorfose. Na experiência tal como está determinada pela metafísica clássica, “é a materialidade das coisas que muda e a ordem formal da sua sucessão que permanece. Mas na metamorfose é a matéria que permanece e as formas que mudam”. A consequência da concessão da verdadeira realidade ao arrythmiston é, para as configurações particulares que reveste, isto é, para todos os seres, o estatuto da precariedade e a urgência da morte. O indivíduo privado de consistência ontológica é, por essência, um ser para a morte; donde o patético de todo o destino individual levando consigo a dissolução como a promessa mais certa, não durando senão para provar a sua fugacidade, não vindo à luz do sol, que lhe dá a forma, senão pelo espaço de uma manhã. Também a morte não deixa de estar presente nos fragmentos de Antífon; [Osório diz: Aristóteles enfrenta Antifon: matéria ou forma?] o fr. B 50, que é talvez o que o helenismo nos deixou de mais pungente, confessa esta precariedade do homem:

A vida é a véspera de um dia, e a duração da existência uma só jornada: ao levarmos os olhos para a luz, deixamos para os outros, que vêm depois, a sua vez”.

O homem é um velador de dia e, por figurar com o ser do dia, é também o ser de um dia. Mas a palavra trágica do fragmento é, sem dúvida, “outros” (hetérois): as figuras, não tendo nenhuma consistência ontológica, dissolvem-se sem remédio. Antífon recusa ao indivíduo a consolação dos eternos retornos pelos quais – para Aristóteles – o pai se reitera, especificamente falando, no seu filho, numa repetição sinonímica. Para Antífon, aquilo que o substitui é verdadeiramente um outro e não um outro eu. O livre de estrutura fica sempre o mesmo, mas não adquire jamais uma máscara idêntica; nenhuma figura (rhythmos) é adiada, nunca mais volta a repetir-se, o que seria ainda uma maneira de ir ficando. A partir daqui, para o indivíduo, cada ponto do tempo é um ponto de não-retorno, e a atitude daqui resultante relativamente à vida é dupla: a vida é mesquinha e frágil, tendo duração curta e grandes sofrimentos, em suma, ela não é quase nada, mas é precisamente por ser quase nada que é preciosa, tal como uma moeda é uma riqueza para um pobre. A vida não é nada, mas este nada é tudo [Osório diz: lindo sobre a vida]. Não é preciso, portanto, passar a vida a preparar uma outra vida que não existe e que nos tira o tempo da vida presente. A morte não é, como no teatro, uma morte para rir, depois da qual o mesmo ator entra em cena com um novo papel; a morte a sério dá à vida uma seriedade absoluta. A vida não é um jogo; Antífon afirma-o noutro fragmento decisivo: “está fora de questão – como no jogo dos dados – jogar duas vezes a vida”. As concepções lúdicas da vida estão ligadas à idéia de repetitividade; para elas, a morte é uma aparência e até a verdadeira vida. Para Antífon, a verdadeira vida é a nossa: somos irremediavelmente indivíduos, configurações passageiras que além-túmulo não conservam a sua forma própria e que, por consequência, nunca mais regressam. Esta seriedade da existência põe, em termos penetrantes, o problema da felicidade, a felicidade no seio da cidade e a felicidade pessoal. [Osório diz: a vida e a vida depois da morte. Isso não faz sentido para o religioso em busca de consolo, o desamparado!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 92-99).

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

47.2 – A vida, por Antifonte.

 

Nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

O arrythmiston é estável e permanente, indestrutível e imortal; sendo substrato, está, pois, fora do tempo e, inversamente, o tempo, que é passagem, não pode ser substrato. É por isso que o tempo não tem realidade serão para o ser limitado que é medido por ele e para o indivíduo particular que o pensa, porque este indivíduo tem um nascimento e uma morte [Osório diz: o tempo não tem realidade]. O fragmento B9 exprime esta substração ao tempo do arrytmiston, que é substrato (hypostasin): “o tempo é pensado e medido, não substrato”. É nesta atmosfera de intemporalidade que há que compreender o que dizíamos da juventude do “livre de estrutura”: é jovem na medida em que, fugindo ao envelhecimento e à morte, existe sempre. Cera que desfaz todas as suas impressões retirando-se delas, é indestrutível porque é a destruição. O “ritmo” tem sorte contrária. Ronsard é antifoniano sem o saber quando escreve: “a matéria permanece e a forma perde-se”. A mudança assim concebida é antes, como mostra Nicolau Grimaldi, da ordem da metamorfose. Na experiência tal como está determinada pela metafísica clássica, “é a materialidade das coisas que muda e a ordem formal da sua sucessão que permanece. Mas na metamorfose é a matéria que permanece e as formas que mudam”. A consequência da concessão da verdadeira realidade ao arrythmiston é, para as configurações particulares que reveste, isto é, para todos os seres, o estatuto da precariedade e a urgência da morte. O indivíduo privado de consistência ontológica é, por essência, um ser para a morte; donde o patético de todo o destino individual levando consigo a dissolução como a promessa mais certa, não durando senão para provar a sua fugacidade, não vindo à luz do sol, que lhe dá a forma, senão pelo espaço de uma manhã. Também a morte não deixa de estar presente nos fragmentos de Antífon; [Osório diz: Aristóteles enfrenta Antifon: matéria ou forma?] o fr. B 50, que é talvez o que o helenismo nos deixou de mais pungente, confessa esta precariedade do homem:

