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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

100 – Individualismo, segundo a Sofística.

 

Doutrina Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Qual é, em rigor, o significado desta teoria? Karl Popper nega-se a falar, a seu propósito, de contrato social sob o pretexto de que não se apresenta “sob uma forma historicista”. É verdade que a concepção histórica moderna é estranha ao mundo grego, mas, apesar de tudo, há em Lícofron uma teoria contratual da comunidade na medida em que esta não é espontânea (natural) e tem a sua origem num pacto de aliança (lei convencional). O pressuposto da teoria é a afirmação do individualismo, o que não é para espantar num sofista. O indivíduo existe por natureza, a Cidade é uma construção. Esta construção não tem senão o alcance limitado de uma aliança, limitada no tempo, limitada pela condição de aliança. Isto explica que a lei não atinja verdadeiramente a natureza profunda do homem e que seja impotente para a modificar: “não é capaz de tornar bons e justos os cidadãos”. A política não pode, portanto, coroar a esperança que Platão nela virá a pôr: caminhar de mãos dadas com a moral, o governante íntegro elaborando leis boas, as leis boas formando governados íntegros. Esta ineficácia ética das leis não impede, no entanto, de se resolver o problema político: basta que o cidadão esclarecido se aperceba de que há interesse em respeitar, pelo menos exteriormente, o direito. Pensamos em Kant, que dirá, mais tarde, que o problema político tem solução até no seio de uma comunidade de demônios, contanto que tenham senso comum.

(…)

Héracles, na sua adolescência, retira-se para um lugar solitário para deliberar sobre a orientação que deve dar à sua vida. Surgiram, então, duas mulheres, exaltando cada qual o gênero de existência que representam: um, dedicado à procura da volúpia, o outro, à procura da excelência. A primeira via é atraente e fácil; a segunda exige um esforço contínuo em todos os domínios, mas atrai a estima a quantos se lhe consagram. A excelência é recompensada na terra pela posse de bens sólidos e duradouros; permite ao corajoso subir ao cúmulo da felicidade. As duas vias estão, pois, orientadas para a felicidade, mas uma sob a forma do prazer sensível imediato, a outra sob a forma de alegria racional, que sabe defender-se do excesso e da perversidade. Tal é o quadro geral desta alegoria, que mistura alguns dos temas maiores da sabedoria antiga. Limitemo-nos a algumas observações sobre certos pontos particulares do texto:

O que dramatiza o confronto entre a Excelência (Areté) e a Maldade (Kakía) é a hesitação do jovem colocado na encruzilhada dos caminhos: o fato de se pôr o problema da escolha, isto é, da decisão pessoal, mostra o despertar da individualidade naquela época [Osório diz: o nascer da individualidade]. O homem já não observa cegamente as normas e os tabus tribais; compara os valores e decide-se, mediante uma vontade divina. É uma das conquistas do humanismo antigo que o Quod iter sectabos vitae de Ausónio irá resumir e de que ainda se recordará Descartes.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 56, 64-65).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

99 - Estado – existência – função.

 

Ensina Kerferd:

 

A noção de que as leis são o produto de um tipo de acordo contratual se encontra na lista de expressões encomiásticas a elas aplicadas no chamado Anônimo Peri Nomôn (Ps. Demóstenes XXV, 16). Essa noção é mencionada, com desaprovação, por Aristóteles, na Política (III, 9.8 = DK 83.3), no que pode ser (longe de qualquer certeza) uma referência ao sofista Licofron, um aluno de Górgias. O que Aristóteles com toda certeza atribui a Licofron é o que veio a ser conhecido como a visão protecionista do Estado, segundo a qual o Estado existe meramente para garantir os direitos dos homens, uns contra os outros. Nessa visão, sua função é ser uma espécie de associação cooperativa para a prevenção do crime, em antecipação da moderna concepção do Estado como uma instituição laissez-faire, em vez de ser, como Aristóteles queria que fosse, uma instituição que fizesse os membros da polis bons e justos.” [Osório diz: mais uma antecipação sofística!]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 253-254).

 

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(uma biografia do conhecimento)

 

98 – Estados (existem por) – phýsis ou nomos.

 

Nos diz Guthrie:

 

Sobre a organização política, se os Estados surgiram por ordenação divina, por necessidade natural ou por nomos. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 59).

 

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(uma biografia do conhecimento)

 

97 – Comunidade Política, segundo a Sofística.

 

Gilbert Romeyer-Dherbey nos diz:

 

Lícofron intrometeu-se também no grande debate sobre as relações entre nomos e physis, entre a lei e a natureza. Como Antífon e Hípias e, sem dúvida, porque põe em questão o caráter restrito da polis, tira à lei todo o caráter sagrado, todo o valor ético. Ela é uma criação puramente humana, uma convenção; não tem, pois, algum fundamento na natureza. A sua legitimidade encontra-se na mera utilidade que dela extraem os cidadãos, enquanto ela é “garante dos direitos recíprocos”. Lícofron, para melhor traduzir o seu pensamento, usava uma metáfora e dizia que a comunidade política (koinonía) era parecida a uma aliança: assim como os estados fazem alianças para se ajudarem, se for necessário, também cada cidadão faz aliança com todos em vista a uma ajuda mútua. Encontramo-nos perante uma concepção puramente pragmática das relações sociais.

