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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

77.2 – Relatividade da moral.

 

Ensina Guthrie:

 

O uso de história e experiência ajudou a desenvolver um conjunto bastante diferente de padrões, não de bondade ou maldade morais tradicionais, mas simplesmente de sucesso e malogro, conveniência e não-conveniência... Nenhuma das normas eram absolutamente rígidas ou invariáveis: tinham sempre que ser adatadas a condições mutantes... As viagens de descobrimento... revelaram inúmeros sistemas diferentes de moralidade... A nenhum destes costumes, tão infinitos em teor e diversidade, podia-se atribuir "autoridade permanente". A ideia duma lei moral universal estava, portanto assim em declínio, e tornou-se pari passu mais credível considerar regras morais como meramente consuetudinárias e relativas, como tendo-se desenvolvido para ir ao encontro das necessidades de um povo particular em dados lugares e tempos. Com este modo de ver, o "interesse" era o que parecia subjazer a padrões éticos, atitude que logo se entregou a uma espécie hedonismo e interpretação utilitária.” (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 61).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

77.1 – Relatividade dos valores (consequências para a teoria ética).

 

[Osório diz: a teoria ética que é posterior a apontada relatividade dos valores. Ou seja, ela não foi discutida pelos autores do relativismo].

 

Se filosofia física começa com a admiração, pode-se dizer que a ética começou com o ceticismo. Grant, Ethics, 1,155

 

O capítulo sobre os sofistas (p. 50) mencionou a divisão de Alexander Grant da moralidade em três estágios, correspondendo numa nação a infância, adolescência e maturidade no indivíduo. Num aspecto sua divisão não passaria hoje sem desafios. Ele chama a segunda era, a cética ou sofística, de era de "transição", concluindo que só a terceira, a saber, a do retorno a crenças anteriores [Osório diz: é o que Nietzsche irá chamar de fim da filosofia e, acrescento, retorno da teologia, da crendice, do xamanismo, da superstição, com o autor espanhol Francisco Rodrigues Adrados. Platão irá destruir todo o esforço da razão pela besteira da fé! E isso por uma simples razão, por não ter encontrado respostas para as questões abertas/expostas por seus antecessores!] mantidas mais profundamente porque obtidas por pensamento independente, representa a maturidade. No pensamento grego, a transição ter-se-ia dado rumo ao idealismo de Platão, uma reafirmação e uma defesa dos valores absolutos aceitos pela "simplicidade e confiança" da infância como o são na fase pré-crítica da sociedade. A segunda fase, a fase cética, também poder-se-ia chamar de positivista, e não se aceita absolutamente em geral que crença em valores absolutos seja mais madura do que positivismo. Nem todo adulto recupera as convicções de sua infância.

O positivista rejeita a ideia de que a lei positiva deva partir do ideal de um padrão de direito natural, ou seja, universalmente válido: existem apenas direito ou bondade relativos que derivam da lei positiva prevalecente em certo tempo. O positivista sabe que a busca da verdade é caça de quimera [Osório diz: como todo aquele que não é fanático pelo inexiste!]. De forma semelhante, a beleza, tal como foi para Hume, não é “uma qualidade nas próprias coisas, mas apenas existe nas mentes que a contemplam, e cada mente percebe uma beleza diferente”. Com tais afirmações (p. 155), o positivista moderno não gostaria que se lhe dissesse que seu ponto de vista é pré-platônico ou adolescente, mas de fato repete as afirmações de sofistas na controvérsia dos sécs. V e IV a.C [Osório diz: e é isso mesmo! Onde o demérito em ser pré-platônico? Ao contrário, isso é uma honra!]. Valor para ele, da mesma forma que para Arquelau, existe somente pelo nomos, e não pela physis. Para Ayer sequer existe controvérsia:

 

Quando se fala de valores, não se trata de descrever o que pode ou não existir, o problema está em se existe ou não existe realmente. Ora, problema deste tipo não existe. O problema moral é: O que devo fazer? Que atitude devo tomar? E juízos morais são divertidos neste sentido. Podemos ver agora que toda disputa acerca da objetividade de valores, tal como geralmente se conduz, é sem sentido e inútil. [Osório diz: até agora, também tem sido sem sentido “o que devo fazer?” ou “que atitude devo tomar?”, já que ninguém sabe dizer, indicar, tudo depende das pessoas envolvidas, do tempo e do local! Ou seja, continua o pintor tentando segurar-se no pincel! Assim, portanto, os valores continuam relativos, tenham ou não existência!]

(...)

Em Eurípides, uma personagem pergunta retoricamente: “Que ato é vergonhoso se não parece ser tal para o agente?”, que teve de Aristófanes e paródia: “Que ato é vergonhoso se não parece ser tal para o auditório?”, e tanto a Platão como a Antístenes se atribui a resposta: “Vergonhoso é vergonhoso, quer pareça, quer não”. [Osório diz: fantástica resposta para quem era um pseudo dono da verdade, Platão!]

(...)

Sócrates, em Platão, diz “quando pronunciamos palavras como “ferro” ou “prata”, todos sabemos o quer queremos dizer, mas quando dizemos “justo” ou “bom”, discordamos uns dos outros, e até mentalmente. Estas citações dão uma idéia da atmosfera cética da época, a que o próprio Sócrates se opôs vigorosamente, sustentando que o acordo quanto ao sentido de termos morais era na prática preliminar necessário para a modalidade”. [Osório diz: o “acordo” protagórico! Logo, se é fruto de acordo, não existe por natureza! Não é “divino” nem “imutável” nem “intangível”!].

 

Perguntas de retórica:

 

É uma pergunta para a qual a pessoa que fez já sabe a resposta.

P. exemplo: quando uma criança tenta enganar a mãe essa pergunta: Tá pensando que eu sou boba? Logicamente ela já sabe qual é a resposta, a própria pergunta já tem uma resposta em si.

 

e,

 

Perguntas de retórica (em que o orador não espera que seus ouvintes respondam) estimulam o raciocínio do ouvinte.

Observe como Jesus usou perguntas de retórica em Mateus 11:7-11. As perguntas também têm outra utilidade. Muitas vezes, antes de podermos ajudar a uma pessoa, temos de saber o que ela pensa. Visto que, diferentes de Jesus, não podemos ler o coração das pessoas, só existe uma forma de obtermos esta informação: fazer perguntas ponderadas.

As perguntas podem ajudar o ouvinte a perceber os motivos dos pontos salientados. Ajudam-no a desenvolver o raciocínio.

Quando fala em público ou conversa com uma pessoa, tente usar perguntas a fim de chamar a atenção para ideias importantes. Certifique-se de que elas tratem de assuntos que realmente interessam à assistência. Você pode também usar perguntas intrigantes, sem respostas óbvias. Se fizer uma pausa breve depois de uma pergunta, a assistência provavelmente escutará com mais interesse o que se segue.

 

Fonte(s):

 

COMO FAZER

 

Para iniciar uma conversa, use perguntas sobre assuntos que realmente interessam à outra pessoa.

Antes de transmitir uma ideia importante, experimente usar uma pergunta que deixe os ouvintes na expectativa.

Use perguntas para mostrar a base das suas declarações, a lógica das verdades apresentadas e o bom efeito que essas podem ter na vida dos ouvintes.

Use perguntas para estimular o ouvinte, não só a repetir fatos, mas a expressar sua opinião sobre o que aprendeu.

 

Fonte: https://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20061009071729AAVdfNT.

 

O mais celebre advogado da relatividade de valores (embora, como inevitavelmente acontece, seu pensamento tenha sido amiúde distorcido ao ser filtrado por outras mentes menos dotadas) foi Protágoras, e seu desafio filosófico a normas tradicionalmente aceitas baseava-se por sua vez em teorias relativas e subjetivas de ontologia e epistemologia. [Osório diz: Protágoras está numa sinuca de bico! Os filósofos dizem que ele não é um pensador “amante da sabedoria”. Os outros dizem que ele é um niilista/ralativista! Veja-se:

[Osório diz: Na verdade, Protágoras é as duas coisas:

(I) um exímio pensador (propôs questões irrespondíveis e não solucionáveis, como fizeram, de resto, os tidos por filósofos. Por esse seu talento foi escolhido por Péricles para seu conselheiro.

(II) foi um homem de ação, tanto assim que escolhido por Péricles para dar lei a uma cidade (Túrio).

Portanto, no meu entender, o homem perfeito, pois sabia agir, não se perdendo em seus pensamentos agudos.

 

Enquanto aplicada a valores, relatividade pode significar uma das duas coisas: (a) Não há nada a que se possam aplicar os epítetos bom, mau e semelhantes de maneira absoluta e sem qualificação, porque o efeito de tudo é diferente segundo o objeto sobre que ele exerça, as circunstancias de sua aplicação e assim por diante [Osório diz: o mesmo vale para a poesia!]. O que é bom para A pode ser mau para B, o que é bom para A em certas circunstancias pode ser mau para ele em outras, e assim por diante. A objetividade do efeito bom não é negada, mas varia em casos individuais. (b) Quando um locutor diz que bom e mau soa apenas relativos, pode significar que “não há nada bom ou mau, mas o pensamento o torna tal”. Toda investigação da antítese nomos-physis fornece numerosos exemplos disso: incesto, abominável aos olhos dos gregos, é normal aos olhos dos egípcios, e assim por diante. Com valores estéticos, o caso ainda é mais óbvio.

Heráclito aduzira antes o primeiro tipo de relatividade como justificação de seu paradoxo da identidade de opostos: “Água de mar”, disse ele, “é ao mesmo tempo a mais pura e a mais poluída, sendo potável e salutar para peixes, não-potável e mortal para homens”. Protágoras desenvolve o tema em resposta à sugestão de Sócrates de que “bom” pode-se equiparar com “benéfico para homens” [Platão, Prot. 333e-334c. A equiparação utilitária de agathon com ophelimon foi favorita em Sócrates. (v. Sócrates, c. III, § 8). Também não se pode duvidar que o discurso de Protágoras representa seu real modo de ver. Xenofonte (Mem. 3.8.7) apresenta Sócrates dizendo algo semelhante (o que é bom para um homem faminto é mau para um homem com febre etc.), e por este motivo ele foi acusado de lhe atribuir a paternidade das ideias de Antístenes (Caizzi, Styd. Urbin. 1964,65; não, muito estranho, de Protágoras). Mas o argumento de Sócrates ai é que a bondade de qualquer coisa está em sua adequação para realizar sua própria função - um incontestável princípio socrático (cf. Rep. 352e-353d). O seu pensamento era intensamente prático [Osório diz: a impressão que se tem o contrário! Que seu pensamento não era nada prático, mas apenas questionador, filosófico! A escolha de Protágoras para dar leis a Túrio, quando Sócrates vivia, pode apontar nesse sentido]: o que é bom deve ser útil, e a mesma coisa pode ser útil ou danosa segundo as circunstancias (Meno 87e 88c e Xen. Mem. 4.6.8). Precisamente como seu pensamento diferia do de um sofista como Protágoras é longa questão [Osório diz: “eu adoro histórias longas”!], mas não é certo dizer como diz Caizzi que a passagem em Xenofonte é "fortemente antiplatônica" (pelo que ela significa contra o Sócrates platônico).]: [Osório diz: não se pode misturar homens (seres racionais) com os outros animais (seres irracionais)]

 

Ainda que coisas não sejam benéficas para homens, eu ainda as chamo de boas... Sei de uma multidão de coisas – alimentos, drogas, e muitas outras – que não são prejudiciais a homens, e outras que são benéficas; e ainda outras que, na medida que se referem a homens, não são nenhuma das duas coisas, mas são prejudiciais ou benéficas a cavalos, e outras somente ao gado ou a cachorros. Algumas não têm nenhum efeito sobre animais, mas só sobre árvores, e algumas ainda são boas para as raízes das árvores, mas danosas para os rebentos novos. Esterco, por exemplo, é bom para todas as plantas quando aplicado a suas raízes, mas muito destrutivo se colocado nos brotos ou rebentos novos. Ou tomemos o óleo de oliva. É muito mau para as plantas, e muito inimigo dos pelos dos animais exceto do homem, visto que o homem acha que pode servir tanto ao cabelo como ao resto do corpo. Tão diversa e multiforme é a bondade que mesmo em nós a mesma coisa é boa quando aplicada externamente e mortal quando tomada internamente. Todos os médicos proíbem aos doentes usar óleo na preparação de alimentos, a não ser em quantidade mínima.

 

Que um sofista ao mesmo tempo exibisse seu conhecimento multifário está em seu caráter [Osório diz: isso é uma condenação? Qual o problema? Onde o erro? Para se ter conhecimento multifário não é necessário “conhecimento” adquirido anteriormente?].

 

Em Teeteto (167-c), Protágoras diz: “Quando homens exercem sua habilidade sobre corpos, eu os chamo médicos, quando sobre as plantas, agricultores. Estes também, se a planta está doente, dão-lhe sensações sãs, saudáveis e verdadeiras em vez de más; e de modo semelhante, oradores bons e habilidosos fazem processos bons em vez de maus parecerem justos a cidades”.

 

Versenyi frisa os estreitos paralelos que existem entre Protágoras e o tratado hipocrático Sobre a medicina antiga:

 

Ambos frisam o fato de que suas artes são invenções humanas antes que dotes naturais, que são necessárias por causa da diferença entre um homem e outro e entre homens e animais, e de que há uma relatividade que resulta do que é bom para cada um. Ambos afirmam que "nosso presente estilo de vida" (leis, costumes, regime) não vem da natureza, "mas se descobriu e se elaborou durante longo período de tempo".

O objetivo de ambas [a saber, das artes política e médica] é achar o que é útil, apropriado e adequado ou devido à natureza do que cada uma tem a seus cuidados para promover vida saudável, harmoniosa e sem perturbação. Esta semelhança de objetivo, método e (quase) objeto não só leva a constante associação das duas, mas as vezes também torna muito difícil traçar linha divisória precisa entre elas.

 

O “discurso”, disse Górgias (Hel. 14), “tem a mesma relação com a mente que as drogas têm para o corpo. Assim como as drogas eliminam diversos humores do corpo e algumas põem termo à doença e outras à vida, assim também as palavras podem induzir alegria ou tristeza, temor ou confiança, ou através de má persuasão, drogar e se apoderar da mente”. Esta teoria foi levada, de fato, à prática por Antífon em sua “clínica psiquiátrica” tal como se narra na Vida dos dez oradores: alugando uma sala apropriada em Corinto, ele “desenvolveu ‘uma arte de consolar’ paralela à terapia do corpo pelos médicos” [[Plut.] Vitae 833c, Antifon A 6. Sobre isto e a identidade de Antifon v. abaixo, pp. 114s. Sugere-se intuição psicológica também por seu dito (fr. 57) de que doença é férias para os preguiçosos, pois não precisam sair para o trabalho. Supus aqui o fato de que a narrativa em Vitae e verdadeira, mas v. pp. 268s, com notas.].

 

Protágoras …

 

Antífon (fr. 60): Entre os interesses humanos a educação é primária, pois em qualquer empreendimento, quando o começo é certo, é provável que o resultado também seja certo. Assim como se lança a semente fundo no chão e dela se pode esperar a colheita, assim também, quando se lança a boa educação nos jovens, seu efeito vive e brota pela vida inteira, e nem a chuva nem a seca podem destruí-la. [Osório diz: os sofistas e a educação].

 

O aprendizado da medicina pode-se comparar com o crescimento das plantas. Nossa habilidade natural é o solo. As ideias de nossos mestres são como se fossem as sementes. Aprender desde a infância é análogo ao cair das sementes muito cedo sobre o terreno preparado. O lugar da instrução é como se o nutrimento que vem do ar circundante para as coisas semeadas. Diligência é o trabalho do solo. O tempo fortalece todas estas coisas, de sorte que sua nutrição seja perfeita. [Osório diz: os sofistas e a educação].

Estas passagens devem aumentar nossa intuição sobre a mente do sofista e ajudar nossa compreensão do uso por Protágoras de exemplos médicos e agrícolas ao responder à pergunta de Sócrates. Eram os escritores médicos que sobretudo insistiam (como o exigia o sucesso em sua habilidade) na relatividade de "bem" e "mal" para indivíduo. [Osório diz: estas comparações não envolvem sentimentos, paixões. Os indianos gostam muito de comparar o amor entre um homem e uma mulher ao de um casal de moscas, por exemplo].

(...)

Já vimos como estava difusa a tendência a substituir os conceitos de interesse e vantagem, de útil e benéfico (sympheron, chresimon, ophelimon), com o que naturalmente se liga o de apropriado e adequado (epitedeion), pelo padrão universal de “justiça” ou "direito". Como "o interesse do mais forte" (Tucídides, Trasímaco), tornou-se uma doutrina de auto-engrandecimento e desprezo dos direitos dos outros, mas em si era simplesmente utilitário e prático. Associada a ele está a noção de necessidade (ananke), e aos exemplos já citados (pp. 96s acima) pode-se acrescentar outro tirado da Medicina antiga, cap. 3, que enfatiza o liame entre atividade prática e a concepção relativa de valores: "o fato é que a mera necessidade levou os homens a buscar e descobrir a medicina, porque a homens doentes não aproveitava nem aproveita o mesmo regime que a homens com saúde". O que por sua vez se vincula com toda a visão evolutiva do progresso humano (p. 82 acima).

Uma deliciosa ilustração desta associação na mente grega é o "contexto da beleza" no Simpósio de Xenofonte (cap. 5). Sócrates quer provar aos companheiros que é mais belo do que o jovem e belo Critóbulo. Critóbulo enfim lhe concede, dizendo que tudo é belo (kalon) se for bem construído para o propósito para o qual nós o adquirimos, ou for adotado pela natureza para nossas necessidades. Então, replica Sócrates, se temos olhos para ver, os meus são mais belos que os seus, visto que, sendo saltados e salientes, podem ver longe de lado e não só reto para frente; e assim por diante. (A passagem é traduzida por extenso em Sócrates pp. 67s).

Será que também Protágoras acreditava na relatividade dos valores no segundo sentido, de que todos os juízos de valores são meramente subjetivos? A primeira vista, pelo menos, pareceria conclusão inaceitável do seu famoso dito de que o homem é a medida: 15 "o homem e a medida de todas as coisas, das coisas que são o que são, e das coisas que não são o que elas não são". Em Teeteto (152a), Sócrates pergunta a Teeteto se leu o trecho. "Muitas vezes", replica ele. "Então sabes que ele o propõe mais ou menos assim, que assim como algo me parece, assim é para mim, e assim como aparece para ti, assim é para ti - tu e eu sendo homens." Uma vez que esta adição e feita em praticamente as mesmas palavras que em Crátilo (386a), também deve ser parte do argumento pessoal de Protágoras [Osório diz: tudo bem, somente não se pode esquecer que Platão era um autor teatral, logo faz seus personagens falarem o que ele quer, justamente para apoiar a tese que ele, Platão, defende!], e isto é confirmado por Aristóteles, que acrescenta que as "coisas" em questão envolvem valores (Metaf. 1062b13):

 

Protágoras disse que o homem é a medida de todas as coisas, significando simplesmente que o que parece a cada um seguramente também é. Se é assim, segue que a mesma coisa tanto é como não é, e tanto é boa como má, e qualquer coisa que se afirme em afirmações contrárias, uma vez que muitas vezes uma coisa determinada parece boa (ou bela, kalon) a alguns e o oposto a outros; e o critério (metron) é o que parece a cada indivíduo [Se se admite que os "Duplos argumentos" (pp. 291ss abaixo) refletem o ensino de Protágoras, fornecem mais provas de que sua relatividade incluía conceitos como bom e mau, certo e errado, louvável e censurável. [Osório diz: a discussão, até aqui, é se a tese de Protágoras, quanto ao homem medida, envolve valores!]].

 

Até aqui, tudo bem, mas temos agora notável desenvolvimento. Como diz Sócrates (Teet. 161css), baseando-se na tese que viemos expondo, ninguém pode ser mais sábio do que outrem, e não teria sentido que Protágoras ou outro qualquer se apresentasse como mestre [Osório diz: ao contrário, Protágoras afirma que todos podem ser mestres, desde que obtenham apoio (acordo) para suas teses e é para ensinar a obter tais acordos que ele se propõe ser professor!]. Sócrates oferece uma defesa que Protágoras teria dado, diz ele, se fosse vivo [Evidentemente o que segue não se podia encontrar nos escritos de Protágoras, mas é aprovável que se afaste do sentido do que ensinou. Como Cornford diz, ele deve ter reconciliado sua profissão de sofista com sua afirmação de que todas as crenças são verdadeiras, e não existe nenhuma outra maneira pela qual pudesse fazê-lo. Expõe-se a questão amplamente em H. Gomperz, S. u. R. 263ss, e para outras referências V. Untersteiner, Sophs. 7os. (N. 1). S. Moser e G. L. Kustas, em Phoenix, 1966 afirmam que "”ler o Protágoras antes do Teeteto” foi uma das principais causas de interpretação errônea do diálogo anterior.” Esta afirmação depende de aceitar a suposição de Th. Gomperz (Gk. Th 1.457s) de que um representa um Protágoras "genuíno" e outro um Protágoras “imitado” - procedimento altamente arbitrário [Osório diz: mas provável, desde que se entenda que o autor é um autor teatral!]. ] [Osório diz: Portanto, não Sócrates, mas Platão dá resposta por quem morto está!]. Consiste em sustentar que, embora todas as crenças sejam verdadeiras, nem todas são igualmente boas (agatha) [Platão usa várias palavras nesta passagem, das quais todas se traduzem com frequência por "mau" e "bom". Em cartas romanas eu apresento uma abordagem inacabada dos diversos sentidos que transmitiam a um grego. Kakon: a palavra mais geral para mau; agathon: a palavra mais feral para bom, como o matiz de condutivo a uma realização eficaz de função comumente presentes em termos gregos de aprovação; poneron: que causa fadiga, angústia, dor e tristeza (do nome ponos, trabalho, perturbação, sofrimento) chreston: útil, efetivo, íntegro (ligado a hygieinon, saudável, em 67cl); kalon: bela, bonito, de boa qualidade, louvável, honroso.]. o homem sábio (sophos) é aquele que pode mudar o que parece e é mau (kakon) para qualquer de nós e fazê-lo parecer e ser bom. (a) O alimento do doente Ihe é amargo: não se pode dizer que está errado quando afirma que o é, nem que é mais ignorante que o homem são. Mas o doutor, sophos na arte de curar, pode mudar de tal modo sua condição que tanto lhe parece como é doce e agradável. (b) Na educação, o sofista faz com palavras o que o doutor faz com drogas (compare Górgias, p. 169 acima), ou seja, muda o aluno para um estado melhor. Ele não o faz trocar falsas crenças por verdadeiras, pois crenças falsas são impossíveis; mas, quando um homem tem um estado pervertido (poneron) de mente e pensamentos correspondentes, ele torna sua mente sã, dando-lhe pensamentos sãos (chresta) - não mais verdadeiros, mas melhores. (c) Coisas que toda uma cidade pensa ser justas e honradas (kala) são-lhe tais enquanto ela pensa que o são; mas nos casos em que elas são danosas (ponera), o homem sábio as substitui por outras que são e parecem sãs (chresta). Permite-se, assim, que certos homens sejam mais sábios do que os outros, embora ninguém pense falsamente [Osório diz: o que difere um homem sábio de um outro].