 

A vida é a véspera de um dia, e a duração da existência uma só jornada: ao levarmos os olhos para a luz, deixamos para os outros, que vêm depois, a sua vez”.

 

O homem é um velador de dia e, por figurar com o ser do dia, é também o ser de um dia. Mas a palavra trágica do fragmento é, sem dúvida, “outros” (hetérois): as figuras, não tendo nenhuma consistência ontológica, dissolvem-se sem remédio. Antífon recusa ao indivíduo a consolação dos eternos retornos pelos quais – para Aristóteles – o pai se reitera, especificamente falando, no seu filho, numa repetição sinonímica. Para Antífon, aquilo que o substitui é verdadeiramente um outro e não um outro eu. O livre de estrutura fica sempre o mesmo, mas não adquire jamais uma máscara idêntica; nenhuma figura (rhythmos) é adiada, nunca mais volta a repetir-se, o que seria ainda uma maneira de ir ficando. A partir daqui, para o indivíduo, cada ponto do tempo é um ponto de não-retorno, e a atitude daqui resultante relativamente à vida é dupla: a vida é mesquinha e frágil, tendo duração curta e grandes sofrimentos, em suma, ela não é quase nada, mas é precisamente por ser quase nada que é preciosa, tal como uma moeda é uma riqueza para um pobre. A vida não é nada, mas este nada é tudo [Osório diz: lindo sobre a vida]. Não é preciso, portanto, passar a vida a preparar uma outra vida que não existe e que nos tira o tempo da vida presente. A morte não é, como no teatro, uma morte para rir, depois da qual o mesmo ator entra em cena com um novo papel; a morte a sério dá à vida uma seriedade absoluta. A vida não é um jogo; Antífon afirma-o noutro fragmento decisivo: “está fora de questão – como no jogo dos dados – jogar duas vezes a vida”. As concepções lúdicas da vida estão ligadas à ideia de repetitividade; para elas, a morte é uma aparência e até a verdadeira vida. Para Antífon, a verdadeira vida é a nossa: somos irremediavelmente indivíduos, configurações passageiras que além-túmulo não conservam a sua forma própria e que, por consequência, nunca mais regressam. Esta seriedade da existência põe, em termos penetrantes, o problema da felicidade, a felicidade no seio da cidade e a felicidade pessoal. [Osório diz: a vida e a vida depois da morte. Isso não faz sentido para o religioso em busca de consolo, o desamparado!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 98-100).

 

 

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(uma biografia do conhecimento)

 

47Antifonte e 47.1 – A linguagem, por Antifonte.

 

Nos ensina Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

É absurdo, com efeito, pensar que as coisas visíveis nascem dos nomes; Além disso, é impossível. De fato, os nomes são os resultados da convenção, ao passo que as coisas visíveis não são resultados da convenção, mas produtos do impulso natural”. [Osório diz: isso mata a discussão do Crátilo?]

Ora, vimos atrás, a propósito do seu pensamento político, que Antífon quer destruir a convenção para dar lugar à natureza; quer igualmente desfazer a linguagem convencional e, dando um sentido mais puro às palavras da tribo, dar assim passagem ao que há para dizer. A nova linguagem deve poder dizer a natureza, exprimir a pulsão, desprendendo-se dos estereótipos, dos “clichês”, das expressões já feitas. A linguagem convencional é a de toda a gente; não pode formular o drama essencialmente individual da inquietação e da doença. A catarsis juntou-se, então, à poesia, a única capaz de exprimir a natureza na sua profundidade. [Osório diz: “a poesia”!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 107-108).

 

 

 

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46.15 – Linguística aristotélica, onde é derrotada por Górgias.

 

É Barbara Cassin quem pontua:

 

É precisamente esse caráter de algo que não podemos contra-atacar dos sofismas, desde que nos prendamos à língua, que força Aristóteles, em Gama, a um diagnóstico severo e à uma estratégia terrorista: os sofistas "falam por (prazer de) falar" e, na medida em que negligenciam ou recusam-se a se curvar às imposições da significação, quer dizer, da univocidade, é como se não falassem absolutamente. Como se sabe, os sofistas são "semelhantes às plantas". De fato, exigem, para serem convencidos do princípio da não-contradição, uma refutação que os coaja, mas que o próprio Aristóteles julga "impossível" fornecer; ser-lhes-ia necessário "uma refutação do que é dito nos sons da voz e nas palavras": uma refutação, para encurtar, que não considerasse nem o exterior a dizer, o referente, nem o interior a exprimir, a intenção, mas somente o próprio dizer, o significante. O sofista "gorgianiza", quer dizer, prende-se às identidades sonoras, à homofonia que gera as figuras, como se a materialidade significante fosse a dádiva mesma da linguagem, que se trata não de sujeitar e de ultrapassar, mas no máximo de entender e explorar.”