Qual é, em rigor, o significado desta teoria? Karl Popper nega-se a falar, a seu propósito, de contrato social sob o pretexto de que não se apresenta “sob uma forma historicista”. É verdade que a concepção histórica moderna é estranha ao mundo grego, mas, apesar de tudo, há em Lícofron uma teoria contratual da comunidade na medida em que esta não é espontânea (natural) e tem a sua origem num pacto de aliança (lei convencional). O pressuposto da teoria é a afirmação do individualismo, o que não é para espantar num sofista. O indivíduo existe por natureza, a Cidade é uma construção. Esta construção não tem senão o alcance limitado de uma aliança, limitada no tempo, limitada pela condição de aliança. Isto explica que a lei não atinja verdadeiramente a natureza profunda do homem e que seja impotente para a modificar: “não é capaz de tornar bons e justos os cidadãos”. A política não pode, portanto, coroar a esperança que Platão nela virá a pôr: caminhar de mãos dadas com a moral, o governante íntegro elaborando leis boas, as leis boas formando governados íntegros. Esta ineficácia ética das leis não impede, no entanto, de se resolver o problema político: basta que o cidadão esclarecido se aperceba de que há interesse em respeitar, pelo menos exteriormente, o direito. Pensamos em Kant, que dirá, mais tarde, que o problema político tem solução até no seio de uma comunidade de demônios, contanto que tenham senso comum.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 55-56).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

96.2 – Sociedade, segundo a Sofística.

 

Nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Auguste Bill opõe, neste sentido, Antífon a Hípias, para o primeiro, o fundamento da comunidade humana é a identidade das necessidades; para o segundo, há que encontrá-la nas relações afetivas.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 87).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

96.1 – Sociedade – laços que a mantêm.

 

Nos diz Guthrier:

 

Cf. Devlin, E. of. M. 10: “Sociedade não é algo que se mantém unida fisicamente; é mantida pelos laços invisíveis do pensamento comum. Se os laços fossem muito soltos, os membros se separariam. Uma moralidade comum é parte do conjunto de laços. E este conjunto de laços é o preço da sociedade; a humanidade que precisa da sociedade, deve pagar o seu preço”. (Existe também algo de Protágoras aí). Para Platão, desmoi eram necessidade, para Antífon, pesadelo (fr. 44 A, col. 4).” [Osório diz: o preço a ser pago pela vida em sociedade] .(Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 16).

 

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(uma biografia do conhecimento)

 

96 – Sociedade – nascimento e organização, segundo a Sofística.

 

Gilbert Romeyer-Dherbey esclarece:

 

Esta história do homem é uma história natural: para Pródico, o desenvolvimento da civilização faz-se essencialmente por meio de tudo o que se relaciona com a terra e com a agricultura. Por esta religião da terra, Pródico relaciona intimamente culto e cultura; não opõe, portanto, nomos e physis, mas faz derivar, em continuidade de uma com a outra, a lei da natureza.” [Osório diz: não opositor entre nomos e phýsis, mas harmonizador]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 61)

 

Diz ainda Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Auguste Bill opõe, neste sentido, Antífon a Hípias, para o primeiro, o fundamento da comunidade humana é a identidade das necessidades; para o segundo, há que encontrá-la nas relações afetivas. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 87).

 

Kerferd ensina:

 

Diz-se frequentemente que o pensamento político começa com os gregos, e de todos os escritos políticos da Antiguidade que sobreviveram o mais famoso é seguramente a República de Platão. Tanto a sua grandeza como a sua originalidade são inquestionáveis. Contudo, a respeito dele, Diógenes Laércio relata uma estranha tradição (III, 37 e 57), a saber, que segundo Aristoxeno (que estava escrevendo em fins do século IV a.C) quase que a República toda se encontrava escrita no Antilógica de Protágoras. Houve uma tentativa de se corrigir o texto de modo que seria só o começo (talvez, então, o Livro I) o alvo das acusações de Aristoxeno. Mas a história foi citada também por Favorino de Arles, no século II d.C., sem qualquer restrição, de modo que parece que o texto que sobrevive preserva corretamente o que Aristoxeno tinha dito. [Osório diz: Caramba! Platão como plagiário de Protágoras!]