Temos aí um paradoxo: as crenças de dois homens podem ser igualmente verdadeiras, mas não igualmente valiosas, ainda que sejam crenças sobre a bondade ou maldade de algo. No caso de sensações físicas, pelo menos no exemplo de Platão, não há dificuldade. O homem doente se desagrada com o que prova, e ficará contente quando o doutor, por assim dizer, restaurar sua apreciação normal do alimento bom ou, como Protágoras o diria, faz o alimento desagradável tanto lhe parecer como ser agradável. Mas com valores morais o caso é diferente. Se o que uma cidade pensa ser justo e certo é justo e certo enquanto ela pensa que o é, ela não quererá que se mudem suas ideias ou suas leis e nem, poder-se-ia pensar, deveriam ser mudadas [Osório diz: mas esse não é o Problema de Protágoras (que sempre terá o sábio a mostrar algo melhor pelo qual se deve mudar), mas o de Sócrates (que prega a submissão total à lei da cidade)]. Seriam como o óleo de oliva do discurso de Protágoras, boas para aquela cidade, se bem que talvez não para outras. Parece, porém, que a cidade pode não ser sábia, nem seus juízos sãos e benéficos, mas inúteis e propensos a causar mal. Como então podem eles ser, e também parecer, justos e certos (kala) para a cidade? [Osório diz: por falta do sábio para mostrá-lo!].

Protágoras busca sua própria solução para a questão quente do dia, a relação entre nomimon e dikaion, lei positiva e moralidade. Foi dito [Osório diz: por quem?]:

(1) Que ambos eram idênticos por definição, e a afirmação de sua identidade, simplesmente analítica. Isto pode ser (a) a velha ideia religiosa, remontando a eras tribais, de que as leis vieram dos deuses, e assim não podem errar e deve-se-Ihes obedecer ("todas as leis humanas são nutridas pela única lei divina") [Osório diz: aqui Guthrie vacilou! Dormiu! Cochilou! Dirá aos padres: “foi sem querer, querendo!” / Foi a essas eras tribais que voltou a “teologia” (não filosofia) de Platão]; ou (b) uma crítica consequente a equiparação dos dois: dada a definição, de que "justiça" inclui somente o que é mandado ou sancionado pelas leis, então, como frisou Antifon, a homem tem o direito de observá-la apenas na medida que coincide com seus próprios interesses, e o dever de ignorá-la sempre que conflita com o fato da natureza como a igualdade de gregos e bárbaros, nobres e plebeus, ricos e pobres.

(2) Como resultado de (b), negava-se a identidade de justo e legal. "Justo" e "certo" representavam valores morais, que não se podiam equiparar com os ditames da lei positiva, pois a lei podia ser injusta e por sua vez o que era justo se estendia para além do campo da ratificação legal. [Osório diz: diferença entre legal e justo!].

Havia a doutrina do contrato social tal como afirmada por Sócrates, segundo a qual, embora o maquinismo legal possa em caso particular levar a julgamento injusto, continuava certo para o cidadão aceitá-lo, porque sua pertença ao Estado implicava a promessa de obedecer às leis em troca dos inúmeros benefícios da cidadania. [Osório diz: Isso não é hedonismo? Vantagem? Mas a lei, por acaso, é para caso particular, somente se trouxer benefícios para e pelos quais se a obedece?].

Protágoras (…) sustentava que, embora as "leis" não viessem "pela natureza", sua instituição e observância eram necessárias para a preservação da sociedade. A função inteira de nosso senso de justiça (dike) é "tornar possível a ordem política" (p. 67 acima). Por isso ele naturalmente se inclina para os que equiparam dikaion [moralidade] com nomimon [lei positiva]. Todavia nos meados do sec. V era impossível para o pensador ignorar a existência de leis más, e tentou uma solução que as levasse em conta. Se o resultado é argumento inconsistente e circular, o seu interesse está no estado da questão na época, que levou Protágoras a tomar este curso tortuoso [ "Que aí temos um círculo lógico não se pode negar... Se juízos de valor só são válidos para o indivíduo, como pode um juízo de que duas crenças são de valor desigual ser válido para mais que o indivíduo que o faz” (Gomperz, S. u. R 269) [Osório diz: a chave está justamente em Górgias e Protágoras. Górgias com suas três teses, com as quais concorda Gomperz na sua pregunta. Protágoras com seu mito de Prometeu. Embora ambos sejam iguais, a princípio, um pode, já que não há ponto de acordo absoluto e certo, convencer o outro a aderir a sua causa!]]. É, afinal, uma questão que se quer hoje se resolveu. [Osório diz: Protágoras disse: o que temos são as leis, e as leis são essas que estão aí e, portanto, se é isso que temos, vamos usar. Ninguém, durante um afogamento, dispensará um pedaço de qualquer que flutue por que está esperando um colete inflável!].

Uma vez que Protágoras era famoso por sua afirmação de "fazer do argumento mais fraco o mais forte", H. Gomperz (S.u. R. 269) sugeriu que ele pode ter usado estes epítetos aqui, antes que "pior" ou "melhor", que Platão usa em sua defesa e que fazem a circularidade particularmente berrante [Osório diz: Platão parece sempre agir de má-fé, como todo enrustido!]. Não alterariam essencialmente o caso, mas dariam aparência de padrão mais objetivo. A explicação de Gomperz do paradoxo e que cada qual está certo porque cada um vê uma faceta da verdade, aquela que sua disposição lhe permite ver, mas (como no caso da saúde do corpo) há disposições normais e anormais, e o homem mais normal, que Protágoras chama de sábio, tem a crença mais normal, mais forte e melhor. Sua teoria corresponde a sua prática retórica, e de fato uma justificação epistemológica da importância da retórica. O retor deve ser capaz de defender pontos de vista opostos com igual sucesso, levando finalmente um a vitória como o "mais forte". Precisamente assim o epistemólogo prova que todas as ideias são igualmente verdadeiras, pois cada qual apreende uma faceta da verdade, decidindo depois por uma como a "melhor". Para Protágoras, o retor é idêntico com o sábio, porque foi treinado a ver ambos os lados, ao passo que o leigo só vê um lado da verdade, mas verdade parcial (p. 275). 21 [Osório diz: trecho fantástico sobre o argumento forte e o fraco! Guthrie superou-se!].

O que importa é que o critério de Protágoras é quantitativo: todos os juízos são igualmente verdadeiros, mas não igualmente valiosos porque, segundo apanham mais ou menos realidade, são mais ou menos normais ou anormais e assim mais fortes ou mais fracos [Osório diz: quantitativo quanto a abrangência, no caso, mas, também, quanto a quem os defende. Melhore e mais conceituados, melhor a possibilidade de explicação (formulação de acordo) e aderência por parte dos demais. Argumento de autoridade e autoridade do argumento devem ser analisados]. A explicação tem suas atrações, mais é enfraquecida por seu apoio nos conceitos de “normal” e “anormal”, pois como disse Cornford (PTK, 73) “mais são” para Protágoras “não significa 'normal', pois isto estabeleceria a maioria como norma e medida para a maioria”. [Osório diz: Isso foi o Cornford quem deduziu! Mas é isso mesmo? Não tem outro critério? Os sábios decidem, disse Protágoras, sem qualificar em “normal” e “anormal”! Ademais, Protágoras é um democrata e, como tal, a “a medida da maioria” é a única possibilidade diante das 3 teses de Górgias. Portanto, nada é enfraquecido, ao contrário, é fortificado] Só pode significar mais útil ou apropriado, uma crença que produzirá mais efeitos no futuro; [Osório diz: não! O Sábio estará aí para corrigir algo que, embora produza mais efeito no futuro, seja pior! Uma bomba atômica, embora produza mais efeitos no futuro, pode ser pior, como mostra a história moderna] isto, é, para o indivíduo, efeitos que tanto serão como parecerão melhores para o aluno do sofista depois de seu treinamento~[Osório diz: o aluno dos sofistas não se torna cego nem autômato, ao contrário, é treinado para pensar, e, justamente por pensar, pode e deve descobrir que, como sábio que se tornou, que estará aí para corrigir algo que, embora produza mais efeito no futuro, seja pior! Uma bomba atômica, embora produza mais efeitos no futuro, pode ser pior, como mostra a história moderna]. Ele preferirá então suas novas crenças [Osório diz: crenças não no sentido religioso (cuidado com os cacos!), mas no sentido de algo melhor. O que não implicará em nada de errado]. Para o Estado, suas leis e seus costumes são certos e louváveis enquanto forem impostos ou socialmente aprovados, mas o estadista pode persuadi-Io de que outros lhe seriam de mais vantagem. (A observação é feita explicitamente em 172a) [Osório diz: é isso mesmo! Qual o problema?]. Pena de morte, podemos dizer, é correta e apropriada enquanto tem apoio da opinião pública e é imposta legalmente. Se estas condições se alteram, é provável que seja porque antes uns poucos pensadores avançados (sophistai como o grego os poderia chamar) tiveram sucesso em difundir ideias diferentes; e só podem fazê-lo (segundo a teoria) convencendo os cidadãos de que a alteração será de vantagem prática (chreston) - de que, por exemplo, crimes de violência vão mais diminuir que aumentar. [Osório diz: É isso mesmo! Daí a importância do regime democrático!] Subjacente a esta argumentação tortuosa [Osório diz: tortuosa para quem?] está a convicção de Protágoras segundo a qual a dike existe para a preservação da ordem social, e que, portanto, a manutenção das leis existentes, embora não sejam as melhores, é justa e louvável porque as alternativas de desobediência e subversão destruiriam o "laço de amizade e união" de que nossa própria vida depende (Prot. 322c4). [Osório diz: fantástico isso! Não presta, mas ainda não tenho nada melhor. Mas isso não me impede de continuar tentando, antes de entregar a uma “estátua” ou a um pensamento o poder e o dever de me substituir em minha obrigação de procurar sempre o melhor!] Somente se forem sancionadas novas leis por consentimento comum e processos constitucionais é que a mudança pode ser para melhor [Refletindo sobre este assunto em linhas independentes, espero ter resolvido a dificuldade sentida e expressa por A. T. Cole em Yale. C. S. 1966, que o levou a concluir que a "Apologia de Protágoras" de Platão era de fato "não uma mas duas apologias", contendo respectivamente "uma concepção 'subjetivista' compatível com o princípio do homem como medida em 166d e uma 'utilitária' não assim compatível" (pp. 112 e 114s). Em particular não concordo que Platão tenha interpretado mal ou entendido mal a doutrina de 167a-b (p. 116). A afirmação de que 169d seja inconsistente não é verdade. Tudo o que aí diz Platão é que, de acordo com Protágoras, "alguns homens são superiores em assunto de melhor ou pior, e estes, disse ele, seriam sábios" (tradução de Cornford). Ele não diz que estes juízes melhores são os saudáveis em oposição aos doentes. São certamente os doutores (ou, em suas respectivas esferas, os agricultores, os oradores e os sofistas). [Osório diz: Guthrie “dá o couro à vara”!]]. [Osório diz: exatamente isso que pensa um democrata que se submete à lei. O que jamais seria possível para um Platão que quer e apoia a tirania, como fez em Siracusa].

(...)

Religião: teorias racionalistas: (a) agnosticismo e (b) ateísmo.

 

a) Crítica da religião tradicional:

 

Os filósofos pré-socráticos, quer admitissem, quer não a crença numa força ou em forças divinas, todos propagavam igualmente conceitos de religião que se afastavam muito do antropomorfismo [Osório diz: dá forma humana aos deuses] dos cultos populares ou estatais baseados no panteão [Osório diz: templo consagrado aos deuses por gregos e romanos] homérico. Xenófanes os atacava publicamente substituindo-os por um monoteísmo [Osório diz: monoteísmo entre os gregos] ou politeísmo não-antropomórfico. Outros os abandonavam tacitamente em favor, primeiro, de uma matéria sempre viva do mundo, descrita vagamente como governando ou dirigindo os movimentos do cosmo e de tudo o que ele contém, e, depois, em Anaxágoras, de uma Mente separada da matéria do universo sendo causa da ordem racional que ele manifesta.

Vimos Heráclito condenando oculto fálico [Osório diz: culto do pênis, que será retomado por Luciano de Samósata no século II da era atual] e outros cultos por causa de sua inconveniência, e Demócrito (sem dúvida sob a influência de teorias evolutivas já existentes [Osório diz: onde a prova? Suposição do autor, Guthrie]) afirmando que foi somente a natureza alarmante do trovão, relâmpago e fenômenos semelhantes que levou os homens a pensarem que eram causados pelos deuses. À medida que cresce a “ilustração” [Osório diz: a Sofística, ele, Guthrie, quer dizer!], manifesta-se sob dois aspectos principais (quer na Grécia antiga quer na Europa desde o Renascimento): em primeiro lugar a determinação de crer só no que é racional e a tendência a identificar a razão com o positivismo e o progresso da ciência natural [Osório diz: foi isso que Platão, com sua teologia, pôs a perder, já que voltou à superstição: crença em divindades!], e, em segundo lugar, o genuíno interesse pela moralidade. A moralidade identifica-se com a melhoria da vida humana e a eliminação da crueldade, injustiça e todas as formas de exploração dos seres humanos por seus companheiros, e baseia-se em padrões meramente humanístico e relativos, pois sustenta-se que padrões absolutos pretendendo autoridade sobrenatural não só levaram no passado [Osório diz: bem como no presente em que nasceu a Sofística, século V antes da era atual, e até depois, século IV, com os esctravocratas Platão e Aristóteles], mas também devem levar inevitavelmente, à crueldade, intolerância e outros males. Os deuses gregos eram muito vulneráveis nestes dois aspectos [Osório diz: os deuses porra nenhuma, mas os homens que os criaram e os usavam], e logo que a piedade convencional começou a se entregar a atitude mais pensativa – quando o nomos em todos os seus aspectos não mais se tomava como concedido, mas antes era contraposto ao que era natural e universal [A atitude convencional é exemplificada pela réplica de Sócrates em Xenofonte (Mem. 4.3.16) a Eutidemo, que reconhece a providência divina mas está preocupado com o pensamento de que não se pode dar nenhum retorno da parte dos homens aos deuses. Os deuses mesmos, diz ele, forneceram a resposta, pois sempre que o oráculo de Delfos se aproxima deste problema, replica: "Segue o nomos de tua cidade", o que significa propiciar aos deuses com sacrifícios na medida que está em teu poder [Osório diz: corrompe com agrado o teu deus?]. Tal resposta dificilmente satisfaria aos espíritos mais exigentes e interrogativos do séc. V. [Osório diz: no caso Guthrie dá “A César o que é de César”! Acho que chegou a passar mal com isso!]] [Osório diz: deus, que nunca foi, deixa de ser o legislador!] – o catolicismo [Osório diz: que ridículo Guthrie! Ainda mais por negar, depois, qualquer valos aos Sofistas, preferindo abraçar Platão e Aristóteles, os escravocratas!] e a desaprovação começaram a se fazer com crescente intensidade[Osório diz: mentira, pois Platão e Aristóteles são do século seguinte, o IV e, mesmo assim, continuam aprovando tudo isso!].

[Osório diz: alguns dos temas pelos quais, ou contra os quais, investiram os sofistas contra o meio social em que viveram: eliminação da crueldade e da injustiça e de todas as formas de exploração dos seres humanos por seus companheiros. É ou não um programa digno de louvor?].

O ataque à religião estava, com efeito, estreitamente ligado com a antítese nomos-physis. Platão (Leis 889e) queixa-se dos que afirmam que “os deuses são invenções humanas, não existem na natureza, mas apenas por costume e lei, que de mais a mais, diferem de lugar para lugar segundo o acordo feito por cada grupo quando estabeleceu suas leis”. Quando escreveu Platão, tais controvérsias não eram nada de novo [Osório diz: sim, ele que é do século IV, as apanha, no mínimo, no século V! De onde mais, Guthrie?]. O Sócrates de Aristófanes rejeitava os deuses como moeda fora da moda (nomisma, p. 58 acima), e, em Eurípides, Hécuba chama o nomos de superior aos deuses, porque é pelo nomos que nós cremos neles bem como em padrões de certo e errado. Há provas de sobra de que a influência da religião sobre as mentes dos homens enfraquecia-se no fermento intelectual da idade de Péricles, e também que o oficialismo ateniense estava nervoso e era sensível a isso. O culto dos deuses era parte integral da vida do Estado e uma poderosa força coercitiva [Osório diz: força coercitiva: manter os celerados amedrontados pelos castigos!]. Pode-se afirmar que tudo o que se fazia necessário era a conformidade com as práticas do culto, e que o pensamento era livre; mas deve ter sido tão óbvio para um ateniense tradicionalista como para o Cotta de Cícero que os que negam inteiramente a existência dos deuses “non modo superstitionem tollunt... sed etiam religionem, que deorum cultu pio continetur[Tradução: ] ... Daí os julgamentos de impiedade e decreto de Diopeithes contra o ateísmo e a especulação cósmica.

Eles nos toleravam [diz Plutarco (Nícias 23)] os filósofos naturais e os fitadores de estrelas [meteoroleschas, lit. "palradores sobre coisas do firmamento". A palavra ocorre em Platão (Rep. 489c), ligada com o adjetivo acherestous, para ilustrar o tipo de injúria que era dirigido aos filósofos. [Osório diz: aos filósofos! Pré-Socráticos e Sócrates! Pula-se sobre os Sofistas, que não eram filósofos, como tantas vezes diz Platão!]], como eles os chamavam, dissolvendo a divindade em causas irracionais, forças cegas e propriedades necessárias. Protágoras foi (p. 212) banido, Anaxágoras foi posto em embaraço e salvo com dificuldade por Péricles, e Sócrates, embora de fato não tivesse interesse por estes assuntos [Osório diz: como não se ele os conhecia e os discutia?], perdeu a vida pela devoção à filosofia.

E em sua vida de Péricles (32):

Por esta época [sc, pouco antes da Guerra do Peloponeso] Aspásia foi perseguida por impiedade... E Diopeithes [Não se conhece muito do que se designa com o nome próprio de Diopeithes. O nome é mencionado várias vezes em Aristófanes (Cavaleiros 1085, Vespas 380 Pássaros 988) mas tudo o que emerge é que o seu portador era adivinho. Fragmentos de outros poetas cômicos o pintam como fanático [Osório diz: como, de resto, são os religiosos!] e como tocador de tambor nos ritos coribânticos (Ameipsias 10 K., Teléclides 6 K e Frínico 9 K.; v. Lobeck, Aglaoph. 981). A perseguição de "Anaxágoras, o Sofista" é mencionada (mas não Diopeithes ou seu psephisma) por Diodoro (12.39.2). Para a conexão dos sofistas com os filósofos naturais [Osório diz: eis o que disse na nota anterior] cf. pp. 47ss, acima, e para a suposta conexão entre "contemplação do céu" e ensino sofista imoral Nuvens 1283 (pp. 109s).] introduziu uma denúncia para a cassação dos que negavam os deuses e ensinavam sobre fenômenos celestes, suspeitando de Péricles por causa de Anaxágoras. [Osório diz: o mesmo fará o catolicismo milênio depois! Galilleu].

A palavra sophistes aplicava-se naturalmente tanto a Anaxágoras como a Protágoras ou Hípias. [Osório diz: quando se aplica a Anaxágoras ela não é pejorativa, já quanto aos Sofistas... Pula-se sobre os Sofistas, que não eram filósofos, como tantas vezes diz Platão! Vai dos filósofos naturais a Sócrates, saltando, com vara, sobre os sofistas]

A crítica aos deuses por motivos morais veio cedo. Não era necessária nenhuma especulação científica ou subtileza lógica para escandalizar-se pela castração que Zeus aplicou em seu pai [Osório diz: É justo filho bater no pai? Zeus, que era deus, fez pior! Mas também cabe a pregunta: se o pai quer ser respeitado pelo filho, não deve também respeitá-lo?] e por seus muitos amores, pelos roubos e fraudes de Hermes, ou pela ciumeira de Hera e pelo caráter malicioso e vingativo dos imortais em geral. Mitos que apresentavam deuses como ladrões, adúlteros, sedutores e glutões já tinham sido rejeitados por Xenofonte e Píndaro. Na era da ilustração encontramos Eurípides por toda parte dando rédeas a esta crítica. Pode tomar diferentes formas – censura aos deuses por seu comportamento, declarações de que existem os deuses, mas não se comportaram nem podem se comportar desta maneira, ou afirmações de que, se assim são os deuses em que nos ensinam a crer, ou não existem – é tudo mentira – ou não se importam com os negócios humanos e não merecem nem precisam de nossa adoração. Como dramaturgo, Eurípides podia refletir todos os pontos de vista através de seus enredos e personagens [Osório diz: o mesmo vale para Platão]. No Íon, vemos a desilusão de um jovem, piedoso ministrante no templo, que fica sabendo que o deus a quem serve caiu na humilhação de seduzir uma mulher mortal. O Héracles contém veemente negação de que os deuses pudessem se comportar iniquamente (1341ss): [Osório diz: Por que o nome de Héracles era Héracles, já que tão próximo ao de Hera, sua madrasta e perseguidora?]

 

Não creio que os deuses tenham prazer em intercurso ilegal, nem pensei jamais nem posso ser persuadido de que oprimem uns aos outros com grilhões, nem que um seja senhor sobre o outro. Deus, se for verdadeiramente deus, não precisa de nada. São contos ignóbeis de bardos [Todavia era tão forte a forçada tradição que todo o enredo do Héracles depende da raiva de ciúme de Hera, de cuja crueldade inenarrável o próprio herói, que fala as palavras, foi vítima. Alguns pensaram que o paradoxo era deliberado, para manifestar o absurdo inerente da situação, mas Lesky (provavelmente com razão) vê-o como produto da tensão entre o assunto, imposto pela tradição e mitologia, e o intelecto do dramaturgo. V. Lesky, HGL, 382.]. [Osório diz: Essa prática de violência é comum no Velho testamento. / O interessantes é a desnecessidade sentida pelos deuses!]