[Osório diz: a linguagem para os sofistas deve: (a) considerar o exterior a dizer {o referente}; (b) o interior a exprimir {a intenção} e (c) considerar o próprio dizer {o significante}]. Mas, não esqueçamos Górgias: palavras não são coisas! “Tudo que se vê é o que o discurso diz”, mas palavras não são coisas!. Aqui é onde Górgias arrasa Aristóteles e toda sua empreitada, mesmo que se aceite o jogo do significado]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 277).

 

 

 

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46.14 – Enganador ou enganado, quem é o mais sábio, por Górgias.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Plutarco, em seu Se os atenienses foram mais excelentes nas armas do que nas letras (V, 384c = 82 B 23D.K., II, p. 305s.), relembra uma frase célebre de Górgias:

A tragédia era florescente e celebrada: era para os homens de então o que se podia ver e o que se podia ouvir de mais espantoso e conferia aos mitos e às paixões a ilusão segundo a qual, como diz Górgias, "aquele que ilude é mais justo do que aquele que não ilude, e aquele que é iludido mais sábio do que aquele que não é iludido. Com efeito, aquele que ilude é mais justo porque realiza o que prometeu, e aquele que é iludido mais sábio, pois ser facilmente enleado pelo prazer dos discursos é não ser privado de sensibilidade”.(Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 248).

 

 

 

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46.13 – Górgias e a poesia da ilusão.

 

Ensina Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Destas ruínas da ontologia, Górgias não vai deduzir um niilismo nem um ceptismo, mas um pensamento não ontológico ou antimetafísico que, sob certos aspectos, não pode deixar de ser anterior ao de Nietzsche. [Osório diz: ao contrário, tudo será trazido para o humano e racional quando conjugado com o ensinamento de Protágoras no Mito de Prometeu]

A primeira consequência da crítica de Parménides é a reabilitação das aparências e a afirmação da identidade entre o real e a manifestação. Uma condenação do mundo anterior platônico aparece já na letra do fragmento 26: “o ser eclipa-se se não lhe outorgarmos a aparência, a aparência extingue-se se não lhe outorgarmos o ser”. Se a aparência é modificável, o ser também o será: isto nada tem de escandaloso já que a realidade é contraditória, e o princípio de identidade origina apenas uma ontologia que depressa se contradiz a si própria...

As contradições nunca fazem as pazes.

A doxa é o estado de espírito dilacerado pelos contrários; a saber, o estado de espírito limitado pelo aspecto do real, de que o discurso consagra a legitimidade. O discurso é, de facto, o mestre das aparências e é ele que cria as que constituem a realidade humana escolhendo o aspecto do real que deve sobressair. [Osório diz: “os problemas filosóficos são todos problemas de linguagem”, já o disse quem?

Górgias não tem um tom demasiado elogioso para cantar este poder demiúrgico da palavra: “a linguagem é um grande potentado, que com um corpo minúsculo e imperceptível leva a cabo as obras mais divinas. Porque tem o poder de acalmar o medo, de eliminar o desgosto, de produzir a alegria, de aumentar a piedade.” [Osório diz: o discurso, para Górgias] Górgias tem o sentimento penetrante de que a linguagem não evoca senão uma aparência, mas que esta aparência é legítima [Osório diz: a linguagem de o fenômeno, e este “é” do modo que o vê o locutor]. Tomemos como exemplo o Elogio de Helena. Helena, culpada ou não culpada? O caso de Helena é ambíguo, é o mínimo que se pode dizer, e o seu próprio nome simboliza o seu caso [“encantadora” e “encantada”, ao mesmo tempo.]. Mas a escolha de Górgias levanta a ambiguidade e acaba com a questão... A linguagem é, então, o médico das almas divididas. … “Idêntica é a relação entre o poder da linguagem sobre a disposição da alma e a prescrição dos remédios sobre a natureza dos corpos.” A linguagem médica é, portanto, curadora e salvadora. Não suprime a contradição, porque é real, por conseguinte inexcedível, mas pacifica-a ao nível linguístico que é o seu, realizando o desvio de um dos contrários e mantendo-o de fora. Porque o real está dilacerado pelas contradições, o mundo humano exige uma tomada de posição e este mundo humano está por fazer, e é, de acordo com a etimologia, à poesia que Górgias se dirige para o fazer. A tomada de posição a favor de um dos contrários não é atitude de força, mas uma pacificação pela poesia no sentido amplo do termo, diríamos hoje, pela arte. Com efeito, Górgias refere o exemplo do pintor que é também capaz de apaziguar o conflito dos contrários pela redução da pluralidade. “E os pintores saciam a vista quando, a partir de múltiplas cores e corpos, completam com perfeição, um corpo inteiro, uma figura inteira.” [Osório diz: o real é dilacerado pelas contradições!]