Qual é, então, a importância disso? Nem é preciso dizer que ninguém, nos tempos modernos, acreditou por um só instante na verdade literal da alegação. Faz parte de uma série de acusações de plágio dirigidas a Platão por críticos hostis, e muitos se satisfazem com simplesmente ignorá-las como uma invenção maldosa. Entretanto, por mais maldosa que tenha sido a acusação, ela só poderia ter sido feita se houvesse pelo menos alguma base para comparação, por superficial que fosse. Em outras palavras é sinal de que Protágoras tratou pelo menos alguns dos temas que interessavam a Platão na República [Osório diz: isso me leva a afirmar que, a despeito do que diz Romilly para a não preservação dos escritos dos sofistas (não tinham eles discípulos para os continuarem e assim, os preservarem), os maiores discípulos dos sofistas foram, justamente, Platão e Aristóteles!]. Naturalmente, este é o ponto em que começam as especulações. Possivelmente Protágoras tinha esboçado a sua própria versão do Estado ideal, ou pelo menos alguma coisa paralela ao primeiro estágio do Estado ideal de Platão, a "Cidade dos Porcos" na República, Livro II. Outros pensaram na emancipação das mulheres, na República, como alguma coisa que podia ter sido antecipada por Protágoras. Isso não é refutado pela declaração, na Política de Aristóteles (1266a34ss, cf 1274b9-ll), de que nenhum outro pensador, além de Platão, tinha proposto novidades tais como a comunidade de esposas e crianças, ou refeições comuns para as mulheres. Porque Aristófanes, como veremos, já tinha tentado ridicularizar o que devia equivaler a uma espécie de Movimento em prol dos Direitos das Mulheres que já era conhecido, em Atenas, no século V. Na ausência de outros testemunhos, é simplesmente impossível dizer quais poderiam ter sido os temas realmente tratados por Protágoras. Mas é provável que fossem importantes e não estivessem simplesmente limitados à aplicação do princípio dos dois-logoi aos assuntos políticos. [Osório diz: Não se deve esquecer, também, que quando Platão escreveu seus diálogos, as Leis de Túrios, dadas por Protágoras, podiam por ele ser consultadas!]

As únicas indicações positivas que temos acerca das ideias de Protágoras sobre a natureza das sociedades humanas encontram-se no mito posto na sua boca, no Protágoras, de 320c em diante (DK 80C1). O ponto de partida lógico para as sociedades humanas é o mesmo para Protágoras, Platão e Aristóteles, a saber, o fato de que o ser humano individual não é auto-suficiente. Mas a falta de suficiência operativa é diferente em cada caso. Para Platão, as primeiras necessidades são de alimento, abrigo e vestuário (Rep. 369d); para Aristóteles, o primeiro agrupamento de indivíduos é para a finalidade da procriação; no mito de Protágoras (322a-b), é a fim de assegurar proteção contra os ataques das feras. Foi para isso que os homens precisaram juntar-se e estabelecer cidades (Poleis), talvez no sentido original do termo, isto é, uma cidade ou cidadela fortificada para defesa contra ataque. [Osório diz: por que os homens formaram sociedades?].

Antes de se agruparem assim, os homens viviam espalhados e dispersos. Já tinham descoberto, contudo, lugares para morar, roupas, sapatos e cama, tinham aprendido a falar, tinham começado a cultuar os deuses, e possuíam suficiente habilidade manual para prover-se de alimento. Com base nessas afirmações tem-se argumentado que "não há sugestão de que na fase pré-política os homens viviam como indivíduos isolados, visto que o desenvolvimento de instituições tais como linguagem e religião pressupõe pelo menos uma forma rudimentar de comunidade". Mas a inferência deve ser rejeitada. Nem linguagem nem culto divino eram necessariamente de origem social, no modo de ver dos antigos. E a frase traduzida por "espalhados e dispersos" (sporadén) é usada em outro lugar, em contextos muito semelhantes ao que se encontra no mito de Protágoras, e nesses casos refere-se claramente a indivíduos vivendo isolados. [Osório diz: tem um filósofo pré-socrático, os únicos que existiram, aliás, que o diga Nietzsche, que afirma o correto: “o homem é o mais frágil dos seres, sem a proteção da mãe que o alimente e o defenda, ele morrerá em pouco tempo, mesmo que seja pela simples exposição aos efeitos climáticos e sua incapacidade para alimentar-se.].

Essas outras passagens semelhantes constituem um problema interessante, visto terem claramente alguma relação com o que Protágoras diz, mas não é possível determinar se são derivadas ou antecipatórias. Tudo o que se pode dizer com segurança é que fazem parte de uma tradição que indica um debate muito vivo acerca dessas questões, na segunda metade do século V a.C. No fragmento do drama intitulado Sísifos, frequentemente atribuído a Crítias (DK 88B25), mas muito provavelmente composto por Eurípides, lemos que houve um tempo em que a vida dos homens era tumultuosa e animalesca, à mercê da violência, quando os bons não eram recompensados e os maus não eram punidos, isso acontecendo antes que os homens estabelecessem leis. Em As suplicantes, 201ss., de Eurípides (por volta de 421 a.C), encontramos Teseu dizendo que louva o deus que trouxe ordem ao nosso modo de viver que era confuso e animalesco. [Osório diz: Hobbes abeberou-se aí?]

Ambas as passagens não fazem mais do que confirmar um ponto: que originalmente a vida humana não era diferente da dos animais. Mas é provável que ambas estejam relacionadas a uma terceira passagem, de grande importância. Trata-se do relato que se encontra em Diôdoros Sículo (1,8.1-7). Atribuído a Demócrito, por Reinhardt, como tal foi inserido por Kranz em DK 68B5. Mas isso parece improvável devido à completa ausência de quaisquer referências ao atomismo. Numa opinião contrastante, seria de supor que a matéria foi composta de elementos mais antigos, reunidos, talvez, só no tempo do próprio Diôdoros, no século I a.C. Mesmo nessa opinião, contudo, concede-se que muitos elementos do relato remontam ao período do século V.