 

Descrença total nos deuses, baseada na prosperidade dos maus e nos sofrimentos do justo, ganha voz em explosão apaixonada no Belerofonte. Não há deuses no céu. É insensatez crer em tais tagarelices. Basta que olhes ao teu redor. Tiranos matam, fraudam e saqueiam, e são mais felizes do que o piedoso e pacífico. Pequenos Estados tementes a deus são esmagados por força militar de Estados maiores e mais iníquos. Mais na tendência da passagem de Héracles está a linha, novamente de Belrofonte: “Se deuses agem ignobilmente, não há deuses”. Eurípides também enfatiza que se podia invocar o exemplo dos deuses para desculpar as falhas humanas, como, por exemplo, a velha ama de Fedra lhe desculpa a paixão ilícita lembrando-lhe, com exemplos de Zeus e Eos, que Afrodite é poder forte demais para os próprios deuses resistirem, e de novo, quando Helena se desculpa de sua própria conduta (Tro. 948). A mesma observação é feita com tendência cômica por Aristófanes, quando o Argumento Injusto afirma que, sem sua habilidade retórica, um pecador ficará perdido, mas com ele confundirá os seus acusadores (Nuvens 1079):

 

Supõe que és pego em adultério, tu argumentarás que não fizeste nada de errado, apontando para Zeus que nunca pôde resistir ao amor e a mulheres. Como, dirás, podes tu, um mortal, mostrar mais força do que um deus? [Osório diz: a relação dos sofistas com deus! Que religioso suportaria essa gente?].

 

Em contraste com o tradicionalismo rústico da ama, o moralista poderia afirmar que um deus podia ser mero produto de transferência psicológica: os homens dariam o nome a suas próprias paixões más [Osório diz: quem é o deus? A ama ou quem, podendo tudo, não impede a transferência psicológica?]. "Meu filho era belo", diz Hécuba a Helena (Eur. Tro. 987), "e à vista dele tua mente se tornou Cipre. Todos os atos insensatos são chamados de Afrodite pela humanidade”. Não se deve pensar, e não se pensava na época [Decharme (Critique, p. vii) apontou uma razão pela qual nenhuma suspeita de impiedade se ligava a esta purificação. … O fundamentalismo era fenômeno desconhecido aos gregos, porque não havia nada em sua literatura religiosa que correspondesse à “palavra de Deus”], que a crítica que tentava absolver os deuses do comportamento aético ligado a seus nomes nos mitos, era ataque à religião como tal, ou mesmo à religião estatal estabelecida. Um de seus mais vigorosos expoentes foi Platão, que na República acusou fortemente Homero e Hesíodo de mentira, todavia foi implacável opositor da descrença nos deuses e em seu cuidado providencial pela humanidade, e defensor dos cultos oficiais. [Osório diz: e aí Platão pôs todo o seu pensamento a perder!].

O pronunciamento de Antífon [sobre a divindade]: "Por esta razão ele não precisa de nada, nem espera alguma coisa de alguém, mas é infinito e auto-suficiente" [(a) Fr. 10. Com oudenos deitai de Antífon, cf. deitai gar ho theos... oudenos em Eurípedes. (b) Há tanta incerteza sobre a data dos escritos de Antífon (v. p. 265, n. 48, abaixo) que é impossível por razões externas dizer se Eurípedes copia ou não de Aletheia. Alguns usaram "ecos" de Antífon em Eurípedes como prova real de sua data, mas este é um critério perigoso. Afirmações como "Deus não carece de nada" podiam ser comuns a mais de um escritor do tempo, e nem Eurípedes nem Antífon precisam ser os primeiros a dizê-lo. [Osório diz: existem registros de outros dizendo isso? Se não tiver, o pioneirismo é de Antifonte sim!]]. [Osório diz: Deus é que é rico. Deus é que deve ajudar, não ser ajudado pelos pobres, por exemplo e diversamente do ocorre no mundo!].

A idéia que Platão deplorava, que “existem deuses, mas eles não se incomodam com os negócios humanos” (Leis 885b, 888c), era corrente no séc V. Xenofonte (Mem. 1.4.10) apresenta um homem chamado Aristodemo protestando a Sócrates, quando acusado de recusar dar aos deuses seu costumeiro galardão de sacrifício e prece, que, longe de desprezar o divino, ele pensava que o divino era grande demais para precisar de seu serviço, e, de mais a mais, que os deuses não podiam ter nenhuma atenção para com a humanidade. Diz-se que Antífon negou a providência na mesma obra Sobre a verdade em que declarou a auto-suficiência de Deus e falou da conveniência de se conformar com a moralidade convencional somente quando sob observação; e Trasímaco viu na prevalência da maldade uma prova de que os deuses são cegos ao que se passa entre os homens. [Osório diz: que religião não desejaria apagar tais pensamentos?].

O racionalismo dos filósofos naturais não era totalmente ateísta (como usaríamos a palavra), mas não obstante destrutivo do panteão tradicional e oficial. Na tradição jônica, a divindade, por longo tempo, foi identificada com a physis viva do mundo, até que Anaxágoras a separou como Mente remota que começou o processo cósmico no início. Mais importante do que a existência desta Mente era, para seus contemporâneos, a redução do Hélios onividente, que atravessava o firmamento todo dia em sua carruagem de luz e era a terrível testemunha dos juramentos mais sagrados dos homens, ao estado de uma massa de pedra incandescente informe e sem vida. [Osório diz: a desmitificação da divindade. Hélio, o sol, deixou de ser um deus (mente remoa que começou o processo cósmico) para transformar-se naquilo que é: uma pedra!].

Eurípedes (…) é como espelho de seu tempo que ele (para nossos presentes objetivos) é mais bem considerado. [Osório diz: por isso, Aristófanes também deve sê-lo!].

[Osório diz: Platão tentou, com seu Sócrates, fazer o argumento fraco (o dele) transformar-se em forte? Sim! Quando ele não tinha mais racionalidade para apelar, ele apelou para o invisível, deus!].

Quem não lança longe de si os embustes dos fitadores de estrelas, cujas línguas nocivas, vazias de bom senso, balbuciam a esmo assuntos desconhecidos?” Pesquisa desorientada dos segredos da natureza levou alguns ao ateísmo, mas para o homem sábio o kosmos intertemporal, que ela revela só pode levar à conclusão que há deus, ordenador inteligente, em ou atrás dela. [Osório diz: isso é crença, não explicação. Não é racionalidade].

Astrônomos (diz Platão) receberam o nome de ateus porque alguns dos primeiros pensavam que os corpos celestes eram apenas massas mortas girando por necessidade. Mas mesmo entre estes as mentes mais ousadas suspeitaram que seus movimentos perfeitamente calculados não podiam ser realizados sem inteligência, e decidiram que, embora as próprias estrelas pudessem ser torrões e pedras sem vida, havia uma mente atrás delas dirigindo seus movimentos em toda a ordem cósmica. [Osório diz: mas qual mende? Onde está? Suposição?]

 

Agnosticismo: Protágoras.

 

Segundo Diógenes Laércio (9.24), o filósofo eleata Melisso disse que era errado fazer qualquer pronunciamento sobre os deuses porque era impossível o seu conhecimento. Mas o caso clássico de agnóstico neste século é o seu contemporâneo Protágoras, que ficou famoso por ter escrito:

 

Quanto aos deuses, sou incapaz de descobrir se existem ou não, ou que forma têm; pois há muitos empecilhos para o conhecimento, a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana. [Osório diz: o cara confessa uma fraqueza sincera (o desconhecimento) e é condenado? Deveria ele mentir, como faz Platão? Aliás, mentir sobre deus é a melhor coisa, pois é impossível provar a mentira na forma que se requer!]

 

A forma da afirmação é de uma opinião pessoal (“Sou incapaz...") e contrasta significativamente com uma expressão como a de Xenófanes (fr. 34) de que nenhum homem viu, e nenhum homem também nunca saberá a verdade sobre os deuses [Osório diz: Protágoras não fecha portas! Não diz que o tema deva ser encerrado. Não o dá por findo para o homem, apenas para ele próprio, Protágoras]. Alguns acreditavam nos deuses e outros não, e, sendo assim, de acordo com o princípio "o homem é a medida", os deuses existiam para alguns e não para outros; mas para o próprio Protágoras a suspensão de juízo era a única maneira possível [Isto se acomoda satisfatoriamente coma alegação de T. Gomperz (GT, 1, 457) de que se Protágoras cresse, como Platão disse que cria, que "toda a verdade de um homem é a verdade que lhe parece", ele não poderia ter dito o que disse sobre os deuses. [Osório diz: claro que poderia. Uma coisa não exclui outra! Para ele, Protágoras era assim. Isso não impedia que para outro fosse diferente! Mas, daí seu gênio: um poderia convencer o outro de sua tese! Ess Gomperz, tanto pai quanto filho são dois fanáticos!]]. [Osório diz: isso mesmo! Enfim o autor, Guthrie, reconhece o que deveria ser do conhecimento de todos! Protágoras jamais proibiu, até porque nem poderia, a crença nos deuses, mas a entregou a cada qual!]

Protágoras (…) defendeu o culto religioso segundo os nomoi antepassados. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 155-165, 211-218).

 

29

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

77 – Valores – sua relatividade.

 

Nos diz Guthrier:

 

Muitas vezes se aduz como uma das causas do novo humanismo a ampliação de horizontes mediante aumento de contatos com outros povos, na guerra, nas viagens e na fundação de colônias. Estes deixaram cada vez mais claro que costumes e modos de comportamento que antes tinham sido aceitos como absolutos e universais, e de instituirão divina, eram de fato locais e relativos. [Osório diz: Divergência entre valores].

Hábitos que para gregos eram maus e desagradáveis, como casamento entre irmão e irmã, podem entre os egípcios ou alhures ser considerados normais e até impostos pela religião. A história de Heródoto é típica dos meados do séc. V pelo entusiasmo com que coleta e descreve os costumes dos citas, persas, lídios, egípcios e outros, indicando suas divergências do uso grego. Se se pedisse a todos os homens, diz ele, que mencionassem as melhores leis e costumes, cada um escolheria os seus próprios; e o ilustra pela história de Dario, que mandou vir a sua corte alguns gregos e hindus e perguntou primeiro aos gregos por que consideração eles consentiriam comer os seus pais falecidos. Quando estes responderam que não fariam isso por nada, ele se voltou para os hindus (de uma tribo que normalmente comiam os corpos de seus pais) e lhes perguntou se algo os poderia persuadir a queimar seus pais (como os gregos faziam), ao que eles protestaram pela mera menção de tal impiedade.

Também Eurípides notou que se pratica o incesto entre povos não-gregos, “e nenhuma lei o proíbe”... [Osório diz: Relatividade dos valores]

[Sócrates não concordava que uma lei não era menos universal e divina porque alguns a transgrediram; ... [Osório diz: um único exemplo e, ainda por cima, o pior!].

Estadas entre egípcios e caldeus são relatadas de primitivos filósofos e sábios como Sólon, e são inteiramente confiáveis tais relatos.” (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 20-21).

 

Doutrina Untersteiner:

 

Contentemo-nos, por agora, com uma explicação genérica para "os dois lógoi conflitantes entre si". Poderíamos dizer que a ideia expressa nessa fórmula implica o reconhecimento da relatividade dos valores. O pensamento helênico tinha chegado a essa ideia pela força natural do desenvolvimento histórico, com a ampliação de sua visão no espaço e com uma penetração na intimidade das coisas cada vez maior.” (Fonte: A obra dos sofistas: uma interpretação filosófica, Mario Untersteiner, tradução: Renato Ambrósio, Paulus, São Paulo, 2012, p. 50).

 

2

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

76 – Relativismo (o que ele questionou).

 

Nos diz Guthie:

 

Estamos entrando num mundo em que não só doce e amargo, quente e frio existem por crença, ou por convenção, mas também justiça e injustiça, certo e errado [Esta justaposição de físico e moral como igualmente subjetivos é feita por Platão em Conexão com Pitágoras, Theaet. 171e-172a.]. Dúvidas sobre a ordem e a estabilidade do mundo físico como um todo, e desentronização da divindade em favor do acaso e necessidade natural como causas, foram assumidas por defensores da relatividade das concepções éticas, tornando-se base de sua defesa. Para se ver que assim ocorreu, basta olharmos adiante para a época em que Platão entrou em campo contra elas: para combater suas teorias morais desagradáveis, viu-se obrigado a construir toda uma cosmogonia, na qual era dado o primeiro lugar ao intelecto e ao desígnio consciente. É, diz ele, a ideia de que o cosmo surgiu por acaso que tornou possível a negação de padrões absolutos de certo e errado (pp. 110 abaixo).” (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 60).

 

Ensina Kerferd:

 

Usamos os termos logos e logoi que não foram traduzidos, ou o foram diversamente por "afirmações", "argumentos" e (no singular) por "fala" ou "discurso" e, pelo menos em uma ocasião, pareceu apropriado falar de um logos como ocorrendo "na estrutura das coisas". Na verdade, uma pesquisa nos dicionários revela imediatamente que a faixa de significados ou aplicações da palavra grega logos é ainda mais larga do que poderia sugerir a variedade de traduções dadas acima. Não é, estritamente falando, com uma palavra com diferentes sentidos que estamos lidando aqui mas, antes, com uma palavra com uma série de aplicações relacionadas, todas, com um único ponto de partida. Esse é um fenômeno que, de acordo com G. E. L. Owen, veio a ser rotulado de "significação focal", embora talvez "referência focal" fosse uma expressão melhor, visto que o que está envolvido é uma referência extra linguística a alguma coisa que se supõe ser fato no mundo à nossa volta. No caso da palavra logos, há três áreas principais de aplicação ou uso, todas relacionadas por uma unidade conceitual subjacente. São elas, em primeiro lugar, a área da linguagem e da formulação linguística, portanto fala, discurso, descrição, declaração, afirmação, prova (quando expressa em palavras) e assim por diante; em segundo lugar, a área do pensamento e dos processos mentais, portanto reflexão, raciocínio, justificação, explicação (cf. orthos logos) etc.; em terceiro lugar, a área do mundo, aquilo sobre o que somos capazes de falar e pensar, portanto princípios estruturais, fórmulas, leis naturais e assim por diante, desde que, em cada caso, sejam considerados realmente presentes e exibidos no processo do mundo.

Embora em qualquer determinado contexto a palavra logos pareça apontar principalmente, ou mesmo exclusivamente, para apenas uma dessas áreas, a significação fundamental, usualmente, talvez sempre, envolve algum grau de referência às duas outras áreas também, e isso, acredito, é verdade tanto para os sofistas como para Heráclito, para Platão e para Aristóteles. Por isso, no que se segue, onde por conveniência o termo "argumento" é usado como tradução, deve-se lembrar que isso será enganoso a menos que seja entendido como normalmente referindo-se, em certo grau, a todas as três áreas mencionadas acima.

Diógenes Laércio inicia o seu breve sumário das doutrinas de Protágoras (DK 80A1) com a afirmação: "Ele foi o primeiro a dizer que há dois logoi [argumentos] concernentes a todas as coisas, sendo opostos um ao outro. Foi por meio desses logoi que passou a propor argumentos envolvendo uma série de estágios, e foi o primeiro a fazer isso". Essa doutrina é firmemente associada a Protágoras em outras fontes também (DK 80A20) e, segundo Sêneca (Ep. 89.43), ele queria dizer, com isso, que se pode tomar qualquer lado de uma questão e debatê-la com igual sucessoaté mesmo a questão se todo assunto pode ser debatido a partir de qualquer um dos pontos de vista. É claro que sempre houve argumentos opostos desde que a raça humana se entreteve em argumentar. Mas o aspecto essencial não era simplesmente a ocorrência de argumentos opostos, mas o fato de que ambos os argumentos opostos pudessem ser expressos por um único orador, como se fosse dentro de um único argumento complexo. [Osório diz: frase de Protágoras]

Essa doutrina, de fato, era bem conhecida na segunda metade do século V a.C., e não estava confinada em Protágoras. Um fragmento da peça Antíope, de Eurípedes, que não pode ser anterior a 411 a.C., diz: "Em todos os casos, se a pessoa for inteligente no falar, poderia estabelecer um debate de argumentos duplos" (fr. 189N2) [Osório diz: Eurípides pode dizer isso sem sofrer as mesmas condenações dirigidas contra Protágoras?]; é interessante notar que, aparentemente, segundo Aristides, era um ator, na peça, que expressava ambos os argumentos. Em As nuvens, de Aristófanes, produzida pela primeira vez em 423 a.C., há um famoso debate entre dois logoi ou argumentos personificados — o Argumento Justo e o Argumento Injusto [Osório diz: aqui começa a inversão! Forte é trocado por justo / fraco é trocado por injusto]. Como já vimos, existe de fato um tratado conhecido como o Dissoi Logoi, ou "Argumentos Duplos" (DK 90), a ser datado provavelmente do início do século IV a.C. Começa declarando "Argumentos duplos concernentes a bons e maus são apresentados, na Grécia, por aqueles que se dedicam à filosofia", e os três parágrafos seguintes começam da mesma forma, mas discutem respectivamente o belo e o feio, o justo e o injusto, o verdadeiro e o falso. Sob cada título são apresentados argumentos opostos ou antitéticos.

O autor do tratado é desconhecido. É, sem dúvida, de caráter sofista, e alguns quiseram atribuí-lo à escola de Protágoras, se é que havia uma. Mas há, aqui, o perigo de circularidade no argumento. A técnica de argumentos opostos é certamente atribuída a Protágoras. Mas, enquanto não ficar estabelecido que estava confinada nele, não se deve concluir que todos os outros exemplos procedam exclusivamente dele. De fato, há testemunhos de que essa maneira de ver as coisas era bem uma característica da época. Além das referências já dadas, eu citaria a passagem em Vida de Péricles 4.3, de Plutarco, segundo a qual

 

Péricles era também aluno de Zenão, o Eleático, que discursava sobre física, como Parmênides, e que aperfeiçoou um tipo de habilidade para questionar adversários, num argumento, que os levava a um estado de aporia através de argumentos opostos [di’antilogias]; assim se expressou Timon de Flius, quando falou do grande poder, cujo efeito jamais falhou, do homem de língua de dois gumes, Zenão, que tinha o domínio de todas as coisas.

 

Aqui, Timon está identificando, corretamente, o procedimento com o método pelo qual Zenão reduzia seus adversários ao silêncio, mostrando-lhes que suas posições preferidas eram contraditórias pelo fato de implicarem também a negação de si mesmas. Como já vimos, esse é o método da antilógica, e talvez seja o aspecto mais característico do pensamento de todo o período sofista.

Depois de mencionar a doutrina dos dois logoi opostos, Diógenes de Laércio prossegue citando a famosa declaração, manifestamente do início de um dos escritos de Protágoras: "O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, quanto a como são, e das coisas que não são, quanto a como não são". O título da obra é dado por Platão (Teeteto 161 c) como sendo Sobre a verdade, ao passo que Sexto Empírico (DK 80A1) diz que ela está no início de Escritos demolidores, possivelmente um outro nome para a mesma obra. A interpretação dessa famosa sentença tem sido tema de discussão desde o tempo de Platão até os nossos dias. Na realidade, não seria exagerado dizer que a compreensão correta de seu sentido nos levará diretamente ao coração de todo o movimento sofista do século V. Alguns pontos que foram temas controvertidos no passado podem agora ser considerados razoavelmente resolvidos [Osório diz: frases de Protágoras]. Proponho simplesmente fazer uma lista deles a fim de guardar lugar para outros temas de controvérsia. O homem que é a medida é cada homem individualmente, como você e eu, e certamente não a raça humana, ou a humanidade tomada como uma entidade em si [Osório diz: o homem individualmente ou toda a humanidade?]. Em segundo lugar, o que é medido nas coisas não é a sua existência e não-existência, mas o modo como são e o modo como não são, ou, em termos mais modernos, quais são os predicados que devem lhes ser atribuídos como sujeitos em sentenças sujeito-predicado [Osório diz: o que o homem mede?]. Diz Platão, no Teeteto, 152a6-9), imediatamente após citar a afirmação, que isso significa que "cada grupo de coisas é para mim tal como me aparece, e é, para você, tal como lhe aparece". O exemplo típico, mais tarde, na Antiguidade é este: se o mel parece doce para alguns e amargo para outros, então ele é doce para aqueles aos quais parece doce e amargo para aqueles aos quais parece amargo.

Mas se isso seria, hoje, provavelmente aceito pela maior parte dos estudiosos, só até aí se pode chegar com segurança — o resto é assunto de debate e de alguma dificuldade. A questão mais controvertida concerne à natureza e à situação das coisas das quais o homem é a medida. Será conveniente resumir a discussão de Platão no Teeteto, onde se dá um exemplo. Protágoras tinha dito que o homem é a medida de todas as coisas, querendo dizer que cada grupo de coisas é para mim tal como me aparece e é para você tal como lhe aparece. Assim, no caso do vento, às vezes quando o mesmo vento está soprando ele é frio para uma pessoa e, para outra, não. Nesse caso, portanto, Protágoras diria que o vento é frio para aquela que sente frio, e não é frio para a outra. Ora, é claro que essa teoria implica a rejeição da percepção cotidiana de que o vento em si mesmo ou é frio, ou não é frio, e uma das pessoas que o sente se engana supondo que o vento é tal como lhe parece e a outra está certa. Mas restam pelo menos três possibilidades: (1) não há um único vento, mas dois ventos particulares, o meu vento que é frio, e o seu vento que não é. (2) Há um vento (público), mas não é nem frio nem quente. A frieza do vento só existe particularmente para mim quando tenho a sensação de frio. O vento mesmo existe independentemente da minha percepção dele, mas a sua frialdade, não. (3) O vento em si mesmo é ao mesmo tempo frio e quente — quente e frio são duas qualidades que podem coexistir no mesmo objeto físico. Eu percebo uma, você percebe a outra.

Todas essas três visões têm seus defensores modernos, embora a divisão maior seja entre os que defendem (2) e os que defendem (3)(Mas Gregory Vlastos sustenta que Platão não estava interessado em se pronunciar sobre a situação do vento não percebido, de modo que sua opinião liga (1) e (2)). Chamarei a (2) de opinião subjetivista (embora o termo subjetivista pudesse claramente ser aplicado também, em sentido ainda mais forte, a (1)), e de opinião objetivista a (3). Mas é preciso compreender que (2) incluirá a opinião de que a percepção baseia-se, de modo causal, nos aspectos de fato presentes no mundo objetivo. Esses fatores causativos podem bem, numa opinião comumente sustentada, ser a fonte dos conteúdos das percepções de um indivíduo. Mas o que ele percebe são os resultados dessas causas, não os próprios fatores causativos; como esses resultados são determinados pelo impacto dos fatores causativos em si mesmo enquanto sujeito, e vão variar de pessoa a pessoa, de acordo com as diferenças no sujeito, será conveniente e, espero, não muito ilusório continuar a incluir essa teoria sob o título de teorias subjetivistas.

Depois de explicar que com a doutrina do homem-medida Protágoras queria dizer que o vento era frio para o homem a quem ele parecia frio e não era frio para o homem a quem não parecia ser frio, Platão continua dizendo, no Teeteto (152b9), que parecer é o mesmo que ser percebido, e conclui que Percepção, então, é sempre daquilo que é, e é infalível, sendo o mesmo que conhecimento. Agora, como a expressão "aquilo que é" é quase regularmente usada em Platão para se referir à realidade objetiva, permanente, enquanto distinta dos padrões mutáveis do mundo das aparências, isso parece favorecer mais a interpretação (3) do que a interpretação (2). Mas essa inferência dificilmente se justifica, no presente caso, visto que a doutrina do homem-medida não é um critério para a existência mas, sim, para determinar como as coisas são, no sentido de quais predicados devem lhes ser aplicados. Em outras palavras, ao dizer que a percepção é sempre daquilo que é, poderíamos entender que isso significa que, para Protágoras, percepção de um objeto branco é sempre a percepção de que ele é branco.