O prazer que a arte nos proporciona é, pois, o de um acesso à consonância que cria um mundo habitável pelo homem: neste sentido o raciocínio lógico, que Górgias atua com maestria, não exprime a realidade, não tem significado ontológico, mas faz parte da poesia; cimenta a visão unilateral em que o espírito encontra seu repouso. [Osório diz: poesia]

O papel da poesia é, portanto, criar a ilusão, ilusão porque esta obra não está em conformidade com o real, mas ilusão desejável e boa, porque cria uma coerência mental que Górgias chama justiça e sabedoria. A tragédia de Ésquilo é uma obra de arte e neste sentido é uma ilusão, mas é esta ilusão, esta poetização – que é a tragédia – que nos permite suportar o trágico vivido, isto é, justificá-lo e compreendê-lo [Osório diz: poesia]. Com efeito, a tragédia cria

uma tal ilusão que, por um lado, o que cria a ilusão é mais justo que aquele que não a cria e, por outro lado, aquele que se deixa encantar é mais sábio que aquele que não se deixa levar. De fato, um é mais justo porque aquilo que prometeu fê-lo; o outro, o que cede ao encanto, é mais sábio; com efeito, deixa-se levar pelo prazer das palavras, o que não deixa de ter um sentido.[Osório diz: quem é mais honesto o que engana ou o enganado?].

A arte do sofista, isto é, do homem sábio, é, portanto, para Górgias, o que era a poesia trágica para Ésquilo, uma “ilusão justificada.” [Osório diz: a arte do sofista]

O discurso sofístico, ainda que expresso em prosa, faz, apesar de tudo, parte da poesia, já que – declara Górgias – a poesia, no seu conjunto, a considero e chamo uma palavra habitada pelo ritmo. [Osório diz: o que é a poesia]

A ilusão justificada, criada pela poesia do discurso, é tanto mais justificada quanto é partilhada por um maior número de ouvintes: acaba por elaborar o mundo cultural humano [Osório diz: a “ilusão justificada”, seria o que em Direito se diz “decisão fundamentada”! / Já aqui está o encontro entre Górgias e Protágoras: as rais da impossibilidade e a adesão]. Mas – dir-se-á – Górgias não demonstrava a incomunicabilidade do cognosvícel? Certamente, mas esta incomunicabilidade não entra em ação enquanto a linguagem se gabar de por as coisas em palavras; ora, o que a poesia transmite não é precisamente as coisas, já que é criadora de ilusão, mas a emoção que as coisas produzem ou o sofista quer produzir [Osório diz: por que Górgias não se contradiz com a sua incomunicabilidade. Perfeito!]:

Os que o ouvem recebem em si o arrepio do medo, a compaixão das lágrimas e o remorso que gela. Face às prosperidades e aos reveses de causas e pessoas, que lhe são estranhos, a alma experimenta uma paixão muito sua, graças ao discurso.”

A intersubjetividade é, portanto, completamente possível para Górgias: se a linguagem não transmite um conhecimento adequado das coisas, veicula, pelo contrário, perfeitamente, a emoção. O que assegura a comunicação entre os homens é a emoção partilhada por meio da linguagem. [Osório diz: como Górgias explica a intersubjetividade/a comunicação entre as pessoas. Texto magnífico e explicativo].

A linguagem não tem que designar o real apagando-se perante ele, mas tocar a alma. [Osório diz: finalidade da linguagem]

Por conseguinte, se se lida só com as palavras, é impossível parar, e o sofista gaba-se que “o discurso nunca o fez faltar ao prometido”.

Portanto, a ilusão justificada é, essencialmente, o fruto da linguagem poética, que age no ouvinte de modo a sugestioná-lo. O problema central dos poderes da linguagem vai, pois, desembocar no estudo da receptividade da alma, numa psicologia do homem cativado pela musicazinha das palavras. A este estudo, os Antigos chamaram-lhe “psicagogia”, arte de levar a alma, pela persuasão, até onde se quiser levar. [Osório diz: Psicagogia – conceito – dicionário].

Qual é a natureza profunda desta persuasão, que é a única a dar ao discurso a sua convicção? É poética a palavra ritmada, dizia Górgias; pensa-se então na relação desta palavra com a música. As figuras do estilo inventadas por Górgias mostram-no atento a tudo o que marca o ritmo, martela a expressão, e há que lembrar que a poesia antiga era cantada. [Osório diz: bem como, o sucesso, que até hoje fazem os cantores ditos “pops”! As multidões que levam aos seus espetáculos].