Os pontos essenciais do relato são os seguintes: os primeiros homens nascidos viveram uma vida tumultuada e animalesca. Costumavam sair, espalhados e dispersos, para as áreas de alimentação, tomando como alimento as plantas mais atraentes e os frutos que eram fornecidos espontaneamente pelas árvores. Como eram guerreados pelas feras, aprenderam a se ajudar uns aos outros pela vantagem que disso resultava. Assim começaram a se agrupar por causa do medo que sentiam e gradualmente vieram a conhecer suas características comuns. A fala se tornou articulada e se desenvolveu na base de acordos quanto ao significado das palavras, diferindo, evidentemente, nos diferentes grupos nas diferentes partes do mundo. Originalmente, o lado físico da vida dos homens era difícil, pois nenhuma das coisas úteis para a vida tinha ainda sido descoberta. Gradualmente, com a necessidade por mestra, as artes foram descobertas, bem como as coisas que eram úteis. Isso foi possível porque o homem foi bem dotado pela natureza, e foi ajudado também por suas mãos, seu poder de fala e sua agudeza de inteligência.

Embora nem tudo nesse relato esteja de acordo com o relato do mito de Protágoras, nem, de fato, com nenhum outro relato, o que é notável é o número de palavras e frases comuns a mais de um relato. Assim, a palavra "animalesca" se encontra também na passagem de Sísifo, em As suplicantes de Eurípedes, em Diôdoros, e volta a aparecer em um fragmento do dramaturgo Moschion (fr. 6 Nauck), citado por Estobeu, cuja data é incerta. A palavra "guerra" em relação às feras se encontra tanto no mito como em Diôdoros. O mesmo verbo para "agrupar-se" se encontra também no mito de Protágoras e em Diôdoros, assim como o verbo incomum "articular" usado no desenvolvimento da fala. A expressão "espalhados e dispersos" é usada para falar dos homens primitivos no mito de Protágoras, em Diôdoros. E em uma passagem posterior, em Isócrates, Panegírico 39, a expressão é usada em referência aos gregos que, antes que Atena viesse em seu auxílio, viviam sem leis, espalhados e dispersos. Talvez seja ir longe demais sugerir que tudo isso é parte de uma única tradição, mas pelo menos é provável que cada uma das passagens citadas tenha sido escrita com plena consciência das doutrinas encontradas em algumas ou em todas as outras.

Segundo o mito de Protágoras, quando os homens "se agruparam" os atos de injustiça entre eles eram constantes, tudo porque lhes faltava a techné de viver juntos numa cidade, a arte da política, e logo eles se espalharam de novo (322a-b). Por isso Zeus enviou Hermes para dar aos homens aidós e dikê para serem princípios ordenadores das cidades e vínculos, unindo as pessoas na amizade. Isso claramente significa que, para Protágoras, o pré-requisito para a sociedade humana é alguma coisa mais do que mera necessidade, por mais urgente que seja. O que se requer é a aceitação, pelos seres humanos, de um princípio de justiça nas relações humanas. Antes, no mito, foi Prometeu quem distribuiu entre eles, para a sua defesa, habilidades para as várias artes e ofícios. Não os mesmos ofícios para todos os homens, mas ofícios diferentes para pessoas diferentes. A atual distribuição ordenada por Zeus é feita de modo diferente: aidós e diké devem ser dadas aos homens todos, e todos os homens devem ter parte nelas. Qualquer homem que for incapaz de compartilhar delas deve ser morto como sendo uma praga para a cidade. De ora em diante os homens são todos equipados para ser animais sociais ou, melhor, animais políticos, capazes de participar das sociedades humanas das quais são membros.

Uma adequada compreensão da teoria da sociedade, de Protágoras, requer uma cuidadosa consideração da natureza e da base da distribuição desse novo cimento social introduzido sob o nome de aidós e diké. Em primeiro lugar, será que Protágoras quer dizer, como muitas vezes se tem afirmado, que todos os homens possuem aidós e diké por natureza? Parece claro que os poderes dos animais são tidos como possuídos por natureza. É possível que a habilidade nas artes também assim seja possuída pelos seres humanos. Foi dada à humanidade antes de os homens começarem a vida na terra e é, para os homens, o que os poderes são para os animais. Mas aidós e diké estão numa situação diferente — são alguma coisa adquirida depois que o homem estava vivendo no mundo. Zeus ordena que todos os homens compartilhem delas e toma providências a respeito do que fazer com os que são incapazes de compartilhar. É verdade que a providência é a morte, mas isso sugere que suas naturezas não podem ser modificadas, e não que Zeus esteja acrescentando alguma coisa à natureza humana como tal. O fato de se julgar que todos os homens compartilham de aidós e dikê não é, em si mesmo, suficiente para mostrar que o fazem por natureza. Temos, de fato, a razão mais forte possível para supor que Protágoras não as considera compartilhadas por natureza. Platão o faz dizer, na declaração explanatória no final do mito (323c3-8):