Mais importante para nosso propósito aqui é a afirmação de que percepções como tais são infalíveis. Isso significa que cada percepção individual, em cada pessoa individual e em cada ocasião individual é, estritamente falando, incorrigível — não pode nunca ser corrigida mediante comparação com a percepção de outra pessoa que difere da minha, nem por outro ato de percepção por mim mesmo em outra ocasião, mesmo que seja apenas um instante depois de minha primeira percepção. Se alguma coisa me parece doce, então é doce para mim, e isso não pode ser refutado pela experiência de outra pessoa que a percebe não como doce, mas como amarga, e assim por diante. Essa asserção é de considerável importância filosófica e o fato de ter sido proposta por Protágoras é certamente prova bastante clara de que, ao propô-la, Protágoras estava filosofando. Pois constitui a doutrina de que todas as percepções são verdadeiras. [Osório diz: sendo que a isso pode somar-se as 3 teses de Górgias, fechando a questão!].

Mas as consequências dessa posição filosófica não são insignificantes. Se todas as percepções são verdadeiras, segue-se que não há percepções falsas. Se todas as percepções são incorrigíveis, então não devem ser corrigidas, nem devem ser refutadas mediante a contraposição de outros atos de percepção, seja pela mesma pessoa, seja por outra. Que essas consequências foram de fato tiradas no período sofista, creio que pode agora ser estabelecido da seguinte forma. O ponto de partida deve ser o argumento no Eutidemo 283e-286d, de Platão. Aí se afirma que "não é possível contradizer", querendo dizer, com isso, que não é possível a uma pessoa contradizer a outra (ouk estin antilegein). Essa doutrina paradoxal está baseada numa segunda asserção paradoxal, a saber, que não é possível dizer o que é falso. Este segundo paradoxo é defendido da seguinte maneira.

Quem diz a verdade está falando qual é o caso daquilo que é o caso. A pessoa que fala de maneira inverídica está falando o que não é o caso daquilo que não é o caso. Mas aquilo que não é o caso simplesmente não existe. De modo que uma pessoa que diz o que não é caso não está falando de coisa alguma. Está usando palavras mas elas não se referem a nada porque aquilo ao que elas parecem estar se referindo simplesmente não existe [Osório diz: aquí, a própria atitude do Crático, de apenas mover o dedo, de que tanto fala Barbara Cassin para combater Aristóteles, vem ao caso. Ou seja, crático nem precisava balançar o dedo, mas, se desejasse, simplesmente falar, mas não precisa falar aquilo que Airstóteles quer que ele fale!]. Daí se segue, argumenta-se, que se duas pessoas fazem uma afirmação, ou (1) dizem a mesma coisa, e nesse caso não há contradição, ou (2) uma pessoa está dizendo qual é o caso, isto é, o que é verdadeiro porque a coisa a respeito da qual está falando é tal como ela diz que é, e a outra pessoa está dizendo alguma coisa diferente do que diz a primeira pessoa. Isto também é o caso e, portanto, é verdadeiro, mas, porque é verdadeiro, será sobre alguma coisa diferente daquilo sobre o qual a primeira pessoa estava falando. Portanto as duas pessoas estão falando de coisas diferentes. Suas afirmações aparentemente conflitantes não constituem uma contradição porque não estão falando da mesma coisa, ou (3) uma pessoa está dizendo qual é o caso, isto é, o que é verdadeiro porque a coisa da qual está falando é como ela diz que é. A outra pessoa está dizendo alguma coisa verbalmente diferente, do tipo que geralmente se diz que é inverídico. Mas porque é inverídico não é, absolutamente, sobre alguma coisa e, portanto, não é sobre aquilo a que se referia a afirmação feita pela primeira pessoa. Ela está usando meras palavras que não se referem a nada e, portanto, não está contradizendo a afirmação verdadeira feita pela primeira pessoa.

Este, ou algo parecido com isso, é o argumento desenvolvido no Eutidemo. Ambas as asserções, que não é possível contradizer e que não é possível dizer o que é falso, têm uma longa história subsequente. Aristóteles (Met. 1024b32, Top. 104b21) atribuiu ambas a Antístenes, embora não diga que tiveram sua origem nele. Antístenes aparentemente ainda estava vivo em 366 a.C. e, com base nisso, tem sido comum negar que qualquer uma das doutrinas tivesse alguma coisa a ver com o movimento sofista. Os testemunhos contra essa opinião, entretanto, sempre foram consideráveis. Imediatamente após o relato no Eutidemo, resumido acima, Platão faz Sócrates dizer (286cl) que "tem ouvido esse argumento de várias pessoas em várias ocasiões — pois Protágoras e os que lhe estão associados costumavam fazer grande uso dele, como o fizeram outros ainda antes dele". Se não bastasse isso, temos também uma afirmação, no Crátilo (429c9-d3), de que há muitos, tanto agora como no passado, que dizem que é completamente impossível dizer coisas que são falsas. Certamente baseado em testemunhos como esse, Filopono, no século VI d.C., não tinha dúvida de que a doutrina pertencia de fato a Protágoras (in Cat. 81.6-8).

Mesmo assim, a posição poderia ter parecido a alguns ainda duvidosa, na falta de novos testemunhos. Inesperadamente, surgiu um. Em 1941, descobriu-se parte de um papiro com um comentário sobre o Eclesiastes, provavelmente de autoria de Dídimo o Cego (século IV d.C.). Uma passagem dele, de grande interesse e importância, se tornou acessível em 1966, ao ser publicada por dois especialistas, G. Binder e L. Lisenborghs. O que aí é dito é o seguinte:

 

Uma afirmação paradoxal de Pródicos nos é transmitida no sentido de que não é possível contradizer (ouk estin antilegein)... isto é contrário à ideia e à opinião de todos os homens. Pois todos os homens contradizem tanto nas suas transações cotidianas como em questões de pensamento. Mas ele diz dogmaticamente que não é possível contradizer. Pois, se duas pessoas se contradizem, ambas falam. Mas é impossível que ambas estejam falando com referência à mesma coisa. Pois ele diz que só a que está dizendo a verdade e que proclama as coisas tais como são realmente é que está falando delas. A outra, que está se opondo a ela, não fala da coisa, não fala a verdade. [Osório diz: falar da coisa (dizer a verdade) não contradiz quem não fala da coisa (não diz a verdade), pois ambos os emissores estão a falar de coisas diferentes, um da coisa o outro da “não coisa”! Logo, impossível a contradição]

 

Na tradição doxográfica, Pródicos é mencionado como aluno de Protágoras (DK84A1), e a passagem justifica completamente a atribuição da doutrina segundo a qual não se pode contradizer o período sofista em geral e, em particular, Protágoras e seus discípulos.

Podemos agora voltar à doutrina do homem-medida e ao exemplo dado no Teeteto. No caso de discordâncias de percepção entre duas ou mais pessoas, não é possível que qualquer das afirmações feitas envolva falsas descrições do que está sendo descrito. Para o homem a quem o vento parece frio, ele é frio; e para o homem a quem ele parece quente, ele é quente. Ambas as afirmações são verdadeiras e não há, aqui, possibilidade de falsidade. Mas, da mesma forma, não há contradição — as duas afirmações não são sobre a mesma coisa, visto que cada homem está falando apenas de sua própria experiência, ou daquilo a que se refere a sua própria experiência. Ele não tem acesso à experiência do outro homem ou àquilo a que se está referindo na experiência do outro homem, e não pode fazer sobre isso nenhuma afirmação significativa. [Osório diz: e aí entram as 3 teses de Górgias em apoio a Protágoras].

No caso, então, em que algo assim estivesse envolvido na doutrina da percepção de Protágoras, tal como expresso na sua doutrina do homem-medida, como relacionar isso com a sua afirmação "concernentes a todas as coisas há dois logoi, um oposto ao outro"? Surgem duas dificuldades. Primeiro, se as percepções de cada um deles são verdadeiras, e elas constituem logoi, poderia parecer que concernentes a todas as coisas não haveria dois logoi, mas um número muito maior, a saber, tantos quantos as diferentes percepções de diferentes pessoas, seja agora, ou no passado ou no futuro. A resposta poderia ser que a grande variedade de experiências de percepção se reduzirá sempre a apenas duas, quando se toma uma como ponto de partida. Todas as cores diferentes de vermelho são sempre, necessariamente, não-vermelhas; todos os sabores diferentes do doce serão sempre, necessariamente, não-doces. Portanto, os dois logoi opostos seriam compreendidos, respectivamente, como A e não-A. Mas isso leva a uma objeção mais grave. A e não-A são claramente contraditórios. Se, para Protágoras, há sempre, de fato, dois logoi opostos concernentes a todas as coisas, e todos os logoi são verdadeiros, o que aconteceu com a doutrina segundo a qual é impossível contradizer? Este é um problema que não se colocou tão nitidamente na interpretação mais antiga de Protágoras, porque, na visão mais antiga, ele não sustentava que é impossível contradizer. Mas era um problema que sempre esteve lá, visto que a doutrina do homem-medida parece exigir que não haja nunca logoi opostos sobre a mesma coisa; eles são sempre sobre coisas diferentes; por exemplo, minha experiência e sua experiência são coisas diferentes, não uma e a mesma coisa. Se, como agora vimos razão para supor, há forte indício de que, de fato, Protágoras sustentava que a contradição é impossível, parece que temos um conflito direto com a doutrina dos dois logoi opostos [Osório diz: penso que ele harmoniza isso com o mito de Prometeu! Embora as contradições sejam impossíveis, as opiniões dos homens são sempre verdadeiras, mas para cada um, daí a necessidade de buscarem a harmonia para saber qual debe prevalecer recebendo a aquiescência do outro].

Mas há uma resposta possível. O que é preciso é reconhecer que há dois diferentes níveis envolvidos. Como afirma a passagem de Dídimo, as pessoas de fato se contradizem uma à outra, no sentido de que opõem negativamente uma afirmação à outra, tanto na vida cotidiana como no argumento filosófico. Não há, provavelmente, situação alguma na qual isto seja, pelo menos psicologicamente, impossível, e isso foi reconhecido na citação da Antíope de Eurípides. O que é necessário que se diga é que no nível verbal é possível a contradição, mas que isso não se aplica ao nível das coisas sobre as quais estamos falando. Pois quando estabelecemos aparentes contradições, no nível das palavras, elas são só aparentes, e se ambas as afirmações têm sentido será porque são sobre coisas diferentes, não são sobre a mesma coisa. [Osório diz: Salvando a doutrina de Protágoras].

Esta explicação tem a vantagem de nos permitir entender uma afirmação histórica que, infelizmente, não tem sido regularmente incluída nas coleções de passagens relativas aos sofistas. No início de sua composição sobre Helena, escrita talvez por volta de 370 a.C., Isócrates fala de "homens que envelheceram afirmando que é impossível dizer coisas que são falsas, ou contradizer, ou opor dois argumentos (logoi) concernentes às mesmas coisas", e opõe esses homens, como grupo, a outros (que parecem ser platônicos) que mantêm a unidade das virtudes. E prossegue dizendo que, infelizmente, essa evolução não é apenas recente — todo mundo sabe que Protágoras e os sofistas de seu tempo nos deixaram escritos exibindo coisas desse tipo —, e então menciona Górgias, Zenão e Melissos. Em primeiro lugar, deve-se notar que essa passagem reúne três princípios — a doutrina dos dois logoi, a impossibilidade de falsidade e a impossibilidade de contradição, em relação a um único grupo de homens. Mas fala da impossibilidade da doutrina dos dois logoi, quando a Protágoras se atribuía a sua asserção positiva. Isso significaria que, afinal de contas, não é a Protágoras que se faz referência?

Não é isso. A formulação tradicional da doutrina dos dois logoi dizia que há dois logoi concernentes a todas as coisas. O que Isócrates diz é que "eles" sustentam que é impossível haver dois logoi concernentes às mesmas coisas (no plural). Em outras palavras, quando há dois logoi, eles concernem não a uma mesma coisa, mas a coisas diferentes. Não poderia ser que Isócrates esteja correto por estar preservando a resposta dada, no círculo de Protágoras, exatamente à dificuldade que estávamos discutindo? Nós sabemos que, em certo sentido, Protágoras tinha atacado a doutrina segundo a qual a realidade era Uma (DK 80B2).

Mas, se há dois logoi concernentes a todas as coisas, como é possível manter, ao mesmo tempo, que quando há dois logoi estes não se referem à mesma coisa mas a coisas diferentes? De fato, no Teeteto, não disse Sócrates (152b2) "quando o mesmo vento está soprando, uma pessoa o sente frio e outra não" — sugerindo, assim, que o vento é uma coisa, não duas coisas? A isso a resposta deve ser, obviamente, sim. Mas, nesse caso, o que aconteceu com a sugestão de que há duas coisas envolvidas, em vez de uma? A resposta só pode ser que uma coisa é a que funciona como sujeito, e os dois logoi são o que é expresso por termos predicados aplicados, por exemplo, ao vento, enquanto sujeito. Isso explicaria por que Aristóteles trata habitualmente a doutrina do homem-medida de Protágoras como implicando uma negação da lei da não-contradição. Para Protágoras, o mesmo vento é quente e não-quente (= frio). Isto envolve duas afirmações contraditórias, a saber, "o vento é quente", e "o vento não é quente", e até esse ponto os que fazem essas duas afirmações estão falando da mesma e única coisa. Todavia, na medida em que se considera o vento como contendo, ao mesmo tempo, duas qualidades, ou substâncias, a saber, quente e frio, também é verdade que as afirmações "o vento é quente" e "o vento é frio" se referem a duas coisas diferentes, a saber, o quente no vento e o frio no vento. Ambas as afirmações podem ser verdadeiras, sem contradição, visto que as duas afirmações são afirmações sobre coisas diferentes. Convém, aqui, mencionar a casual sobrevivência de uma passagem do livro de Protágoras, Sobre aquilo que é, citada por Porfírio (DK 80B2), na qual Protágoras argumentava longamente, usando uma série de demonstrações, contra os que apresentavam o ser como um. Podemos inferir que Protágoras insistia em que aquilo que é não é um, mas uma pluralidade em todas as ocasiões. [Osório diz: frase de Protágoras].

Evidentemente algumas das minuciosas interpretações sugeridas aqui estão abertas a contestação. O que quero sugerir é que há dados convincentes em favor da tentativa de interpretar a doutrina de Protágoras como uma contribuição intencional, séria, para um problema filosófico sério. Volto-me, em seguida, para a questão de saber até que ponto isso era algo a ser associado somente com Protágoras, e até que ponto representa uma abordagem partilhada também por outros sofistas, ou até pelo movimento sofista como um todo. Já tivemos ocasião de considerar o surpreendente novo testemunho que deixa claro que Pródicos estava ligado exatamente a esses problemas. Mas e os outros? Aqui, o testemunho disponível não é novo. Mas clama realmente, creio eu, por uma nova abordagem, não obnubilada pelas pressuposições tradicionais como acontece frequentemente no estudo dos sofistas.

O testemunho mais importante se encontra no tratado de Górgias intitulado, segundo Sexto Empírico, Sobre aquilo que não é ou sobre a natureza. Temos dois sumários distintos dessa obra, um preservado por Sexto (ver DK 82B3) e o outro, na terceira seção de um fragmento de texto em estilo doxográfico, erroneamente atribuído a Aristóteles e, por isso, incluído no Corpus de seus escritos sob o título "Sobre Melissos, Xenófanes e Górgias" — ou, abreviadamente, De MXG. Nesse tratado Górgias apresentou o seu argumento em três estágios: (1) nada é, (2) se é, não pode ser conhecido pelos seres humanos, (3) e se é, e é cognoscível, não pode ser indicado e tornado significativo para outra pessoa.

A interpretação do que Górgias está dizendo é difícil, e o certo é que ainda não está à vista uma compreensão unânime do seu sentido geral, sem falar dos seus argumentos detalhados. Contudo, sua importância dificilmente poderá ser superestimada. Afinal de contas, é o que mais próximo temos, ou jamais teremos, de uma apresentação técnica completa de um argumento sofista articulado do século V a.C. É um texto mais técnico e mais organizado do que o Dissoi Logoi, com o qual, sob outros aspectos, pode ser comparado. O seu tratamento pelos estudiosos sintetiza, de várias maneiras, o problema da abordagem erudita do movimento sofista como um todo. Houve basicamente três estágios. Durante muito tempo pensou-se que não tinha intenção séria, mas fora composto simplesmente como uma paródia ou uma pilhéria sobre filósofos, ou, na melhor das hipóteses, um exercício puramente retórico de argumentação [Osório diz: se é destruidor não sendo sério {se fosse o fosse!} é opinião de quem não consegue enfrentá-lo]. De modo geral, é provável que essa visão não mais impere, embora ainda tenha defensores. Por isso Guthrie pôde escrever, a respeito do argumento apresentado na primeira das três seções da obra: "É tudo, claro, uma bobagem interessante" [Osório diz: como diria qualquer bobo sem resposta]. Um segundo estágio é alcançado por aqueles que estão preparados a levá-la a sério e a tomaram como um ataque geral e cuidadosamente orquestrado contra as doutrinas filosóficas dos eleáticos e, por extensão, contra as doutrinas de certos filósofos físicos entre os pré-socráticos. Esse tipo de interpretação toma o verbo "ser", no tratado de Górgias, no sentido de "existir". A primeira parte, então, argumenta que Nada existe, e passa a demonstrar isso argumentando que Não-ser não existe, tampouco Ser existe. Isso é dirigido contra a asserção de Parmênides de que somente o Ser existe e Górgias, com os seus argumentos, chega a uma posição de niilismo filosófico. Parmênides tinha destruído o mundo multiforme das aparências, mas reteve o mundo unitário do Ser Verdadeiro; Górgias apagou a lousa inteira, e ficou com simplesmente — Nada. [Osório diz: Górgias versus Parmênides].

Um dos atrativos desse segundo estágio na interpretação do tratado de Górgias era o fato de colocar Górgias firmemente, mesmo se um tanto destrutivamente, dentro da corrente principal da história da filosofia. Creio que isso permanece como requisito para uma interpretação correta. Mas, entrementes, houve algumas mudanças algo radicais em consequência das quais talvez estejamos à vista de uma melhor compreensão do curso geral da história da filosofia grega. Resumindo, nossa abordagem de Parmênides e dos eleáticos tende a ser, agora, um tanto diferente do que era há um século ou mesmo há meio século. Isso resulta, em parte, de um exame mais atento dos fragmentos existentes e da tradição doxográfica, no caso de Parmênides, e em parte de uma reavaliação mais geral da interpretação filosófica do verbo "ser" no grego, tanto antes como depois dos sofistas. Numa importante pesquisa começando por Homero, Charles Kahn notou a dificuldade de fazer qualquer distinção sintática firme entre o uso do verbo de forma absoluta, isto é, sem nenhum predicado, como em "X é", e a sua construção predicativa, como em "X é Y". E contestou o uso do primeiro, ou o uso absoluto, como "existencial". De fato, ele tende a tratar ambos os usos basicamente como sinais de asserção, reduzindo ambos, o uso "existencial" e o uso "predicativo", a um uso mais fundamental que está muito mais próximo do "predicativo" do que do "existencial". Depois, num artigo de importância fundamental, G. E. L. Owen argumentou que no diálogo Sofista de Platão, a discussão não inclui, nem obriga nenhum isolamento de um verbo existencial, e que ele se revela como sendo primariamente um ensaio em problemas de referência e predicação. Em terceiro lugar, essa nova abordagem foi aplicada diretamente a Parmênides, sobretudo por A. P. D. Mourelatos, com a conclusão de que Parmênides não estava interessado diretamente na existência e não-existência, mas antes em distinguir, entre duas vias, uma positiva na qual dizemos "x é F", e uma negativa na qual dizemos "x não é F". É a segunda via que Parmênides está condenando em favor da primeira como a única via possível.

Tudo isso importa em uma enorme mudança de ênfase. Da opinião de que boa parte da filosofia grega se preocupava primariamente com problemas de existência, passa-se para a opinião de que a preocupação, nesses casos, era mais com o que chamaríamos de problemas de predicação, que eles tendiam a tratar mais como problemas da inerência de qualidades e características dos objetos no mundo real à nossa volta. Isso me leva ao que eu gostaria de considerar o terceiro estágio na abordagem do tratado de Górgias, a saber, sua interpretação à luz dos problemas de predicação. Essa abordagem é relativamente nova, e é controvertida. Não posso tentar justificá-la, aqui, com análise e argumentação detalhada. Mas após alguma reflexão concluí que seria melhor apresentar simplesmente minha interpretação do tratado como um todo, sem mais explicações, mesmo que não tenha valor. Direi simplesmente que, mesmo que venha a ser julgado totalmente errado nessa questão, não estaria, de forma alguma, em conflito com o caráter antilógico do tratado. A discordância não seria sobre a questão do argumento de Górgias ser construído sobre contradições inferidas e logoi opostos — de fato é, claramente — mas somente sobre a natureza e as aplicações dos logoi opostos.

Nessa opinião, é principalmente no uso predicativo do verbo "ser" que Górgias está interessado, e com as contradições que isso parece gerar. Ele está argumentando que não há como aplicar o verbo "ser" a um sujeito sem que surjam contradições, e está pensando principalmente nas declarações acerca de fenômenos. Essas contradições, os eleáticos tinham identificado no caso de declarações negativas; para Górgias elas também se verificam nas declarações positivas [Osório diz: com o que está preocupado Górgias quando trata do verbo ser].

Para a primeira parte do tratado, é provável que o texto do De MXG seja uma representação mais fiel do original do que a versão dada por Sexto. Nas duas versões, a primeira parte se iniciava com a afirmação de que nada é. No De MXG é dado um argumento especial para estabelecer isso, imaginado pelo próprio Górgias — não é possível a qualquer coisa ser ou não ser. Suponha que algo seja capaz de não ser, o fato de que é (capaz disso) significa que é. Mas se é (tomado como uma alternativa à suposição de que é capaz de não ser), aí nos defrontaremos com uma série de opções — ou é um, ou é muitos, ou é não-gerado ou é alguma coisa que foi gerada. Argumentos derivados, em parte, de Zenão e Melissos, são aduzidos para mostrar que nenhuma dessas quatro opções é possível. Se não é nenhuma das alternativas emparelhadas, também certamente não são ambas as alternativas juntas. Se não é nenhuma dessas três possibilidades, não é absolutamente nada, visto que só há essas três possibilidades. [Osório diz: Romilly]

O que é isso de que se está falando aqui? Parece-me haver claras indicações de que Górgias está interessado em cada uma e todas as coisas, não importa o que, incluindo-se, acima de tudo, os objetos fenomenais. Isso é fortemente sugerido pelo uso da palavra pragmata ("coisas") no plural (979a27-28), apoiado por mais duas referências gerais em Isócrates, que diz, no Helena (X, 3): "Pois poderia alguém superar Górgias, que ousava declarar que nenhuma das coisas que são é", e no Antidosis (XV, 268), onde menciona Górgias como o último de toda uma série de "velhos sofistas, dos quais um disse que a soma das coisas é feita de um número infinito de elementos, Empédocles de quatro... Parmênides e Melissos de um, e Górgias de nenhum" (ambas as passagens em DK 80B1). Esta última passagem, especialmente, fortalece a opinião segundo a qual Górgias estava interessado não só em atacar os eleáticos mas também os pluralistas entre os pré-socráticos.