Magia, que, aliás, já o seu mestre Empédocles exercia.

Jacqueline de Romilly insistiu, com muita razão, no aspecto mágico constitutivo, segundo Górgias, do poder da poesia. A persuasão do discurso age por feitiço; o seu dizer aparenta-o com as fórmulas encantatórias dos ritos e das evocações mágicas; o sofista é o feiticeiro, possui a palavra exata que outrora fazia mover as pedras e agora abre os corações, os fascina e cura. O discurso de Górgias age, portanto, como a magia que também se serve da linguagem; “com efeito, os encantamentos sagrados que utilizam palavras dão prazer e afastam a dor. Porque, misturado com a opinião da alma, o poder do encantamento fascinou-a, metamorfoseou-a por enfeitiçamento.” A medicina estava na época de Górgias muito próxima da magia; também esta magia linguística não tem para ele algo de perverso: a persuasão é para o discurso o que o remédio é para o médico. Pela sua arte, o sofista é o médico das almas.” [Osório diz: a poesia para o Sofista!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 41-56).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

46.12 – Górgias e o tempo oportuno – Kairós.

 

Gilbert Romeyer-Dherbey aponta:

 

O sentimento de que o tempo não é um meio homogêneo e indiferente, em que todo o instante é igual a qualquer outro, mas apresenta ocasiões favoráveis para a ação que vem a propósito, este sentimento é já agudo no helenismo antes de Górgias; encontramo-lo, por exemplo, em Teógnis, Baquílides, Píndaro sobretudo. Mas Górgias foi o primeiro, diz-se, a escrever sobre o Kairós e a dar-lhe uma teoria.

A concepção lógica do mundo, o princípio da não-contradição, repousam inteiramente no postulado do tempo contínuo, de um tempo que dura e que permite, pela sua duração contínua, comparar os instantes uns com os outros e denunciar o seu não-alinhamento. O que verdadeiramente é deve estar num tempo alinhado, isto é, deve ser idêntico a si ao longo da duração. A metafísica platônica irá derivar daqui a necessidade para que o ser seja plenamente ser, de ser eterno; o ser não existe apenas devido a esta ou àquela circunstância, existe sempre em si.

Ora Górgias, assim como rejeitara o Ser parmenidiano, recusa esta concepção que faz da eternidade a verdade do tempo e consagra no tempo a realeza do sempre. Concebe um tempo essencialmente descontínuo, feito de a-propósitos e de contratempos, que não se deixa perspectivar; por conseguinte, o valor de um conteúdo não se deixará julgar pela sua perdurabilidade: o melhor pode ser fogo de palha! Essa concepção do tempo vem legitimar a teoria do engano justificado tal como antes a expusemos. A realidade é contraditória e a poesia da ilusão poupa o homem ao sofrimento privilegiando um dos contrários por uma tomada de posição unilateral; ora, esta escolha de um dos dois contrários não é arbitrária e gratuita: é feita segundo o kairós. Exige um espírito perfeitamente desprendido, uma habilidade de grande fineza, de uma agilidade extrema; que há de mais difícil para agarrar que a ocasião? Como diz a canção do marinheiro El pénor em Giraudoux:

 

A ocasião só tem uma madeixa / uma madeixa de cabelos.”

 

É preciso uma sabedoria autêntica para escolher no momento exato o aspecto que a situação requer, e ocultar o outro; assim o kairós implica, além da sabedoria, a justiça: é justo como o que vem no momento exato. A justiça é justeza, e é sempre com justeza que se captam – segundo a bela expressão de Górgias – “as coisas cheias de seiva e de sangue”. Não há que dizer que o sofista se entrega a subterfúgios; não faz mais que seguir os saltos do tempo. [Osório diz: a justiça é – justeza, e é sempre com justeza que se captam “as coisas cheias de seiva e de sangue”. / Vivas, portanto!].

Por isso, Górgias é o primeiro pensador de uma temporalidade essencialmente prática, e está preparado para formar os homens políticos, os futuros governantes. Como escreveu Balzac em Louis Lambert: “a política é uma ciência sem princípios definidos, sem fixidez possível; é o gênio do momento, a aplicação constante da força de acordo com a necessidade do dia. O homem que visse a dois séculos de distância morreria na praça pública sob o peso das imprecações do povo[Osório diz: Política é – ...]. O kairós tem valor político também na medida em que é kairós retórico, e em que a retórica é na democracia ateniense um instrumento do poder [Osório diz: isso mata Platão!]. O kairós intervém também na formação dos chefes militares: Carls von Clausewitz chamar-lhe-á, mais tarde, “golpe de vista” e dele fará uma das componentes do gênio guerreiro. Mas é na vida ética que o conhecimento do kairós é essencial. Se em vez de estudarmos as virtudes particulares e as circunstâncias precisas em que são verdadeiramente virtudes, isto é, “excelências”, procurarmos definir uma essência única da virtude em geral, encontramo-nos a braços com um universal mal-estar e inaplicável na vida concreta; todas as especificações sutis que tornam uma análise manejável numa dada situação são apagadas pela determinação da essência válida para todos, em todos os lugares e tempos. Definir a virtude segundo o kairós é exprimir a variação da excelência de acordo com os diferentes estados do sujeito moral: uma será a excelência da criança e outra a do velho, do cidadão ou do não-cidadão, do homem em tempo de guerra ou em tempo de paz, etc. É de notar que Aristóteles tenha apreciado a concepção que Górgias fazia da virtude (areté) a ponto de a preferir à dos platônicos; o seu realismo não lhe parecia, pois, confundir-se com o oportunismo:

 

Com efeito, os que falam em geral iludem-se a si próprios quando dizem que a virtude é a boa disposição da alma ou a ação correta ou alguma coisa deste gênero; os que enumeram as virtudes, como Górgias, falam muito melhor que aqueles que as definissem assim.” [Osório diz: testemunho de Aristóteles sobre Górgias! Para aqueles que acham que Ari serve para algo].

 

O erro seria, portanto, definir a arte do kairós por uma habilidade de oportunista; o seu ideal é, pelo contrário, tornar a vida moral praticável e Aristóteles lembrar-se-á disto na sua ética. Mas o seu alcance é vasto: o kairós não significa apenas o momento favorável na vida prática e a arte de o colher, ou ainda o domínio da improvisação retórica, ele decide da natureza do tempo e concebe-o como atomizado. O que exclui a valorização da duração, do longo prazo, da eternidade, valorização relacionada com a ontologia combatida por Górgias.

A coerência das concepções de Górgias não nos permite pensar que este, longe de ser um pensador, se tivesse simplesmente entregue às diversões retóricas sem outra consequência que a de demonstrar o seu talento oratório [Osório diz: que “disse para fazer graça”!]. É claro que chama ao Elogio de Helena um “jogo”, mas Platão também chama ao seu Parménides um “jogo de criança”, o que não basta para lhe negar toda a seriedade, se se compreender bem o sentido e o valor do jogo no helenismo. Lógico implacável, excelente artista e pensador profundo, Górgias, como testemunha a abundância dos seus fragmentos, exerceu nos seus sucessores uma profunda influência. Mas o seu melhor título de glória permanece talvez o de Platão ter encontrado em Górgias um rival, que não era indigno dele.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 48-51).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

46.11 – Górgias e a psicagogia.

 

Ensina Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Para a psicologia de Górgias, a alma é essencialmente passiva, completamente entregue ao que recebe de fora. A primeira forma desta passividade é a percepção sensível.

A primeira forma desta passividade é a percepção sensível, que Górgias interpreta como o transporte para a alma de uma impressão ou de uma imagem das coisas que a alma experimenta: “Com efeito, as coisas que vemos possuem uma natureza, não a que nós próprios queremos, mas a natureza particular que lhes tocou em sorte. Portanto, também a alma por meio da vista recebe o cunho das suas diversas formas. Esta presença da imagem na alma terá como consequência o facto de que a percepção pode tornar-se alucinatória e desencadear reacções violentas. De facto, criou-se o hábito de opor o activo ao passivo, quando o verdadeiro contrário da passividade não é a actividade mas a impassibilidade, e o verdadeiro contrário da actividade não é a passividade, mas o repouso. A paixão da alma move-as e comove-a e Górgias serve-se do exemplo do “medo que vem do olhar”. Dêem-se armas de guerra como espetáculo aos olhos e logo a vista “se altera e altera a alma”; ainda que nenhum perigo real os ameace, muitos espectadores destes engenhos guerreiros são então tomados de pânico “a tal ponto o olhar desenhou no espírito as imagens das coisas que percepcionaram”. [Osório diz: quem gosta de armas de fogo, ao vê-las, têm o olhar e, consequentemente, a alma, transformadas!]

A segunda forma da passividade da alma é a sua abertura à linguagem. Mas parece que a paixão da linguagem é menos forte que a paixão sensível, e que para a por em ação é necessário previamente por a alma num estado de receptividade, seduzi-la. O nome desta sedução por meio das palavras constitui um dos conceitos maiores do pensamento de Górgias e da sofística: é (peithô), a persuasão.

O discurso isolado nada pode se não recebe o esforço da persuasão; a persuasão pode agir não apenas sobre os sentidos, como em Homero quando diz: “abandonemo-nos ao apelo da noite negra”, mas também sobre a alma, e é então que interessa a Górgias: “a persuasão, quando se mistura aos discursos, modela também a alma a seu gosto.” Persuadir consiste em criar uma espécie de clima afetivo que dá o seu peso aos argumentos, criando a recepção psíquica dos ouvintes; “Górgias dizia que haveria que destruir a gravidade dos adversários pela ironia, e a sua ironia pela gravidade” [Osório diz: como destruir a posturar dos adversários]. Como notará Hume, um raciocínio pode não sofrer qualquer refutação e não despertar convicção alguma; a persuasão, ao rejeitar todo o constrangimento, faz aceitar a necessidade do raciocínio.