 

essas, portanto, são as razões que eu dei para explicar por que eles [os atenienses] com razão permitem que todos os homens dêem o seu parecer a respeito de [assuntos que envolvem] virtude política, porque eles acreditam que todo homem compartilhe dela; mas, que eles julgam que essa participação não vem da natureza, nem é de origem espontânea, e que é por aprendizagem e prática que ela está presente em quem quer que seja, é o que vou tentar demonstrar em seguida. [Osório diz: tudo isso também demonstra que o homem medida não se aplica a valores]. [Osório diz: democracia é prática constante].

 

Em segundo lugar, é importante perceber que não é opinião de Protágoras que todos os homens devam ser considerados participando igualmente de aidós e dikê [Osório diz: creio que quando ele diz da deficiência de alguns no aprendizado, isso vale para cá também. Uns são mais “inteligentes” que outros]. Isso é frequentemente afirmado ter sido sua opinião, mas não há testemunho nenhum disso. Certamente não está implícito no verbo grego que significa participar. Mesmo que aidós e dikê fossem por natureza, não se seguiria, daí, que fossem compartilhadas igualmente. Na conclusão do mito, Protágoras passa a aplicar e expor seu sentido. Visto que todos os homens compartilham a virtude política, os atenienses e outros justificadamente permitem a todos os cidadãos que os aconselhem sobre questões políticas. Não se sugere, naturalmente, que todos os homens são igualmente qualificados a dar conselho [Osório diz: tanto assim que ele se propõe a ensinar]; diz-se apenas que ninguém é sem alguma qualificação [Osório diz: todos dispõe, pelo menos, do instrumento próprio para tanto: fala e inteligência, vide p. 241]. No caso de outras habilidades, se alguém diz que é competente como flautista, ou em alguma outra coisa, quando não é, as pessoas ou riem ou se zangam. Mas, no caso da justiça e do restante da virtude política, a situação é diferente. De todos os homens se espera que afirmem que são justos, quer sejam ou não, porquanto todos, necessariamente, em alguma medida, partilham da justiça, que é condição para estar na companhia de seres humanos. O homem que se declarasse realmente injusto seria considerado fora de si. [Osório diz: todos somos justos?].

Tudo isso é expresso em uma longa sentença (323b2-c2) que tem causado alguma dificuldade para os comentadores. É bem possível que seja a condensação, em forma de sumário, de uma passagem muito mais longa de debate presente em algum dos escritos de Protágoras. Mas as dificuldades desaparecem quando se percebe que a posição de Protágoras envolve ambas as afirmações: que todos os homens de fato compartilham a justiça, e que essa participação é em grau desigual. De modo que é perfeitamente possível que um homem aja injustamente em um determinado caso. Mas as expectativas sociais diferem em relação aos casos de justiça e das habilidades especiais. Nesse último caso, de nenhum indivíduo se espera que possua necessariamente alguma cota pessoal, e quando lhe falta a habilidade espera-se que admita isso. Mas, no primeiro caso, ele necessariamente possui uma cota e, portanto, tem a capacidade de agir justamente no caso particular em questão, qualquer que seja. De modo que, quando ele falha, há uma expectativa social de que se esforçará por esconder sua falha, afirmando que, de fato, tem agido justamente. Essa expectativa social não significa que sua injustiça seja tolerada — muito pelo contrário. Mas os atenienses estavam já tão familiarizados quanto nós com a triste mas frequente situação na qual uma pessoa que se comportou muito mal ainda afirma estar inteiramente justificada no que fez.

A importância dessa doutrina de Protágoras na história do pensamento político dificilmente será exagerada. Pois Protágoras produziu, pela primeira vez na história humana, uma base teórica para a democracia participativa [Osório diz: Platão, certamente, odiava isso!]. Todos os homens, através do processo educacional de viver em famílias e em sociedades, adquirem algum grau de percepção moral e política. Essa percepção pode ser desenvolvida mediante vários programas formais nas escolas e com professores particulares, e também pela operação de leis deliberadamente projetadas pela polis a fim de suplementar a primeira educação de seus cidadãos. Assim todos têm algo com que contribuir para a discussão das questões morais e políticas, ao passo que nos assuntos que envolvem habilidades especiais e conhecimento específico a polis naturalmente só recorrerá ao conselho de peritos. Mas nas questões políticas e morais não é verdade que todas as opiniões e todos os conselhos são de igual valor. Segue-se daí que, na democracia protagorana, o princípio operativo concernente ao conselho será "de cada um conforme a sua capacidade"; e será necessário que a comunidade, de uma forma ou de outra, escolha entre os conselhos conflitantes. Isso vai requerer conselho sobre conselho, isto é, que conselho deveria ser aceito, e presumivelmente os mesmos princípios se aplicariam aqui também. [Osório diz: a democracia sofística (de Protágoras)].