A segunda parte do tratado argumenta que, mesmo que disséssemos de alguma coisa que ela é, ela seria incognoscível e impensável por qualquer ser humano. A maneira como isso é discutido é, filosoficamente, de considerável interesse e a questão de sua real validade é apenas parte desse interesse, talvez uma parte relativamente pequena. Não podemos dizer que as coisas sendo pensadas são — se disséssemos isso teríamos de dizer que todas as coisas sendo pensadas são, e que são tal como são pensadas, isto é, possuem as qualidades presentes a elas no pensamento. Assim, se pensarmos em um homem voando, ou em carros apostando corridas no mar, seguir-se-ia que um homem está de fato voando ou que carros estão de fato apostando corrida no mar. Assim, de modo geral, se supomos que qualquer coisa que alguém pense é, então não haveria mentira. Portanto, concluímos, não se pode dizer que o que um homem pensa é. A partir disso se argumenta que o que é não é capaz de ser pensado. Portanto, se alguma coisa é, não será pensável.

Talvez o principal interesse desse argumento seja a maneira como ele abre um contraste, de fato um fosso, entre atos mentais cognitivos (pensamentos, percepções etc.) e os objetos que eles conhecem ou pretendem conhecer. Parece que se está dizendo que para que qualquer coisa seja conhecida ou pensada a mente deve ter (isto é, repetir ou reproduzir e, portanto, ela mesma possuir) as características próprias do objeto conhecido. Objetos brancos, se pensados, requerem pensamentos brancos e objetos que são requerem, se pensados, pensamentos que são. As implicações dessa opinião e as objeções a ela são de considerável interesse, mas este não é o lugar para discuti-las. O que é mais relevante para a minha argumentação são algumas outras considerações. Foi argumentado, na Parte I do tratado, que nada é. Agora, hipoteticamente, somos solicitados a considerar as consequências de supor que, de fato, as coisas são. Essas consequências são declaradas inaceitáveis por causa do que se seguiria em relação às coisas e ao nosso pensamento sobre elas. Não há nenhuma tentativa de abolir o pensamento; somente se nega que possamos dizer dos pensamentos que eles são — assim como não há tentativa de abolir as coisas. De fato, o argumento todo depende completamente da retenção de ambos, pensamento e coisas. Além disso, está até implícito que pensamentos podem ser verdadeiros (assim como falsos). Isso significa que Górgias não está aceitando a opinião que eu, antes, atribuí a Protágoras, segundo a qual não é possível dizer o que é falso. Em segundo lugar, toda a Parte II do tratado se ocupa do pensamento sobre os fenômenos. Começa supondo que os fenômenos são. Isso confirma a sugestão feita anteriormente de que a Parte I também se ocupa dos fenômenos.

A opinião segundo a qual deve haver uma correspondência entre as características do pensamento e as características dos objetos de pensamento é repetida e desenvolvida mais nas implicações da Parte III do argumento de Górgias. Aqui se argumenta que mesmo se alguma coisa é, e é cognoscível, não pode ser comunicada a outra pessoa. O único método de comunicação preferido para a discussão é o discurso (logos). O método de transmissão do logos de uma pessoa para outra é por sons vocais ou fala. Claramente audíveis e, também, claramente não-visíveis. Portanto, se estamos interessados na comunicação concernente a coisas visíveis, por exemplo, cores, essas coisas não podem ser transmitidas por sons incolores e não-visíveis. Há, portanto, um fosso fundamental entre o logos e as coisas, ou pragmata, que vêm a nós de fora de nós mesmos. Esse fosso não deve ser visto como transposto pelo fato de o logos, pelo menos quando expresso em sons vocais, audíveis, ser ele mesmo algo da mesma categoria das pragmata — ele vem a nós de fora de nós mesmos, é verdade, mas através de um órgão do sentido diferente daquele através do qual recebemos impressões visuais.

Mas talvez o fosso deva ser transposto de outra maneira. Há um sentido pelo qual o logos vem a nós das pragmata fora de nós. Pois o logos é formado a partir delas quando são percebidas por nós — assim, do nosso encontro com o sabor surge em nós o logos que é a expressão que corresponde a essa qualidade, e da incidência da cor o logos que corresponde à cor. Mas isso também não resolve a questão. O logos não tem a função de exibir o objeto externo, é o objeto externo que nos fornece informação acerca do (a significação do) logos. Aqui parece que temos o início de dois diferentes sentidos para logos: (1) como algo gerado em nossas mentes, resultante de nossas percepções, e (2) como um som fonético audível, isto é, uma palavra "falada". Que uma distinção desse tipo estava sendo feita é confirmado pela linguagem usada em De MXG, onde nos é dito que é impossível a uma pessoa transmitir à outra, por palavras ou outros sinais, alguma coisa que ela mesma não possui no seu próprio pensamento. Isso sugere uma análise em três estágios — o próprio objeto com suas qualidades, o que obtemos desse objeto, e as palavras faladas com as quais tentamos, inevitavelmente falhando, segundo Górgias, passar adiante (o conhecimento de) um tal objeto para mais alguém.

Deve-se enfatuar que o relato do tratado de Górgias, dado acima, está sujeito a discussão em muitos de seus detalhes, embora represente razoavelmente bem o que eu mesmo creio que Górgias estava dizendo. Mas as condições do texto, especialmente na versão De MXG, são tão más e as dificuldades de interpretação, tanto no caso da versão de Sexto como na De MXG, tão grandes que há muito trabalho a ser feito antes que possamos esperar chegar a qualquer compreensão detalhada segura. Mas isso não tem muita importância para meus atuais propósitos. Pois quaisquer que sejam as correções e os refinamentos, ou mesmo alterações fundamentais do relato acima que estejam ainda por serem feitas, a importância e o interesse filosófico do que Górgias tinha a dizer já estão suficientemente enfatizados. Primeiro, olhando para trás no tempo, é claro que ele está dividindo e separando três coisas que Parmênides tinha identificado no seu fragmento 8.34-36, a saber, ser, pensar e dizer. Na interpretação tradicional de Parmênides essas linhas podem ser entendidas assim: "O pensar e o pensamento que ele é são um e o mesmo. Pois você não encontrará o pensar sem o ser no qual ele é expresso". Na primeira parte de seu tratado, Górgias tinha negado o ser aos fenômenos; na segunda e na terceira partes ele tinha argumentado que, mesmo que se concedesse o ser aos fenômenos, ainda se deveria separar o ser do pensar e das palavras nas quais o pensar é expresso, seja para si mesmo ou para um outro. [Osório diz: Górgias versus Parmênides]

Isso basta quanto à importância retrospectiva da doutrina de Górgias. Muito maior é a sua importância prospectiva, pois Górgias está suscitando, por implicação e, diria eu, em boa parte conscientemente, todo o problema de significação e referência. Não vamos nos preocupar demais com as inadequações de seu tratamento da questão, o importante é que ele estava começando a ver que há um problema, e problema muito sério. Se as palavras são usadas para se referir às coisas, e parece óbvio que essa é a função primordial para a qual são usadas, como é que uma palavra é aceita como se referindo às coisas às quais dizemos que ela se refere, e não às outras coisas às quais dizemos que ela não se refere? Seria conveniente que pudéssemos dizer que é devido a alguma coisa em relação com a própria palavra, e seria mais simples se houvesse alguma coisa na palavra que espelhasse ou reproduzisse dentro da própria palavra os aspectos distintivos das coisas às quais ela se refere. Mas, exceto talvez para as palavras que são especificamente onomatopaicas e que, pelos seus próprios sons, reproduzem os sons das coisas às quais se referem, esses aspectos não são aparentes nas palavras. Somos levados a tentar desenvolver uma doutrina da significação vinculada às palavras, de forma que, em virtude dessa significação, elas possam então ser entendidas como se referindo às coisas às quais supomos que elas se refiram. Mas essa significação terá de ser alguma coisa distinta dos meros sons das palavras em questão. Esse é o ponto de partida de Platão em Crátilo e, diriam alguns, de toda a sua carreira filosófica. Questão semelhante se levanta em relação aos atos cognitivos, aos pensamentos e às percepções que, dizemos, expressamos em palavras. Palavras, pensamentos e coisas, qual é a relação entre eles? [Osório diz: Górgias matando a pau! Criação ou mostra do problema significação e referência]

Mas não é só isso. Uma vez separadas essas três coisas [Osório diz: palavras, pensamentos e coisas] umas das outras, embora insistindo ainda que deve haver algum tipo de correspondência entre todas as três como requisito para verdade e conhecimento, nos defrontamos com o problema da melhor maneira de entender logos em relação justamente a essas três coisas. Pois, como foi dito no início deste capítulo, logos parece ter, de fato deve ter, uma espécie de pé plantado em cada uma dessas três áreas. O logos de uma coisa é: (1) o princípio, ou a natureza, ou a marca distintiva, ou elementos constituintes da própria coisa; (2) o que nós entendemos que ela é; e, finalmente, (3) a descrição (verbal), relato, ou definição correta da coisa. Todas as três levantam a questão do ser. Pois o logos da coisa sob o título (1) é o que a coisa é; sob (2) é o que nós entendemos que ela é; e sob (3) é o que dizemos que ela é.

Até aqui vimos que, na esfera da percepção, Protágoras tinha argumentado que todas as percepções são verdadeiras e, portanto, são de coisas que são, como são; ao passo que Górgias mantinha que não devemos dizer, de coisa alguma, que ela é. Nem Górgias nem Protágoras fizeram, então, qualquer distinção entre percepções conflitantes que pretendiam ser da mesma coisa? Contrariamente ao que se poderia esperar dele, Górgias reteve, sim, claramente, uma distinção entre pensamentos verdadeiros e falsos, embora não nos diga como é que analisava a diferença entre eles; ele parece ter suposto que a percepção envolve a recepção de "eflúvios" próprios dos objetos físicos (DK80B4). Para Protágoras, não pode haver distinção em termos de verdade entre percepções diversas e conflitantes. Mas para ele também havia, claramente, distinções que precisam ser, agora, consideradas.

Será conveniente começar com o testemunho de uma importante passagem de Aristóteles em Retórica, B, 24.l0-11 (1402a5-28, da qual apenas um pequeno extrato é dado no DK80A21):

 

Na Dialética, argumenta-se que o que não é é, pois o que não é é aquilo que não é; e também que o desconhecido pode ser conhecido, pois pode-se conhecer do desconhecido que ele é desconhecido. Da mesma forma, na Retórica, um aparente entimema pode surgir daquilo que não é absolutamente provável senão apenas em casos particulares. Mas isso não deve ser entendido de modo absoluto, como diz Agatão: "poderíamos talvez dizer que essa coisa mesma é provável: que muitas coisas acontecem aos homens que não são prováveis", pois aquilo que é contrário à probabilidade no entanto acontece. Sendo assim, aquilo que é improvável será provável... [mais exemplos] ... Aqui ambas as alternativas aparecem igualmente prováveis, mas uma é realmente, a outra não é provável de modo absoluto, mas apenas nas condições mencionadas. E isso é o que significa "fazer com que o pior pareça o melhor argumento". Por essa razão os homens estavam, com razão, desgostosos com a promessa de Protágoras; porque é uma mentira, não uma probabilidade real, mas aparente, que não se encontra em nenhuma arte exceto na Retórica e na Sofística [da trad. ingl. de Freese].

 

A promessa de Protágoras de "tornar mais forte o argumento [logos] mais fraco" ficou célebre com os autores posteriores. Mas deve haver já uma referência a essa doutrina em As nuvens (DK C2) de Aristófanes, onde ele faz Estrepsíades declarar que na casa de Sócrates "eles guardam ambos os logoi, o mais forte, não importa o que seja, e o mais fraco, e desses dois eles dizem que o mais fraco é o vitorioso embora expresse o que é mais injusto". Parece que Aristóteles também nos está dando exemplos reais do século V — especialmente o argumento "não é é" que foi usado por Górgias, e a citação de Agatão, cuja primeira vitória foi conquistada num concurso trágico em 416 a.C.; de modo que o que ele diz a respeito do provável poderia concebivelmente ser tirado dos próprios escritos de Protágoras. A aplicação retórica de uma doutrina concernente a transformar o argumento mais fraco em mais forte é óbvia, e é às vezes tratada como se tivesse uma aplicação apenas puramente retórica. Assim, segundo Eudoxo (80A21), como exercício da sua aplicação, Protágoras ensinava seus alunos a louvar e condenar o mesmo argumento. Mas Aristóteles, que naturalmente considera esses argumentos apenas retóricos e sofísticos, diz que as pessoas estão desgostosas com a promessa de Protágoras "porque é falsa". Isso pode sugerir que Protágoras afirmava que sua doutrina não era meramente retórica, mas envolvia, de alguma forma, um grau de validade ou verdade. Como vimos (acima, p. 147), o tratado no qual ele expressou a sua doutrina do homem-medida era aparentemente conhecido sob os dois títulos: Sobre a verdade ou Escritos demolidores. [Osório diz: além de Aristófanes, Xenofonte, no Econômico, também fala do argumento forte e fraco].

Mas se todas as percepções e todos os julgamentos morais devem ser aceitos como igualmente verdadeiros, como é possível que um logos qualquer que expresse julgamentos morais e perceptivos possa jamais ser descrito como superior a um outro logos? Não são todas as verdades simplesmente iguais quanto à sua verdade? Talvez, mas pode ser que haja outros modos pelos quais logoi possam ser classificados como superiores ou inferiores. Um modo óbvio é em termos de sua relativa capacidade de persuasão, e a bem elaborada doutrina da persuasão desenvolvida por Górgias já foi considerada. Mas persuasão consiste em fazer com que uma opinião pareça preferível a outra, pelo menos em algum aspecto. Um modo era classificar o argumento preferido como orthos "justo", "reto", certo" — ou orthoteros "mais justo", "mais correto", e assim por diante, e é claro que o conceito de orthotés e de um ortho logos era importante. Assim, conta-se que quando Péricles passou um dia inteiro discutindo com Protágoras o caso de um atleta acidentalmente morto por um dardo nos jogos atléticos, o argumento girou em torno de saber se era o dardo, ou o homem que o atirou, ou os organizadores dos jogos que deviam ser julgados culpados "segundo o argumento mais correto" — o orthotatos logos (DK80A10J, isto é, o mais correto dos três logoi mencionados. Quando Antífon quer rejeitar a opinião segundo a qual as coisas dolorosas são mais benéficas para a natureza do que as coisas prazerosas, ele defende sua opinião como sendo de acordo com o orthos logos (Dl 87B44 Fr. A Gol 4). [Osório diz: eles, os sofistas, trabalhavam com a ideia de melhor, e não de correto e/ou verdadeiro!]

Essa maneira de falar sobre as coisas era familiar, ao que parece tanto a Sócrates como a Platão. No Críton, quando Críton roga a Sócrates que se salve fugindo da prisão, Sócrates responde (46b):

 

Meu caro Críton, seu interesse é valiosíssimo se for acompanhado pela orthotés; se não, quanto maior for ele, mais difícil de suportar. De modo que devemos examinar a questão se devemos fazer isso, ou não. Pois sou, não somente agora, mas sempre, um homem que só segue o logos que, após consideração, me parece o melhor [beltistos]. E não posso, agora, jogar fora o logoi que usei anteriormente. [Osório diz: Sócrates e o discurso melhor! O discurso e a coerência]

 

Tomada isoladamente, a referência à necessidade de seguir o beltistos logos pode parecer meramente casual e formulada de modo geral, embora eu suspeite que têm razão os que supõem que, por trás de seu caráter geral, haja, pelo menos, uma referência bem específica à terminologia que era sofista. [Osório diz: eu também! Sócrates era um dos sofistas]

Seja como for, não deveria haver muita dúvida quanto a uma discussão mais detalhada do problema posta na boca de Sócrates, no Fédon. É a famosa discussão do "novo método", que ocupa a seção toda de 89c11-102a1. Apenas alguns pontos podem ser selecionados aqui, visto que a nossa preocupação imediata não é com a interpretação de Platão, nem tampouco a relação com a teoria das Formas platônicas, mas com a relação entre o que Sócrates está dizendo e o debate sofista com o qual ele está intimamente envolvido na passagem toda. A parte inicial da passagem já foi resumida na nossa discussão anterior do antilogikoi. Recapitulando: Sócrates se distingue daqueles que simplesmente opõem um argumento a outro — isso leva à misologia, um ódio de todos os logoi — embora, ao mesmo tempo, ele aceite que, no nível fenomenal, não há, de fato, nada sólido ou seguro, mas que todas as coisas estão em processo de ser reviradas para cima e para baixo, como no Euripo, e não subsistam em coisa alguma por qualquer duração de tempo. [Osório diz: Sócrates e o fluir heraclitiano!].

O que é necessário, diz Sócrates, é a habilidade adequada para lidar com logoi (90b7). Pois pode ser que nem todos logoi sejam do tipo flutuante, incapazes de serem apreendidos intelectualmente (90c8-d7). Faltando-lhe essa habilidade, no período em que se interessava pela ciência física, Sócrates se viu movendo-se para baixo e para cima (96bl) exatamente como os fenômenos. Depois que todas as tentativas de alcançar a verdade pela contemplação direta dos fenômenos falharam, ele decidiu refugiar-se nos logoi e, neles, examinar a verdade das coisas que são (99e4-6). Assim prosseguiu por essa via [Osório diz: Sócrates e sua fuga no logos]. Estabelecia sempre, como ponto de partida (o grego diz "fazia uma hipótese"), o logos que julgava ser o mais forte e postulava, como verdade, as coisas que lhe pareciam estar de acordo com esse logos. O que ele tinha em mente é explicado por uma série de exemplos. No caso das coisas que são belas devemos levantar a hipótese da existência da Forma da Beleza como a fonte, explicação e causa dos vários belos. Esse procedimento é o caminho seguro que uma pessoa inexperiente deve seguir; isso evita a confusão na qual se envolvem os antilogikoi. O erro deles é tentar discutir sem distinguir entre a fonte e as consequências que procedem da fonte (101el-3 cf. Rep. 476d2-3). O que os antilogikoi fazem, na opinião de Sócrates, é misturar "causas" com efeitos, ao confundir Formas com fenômenos, e Formas “mais altas" com Formas "mais baixas". Ao fazer isso eles geram uma pluralidade de logoi, cada um oposto ao resto. O caminho seguro evita as contradições envolvidas na doutrina dos dois logoi opostos, a qual, é preciso sublinhar, na opinião de Platão se aplica somente aos fenômenos. As contradições não se aplicam às Formas, e as contradições encontradas nos fenômenos desaparecem quando passamos dos fenômenos para as Formas. [Osório diz: isso só no mundo de e criado por Platão! Kant também ficou com os fenômenos e a impossibilidade do conhecimento das coisas em si!].

Essa, então, é a resposta de Platão aos antilogikoi, para a questão da doutrina dos dois-logoi-opostos. Como é expressa em termos da teoria das Formas, não é provável que tenha sido expressa pelo próprio Sócrates, pelo menos em nada parecido com esse modo mais desenvolvido. Mas a frase "o logos tido como o mais forte" (100a4) nos faz lembrar do logos melhor ou mais correto das discussões sofistas. Platão representa Sócrates como sempre buscando relatos ou logoi satisfatórios, sobretudo das várias virtudes; e, como já vimos, Aristóteles atribui especificamente ao Sócrates histórico a busca pelos logoi epactic. Sem dúvida ele participava ativamente, podemos razoavelmente concluir, da busca sofista pelo logos melhor ou mais forte, nos casos de um conflito de logoi. [Osório diz: Sócrates e o logos melhor!]

Mas é tempo de voltar para as doutrinas de Protágoras, visto que ele, de várias maneiras, não só estava expressando suas próprias opiniões, como também agindo como líder para o movimento sofista como um todo. Voltando ao Teeteto, descobrimos que sua doutrina do homem-medida tem de enfrentar uma objeção extremamente interessante. Como observa Sócrates (161d3-e3):

 

Se seja o que for que qualquer homem suponha, baseado na percepção, deve ser, de fato, verdadeiro para ele; se assim como ninguém há de ser melhor juiz da experiência do outro, também ninguém tem mais autoridade para investigar se a opinião do outro é certa ou falsa mas, como temos dito mais de uma vez, cada homem terá suas próprias crenças só para si mesmo, e todas elas são certas e verdadeiras, então, meu amigo, onde está a sabedoria de Protágoras, que o faz pensar que está habilitado para ser mestre de outros e ser regiamente pago por isso, e onde está nossa comparativa tamanha ignorância que precisamos ir a ele para instrução, quando cada um de nós é a medida de sua própria sabedoria?

 

A esse ataque Protágoras responde, no devido tempo, pela boca de Sócrates (166dl-8):

 

Mantenho que a verdade é como escrevi. Cada um de nós é a medida das coisas que são e das coisas que não são; mas há um mundo de diferença entre um homem e outro exatamente nisto, que o que é e aparece para um é diferente do que é e aparece para o outro. Quanto à sabedoria e o sábio, longe de mim dizer que não há tal coisa. Por sábio designo precisamente o homem que opera uma mudança e onde coisas más são e aparecem para qualquer pessoa faz coisas boas aparecerem e serem para si.

 

[Osório diz: HIPÓTESE: Platão, para não condenar o sofista Sócrates diretamente (seu ódio era a traição amorosa) condena os outros sofistas, tentando, contudo, do rol deles excluir Sócrates]

A isso se segue um exemplo: para o doente, a comida parece e é amarga, para o homem saudável ela é e parece o oposto. Ambas as condições são igualmente verdadeiras, mas a segunda condição é melhor do que a primeira, e o médico muda a primeira condição para a segunda, de modo que a comida que anteriormente parecia e era amarga agora parece e é doce. Na educação, o sofista faz com palavras o que o médico faz com remédios, e substitui não o falso pelo verdadeiro, más opiniões piores por melhores. Aqui, o exemplo dado são coisas más que parecem e, portanto, são justas, que precisam ser substituídas por coisas boas que, então, parecerão e serão realmente boas. Isso se aplica não só ao indivíduo mas também a comunidades inteiras — para elas também a função educativa do sofista pode ser extremamente útil e benéfica (l 67c4-7). Uma pilhéria feita por Sócrates deixa claro que Platão estava bem consciente de que a substituição de uma experiência por outra era considerada, por Protágoras, uma substituição de um logos por outro: de fato o logos que tinha sido mais fraco tornou-se, agora, mais forte (172b8-9).