Qual é a natureza profunda desta persuasão, que é a única a dar ao discurso a sua convicção? É poética a palavra ritmada, dizia Górgias; pensa-se então na relação desta palavra com a música. As figuras do estilo inventadas por Górgias mostram-no atento a tudo o que marca o ritmo, martela a expressão, e há que lembrar que a poesia antiga era cantada. [Osório diz: bem como, o sucesso, que até hoje fazem os cantores ditos “pops”! As multidões que levam aos seus espetáculos].

Magia, que, aliás, já o seu mestre Empédocles exercia.

Jacqueline de Romilly insistiu, com muita razão, no aspecto mágico constitutivo, segundo Górgias, do poder da poesia. A persuasão do discurso age por feitiço; o seu dizer aparenta-o com as fórmulas encantatórias dos ritos e das evocações mágicas; o sofista é o feiticeiro, possui a palavra exata que outrora fazia mover as pedras e agora abre os corações, os fascina e cura. O discurso de Górgias age, portanto, como a magia que também se serve da linguagem; “com efeito, os encantamentos sagrados que utilizam palavras dão prazer e afastam a dor. Porque, misturado com a opinião da alma, o poder do encantamento fascinou-a, metamorfoseou-a por enfeitiçamento.” A medicina estava na época de Górgias muito próxima da magia; também esta magia linguística não tem para ele algo de perverso: a persuasão é para o discurso o que o remédio é para o médico. Pela sua arte, o sofista é o médico das almas. [Osório diz: a poesia para o Sofista!]

Mas pode ficar-se nesta visão consoladora? Não parece. Com efeito, a ilusão justificada, que se fez partilhar pela Peithô, servia – lembremo-nos – para passar da opinião ao saber, excluindo um dos dois aspectos contrários de um real sempre simulado. Ora, contatava Górgias, a ambiguidade expulsa pela Peithô está no seio da própria Peithô, assim como o remédio pode vir a ser um veneno, curando algumas vezes e matando outras:

 

Com efeito, tal como certas drogas expulsam dos corpos certos humores, outras outros humores e umas suprimem a doença, outras a vida, também é assim que acontece com os discursos: uns afligem, outros alegram, uns aterram, outros levam à confiança os ouvintes, outros, finalmente, envenenam e enfeitiçam a alma por uma má persuasão.”

 

Evidentemente, não é a persuasão em si mesma que é má: é boa ou má de acordo com o uso que dela se faz, assim como a poção medicinal é boa ou má de acordo com a dose que se toma. Aqui Górgias, muito antes do Fedro de Platão, joga com o duplo sentido do termo (phármakon), que significa simultaneamente remédio e veneno. Encontra-se em Peithô a ambiguidade terrível do phármakon; não nos mergulha ela então nas contradições do real donde nos devia tirar? A ambivalência da realidade reflete-se nos lógos. Exatamente nesta passagem do discurso de Górgias, Platão irá empenhar-se a fundo para negar à retórica toda a pretensão à sabedoria e à justiça: também ela tem dois gumes. Mas Górgias já saiu desta armadilha, pela concepção do tempo, não como duração, mas como kairós, como momento oportuno. [Osório diz: o valor da persuasão]. [Osório diz: como Górgias livra-se da armadilha de Platão antes dele armá-la!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 45-47).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

46.10 – O discurso/logos (seu poder), por Górgias.

 

É Guthrie quem pontua:

 

Protágoras começou com o axioma de que “há dois argumentos sobre cada assunto”.

Aos olhos de Górgias, "a palavra" era déspota que podia fazer qualquer coisa, mas como escravo da lâmpada estaria a serviço dos que faziam seus cursos. Lendo os restos que nos sobraram dos escritos de Górgias, não nos inclinamos a acusar Platão de deslealdade quando o faz desconhecer toda responsabilidade pelo uso que se pode fazer de seu ensino por outros. Era matéria subversiva, tanto moral como epistemologicamente, pois a convicção de que os homens podiam ser persuadidos de qualquer coisa casava-se naturalmente com a relatividade da doutrina de Protágoras segundo a qual "o homem é a medida" e com o niilismo do tratado de Górgias Sobre a natureza e o não-existente. [Osório diz: aqui o autor rói a corda!]