Portanto, uma sociedade ideal protagorana não é, em última análise, igualitária — ela deverá ser guiada pelos mais sábios em toda e qualquer ocasião. Serão essas pessoas de alguma forma agrupadas à parte, constituindo, assim, uma elite governante de sábios conselheiros que podem administrar a chamada "democracia dirigida"? É o que se tem dito algumas vezes. E, no Protágoras, há uma passagem extensa que tem sido citada em apoio disso, o logos que se segue ao mito que Platão põe na boca de Protágoras (324d-326e5). Aqui Protágoras enfatiza todas as providências tomadas pelos pais "bons" para a educação de seus filhos. Isso é providenciado sobretudo por aqueles que são descritos, em uma frase ambígua (326c3-4), como os mais capazes — a frase pode também significar aqueles que são os mais poderosos ou socialmente influentes — e ele acrescenta: "os mais capazes são os que são mais ricos". Portanto, tem-se especulado, Protágoras pode ter pretendido que houvesse um corps d'élite capaz de servir o Estado em posições de confiança, como os dez stratêgoi em Atenas, ou para serem conselheiros sábios e persuasivos em assuntos relativos à lei e à moralidade. Essa opinião, se sustentada por Protágoras, certamente aumentaria a similaridade entre sua posição e a de Platão, na República. Vale a pena recordar que foi através do corpo de estrategos, ou de generais, que Péricles pôde exercer o poder em Atenas, descrito por Tucídides (II, 65.9) como uma democracia de nome mas, de fato, em processo de se tornar o governo de um único indivíduo.

Por outro lado, é mais provável que a questão essencial na doutrina de Protágoras era que a virtude pode ser ensinada. Isso significa que ela não depende de nascimento nobre e que podem aprendê-la todos os que tiverem recursos para isso. O que poderia significar que a referência aos mais ricos como os mais capazes de assegurar tal educação seja simplesmente uma referência à sua possibilidade de pagar os honorários relativamente altos dos sofistas [Osório diz: daí a contrariedade de Platão, pois agora sua classe, a dos aristocratas, que podia pagar e sempre pagou, concorria com a dos ricos (burgueses?) que também podiam pagar e pagavam e, assim, iam participar do poder político, sobre o qual imperava a aristocracia. Outra interpretação para “mais ricos” seria a analogia com os “ricos de saúde”, por exemplo. Sim, o mais capazes são os mais ricos, mas não no sentido econômico, mas de terem mais dotes intelectuais]. Embora seja verdade que Protágoras é citado como tendo dito (80B3) que educação requer ambos, natureza e prática, e que para aprender é necessário começar logo na juventude, não há nada que sugira que houvesse alguma superioridade natural, herdada, nos filhos dos "mais capazes" [Osório diz: sendo que a riqueza econômica não garante superioridade intelectual!]. A capacidade natural, para Protágoras, não era distribuída na base da hereditariedade. Isso emerge muito claramente daquilo que ele diz sobre os flautistas (327b6-c3): "sempre que acontece de um filho nascer com grande talento natural para tocar flauta, com educação apropriada vê-se que ele alcança distinção... Mas muitas vezes o filho de um bom flautista acaba sendo um mau flautista, e muitas vezes o filho de um mau flautista vem a ser um bom flautista". A aplicação dessa doutrina ao caso da virtude (328c5-8) explica, para Protágoras, por que filhos maus nascem de pais bons, mesmo no caso de Paralos e Xantipos, os filhos de Péricles.

Talvez valha a pena notar, a esta altura, que uma espécie de fraco eco dessa doutrina de Protágoras está incorporado na República de Platão. Para Platão, alguns homens são dotados pela natureza para a filosofia e a liderança política. Os que não são deveriam seguir sua orientação e não deveriam tentar meter as mãos na filosofia (474cl-2) [Osório diz: aqui filosofia e política se encontram, pois os filósofos deveriam governar]. Na maioria das vezes, os filhos se assemelharão aos pais nesse ponto (415a8), e essa semelhança receberá, claramente, reforço muito grande do fato de a educação diferenciada, apropriada à capacidade da criança, começar o mais cedo possível [Osório diz: desde que os pais possam pagar ou os professores trabalhem sem receber!]. Mas às vezes (415bl) os filhos nascem com capacidades diferentes das dos seus pais. Em tais casos, adequado rebaixamento ou promoção devem ser implacavelmente aplicados, a fim de manter inalteradas as características diferenciadoras dos membros das respectivas classes, ou categorias de cidadãos, no Estado. Essa concessão de Platão ao princípio da mobilidade social era perfeitamente genuína — ela se repete em 423c6-d2, e não é negada em 434a3-dl, onde o intercâmbio entre as classes é proibido, visto que isto claramente se aplica a casos em que não há fundamentos para qualquer transferência [Osório diz: o tema mobilidade social era o nó górdio entre Platão e os Sofistas]. Diante das modernas controvérsias educacionais, é interessante notar que no Timeu, 19a, Platão considera a revisão de possíveis promoções e rebaixamentos um processo contínuo, que se dá até que a criança se torne adulta, e não uma coisa a ser feita de uma vez por todas. Exames classificatórios, pelo menos para os Guardiães, devem continuar durante todo o seu período de educação, tanto enquanto crianças como enquanto adultos, e deve-se exigir sucesso durante todo o processo de verificação, antes que possam de fato assumir as funções de Guardiães do Estado; todos os que falharem em qualquer ponto devem ser rejeitados (413c7-414a4). Finalmente, deve-se dizer que, embora Platão aceitasse como genuíno o fato da variação natural da capacidade de nascença, parece que ele esperava que um programa de eugenia, cientificamente baseado, haveria de eliminar ou, pelo menos, reduzir consideravelmente a sua ocorrência (459al-461e6).