Essa maneira de olhar as coisas tem, contudo, implicações consideráveis para a doutrina do homem-medida. Na sua forma irrestrita, a doutrina do homem-medida parecia implicar que, se alguma coisa parecesse F para alguém, então é F para ele e o caso é o mesmo para todos os valores de F. É-nos dito agora, contudo, que algumas pessoas são mais sábias do que outras na questão de saber o que é melhor ou pior, e isso, por sua vez, leva a uma outra inevitável proposição: a de que pelo menos alguns julgamentos são falsos, a saber, os julgamentos a respeito do que é vantajoso e não vantajoso. A necessidade dessa modificação da generalidade da posição original atribuída a Protágoras é plenamente reconhecida por Sócrates (172a5-b2) e é apresentada, por ele, como o tipo de coisa que o próprio Protágoras poderia ter dito se fosse capaz de voltar da região dos mortos, esticar de repente a cabeça para fora da terra até o pescoço e falar antes de afundar e desaparecer outra vez. Não tenho nenhuma dúvida de que essa defesa deve ser levada a sério — até onde ela era justificada pelo que Protágoras tinha de fato escrito pode permanecer questionável, mas acredito que seja uma indicação clara de que isso era o que Platão considerava ser a interpretação historicamente correta da doutrina de Protágoras.

Seja como for, a doutrina modificada é de considerável interesse. A famosa história contada por Heródoto (III.38) mostra que algo parecido com o que chamaríamos de um tipo de sociologia do conhecimento estava já começando a ser aplicado a valores morais: se fosse perguntado a todos os homens quais as melhores leis e os melhores costumes, cada um escolheria os seus próprios. Eurípides (fr. 19) fez um seu personagem dizer que nenhum comportamento é vergonhoso se não parece vergonhoso para aqueles que o praticam. Para muitos, nos nossos dias, opiniões sobre valores não são questões de fato objetivo como as opiniões sobre o mundo físico, e o que a doutrina (na forma modificada) de Protágoras provê é um modo de comparar julgamentos sobre questões de valor, não em termos de sua própria verdade ou falsidade, mas em termos de suas conseqüências sociais. Que essa opinião não estava confinada em Protágoras, mas era muito mais amplamente sustentada, presumivelmente dentro do movimento sofista, torna-se evidente pela afirmação de Platão de que era também sustentada por aqueles que não estavam completamente de acordo com a doutrina de Protágoras (Teeteto 172b6-7).

Mas a aceitação da opinião modificada suscita outras questões. Até aqui, poderíamos dizer que a fórmula "se alguma coisa parece F para alguém, então é F para essa pessoa" aplica-se em casos em que F é interpretado como significando "quente", "doce", "justo", "bonito" etc.; mas não se aplica quando F é interpretado como significando "bom", "saudável" ou "vantajoso". E os outros casos? Se Protágoras diz que o que quer que pareça a uma pessoa é isso mesmo para essa pessoa, isso pode bem ser entendido como significando que qualquer julgamento é verdade para a pessoa que o faz, não só os juízos sobre qualidades morais e de percepção. Exatamente essa irrestrita interpretação da doutrina do homem-medida era atribuída a Protágoras por aqueles que, entre os seus críticos, a usavam como base para o contra-ataque, conhecido depois como peritropê, a virada-da-mesa. Isso já era bem conhecido quando Platão escreveu o Teeteto, pois nos é dito que fora usado contra Protágoras também por Demócrito (DK 68A114).

A objeção é mais ou menos assim (171a6-9): Protágoras, ao admitir que a opinião de cada um é verdadeira, deve reconhecer a verdade da crença de seus adversários a respeito de sua própria crença, quando eles pensam que ele está errado. É imediatamente em resposta a esse argumento, de fato, que Sócrates sugere que Protágoras haveria de esticar sua cabeça para fora do chão, se pudesse. Mas Platão, na realidade, não dá essa resposta, infelizmente. Pois a aplicação do peritropê implica a declaração de que há uma contradição interna na posição de Protágoras, e a natureza dessa suposta contradição interna é importante para a interpretação da doutrina do homem-medida. Conforme uma formulação dessa doutrina, Protágoras tinha mantido, por exemplo, que quando o vento parece frio para Protágoras é frio para ele. Quando o (mesmo) vento parece quente para o seu adversário, então é quente para esse adversário. Mas, desde que as frases qualificativas em itálico sejam retidas em cada caso, não há, de fato, nenhuma contradição entre as duas afirmações — a declaração de que alguma coisa parece ser o caso para uma pessoa claramente não é contraditada pela declaração de que a mesma coisa parece não ser o caso para uma outra pessoa. Se "parece" for substituído por "é", ainda não há contradição, desde que forem mantidas as frases qualificativas "é para a" e "não é para b”. Se Protágoras sustentava a opinião de que o vento, em si mesmo, existe independentemente de minha percepção dele, mas que sua frialdade só existe privadamente para mim quando tenho a sensação de frio, e seu calor só existe privadamente para o outro quando esse outro tem a sensação de calor, não há nenhuma contradição, e a peritropê fracassa.

Essa pode ter sido a resposta que Sócrates supõe que Protágoras teria dado se tivesse podido esticar sua cabeça para fora do chão. Mas há inúmeras objeções a essa opinião. Primeiro, a resposta é tão óbvia que seria de esperar que ela impedisse a formulação mesma da objeção peritropê logo de início. A objeção peritropê seria plausível, ao que parece, se as frases qualificadoras fossem removidas ou desconsideradas e a posição de Protágoras fosse entendida como envolvendo a afirmação de que o vento em si mesmo é e não é frio, e isso objetivamente, e não apenas como uma questão de como ele é sentido por diferentes observadores. Segundo, virtualmente, toda a tradição posterior, concernente ao sentido da doutrina do homem-medida de Protágoras, de fato a interpreta objetivamente, isto é, como envolvendo a opinião de que o vento em si mesmo é ao mesmo tempo frio e quente — quente e frio são duas qualidades que podem co-existir no mesmo objeto físico. Eu percebo uma, você percebe a outra. Isso torna a objeção peritropê totalmente compreensível. Terceiro, nessa tradição mais tardia, a objeção peritropê, na sua forma objetivista, é atribuída a ambos, Demócrito e Platão. Assim escreve Sexto Empírico (DK68A114): "Não se pode dizer que toda representação seja verdadeira, porque isso se refuta a si mesmo, como ensinaram Demócrito e Platão ao se oporem a Protágoras; pois, se toda representação é verdadeira, o juízo segundo o qual nem toda representação é verdadeira, sendo baseado numa representação, será também verdadeiro e, portanto, o juízo de que toda representação é verdadeira se tornará falso" (da trad. ingl. de Bury). Isso se enquadra exatamente na opinião objetivista da doutrina de Protágoras, que se encontra, em outro lugar, em Sexto Empírico (DK80A14):

 

Ele diz que os logoi de todas as aparências subsistem na matéria, de modo que a matéria, na medida em que depende de si mesma, é capaz de ser todas essas coisas que aparecem a todos. E os homens, diz ele, apreendem coisas diferentes em tempos diferentes devido às suas diferentes disposições; pois aquele que está num estado natural apreende aquelas coisas subsistentes na matéria [itálicos meus] que são aptas a aparecer àqueles em estado natural, e os que estão em um estado não-natural apreendem as coisas que podem aparecer àqueles em um estado não-natural. Além disso, precisamente a mesma explicação se aplica às variações devidas à idade, e ao estado de sono ou de acordado, e a cada um dos diversos tipos de situação. Portanto, segundo ele, o Homem se torna o critério das coisas que são; pois todas as coisas que aparecem aos homens também são, e coisas que aparecem a homem nenhum também são sem ser.

 

Se a interpretação objetivista nos possibilita entender o sentido da objeção peritropê, como devemos supor que Protágoras teria respondido a ela, se tivesse podido esticar a cabeça para fora do chão? Lamentavelmente, não nos disseram. Mas podemos presumir que sua resposta poderia ter consistido de duas partes. Primeiro, no caso de qualidades percebidas, tomadas aqui como incluindo qualidades estéticas e morais, bem como as qualidades normais percebidas pelos vários sentidos. Aqui sua resposta seria admitir que está colocando situações contraditórias. O mesmo vento é ambos, quente e frio, e isso porque é capaz de possuir qualidades contraditórias simultaneamente. É exatamente assim que as coisas são. Platão estava preparado para aceitar isso como uma descrição correta dos fenômenos, mas supunha que essa situação só é possível se, para além e acima dos fenômenos, houver também outras entidades, as Formas, que estão isentas da penosa situação contraditória que ocorre com os fenômenos. Protágoras, por outro lado, não estava preparado para supor quaisquer outras entidades além das fenomenais. Segundo, no caso de características tais como bom, mau, vantajoso e não-vantajoso, prudente e não-prudente, Protágoras simplesmente mantinha que essas características não estavam sujeitas à doutrina do homem-medida. Aqui há apenas uma verdade, não os dois logoi que se aplicam no caso anterior. De fato, há um sentido no qual Protágoras mantinha que a segunda classe de características, bom, mau, vantajoso etc., se aplica à primeira classe de características onde a doutrina dos dois logoi funciona plenamente. Pois enquanto duas pessoas podem ter sensações opostas, uma percebendo o vento como quente, a outra como frio, e essas duas qualidades estão em pé de igualdade quanto à sua verdade, contudo não estão em pé de igualdade quanto ao seu valor. Como deixa claro a citação de Sexto, uma percepção será a de um homem num estado natural ou saudável, e o uso do termo "estado natural" implica que essa percepção será, por conseguinte, preferível à outra percepção ocorrida, por exemplo, em caso de uma doença ou de um estado não-natural de quem percebe.

Que Protágoras reduz a realidade à realidade perceptível pelos sentidos, vê-se não só na última sentença do relato de Sexto Empírico que acaba de ser citada, mas também na interessante afirmação preservada por Aristóteles na Metafísica B (DK 80B7) onde ele diz:

 

Não é verdade que a medida da terra trata com magnitudes perceptíveis e perecíveis; porque, então, ela teria perecido quando elas pereceram. E da mesma forma não se dirá que a astronomia trata com magnitudes perceptíveis, nem com este céu acima de nós. Porque linhas perceptíveis não são o tipo de linhas de que fala o geômetra, pois nenhuma coisa perceptível é reta ou redonda da maneira como ele fala do reto e do redondo. Pois um círculo perceptível não toca a reta em um ponto, mas a toca da forma como Protágoras costumava dizer que toca, na sua refutação dos geômetras.

 

Em outras palavras, segundo Protágoras, a tangente toca um círculo não em um ponto geométrico, mas da forma como o faz no mundo visível, que é sobre um segmento de uma certa dimensão. Simplício (DK 29A29) preserva o que parece ser uma passagem de um diálogo entre Zenão e Protágoras. Não importa, para a nossa finalidade, saber se o diálogo é inteiramente fictício, como é provável que seja, visto que certamente apresenta uma correta aplicação da doutrina de Protágoras. Zenão pergunta a Protágoras se um único grão de painço ou a décima milésima parte de um grão de painço produz algum som ao cair. Protágoras responde que não, mas admite que um alqueire (medimnos) de sementes de painço produz som. Zenão então conclui que um único grão deve produzir uma fração adequada do som produzido pelo alqueire. O ponto importante, aqui, no que concerne a Zenão, pode bem estar relacionado com o problema dos infinitesimais. Mas para Protágoras o importante é muito mais provável que tenha sido simplesmente a negação de sons não ouvidos, isto é, a negação de qualquer outra coisa que não sejam sons que são fenômenos reais porque são audíveis. Pelo menos neste ponto ele teve Aristóteles do seu lado, o qual argumentou que não havia razão pela qual essa parte do alqueire não devesse, não importa por que lapso de tempo, simplesmente deixar de mover o ar que o alqueire todo move ao cair.

A doutrina segundo a qual não há outras entidades além das entidades perceptíveis pelos sentidos envolve a negação de que haja quaisquer objetos não-fenomenais para o entendimento. Assim, nos é dito, por Diógenes Laércio, no seu sumário das doutrinas de Protágoras, que Protágoras deixou de lado a dianoia ("entendimento", aqui presumivelmente no sentido da significação ou sentido da palavra) e só deu atenção à enunciação, ou nome, o onoma (IX, 52 = DK80A1). Mas, se não há nenhum objeto para o entendimento, então, poder-se-ia argumentar, o entendimento não tem nenhuma função distinta na alma. E é esta presumivelmente a explicação para a notável afirmação feita por Diógenes Laércio, no parágrafo imediatamente precedente ao que acabamos de citar, de que a alma não era nada separada de suas sensações. Sabemos que Protágoras tinha uma doutrina física da alma e que a situava no peito (DK80A18), de modo que é improvável que ele quisesse dizer que a alma não tinha existência à parte do conteúdo de suas sensações. Antes, é provável que ele quisesse dizer que ela não tinha função a desempenhar à parte dessa de perceber, uma doutrina que aparentemente se encontra também em Demócrito (DK 68A112) e, subsequentemente, em Estrato e Enesídemo, embora eles identificassem entendimento com percepção e não negassem a existência da inteligência (Sexto Empírico, Adv. Mathematicos VII,350). (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 143-188).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

75 – Temos instrumentos mentais para conhecer?

 

Pontifica Guthrie:

 

Dúvidas sobre a adequação de nosso equipamento para atingir a verdade anunciaram-se pela primeira vez em contexto religioso em contraste com a claridade da visão divina, mas em jônios como Anaxágoras e Demócrito vemos antes a modéstia do espírito científico. ...Os sentidos dão um quadro falso da realidade, e não é fácil para a mente provar sob seu “conhecimento bastardo”. (...)

Até isso foi abandonado por alguns sofistas em favor de um fenomenalismo extremado. Ceticismo radical como o de Protágoras e Górgias dificilmente [p. 13] terá ajudado o progresso do pensamento científico. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 13).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

74 – Vento: é quente ou frio?

 

Nos diz Guthrier:

 

Aristóteles fala do ponto de vista de sua própria filosofia e da filosofia platônica, de acordo com a qual existe uma realidade além e independente de nossos conhecimentos e crenças, e contrastando com ela a doutrina de Protágoras segundo a qual nada existe a não ser o que cada um de nós percebe e conhece. (Uma vez que nossas percepções nesta teoria são infalíveis, deve-se dar a elas o nome de conhecimento, Teet. 152c). São nossos próprios sentimentos e convicções que medem e determinam os limites e a natureza da realidade, que só existem em relação a elas e é diferente para cada um de nós. A oposição de Aristóteles mostra que para ele a doutrina de Protágoras era doutrina de puro subjetivismo e relativismo. Será que esta avaliação era correta? Duas visões foram tomadas. Para colocá-lo nos termos do exemplo de Platão (Teet. 152b), se o vento está frio para mim que o sinto frio, e é quente para você que o sente quente, significa isto que o vento em si mesmo é tanto quente como frio, ou que o vento em si mesmo não é nem quente nem frio? Em termos gerais, devemos dizer (a) todas as propriedades percebidas por alguém coexistem no objeto físico, ou (b) que as propriedades perceptíveis não têm nenhuma existência independente no objeto, mas vêm a ser como são percebidas, e para o percipiente? [Osório diz: ver sobre o vento em Gilbert / Realidade e conhecimento]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 174).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

73 – Igualdade educacional.

 

Ensina Kerderd:

 

Comparada a esses gritos de guerra, a abordagem de Faleas é realmente de caráter moderado e reformista. Embora não seja nomeado como sofista no sentido de um mestre profissional, Faleas pertence quase que certamente à última parte do século V a.C. e portanto deve ser considerado como fazendo parte do movimento sofista. Que estava interessado na educação é evidente pela afirmação de Aristóteles (Pol. II, 7.8), segundo a qual ele propusera não apenas igualdade em propriedade, mas também igualdade de educação [Osório diz: será que os sofistas ofereciam bolsas de estudo?]. Infelizmente não nos é dito de que forma ele supunha que isso seria organizado. Poderia ter sido baseado na prática em Esparta, mas mais provavelmente contempla a educação pública gratuita e universal [Osório diz: proposição sofística]. Se ela fosse concebida como se estendendo até a educação provida pelos sofistas, envolveria uma mudança na situação contemplada por Protágoras, na qual são os ricos que podem obter a melhor educação para seus filhos (Platão, Prot. 326c3-4). Em termos modernos, isso seria o equivalente à educação universitária para todos financiada pelo Estado. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 262-263).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

72 – Igualdade econômica.

 

Ensina Kerferd:

 

Seja como for, a importância do termo para meu presente propósito é que ele introduz pelo menos alguns aspectos do conceito de igualdade política na arena da discussão política no século V a.C. Naturalmente, uma vez introduzido, o conceito de igualdade política podia ser aplicado de inúmeras maneiras diferentes, e será conveniente examinar algumas delas, uma por uma. Primeiro, igualdade econômica ou financeira. A importância das diferenças em riqueza como fonte de dissensão política era, naturalmente, coisa corriqueira. Mas era comumente tratada como um problema moral em vez de como um problema a ser resolvido mediante a abolição das desigualdades. Platão, entretanto, de fato sugeriu que os guardiães filosóficos não deveriam possuir nada de seu a fim de ficarem, o mais possível, livres de ser objetos de suspeita, nesse ponto, por parte dos demais cidadãos. Depois de criticar Platão por essa doutrina, Aristóteles passa a tratar um outro pensador a quem claramente considera anterior a Platão. [Osório diz: democracia e igualdade econômica] e [Osório diz: será que a família pode?]

O que ele nos diz é que havia alguns que sustentavam que as disposições convenientes em relação à propriedade eram politicamente mais importantes do que qualquer outra disposição, porque essa era a fonte de toda dissensão política. Assim Faleas de Calcedônia, que foi o primeiro a sugerir a introdução de regulamentações sobre a propriedade, propôs que todos os cidadãos deveriam ter quantidades iguais de propriedade. Ele supunha que isso não seria difícil de se conseguir na fundação de uma nova colônia, mas muito menos fácil nas comunidades já estabelecidas. Mesmo aí, isso poderia ser realizado se os ricos dessem dotes de casamento aos pobres, e o inverso se aplicava no caso dos que eram pobres, isto é, eles receberiam dotes mas não dariam dotes aos ricos (Política II, 7.2-3 = DK 39.1). A referência às colônias indica com certeza que o que está em questão, aqui, é a propriedade em terras, e não outras formas de riqueza. A exigência de uma redistribuição da terra nas cidades já existentes, frequentemente acompanhada da exigência do cancelamento das dívidas aos cidadãos privados, parece ter-se tornado quase que uma parte normal dos ataques aos proprietários de terra, e ambas as demandas foram condenadas no juramento Heliástico feito pelos jurados em Atenas, preservado em discurso na coleção que chegou até nós sob o nome de Demóstenes (XXTV, 149). [Osório diz: Faleas de Calcedônia, o Marx ateniense! Já?!].

Comparada a esses gritos de guerra, a abordagem de Faleas é realmente de caráter moderado e reformista. Embora não seja nomeado como sofista no sentido de um mestre profissional, Faleas pertence quase que certamente à última parte do século V a.C. e portanto deve ser considerado como fazendo parte do movimento sofista. Que estava interessado na educação é evidente pela afirmação de Aristóteles (Pol. II, 7.8), segundo a qual ele propusera não apenas igualdade em propriedade, mas também igualdade de educação [Osório diz: será que os sofistas ofereciam bolsas de estudo?]. Infelizmente não nos é dito de que forma ele supunha que isso seria organizado. Poderia ter sido baseado na prática em Esparta, mas mais provavelmente contempla a educação pública gratuita e universal [Osório diz: proposição sofística]. Se ela fosse concebida como se estendendo até a educação provida pelos sofistas, envolveria uma mudança na situação contemplada por Protágoras, na qual são os ricos que podem obter a melhor educação para seus filhos (Platão, Prot. 326c3-4). Em termos modernos, isso seria o equivalente à educação universitária para todos financiada pelo Estado.” (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 261-263).

 

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(uma biografia do conhecimento)

 

71 – Justiça, o que ela é, segundo os sofistas.

 

Nos diz Guthrie:

 

Justiça não passa do interesse do mais forte”. Ampliando, diz que, quer o Estado seja governado por tirano, quer por aristocracia ou democracia, os poderes governantes fazem leis visando ao seu próprio proveito. Fazendo estas leis, declaram que é justo para seus súditos o que os beneficia, e punem a todos os que se afastam delas como transgressores e malfeitores. A Justiça é a mesma em todos os Estados, ou seja, o que beneficia o governo estabelecido. Uma vez que o governo detém o poder, a justiça em toda parte é o que beneficia o mais forte.

Respondendo a perguntas de Sócrates, Trasímaco acrescenta que, embora tenha dito que é justo para os súditos obedecer às leis promulgadas por seus governantes, não implica que devam obedecer mesmo se os constituídos no poder ordenassem, por engano, o que não é de seu interesse. Como qualquer outro perito ou artífice, afirma ele, o governante não é, falando estritamente, governante quando age por ignorância ou erroneamente, mas apenas quando exerce corretamente sua capacidade. [Osório diz: mais isso é questionar a lei! Pois quem diz o que é a lei é o governante, não o governado! Usurpação de função]

Sócrates se aproveita do fato de Trasímaco ter introduzido a analogia entre governo e artes como medicina, e, tomando sua frase "falando estritamente”, afirma que uma arte como tal não busca sua própria vantagem, mas a do objeto sobre que se exerce (ekeino hou techne estin, 342b), que Sócrates identifica com o corpo no caso da medicina, o cavalo no caso do treinamento e assim por diante. Ele conclui que a arte de governar, concebida estritamente, legisla não para a vantagem dos que a exercem mas para a vantagem de seus súditos [Joseph (A. and M. Phil. 24 e 22) nota que Sócrates está certo ao afirmar que o propósito de uma arte como tal não é beneficiar o praticante, ainda que com ela ganhe a vida, mas errado em admitir que o propósito de todas as artes é beneficiar outros para os quais elas são exercidas. Um caçador exerce sua arte pela carne de caça, mas não em benefício dela, um dançarino por seu próprio corpo, que pode) distender ou ferir para alcançar a perfeição.]. [Osório diz: Sócrates não se aproveita! Sócrates é um personagem construído para ganhar e o outro para perder ou levantar a bola para ser cortada, é o “escada” dos programas de humorismo].