Eles pretendiam ensinar arete, mas seria isso algo que se poderia instilar pelo ensino? [Osório diz: isso é contraditório e idiota! Platão diz que a virtude não pode ser ensinada, mas maldade, seu oposto, pode! Ou ambas podem ser ensinadas ou ambas não podem sê-lo] [Osório diz: arete, no caso, é: aceite que alguém manda e alguém obedece. Manda quem nasceu no seis das famílias que nasceram para mandar. De indivíduo nada para família].

A palavra é déspota poderoso”, como Górgias disse.” (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 28).

 

Diz Fausto dos Santos:

 

O discurso é um senhor soberano que, com um corpo minúsculo e quase imperceptível leva a cabo ações divinas” (Diels-Krans, 82 b 11,8). [Osório diz: o discurso, para Górgais].

[...] nenhuma capacidade humana se atualiza, nem chega a ser eficaz, se o discurso não lhe empresta sua força” (Albenque, 1987, p. 97) [Osório diz: o discurso como guia de tudo]. (Fonte: Filosofia Aristotélica da Linguagem, Fausto dos Santos, Ed. Universitária Argos. Capecó-SC, 2002, p. 58 e 60).

 

Diz Guthrie:

 

O logos tem supremo poder, e é neutro. Pode fazer grande bem, banindo o medo e a tristeza e fomentando alegria e compaixão (Gorg. Hel. 8, DK II, 290). Até quando enganador, o engano pode ser um engano justo e o enganado pode ir-se mais sábio do que antes, como acontece com as ficções da tragédia, que para Górgias era apenas retórica em versos. Mas, em si mesma é simplesmente “a arte da persuasão”, armado com a qual um homem pode convencer do que lhe aprouver “ao júri no tribunal, senadores no Conselho, o povo na Assembléia, ou qualquer outra reunião de cidadãos” (Platão, Gorg. 452e). É esta arte de falar que Górgias afirmou ensinar, e nada mais. Embora ela se interesse por certo e errado, ele desaprovou o ensino da arete (Meno 95c) e sustentou que o retórico não deve ser culpado se seus alunos usam da habilidade para fins maus, da mesma forma que um instrutor de box não pode ser culpado se seu aluno venha a abater o seu pai. O retórico, pelo que parece, interessa-se inteiramente pelos meios, e não pelos fins, e seu ensino tem diferentes efeitos nos alunos de acordo com o seu caráter. [Osório diz: O logos e seu poder / Para que serve a persuasão / O que Górgias se propunha a ensinar / Górgias e o ensino da arete / O professor e o uso do ensino pelo aluno].

Quando Sócrates pressiona sua argumentação, Górgias de fato admite, sem cerimonias, que se seu aluno não sabe sobre certo e errado ele supõe poder ensinar-Ihe (os assuntos para os quais Sócrates e Platão acharam inadequada toda uma vida de filosofia!), mas, quando Sócrates continua tirando a conclusão de que de fato a retórica não pode ser usada para fins errados, e tempo de o velho e respeitado homem se licenciar e seu discípulo impetuoso assumir. Toda a discussão com Górgias lança luz inapreciável sobre conceitos correntes de retórica, e não traz nenhuma marca de caricatura (Gorg. 456c-457c.). Veja também Fileb. 58a para sua convicção da superioridade da persuasão sobre todas as outras artes, e sobre sua negação de ensinar arete pp. 252s abaixo.” (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 171-172).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

46.9 – Górgias e a retórica.

 

Guthrie ensina:

 

Na mesma linha T. Gomperz (Gr. Th. 1.490) percebeu na retórica de Górgias "a vitalidade tempestuosa e desenfreada de uma idade em que o sangue jovem palpita com pulso indócil, e a atividade da mente está com excesso de matéria à sua disposição".

Força inquieta e indômita da juventude. [Osório diz: travestida, n vezes, de covardia. Ou seria: traduzida n... ?]

Hoje em dia, as palavras "sucesso" ou "homem bem sucedido" sugerem mais imediatamente o mundo de negócios, e só secundariamente o da política. Na Grécia, o sucesso que contava era primeiramente político e em segundo lugar forense, e sua arma era a retórica, a arte da persuasão.

Retórica é a arte da persuasão.

Seguindo a analogia, pode-se atribuir à retórica o lugar agora ocupado pela propaganda. Com certeza, a arte da persuasão, amiúde por meios dúbios, não era menos poderosa então, e, assim como temos nossas escolas de negócios e escolas de propaganda, assim também os gregos tinham seus mestres de política e retórica: os sofistas. Peitho, Persuasão, era para eles uma poderosa deusa; "a feiticeira à qual nada se nega", assim Ésquilo a chamou (Suppl. 1039s)"

Górgias em seu Encômio de Helena — um exercício escolar de retórica, sofístico em todo sentido.

(...)

Em Ésquilo, de outro lado, é Páris cuja mão é forçada por Persuassão, “a filha inseparável da ruína” (Ag. 385s). Píndaro fal do “chicote da Persuasão” (Pit. 4.219). (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 50-51).

 

 

 

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