Em tudo isso, é bastante provável que o pensamento de Platão estivesse se movendo sob uma espécie de inspiração vinda de Protágoras. Mas é também provável que o que ele faz é transformar, radicalmente, a primeira posição desenvolvida por Protágoras em alguma coisa que, em termos políticos, estava muito perto de se tornar exatamente o seu oposto. Pois a teoria de Protágoras envolvia uma defesa do comportamento da democracia ateniense, e repousava na afirmação de que todo cidadão tinha alguma coisa, pelo menos potencialmente, de valor com que contribuir nos debates sobre questões políticas e morais. Para Platão, o reverso é que é verdadeiro. Somente em casos excepcionais tem um cidadão comum alguma coisa concebivelmente valiosa com que contribuir. Em todos os casos normais suas contribuições serão tão mal informadas que poriam em perigo a manutenção da justiça no Estado, e elas deveriam, por isso, ser suprimidas com a maior firmeza possível (Rep. 434b9-c6). [Osório diz: Platão o antidemocrata].

[Osório diz: Platão sabia que era ingenuidade condenar os Sofistas por cobrarem honorários por seus ensinamentos, mas se mantém fiel à sua falsidade (Prova o erro platônico os salários para os professores atuais).

Algumas outras implicações da doutrina de Protágoras serão consideradas abaixo. Mas primeiro será conveniente descrever alguns outros modelos para a estrutura das sociedades humanas que também se originaram no período sofista. Um deles concerne à doutrina do contrato social, que viria a se tornar tão famosa e importante nos séculos XVII e XVIII, quando foi desenvolvida por Hobbes, Locke e Rousseau [Osório diz: a doutrina do Contrato Social pelos Sofistas]. Na sua forma convencional, a teoria do contrato social sustenta que as sociedades humanas se assentam em um acordo implícito e, portanto, não-histórico, ou em um acordo real e histórico, de estabelecer uma comunidade organizada. Às vezes supunha-se que antes desse contrato não havia obrigações sociais ligando um homem a outro, e que o próprio contrato, sendo baseado no consentimento dado racionalmente com base no interesse próprio individual, era a fonte lógica donde se deveriam deduzir todos os direitos e deveres dos cidadãos. Outros supunham que, independentemente de tal contrato, havia direitos que fluíam, por exemplo, de deus ou da lei natural, mas que a obrigação de obedecer a um governo civil não tinha outra fonte que o contrato social no qual esse governo se baseava. Em qualquer um dos casos, supunha-se que o governo devia se assentar no consentimento dos governados, quer dado de uma vez por todas, quer sujeito a uma contínua confirmação. [Osório diz: a legitimidade dos governos, segundo os Sofistas].

Portanto, a essência da teoria é a opinião segundo a qual a obrigação política dimana de um acordo contratual, real ou implícito. A tentativa de atribuir tal opinião a Protágoras deve ser rejeitada como equivocada, como por exemplo a de Guthrie, que escreve: "visto que Protágoras não acreditava que as leis eram obra da natureza ou dos deuses, ele deve ter acreditado, como outros pensadores progressistas contemporâneos, que foram formuladas como resultado de um consenso de opinião entre cidadãos que, daí em diante, se consideraram ligados por elas". Essa inferência é claramente impossível, visto que a rejeição de deus ou da natureza não deixa como única possibilidade a de a sociedade ser baseada em um contrato. Não defendeu Trasímaco, por exemplo, uma teoria do contrato? Mais importante que a não-validade da inferência é a completa ausência de qualquer sugestão, nos testemunhos existentes, de que esse era o modo pelo qual Protágoras via a questão. [Osório diz: Kerferd queimando Guthrie].