Podes dizer da mesma forma, replica Trasímaco, que os pastores buscam somente o bem-estar de seus rebanhos, enquanto se os mantêm saudáveis e gordos, é para o benefício último, não das ovelhas, mas de seus donos ou de si mesmos [Cross e Woozley (Coram. on Rep. 48s) dizem que, uma vez que a afirmação de Sócrates sobre governo deduz-se de uma generalização baseada em indução imperfeita. Trasímaco a ataca legitimamente produzindo um exemplo contrário. Mas foi Trasímaco que introduziu a noção de uma arte no sentido estrito (isto é, ideal), para fechar sua observação de que nenhum governante erra agindo como tal; e Sócrates é, portanto, autorizado a responder que o trabalho de pastor como pastor volta-se somente para o bem-estar do seu rebanho. Cf. esp. 345b-c. Para visão contrária v. também Kerferd, \JD. U.J. 1947, 22.]. De modo semelhante, justiça significa servir ao bem de outro homem: para o súdito obediente é uma desvantagem. Injustiça é o oposto: ela governa sobre os genuinamente simples e justos, que agem para o beneficio dela porque ela é a mais forte. Para o homem justo sempre sai pior do que para o injusto, tanto em transações privadas como nas suas relações com o Estado (pagamento de taxas, serviços abnegado, incorruptibilidade). A vantagem da injustiça vê-se melhor em sua forma extrema e mais bem sucedida. Quando um tirano toma o poder, ele rouba, pilha e esmaga tudo ao que é sagrado, mas, em vez de ser punido como o transgressor de pequena escala, ele é congratulado e chamado feliz pelo povo que escravizou. Evidencia-se assim que injustiça é mais forte, mais livre e mais poderosa do que a justiça, e prova-se a tese geral de que a justiça é o que beneficia o mais forte. [Osório diz: Platão em Siracusa].

[Arete, comumente traduzido assim, mas não tenho necessariamente as implicações morais que se costumam ligar com “virtude”. Significa a excelência característica que faculta qualquer criatura, órgão ou instrumento realizar sua função específica.(V. p. 234, abaixo). Em 353a-b Sócrates fala de arete de olhos e ouvidos: até uma faca a tem se é bem desenhada e aguda. Imediatamente depois disso, Trasímaco concorda com Sócrates em que ele chamaria o tirano injusto de "sensato e bom", usando o T hjetivo agathos que corresponde a areie. Não precisa estar envolvido nenhum juízo moral, embora Sócrates o tome na esfera moral acrescentando palavras como kalon e aischron, e Trasímaco inadvertidamente concorda. [Osório diz: vejam como são as coisas! Todos os admiradores de Platão, e é o caso do autor, o têm por genial e sagaz, mas, quando lhes interessa, desonestamente, dizem que ele agiu “inadvertidamente”, logo ele, que tudo que faz é perfeito, estudado, analisado].

Mais tarde ele chama o homem justo de "simplório polido" e o injusto de "sensível e bom". Esta é uma proposição mais brutal, diz Sócrates. Ele podia entender Trasímaco mantendo que a injustiça compensava apesar de ser desonrosa, mas evidentemente a chamava nobre e de tudo o mais que se costuma associar com a justiça. Se for assim, eles não podiam argumentar com base em razões geralmente aceitas. E, de mais a mais, Trasímaco parece agora estar deixando falar sua própria mente e crendo na verdade do que diz. Em vez de simplesmente concordar com isso, Trasímaco replica: "O que importa a ti se eu o creio ou não? Apenas refuta a doutrina" — palavras que adquirem significado à luz de seu comportamento posterior. [Osório diz: tem sido assim!]

[O primeiro deles pareceu a Joseph "absolutamente convincente" (A. and M. Phil. 31) e a Cross e Woozley "quase embaraçosamente mau" (Rep. 52).].

"Se eu estou certo" é que um Estado forte deve seu poder à injustiça. [Osório diz: veja o exemplo com os Estados Unidos atual].

Compare as seguintes expressões Estado 73 de Trasímaco: "Deixa assim ser, pois não quero te contradizer" (351d), "Podes gozar de teu argumento sem medo: não me oporei a ti, pois não quero ofender a companhia" (352b); "Assim parece segundo teu argumento" (353e); e suas palavras finais: "Bem, este pode ser teu dia de festa". Sócrates, é claro, segue o seu próprio curso de pensamento sem se importar se Trasímaco o está seguindo, e Trasímaco não está se importando com nada disso. [Osório diz: sto é Platão nu e cru! Platão puro]

Tal esclarecimento pode ser muito valioso, embora possa errar por negligenciar (como nunca é sábio fazer com Platão) a situação dramática e a tensão emocional entre os locutores, e o fato de que a força motriz atrás de Trasímaco é o sentimento apaixonado antes que a inquirição filosófica.

[Assim Kerferd (D.U.J. 1947,19) vê-Ias como (1) Niilismo ético, (2) Legalismo, (3) Direito Natural, (4) Egoísmo psicológico. Para Cross e Woozley (Rep. 29) elas se apresentam como (1) Definição naturalística, (2) Visão niilista, (3) Comentário incidental, e (4) Análise essencial. Referências às mais importantes discussões anteriores podem-se encontrar no artigo de Kerferd, com a exceção de que não faz menção da análise atilada de Max Salomon em ZeUschr. d,. Savigny-Stiftung, 1911.].

Trasímaco lança seu desafio em forma deliberada e amargamente paradoxal: “Justiça? Não passa do interesse do mais forte!” Isso não precisa significar literalmente o que diz, mais do que um homem faz quando, espantado pelo sucesso da maldade e iniquidade, exclama: “Não existe justiça!” O que quer dizer, com efeito, é que existe a coisa chamada justiça e que sabe perfeitamente o que é, mas que nesta vida esperou por ela em vão. O choque do paradoxo está em que para todo grego os termos justiça e justo (dikaion) transmitiam uma impressão de valor moral positivo: abarcavam, com efeito, campo tão vasto que quase se poderia dizer que o conceito de dikaion era coextensivo com o conceito de valor moral.

num discurso de Brasidas, de 'a justificação que está no poder superior'” (ischyos dikaiosei, 4.86.6).

Tucídides no livro 3 com toda sua nudez, embora, com mais frequência, como ele diz, se disfarçasse a ação odiosa com frases que. Bonitas. [Osório diz: Palavras e ação não se confundem! Assim como as palavras e as coisas para Górgias. Fala num sentido e age em outro, que é o seu oposto. É o que faz o próprio Platão!]

O objetivo de Trasímaco, tal como o vejo [É preciso ser pessoal, uma vez que esta agora é visão de uma minoria e outros têm muito a dizer em seu favor. Os que no passado assumiram visão semelhante à apresentada aqui incluem, entre outros, Grote, Barker, Joseph, Burnet e Taylor. Mais recentemente Kerferd sustentou que,Trasímaco prega uma doutrina de direito natural, e Cross e Woozley que ele mantêm que é dever moral do mais fraco servir ao mais forte, mas recomendando-nos depois cinicamente que não nos comportemos da maneira como devemos nos comportar.], é desmascarar a hipocrisia e mostrar que está sendo pervertido o sentido de justiça. Cidades e homens agem como se fora justo para os fracos serem oprimidos e para o forte abrir caminhos por nenhum direito senão pelo poder de fazê-lo, em geral negando que isso seja verdade e acusando seus opositores de agirem como se fosse. [Osório diz: Bom!].

Tal é o contexto em que se deve ver a interação de real e ideal, "é" e "deve" nas afirmações de Trasímaco. Gera certa confusão que impressiona-. de imediato o leitor, embora estudiosos tenham pretendido resolvê-la por análise sutil. Trasímaco começa fazendo, com escárnio e com raiva, uma afirmação de fato: "Estimo que a justiça não passa do interesse do mais forte", reduzido mais tarde em "o interesse do governo estabelecido". Poder-se-ia chamar isso ou de inversão da moralidade corrente — a palavra "justiça" ainda transmitindo aprovação, mas estando por algo que até o momento ninguém admitiria aprovar — ou de supressão do teor moral da própria palavra: o que hoje em dia leva o nome de justiça nada tem a ver com certo e errado; usa-se simplesmente para dizer o interesse de qualquer que, em dado momento, detém as rédeas do poder. Todos os governos fazem leis em seu próprio interesse, e chamam isso de justiça. São estes os fatos: louvor ou censura não entram aí. Desde de Tucídides se pode preencher o resto: é questão de natureza humana, de necessidade, que, como Hemócrates disse (p. 84 acima), não se deve censurar os fortes por buscar governar, nem, de outro lado, existe algo de moralmente digno de louvor em sua ação. Manter outros sob controle é simplesmente vantajoso, e para um poder governante é perigoso entregar-se a piedade e humanidade. É isto que Péricles e Clêon, e muitos outros, pregava na época de Trasímaco.

Mais tarde, porém, Trasímaco diz que para julgar as vantagens da injustiça (p. 90) dever-se-ia considerá-la em sua forma mais extrema, a do tirano que se apoderou do poder por uma combinação de força e traição. Malfeitores em pequena escala são punidos e desgraçados, mas a tal homem se bajula e se chama feliz e abençoado. Todavia “ele rouba e pilha, não no varejo, mas no atacado, não respeitando nem sagrado nem profano, nem propriedade particular nem pública”.

Ele é o exemplo acabado e supremo de injustiça"76 e isso, conclui Trasímaco, prova minha observação de que a injustiça é mais forte, mais livre e mais senhorio qúe ajustiça, e que o interesse do mais forte é justiça, enquanto a injustiça é o interesse e o proveito de si próprio".

Tudo isso ilustra o fato histórico, de que Tucídides é testemunha, de que, nas circunstâncias atormentadas dos fins do séc. V, cânones morais estabelecidos eram ignorados e homens alteravam os sentidos aceitos dos termos morais para os conformar às suas ações. Tal alteração combina com a violência da política e da guerra (por exemplo, o rótulo de covardia ou fraqueza que se lança contra um homem que se opõe a um ato de injustificada agressão), mas dificilmente pode agüentar um exame filosófico [Embora eu não concorde inteiramente com a avaliação de Bignone de Trasímaco, existe força em sua observação (Studi, 38) sobre ele e Cálicles: "Mas atrás destes dois nomes ficamos mais conscientes da política do que da filosofia da época". [Osório diz: Platão.]. As associações morais da palavra dikaion — certo e justiça — são demais fortes para sua equiparação com "o interesse do mais forte" para ser conscientemente mantida em face do questionamento. Tem-se argumentado que Trasímaco está olhando para o assunto apenas do ponto de vista do governado, que para ele justiça consiste em o súdito buscar o interesse do governante ou, como ele o coloca, "o bem de outro homem" (343c); [Osório diz: esse é o perigo da associação do nome à coisa. Ou quem colocou a coisa, maior, na caixa do nome, que pode ser menor! A vida não é palavras. Palavras são versos da vida!] e que isto o resgata de inconsistência e na verdade é a chave para entender sua tese, que é uma forma da doutrina do direito natural. Mas que consistência existe, pode-se perguntar, em sustentar que (a) a justiça é o interesse do poder governante (que Trasímaco afirma simplesmente e sem qualificação), mas (b) não é justo para o governante buscar o seu próprio interesse, isto é, justiça? [Ambos os lados da tese são afirmados claramente por Adimanto em 376c, onde ele fala que “concorda com Trasímaco em que justiça é o bem outrem, sendo a vantagem do mais forte a injustiça, a vantagem e o proveito próprios, mas a desvantagem do mais fraco". Assim, a justiça consiste na obediência a leis que o poder governante (o exemplo escolhido por Trasímaco do "mais forte") estabeleceu em seu próprio interesse, isto é, injustamente. Uma visão mais consistente é aquela a que se refere Platão em Leis 10 (890a), daqueles (quem quer que sejam; não Trasímaco manifestamente) que dizem einai to dikaiotaton hoti tis an nika biadzomenos. [Osório diz: “Amar é ser fiel a quem o trai”, dizia Nelson Rodrifues]. [Osório diz: O que é a justiça para o governante pode não ser para o governado].

Quase todo comentador notou o contraste na discussão entre o ideal e o real, o fato e o valor, o 'V' e o "deve", mas houve desacordo sobre os lugares em que um ou o outro padrão se introduz. Numa das mais atiladas abordagens da questão, M. Salomon observou que a diferença entre o descritivo e o normativo ainda estava in nuce. Achamo-lo óbvio, mas manter a distinção pode não ter sido tão fácil para Platão e o Trasímaco histórico. O próprio Salomon viu Trasímaco como engajado em sociologia puramente descritiva descendo para o lugar (344a) aonde ele chega a mudança no poder governante e caracteriza o homem que derrubou as leis anteriores como "o maior criminoso" [Satze, die...f leâiglich soziologische Êrken,~tnisse geben wollen" (Savigny-Sti 1911, 143). Empreende-se um esclarecimento de idéias, mas não se fixa nenhuma norma como, p. ex.: "Age justamente, age de acordo com a lei".]. "Aqui Trasímaco não apenas explica, mas também julga": o leitor atento não pode deixar de ver o escárnio e a amargura com que ele fala. Tal como vê a vida, a maior inversão possível de valores ocorre diante de seus olhos. O mais injusto pode se tornar o mais justo; isto é, as pessoas o chamarão de justo quando uma vez no poder [Nesta última sentença Salomon vai além do texto. Fazendo justiça à exposição de Kerferd, deve-se dizer que Trasímaco em nenhum lugar chama o homem ou o partido no poder de justo", ou diz que é assim chamado por outros. (Eles o chamam de "feliz" e "abençoado"). O que ele diz é que justiça "é" C seu interesse, e o homem justo é o súdito que em sua simplicidade de coração está contente de se submeter e servir àquele interesse. Todavia o que Salomon diz pareceria ser apenas uma inferência legítima das palavras de Trasímaco, e ajuda a expor a inconsistência das afirmações de Trasímaco carregadas de emoção: justiça é o interesse do mais forte (equiparado com o governo estabelecido), mas para o mais forte buscar seu próprio interesse é injusto. Gláucon com seu reforço do argumento de Trasímaco diz (361a) que o homem perfeitamente injusto buscará adquirir a melhor reputação de justiça. [Osório diz: Isso prende Sócrates, que não poderia ir contra as leis da sua cidade! Aliás, eles nem pode falar de leis injustas, já que ele não pode contestar qualquer lei, pois as leis devem ser respeitadas e, contestá-las é não aceitá-las.].

Podemos concordar com esta interpretação da última parte das observações de Trasímaco, porém mantendo que até o momento dava mera "informação sociológica", Salomon ignora o fato de que o próprio Trasímaco introduzira o conceito de governante "em sentido estrito, o qual é infalível, ou seja, um ideal, e não um governante ie al. Foi isso que deu a Sócrates a abertura para o seu argumento que nenhum praticante como tal, quer da arte de governar, quer qualquer outro, exerce sua arte em seu próprio interesse. Afirmando que Sócrates não pode refutar a Trasímaco falando doj que acontece quando um homem governa corretamente (kalos, 347a), uma vez que Trasímaco perguntava não como o homem legisla quando governa corretamente, mas como de fato pessoas governam neste mundo, Salomon entra em contradição, pois nenhum governo é de fato infalível. Todavia o governante infalível ou ideal ainda é para Trasímaco governante que legisla sem errar em seus próprios interesses, e ele não visava a que sua admissão levasse à conclusão moral em que a engenhosidade de Sócrates o aporta. Sua rejeição da alternativa que lhe oferece Clítofon (de que o que ele quis dizer pelo interesse do mais forte era o que o mais forte pensa ser seu interesse, quer certa ou erradamente) colocou-o à mercê da dialética de Sócrates [Joseph, A and M. Phil. 18: "A defesa de Trasímaco... introduz um contraste entre o real e o ideal que é em última instância fatal para sua posição". Cross e Woozley também dizem (p. 46) que ele "podia ter feito melhor em ter aceitado a sugestão" de Clítofon, embora Kerferd o negue com (p. 92) a hipótese (não muito diferente da deles) que Trasímaco pregue doutrina do direito natural do mais forte.

Salomon deve também ter antecipado uma objeção de que se introduz linguagem normativa. em 339c e 341a, onde Trasímaco concorda em que o que o governante decreta não é só "justo" (isto é, segundo Sócrates, que é chamado justo o homem que obedece à lei) mas também poieteon tois archonwnois. Isto, poder-se-ia argumentar, mostra que, no modo pessoal de ver de Trasímaco, o súdito deve obedecer. Poder-se-ia responder: (a) Neste estágio do pensamento, e na ausência de recursos de vocabulário para fazer distinções filosóficas tais como podem dispor os filósofos do séc. XX, alguma confusão entre linguagem descritiva e prescritiva era inevitável e completa do mundo e sua sugestão de obrigação impossível; (b) que a compulsão implicada por adjetivos verbais desta forma não eram absolutamente exclusivamente moral: podia se referir à força de circunstâncias ou ao que se deve fazer para conseguir determinado objetivo (o que Aristóteles chamaria mais tarde de necessidade hipotética: exemplos deste uso aparecem em 361c).

E. L. Harrison, em seu interessante artigo em Phoenix, 1967, expressa a opinião de que é este um dos pontos em que Platão "manipula" Trasímaco, isto é, faz o sofista falar, como personagem, em prol de seu próprio desígnio artístico na República.].

Como Hobbes, ele sustenta que o homem só age em vista de seu próprio interesse privado – se faz leis, ele as cogita para seu próprio proveito; se lhes obedece, obedece-lhes pensando que mais lhe vale obedecer-lhes do que cumprir as penalidades da desobediência, ainda que o ato em si visasse ao proveito não dele, mas do governante. [Osório diz: Não é o contrário?].

Diversamente de Hobbes, Trasímaco não sente necessidade de justificar o absolutismo do “soberano” apelando ao “contrato social” pelo qual ele se investiu de seus poderes soberanos; ima vez que não considera que “o justo” tenha algum sentido, não se vê obrigado a demonstrar que o soberano tenha algum direito à obediência; basta-lhe observar que o seu poder de exigir obediência é garantido pelo mero fato de ser o soberano.

[Semelhante à de Grote é a afirmação mais recente de J. P. Maguire: "Diversamente de Cálicles, nem Trasímaço nem Gláucon admite a existência de um direito natural em absoluto" (Yale Class. Stud. 1947, p. 164). Pará -Popper tanto Trasímaco co-MoCálicleã são "niilistas éticos” (Open Soc. 1,116).[Osório diz: ver Rommily].

Enfim, esta interpretação do Trasímaco platônico concorda com uma das várias peças de prova independente sobre o homem mesmo. Um comentarista de Fedro diz que ele "escreveu num de seus discursos algo como: Os deuses não vêem o que se passa entre os homens. Se o vissem, não descuidariam do maior dos bens humanos, a saber, a justiça, e, no entanto vemos homens não fazer nenhum uso dela" (Hérmias = Trasímaco fr. 8 DK).84 Fala aí o moralista desiludido, que no diálogo de Platão, por sua expressão mal pensada e mal humorada e também paradoxal daquilo que é essencialmente a mesma visão deixa abertos os flancos aos rigores da contraprova socrática. No meio do geral menoscabo da justiça, o homem, que tenta praticá-la, só se pode descrever como "nobre simplório" (348c) [Osório diz: Engraçado o autor! Prova maior não seria o dito {“o homem somente prática o mal por engano”} de Sócrates? Por que, então, dizer que “No meio do geral menoscabo da justiça”? É, mas como eles não são democratas, a maioria sempre está errada!]

 

Gláucon e Adimanto

 

Depois do episódio anterior, Gláucon (no início do livro 2) lamenta que não foi fácil confundir Trasímaco.

O que estes prescreviam chamaram de legal e justo. É esta a origem e natureza da justiça, não sendo esta estimada boa em si mesma, mas pela falta de poder de fazer o mal com impunidade. Um homem capaz de praticar a injustiça com sucesso consistente seria louco se permitisse ligar-se a tais pactos. Imagine um homem que tivesse o anel fabuloso de Giges, que, tornando-se invisível o usuário a seu bel-prazer, lhe facultasse escapar das conseqüências de seus atos. Suprimiria completamente a distinção entre os bons e os maus, pois ninguém poderia resistir à tentação de roubar, cometer adultério e entregar-se a toda espécie de maldades proveitosas e agradáveis. Bondade, ou justiça, nunca se pratica por escolha, mas só por necessidade, por medo de, por sua vez, sofrer dano.

Sendo assim, o que importa não é ser, mas parecer justo.

Para comparar as vidas do homem justo e do injusto, devemos considerá-los em sua forma pura, cada um perfeito a seu modo. Quem levou sua iniqüidade à perfeição, obviamente, não será pego — o que o estigmatizaria como sanguinário — mas irá pela vida afora com reputação imaculada de integridade. E, de outro lado, o homem perfeitamente justo não deverá ter o crédito de sua virtude: o que lhe traria honras e riquezas, e nunca se poderia estar seguro de que foi virtuoso por causa destas gratificações antes do que por causa da virtude mesma. Sua virtude deverá ser testada sofrendo a vida inteira reputação desmerecida de iniqüidade. Não é difícil predizer a sorte dos dois. O perfeitamente justo aprenderá pela prisão, tortura e execução que escolheu o caminho errado, ao passo que o perfeitamente injusto será abençoado pela riqueza, pelos amigos e pela prosperidade de toda sorte, e até mesmo gozará do favor dos deuses, pois poderá lhes oferecer os sacrifícios mais generosos. [Osório diz: Sócrates é a prova?].

Oferecem-se estas idéias como as do tipo ordinário do gênero humano. Não devemos, pois, esperar alguma defesa heróica caliclesiana do super-homem poderoso e sem escrúpulos. Temos, ao invés, mistura bastante sórdida de avidez, inveja, mesquinhez e medo. Todos, se pudessem, tirariam proveito injusto de seus companheiros, mas, se bem que viver justamente seja mal, é mal necessário. Na verdade, a única coisa importante é parecer justo, mas, uma vez que o anel de Giges é apenas conto de fada, isso implica manter-se, consideradas todas as coisas, dentro das fronteiras da lei e da moral convencional. O "homem perfeitamente injusto" é ideal inatingível. [Osório diz: AA? Um retrato da maldade humana].

 

Natureza e necessidade

 

Interesse próprio, diz Gláucon (359c), é o que toda natureza (physis) colima como bem, embora a lei e a convenção (nomos) a constranjam a desviar-se para o respeito da igualdade. Esta é a espécie de realismo que enfrenta os fatos que encontramos em Tucídides, na afirmação com frequência repetida de que é da natureza humana fazer o mal e dominar os outros sempre que possível, e no sofista Górgias (Hel. 6, DK, II, 290): "Não está na natureza do forte ser contrariada pelo mais fraco, mas, na do mais fraco governada e dirigida pelo mais forte, e do forte dirigir e do fraco seguir".

Mais tarde, no drama (1075), o Argumento Injusto fala de “necessidade da natureza” com referência ao adultério, e chama a sem-vergonhice e o comodismo de “exercício da natureza”. O próprio Demócrito fez a transferência para a vida humana de maneira menos provocativa quando disse (fr. 278) que a concepção de filhos era considerada uma das necessidades da natureza [Referências nos escritores hipocráticos à physis anthropou sem dúvida ajudaram a transferir a palavra constituição do universo à natureza do homem, embora a usassem em sentido fisiológico antes que ético. Para mais sobre este tema v. vol. II, 351-3 [Osório diz: o homem é a natureza animada.].

Esta associação de necessidade com a natureza é usada como argumento pelos oponentes do nomos, que eles representam como tentativas de contrariar forças naturais que por isso são destinadas ao malogro. Assim lemos em Antífon, numa passagem que expõe as vantagens de transgredir a lei se se pode passar despercebido, que os ditames da lei impõe-se artificialmente por acordo humano, ao passo que os da natureza são necessários precisamente porque surgiram naturalmente. [Osório diz: Lei e phýsis].

A conclusão a se tirar é que, uma vez que as leis da natureza são inexoráveis e se aplicam à humanidade não menos que ao mundo em geral, os homens as seguirão inevitavelmente a não ser que impedidos pela intervenção do nomos.

Para alguns, como Tucídides e (se estou certo) Trasímaco, este era fato simples que tinha que ser aceito. Outros tiraram a conclusão positiva e prática de que contrariar as "leis da natureza" deve inevitavelmente ser danoso, e ela devem ser seguidas ativamente sempre que possível [Heinimann, N. u. Ph. 125s (embora eu não possa concordar quando ele diz (126, n. 4) que o uso de anagke como força cosmológica por Leucipo e Demócrito é irrelevante para seu emprego pelos sofistas). Deve-se notar que "necessário" pode-se aplicar de maneira muito diferente ao próprio nomos, a compulsão imposta pela lei e convenção. A este, diz Gláucon na República, a maioria dos homens se submete como necessário, mas não aceita como bom (desde o ponto de vista de auto-interesse do indivíduo). A compulsão da natureza é absoluta, e a do nomos é contingente.].

Era da natureza humana, tanto para os Estados como indivíduos, comportar-se egoística e tiranicamente, se dada a oportunidade, alinhavam-se aqueles para os quais isto pareceria não só inevitável, senão também justo e adequado. Para estes, o tirano era fato não só inevitável, como também ideal. [Osório diz: é o caso do siracusano Platão? {Apenas para constar: ele foi duas, e não uma única vez à ilha! Ou seja, é reincidente!}].

Estas ideias são sustentadas por homens que aos olhos dos jovens parecem sábios, tanto escritores em prosa como em versos, que dizem que a perfeição da justiça é conquista ganha pela força [Estes homens são, pois, de estampa diversa de Trasímaco, para o qual a tirania era he teleotate adikia e o tirano ten holen adikian edikekos (p. 91, n. 79, acima). [Osório diz: e o siracusano Platão?]. Daí os jovens caem na irreligião, como se não houvesse deuses tais como nos mandam acreditar. Daí também irrupções de discórdias civis, sendo os homens atraídos para a “vida certa segundo a natureza”, que, expressa claramente, significa vida de dominação sobre os companheiros e recusa de servir aos outros como lei e costume (nomos) ordenam. [Osório diz: Platão/Sócrates queria mudar as leis de Atenas com sua República!].

[Osório diz: Sócrates, se tivesse algo a ensinar, foi tão “perverso” que não escreveu nada!].

Cálicles é figura um tanto misteriosa, pois, além de seu aparecimento como personagem no diálogo de Platão, não deixou nenhum traço na história registrada. [Osório diz: ver, sobre a identidade de Cálicles, o que diz Rommily] Todavia é descrito com soma de pormenores autênticos que é difícil acreditar ser personagem fictícia. E provável que tenha existido e sido conhecido como tendo as idéias que Platão lhe adscreve, embora, em sua ânsia de apresentar em toda sua brutalidade o caso que quer demolir, Platão pode muito bem ter tomado elementos de diversas fontes e edificado na pessoa de Cálicles uma apresentação um tanto estilizada da doutrina "força é direito" em sua forma mais extrema [Por "pormenor autêntico" quero dizer que se atribui aldeia real e se lhe dão características-~ históricas como a seus amigos e conhecidos. Três modos de ver são possíveis e foram sustentados: (1) ele é pura ficção, (2) o nome é uma máscara para uma personagem bem conhecida como Crítias ou Alcebíades, (3) ele é uma figura histórica. O último ponto é mais provável. Veja Dodds, Górgias, 12s, e para várias opiniões também Untersteiner, Sophists, 344, n. 40. Dodds conjectura que um homem "assim ambicioso e tão perigosamente franco" pode muito bem ter perdido a vida nos anos tormentosos dos fins do séc. V, antes de ter marcado a história. [Osório diz: quais amigos e conhecidos?]. Ele é jovem rico e aristocrata [Osório diz: ou seja, é Platão!], que entrou há pouco na vida pública (515a), e, se bem que agindo como tropa de Górgias, não é sofista [Osório diz: Ufa!]. Ele descarta os “que professam educar os homens na arete” como porção sem valor. [O próprio Górgias, embora se possa com certeza classificar como sofista (p. 41, n. 29, acima), ria, diz-se, dos que exerciam esta profissão (Menu 95c). Cálicles pode ter pensado sobretudo em Protágoras, que enfaticamente a exerceu, e cuja moderação e cujo respeito pelo nomos não se lhe teriam recomendado. [Osório diz: Platão usa o mesmo tema em vários diálogos! Quando suas idéias “fazem água”/furam, ele as reescreve, assim como a Igreja Católica tem reescrito a Bíblia para tentar melhorar suas incoerências e inconsistências].

Demos, o filho de Pirilampes, padrasto de Platão, e sua amizade com Ândron, que foi um dos Quatrocentos estabelecidos no poder na revolução oligárquica de 411, e seu orgulho de sua descendência menciona-se em 512d [ Possivelmente também por defesa da própria physis. Dodds observa (Gorgias, p. 13) que "o louvor da physis comumente se associa a um pressuposto aristocrático, de Píndaro em diante", mas a situação talvez fosse mais complexa. Veja c. X abaixo. [Osório diz: o povo queria a lei escrita, em princípio, pois ela, inicialmente, trazia a igualdade. Entretanto, depois…]. [Osório diz: justamente a família de Platão! Inveja? Raiva? Seu tio Crítias].

Cálicles retoma a argumentação com Sócrates depois da derrota de Pólus, o jovem e impetuoso aluno de Górgias, que tentou sustentara mesma tese de Trasímaco, segundo a qual "muitos atingem a felicidade mediante a injustiça" (470d).

Chamando-os de iníquos, como Cálicles frisa, fez o jogo de Sócrates [Osório diz: do autor da peça!], pois lhes restou moral convencional bastante para concordar que, se bem que a iniqüidade seja coisa boa para o iníquo, todavia é desonrosa e censurável [Osório diz: e daí?]. Absurdo, diz Cálicles. Pólus errou ao conceder a Sócrates sua alegação de que cometer injustiça era mais censurável do que sofrê-la. Esta visão convencional, mas apresentá-la como a verdadeira é vulgar e medíocre. Natureza e convenção opõem-se geralmente, de forma que, se um homem é impedido por vergonha de dizer o que pensa, é compelido a se contradizer. Os que estabelecem as convenções a fazerem as leis são “os mais fracos, isto é, a maioria” [Osório diz: mas era pela minoria que advogava Sócrates/Platão, desde que a minoria da aristocracia da qual eles faziam parte]. São eles que dizem que a autopromoção é infame e injusta, e equiparam a injustiça com o desejo de ter mais que os outros. A natureza diz que é justo para o melhor ter mais do que pior, e o mais poderoso do que o menos poderoso [Cálicles diz que usa beltion, kreitton e ischyroteros — melhor, superior e mais forte —como sinônimos). Esta sentença e a seguinte (483c-d) mostram claramente a influência da associação de Cálicles com Górgias (se na verdade neste ponto ele é mais do que a boca pela qual ele reproduz a retórica inescrupulosa do próprio Górgias). Cf. Gorg. Hel. 6 pephykegar ou to kreisson hypo tou hessonos kolyesthai alfa to hesson hypo tou kreissonos archesthai kai agesthai.].

Observamos aí a contradição formal a Trasímaco, o qual disse que os que fazem as leis são a parte mais forte, quer tirano, quer oligarca, quer democrata (Rep. 338e). [Osório diz: Cálicles versus Trasímaco!] Adimanto aproximou-se mais de Cálicles ao argumentar que os fracos são os que defendem a justiça (no sentido convencional em curso) e censuram a injustiça, não por convicção, mas por causa de sua própria impotência.

Mas ambos receberiam a censura de Cálicles, como Pólus recebeu, por usarem justiça e injustiça em seus sentidos convencionais [Trasímaco, podemos lembrar, não admitiria que ele estimasse a injustiça não só vantajosa, mas também honrosa e virtuosa (p. 90, acima). As próprias idéias diferenciam de alguém que disposto a aplicar a palavra justo" ao que o mundo considera injusto podem ser provas a mais que foi deliberado o fato de ele evitar o comprometimento.[Osório diz: As palavras fluem! Quem as cumpre? Os políticos? Não é o que diz o povo! Ver Carolina Maria de Jesus]].

Muitas coisas estão a indicar que o critério da justiça para o mais forte é tirar o melhor do mais fraco, como, por exemplo, o comportamento dos animais e dos homens coletivamente como Estados e raças. Dario e Xerxes, invadindo o território de outros povos [Osório diz: E Péricles invadindo as outras cidades gregas?], agiam de acordo com a natureza da justiça — e também segundo a lei, se entendes a lei da natureza, se bem que não segundo as leis que nós, homens, estabelecemos. A frase "lei da natureza”, nesta sua primeira ocorrência, usa-se como paradoxo deliberado, e, com efeito, em nenhum de seus sentidos posteriores, nem da lex naturae, que teve longa história na teoria ética e legal desde os estóicos e Cícero até os tempos modernos, e nem no sentido das leis da natureza dos cientistas que são "apenas uniformidades observadas". 101 Mas ela sintetizou uma atitude já corrente em fins do séc. V, e os atenienses, no diálogo de Melos de Tucídides, chegaram muito perto dela até verbalmente, ao expressar o princípio de que devia governar quem é capaz, como questão de "necessidade natural" e ao mesmo tempo lei eterna. 102 [Osório diz: isso não é Sócrates?] O critério bestial do comportamento natural (tomando os animais como modelos [Osório diz: isso é , convenhamos, ridículo. A racionalidade e os desejos são suficientes para mostrar quão diferentes são) também era conhecido no séc. V. Heródoto, ao citar um exemplo, exclui expressamente os gregos (2.64), mas é parodiado mais de uma vez em Aristófanes (Nuvens 1427ss, Pássaros 753ss).

Nossas leis não-naturais, continua Cálicles, modelam nossos melhores homens desde sua juventude, ensinando-lhes que a igualdade é bela e justa, mas, se surgisse um caráter naturalmente mais forte, sacudiria, como um leãozinho, estes grilhões, quebraria sua jaula e tornar-se-ia patrão ao invés de escravo. Brilharia então com toda a sua glória a justiça da natureza. Sócrates tenta fazê-lo retirar pelo menos para a posição do Trasímaco platônico, frisando que na democracia, uma vez que “os muitos” fazem e sancionam as leis, eles são o elemento mais forte e melhor (tendo o próprio Cálicles equiparado estes dois epítetos), e por isso, com base no argumento de Cálicles, o que eles decretam é naturalmente certo e direito; mas são muitos os que insistem que justiça significa direitos iguais para todos e que fazer injustiça é mais desonroso do que sofrê-la, e, portanto, tudo isso deve ser certo segundo a natureza e não só segundo o nomos. [Osório diz: E se vários leãozinhos se unirem, como, aliás, ocorre? Mas Sócrates/Platão não acreditavam na maioria! Isso é Platão e seu balão de ensaio! Justamente eles que não defendiam a democracia, aqui aparecem como democratas. Podem até ser democratas, mas com a finalidade de destruir a democracia]

Cálicles replica numa explosão de raiva que Sócrates fala absurdo e está enganando-o com palavras [Osório diz: e o autor Platão sabe que estava mesmo, daí revelar isso!]. Ao dizer que os mais fortes eram os melhores, ele quis dizer homens melhores — melhores naturalmente (492a), e não uma população indefinível e abjeta [Osório diz: e era o que Sócrates/Platão pensava mesmo, já que era aristocrata e tirano!].

A ideia de que devam "governar a si mesmos", isto e, exercer autocontrole, é ridícula. A bondade e justiça natural decreta que o homem que vivesse corretamente não deveria controlar seus desejos, mas deixá-los crescer tanto quanto possível, e por sua coragem 104 e senso prático ser capazes de satisfazê-los ao máximo. [Osório diz: Ridículo é dizer que o forte tem que também ser burro!]

O tipo comum de homens condena tais excessos apenas por vergonha de sua própria incapacidade para eles [Osório diz: pois se tornam seus praticantes no primeiro momento que podem fazê-lo!].

A verdade é esta: intemperança, libertinagem e liberdade de restrições, se apoiadas pela coragem, constituem excelência (arete) e felicidade; tudo o mais é conversa bonita, acordos humanos contrários à natureza, absurdo sem valor [Osório diz: quem discorda disso, honestamente?].

É o hedonismo extremado que realmente identifica prazer e bem, depois arranca-o de sua posição por táticas de choques até ele dar meia-volta desavergonhada e dizer que não falava sério: ele crê com certeza que alguns prazeres são bons e outros maus. [Osório diz: Bingo! As palavras têm limites se justificam isso ou aquilo].

[Osório diz: A história do super-homem é ridiculamente distorcida para atingir um objetivo {justificar ou fundamentar um posicionamento}, como sempre ocorre! Se ele é um super-homem {inclusive na inteligência} é para enfrentar um contra um ou ele contra todos? Se ele é super-homem ele debe ser maior que o todo. Mas, mesmo que ele, sozinho, não seja maior que o todo, pode fazer aliança com outros super-homens maus e, assim, todos os super-homens maus do mundo podem enfrentar os bonzinhos! Mais: sendo ele super-homem e inteligente, quem disse que ele não encontrará partidários entre os bonzinhos? O capital escraviza, mas todos querem estar ao seu lado!].

Os nomoi humanos existentes são totalmente não-naturais, porque representam a tentativa da multidão de fracos e sem valor de impedir a meta da natureza, segundo a qual o forte deve prevalecer [Osório diz: posição aristocrática de Platão!]. O homem verdadeiramente justo não é o democrata, nem o monarca constitucional, mas o tirano insensível [Osório diz: perfeito! É o Platão siracusano].

É esta a moralidade contra a qual Platão se voltou resoluta e decididamente [Osório diz: inclusive indo apoiar, por duas vezes, o tirano de Siracusa?], desde o tempo em que, como jovem fervoroso seguidor de Sócrates, aprendeu deste que "nenhum homem erra voluntariamente" (no sentido ordinário) [Osório diz: essa pode ser uma situação confortável: até o fim de sua vida, quando a ele mais uma vez se opôs nas Leis e, visto que suas raízes estavam na ciência natural do homem, tornou-se ele próprio cosmogônico no Timeu para aluir seus fundamentos mais profundos.

É preciso enfatizá-lo porque existe uma teoria curiosa de que Platão nutria secreta simpatia para com Cálicles, que representava algo profundamente implantado em sua natureza pessoal, que talvez só tenha reprimido sua familiaridade com Sócrates. Cálicles é "um retrato do eu rejeitado de Platão" [Osório diz: rejeitado!?]. "Embora fundamentalmente se oponha às idéias de Cálicles, ele as afirma com a facilidade e simpatia de homem que as suprimiu em si próprio [Osório diz: a supressão deu-se em Siracusa?], ou ainda havia de suprimi-Ias, ou como Rensi o coloca, “o conflito Sócrates-Cálicles no Górgias não é conflito entre dois indivíduos mas conflito que se passa dentro de uma só mente” [As citações são de H. Kelsen como citadas por Levinson, Defense of P. 471, e Highet e Rensi citados por Untersteiner, Sophists, 344, n. 40.]. Dodds concorda com isso até a medida que, visto Platão ter sentido "certa simpatia" por homens da estampa de Cálicles, o seu retrato de Cálicles "não só tem calor e vitalidade, 106 mas se tinge de afeição pesarosa". [Osório diz: Platão/Cálicles – ida à Siracusa e amante de Esparta, portanto, nada de supressão!].

Podemos mais facilmente nos associar ao brando protesto de Levinson (Defense of P. 472) de que "não é sadio identificar Platão com as personagens dele que ele detesta" [Osório diz: e ele detesta? Onde, quando e como?]. É instrutivo comparar o tom da conversação aqui com o tom em Protágoras, em que Sócrates fala a um homem pelo qual, embora esteja em desacordo com ele em coisas fundamentais, tem verdadeiro respeito. [Osório diz: o autor fraqueja! Ã hã!].

Quando Protágoras, ocasionalmente, e justificadamente, irrita-se, Sócrates o acalma, e os amigos de ambos logo se dispõem a arranjar as coisas entre eles com palavras de calma. A crítica é bem-humorada, a atmosfera é de amizade e tolerância, e o diálogo termina com expressão de mútua estima. Aqui, de outro lado, há evidente amargura e mau humor. Falar disparates, oratória de populacho, trocadilhos de sofista [Osório diz: vejam como não foi apenas Aristófanes que sabia que Sócrates era um sofista!], mentalidade medíocre, violência, e a marcação barata de pontos para o debate, são algumas das acusações que Cálicles arremessa contra Sócrates, e Sócrates faz retornar da mesma forma como recebe [Osório diz: essa é uma das teses de que Platão traiu Sócrates e talvez o detestasse]. Considerando psicologicamente, tudo isso é sem dúvida compatível com a existência de um Cálicles reprimido no próprio Platão, mas visto no contexto de toda a sua filosofia parece muito improvável [Osório diz: Parece? Se parece pode ser!]. Dodds vê até maior importância na "vigorosa e perturbadora eloquencia que Platão concedeu a Cálicles", mas não deve ser nenhuma novidade para nós que Platão foi soberbo dramaturgo [Osório diz: a fuga conveniente do autor, pois Platão somente é dramaturgo quando está em becos sem saída! Do contrário é só filósofo profundo e único!]. Esta eloquência convenceu o jovem Nietzsche, ao passo que o raciocínio de Sócrates o deixou frio. Isto não é surpreendente, mas pouco relevante. O apóstolo da Herrenmoral (Moral do senhor), da Wille zur Macht (Vontade de poder) e Unwertung ller Werte (Revolução de todos os valores) não precisava de muito convencimento, pois ele era irmão de sangue de Cálicles, ao passo que Sócrates se ornou para ele, para citar de novo Dodds, "uma nascente de falsa moralidade" [O que Nietzsche chamou de cultura sofistica para ele era "este movimento sem valor no meio do engano moral e ideal das escolas socráticas". "Os sofistas", disse ele, "eram gregos: quando Sócrates e Platão tomaram o lado da virtude e da justiça, foram judeus ou não sei o que". Não admira que foi Cálicles que o atraiu. Estas passagens são citadas na p. 146 de A. H. J. Knights em seu livro Some aspectos of the life and work of Nietzsche, and particularly of his connexion with Greek literatura and thought, que podiam talvez ter sido mencionadas por Doods quando, no começo de seu apêndice informativo sobre Sócrates, Cálicles e Nietzsche (Gorgias, 387-91), ele diz que o laço entre Nietzsche. Nas pp. 147s Knight cita um longo extrato do discurso de Cálicles no Górgias. V. também Nestle, V MzuL, 341s.]. [Osório diz: É que o pensamento de Sócrates não fecha dentro da racionalidade humana]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 86-103).

 

Ensina Kerferd:

 

Quem foi o primeiro a introduzir essa equiparação, não sabemos. Mas temos uma útil declaração histórica de Aristóteles no Sophistici Elenchi, 173a7-18:

 

Um topos muito difundido leva os homens a proferir paradoxos na aplicação dos padrões de natureza e lei, como Cálicles é retratado fazendo em Górgias, e que todos os antigos consideravam válido; pois, segundo eles, Natureza e Lei são opostos, e justiça é uma coisa boa de acordo com a lei, mas não de acordo com a natureza. Assim, para um homem que falou em termos da natureza você deve replicar em termos da lei, e quando ele fala em termos da lei você deve conduzir o argumento em termos da natureza; porque em ambos os casos o resultado será ele proferir paradoxos; na opinião dessas pessoas, o que estava de acordo com a natureza era a verdade, ao passo que o que estava de acordo com a lei era o que era aprovado pela maioria. É claro, portanto, que eles também, como os homens de hoje, estavam tentando refutar o interlocutor ou fazê-lo dizer paradoxos. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 193-194).

 

Prossegue Kerferd:

 

Mas tais teorias eram conhecidas no período que nos interessa aqui. Segundo Xenofonte (Mem. IV, 4.13), Hípias falava das leis como declarações escritas do que devia e não devia ser feito, em decorrência de acordos realizados entre os cidadãos de um Estado; mas depois ele passa a minimizar as obrigações que deles resultam. Sua própria opinião, como vimos, era que se deve preferir a natureza à lei, e que é a natureza a verdadeira fonte das obrigações humanas. No segundo livro da República, o irmão de Platão, Glauco, pretende declarar (358cl) o que é que os homens dizem que é a natureza e a origem da justiça. O que eles dizem (358e3ss.) é que, por natureza, praticar a injustiça é bom, e ser injustiçado é mau, mas que as desvantagens de sofrer a injustiça excedem as vantagens de infligi-la. Depois de provar ambas, portanto, os homens, que são incapazes de escapar de uma e alcançar a outra, decidem que lhes é mais vantajoso entrar em acordo um com o outro, tendo por base que nenhum mal deve ser infligido, e nenhum deve ser sofrido. Começaram, por conseguinte, a fazer leis e contratos por conta própria, e dão o nome de legal e justo ao que a lei prescreve. Essa é a origem e a natureza da justiça [Osório diz: legislação (lei) e justiça]. Não é diferente a posição esboçada no fragmento do Sísifo (DK 88B25), conforme a qual a ausência de recompensas e de punições para os bons e para os maus, no estado original em que os homens a princípio se encontraram, levou-os a estabelecer leis a fim de que reinasse a justiça. Embora o termo "acordo" não esteja incluído, a implicação aponta exatamente para essa base. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 252-253).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

70 – Linguagem e verdade, para Hegel.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Hegel, no capítulo da Fenomenologia do Espírito, intitulado "A certeza sensível, ou o isto e minha visada do isto", descreveu magistralmente a auto-refutação, a autocontradição constitutivas da deíxis, e a maneira pela qual a certeza sensível que aparece como o conhecimento mais rico "se revela expressamente como a mais abstrata e a mais pobre verdade": "O aqui é por exemplo a árvore. Eu me volto, essa verdade desapareceu e se transformou em verdade oposta: o aqui não é uma árvore, mas antes uma casa"4. O fluxo que derruba a deíxis está ligado à inadequação radical da linguagem ao sensível:

 

Eles visam esse pedaço de papel... mas o que visam, eles não dizem. Se, de um modo efetivamente real, quisessem dizer esse pedaço de papel que visam e se quisessem propriamente dizê-lo, então isso seria uma coisa impossível, porque o isto sensível que é visado é inacessível à linguagem que pertence à consciência, ao universal em si (ibidem, p. 91).

 

Hegel conclui: "é a linguagem que é o mais verdadeiro". E é por isso que um Crátilo consequente, que "quer propriamente dizer" o mundo de Heráclito, deve dar-se por vencido e baixar os braços.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 31-32).

 

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