Mas tais teorias eram conhecidas no período que nos interessa aqui. Segundo Xenofonte (Mem. IV, 4.13), Hípias falava das leis como declarações escritas do que devia e não devia ser feito, em decorrência de acordos realizados entre os cidadãos de um Estado; mas depois ele passa a minimizar as obrigações que deles resultam. Sua própria opinião, como vimos, era que se deve preferir a natureza à lei, e que é a natureza a verdadeira fonte das obrigações humanas. No segundo livro da República, o irmão de Platão, Glauco, pretende declarar (358cl) o que é que os homens dizem que é a natureza e a origem da justiça. O que eles dizem (358e3ss.) é que, por natureza, praticar a injustiça é bom, e ser injustiçado é mau, mas que as desvantagens de sofrer a injustiça excedem as vantagens de infligi-la. Depois de provar ambas, portanto, os homens, que são incapazes de escapar de uma e alcançar a outra, decidem que lhes é mais vantajoso entrar em acordo um com o outro, tendo por base que nenhum mal deve ser infligido, e nenhum deve ser sofrido. Começaram, por conseguinte, a fazer leis e contratos por conta própria, e dão o nome de legal e justo ao que a lei prescreve. Essa é a origem e a natureza da justiça [Osório diz: legislação (lei) e justiça]. Não é diferente a posição esboçada no fragmento do Sísifo (DK 88B25), conforme a qual a ausência de recompensas e de punições para os bons e para os maus, no estado original em que os homens a princípio se encontraram, levou-os a estabelecer leis a fim de que reinasse a justiça. Embora o termo "acordo" não esteja incluído, a implicação aponta exatamente para essa base.

Mais discussão se concentrou em torno de Críton, onde Platão representa as leis de Atenas (50a6ss.) implorando ardentemente a Sócrates que não fuja da prisão, alegando que ele tinha livremente concordado com as leis em conformar-se com os veredictos legais pronunciados pela cidade. Esse acordo é dito ter sido feito por Sócrates, não com palavras, mas por suas ações, ao passar, voluntariamente, toda a sua vida, até aquela data, na cidade de Atenas (52d5), e não deve ser agora violado por ele [Osório diz: Platão incentivando Sócrates a morrer?!]. Muito mais tarde, o tratado As Leis de Platão vai acrescentar ainda outras considerações que não nos concernem necessariamente aqui; mas é provável que o Sócrates histórico estivesse pelo menos interessado na opinião de que o fundamento da obrigação de obedecer às leis jaz num acordo implícito.

A noção de que as leis são o produto de um tipo de acordo contratual se encontra na lista de expressões encomiásticas a elas aplicadas no chamado Anônimo Peri Nomôn (Ps. Demóstenes XXV, 16). Essa noção é mencionada, com desaprovação, por Aristóteles, na Política (III, 9.8 = DK 83.3), no que pode ser (longe de qualquer certeza) uma referência ao sofista Licofron, um aluno de Górgias. O que Aristóteles com toda certeza atribui a Licofron é o que veio a ser conhecido como a visão protecionista do Estado, segundo a qual o Estado existe meramente para garantir os direitos dos homens, uns contra os outros. Nessa visão, sua função é ser uma espécie de associação cooperativa para a prevenção do crime, em antecipação da moderna concepção do Estado como uma instituição laissez-faire, em vez de ser, como Aristóteles queria que fosse, uma instituição que fizesse os membros da polis bons e justos. [Osório diz: mais uma antecipação sofística!]

Na visão protecionista, o Estado teria sua função reduzida, com limites bem definidos, e a associação política se assentaria sobre um consentimento de âmbito limitado. Umas poucas referências esparsas sugerem que era também conhecido e discutido, na época, um conceito mais positivo, a saber, o de um tipo de consenso político, baseado na mentalidade comum a todos os cidadãos concernente aos modos de vida, classificada sob o termo homonoia. Esse era um termo que denotava o que viria a ser um ideal político muito importante entre os estóicos e na teoria da monarquia helênica, a partir do tempo de Alexandre, o Grande, e que, no devido tempo, seria equiparado à palavra latina concórdia. É lastimável que não seja possível recuperar a história do termo no pensamento do século V. O que podemos dizer é, primeiro, que ele ocorre em dois fragmentos de Demócrito, a saber, em DK 68B250, onde nos é dito que somente em consequência da homonoia é que as cidades podem realizar grandes obras, inclusive guerras, tema que faz parte da crítica que Sócrates faz da injustiça como fonte de desacordo desmantelador, no primeiro livro da República [Osório diz: Sócrates critica a guerra? Mas ele não foi um guerreiro?]; e em DK 68B255, que tem sido descrito, talvez com algum exagero, o único mais notável pronunciamento de um teórico político em Hélade. Este é o fragmento onde nos é dito que, nas ocasiões em que os poderosos têm a coragem de adiantar dinheiro para servir e beneficiar os que não têm, há piedade e fim da solidão, e há também amizade e ajuda mútua. Os cidadãos se tomam de uma só mentalidade e outras bênçãos resultam, e tantas, que nenhum homem pode enumerá-las. Sabemos, também, que Górgias falou do assunto da homonoia em Olímpia (82B8a). Esse foi o título de uma obra de Antífon (DK 87B44a), cujo conteúdo, contudo, permanece enigmático. Finalmente, temos uma declaração geral de Xenofonte (Memoráveis IV, 4.16) posta na boca de Sócrates, onde se diz que homonoia é o maior bem que uma cidade pode possuir, e quando ela está presente as leis são obedecidas, a cidade é uma cidade boa.

É geralmente admitido que houve claras influências sofistas atuando no historiador Heródoto. É bem provável que ele tenha conhecido Protágoras, que foi responsável pela elaboração de leis para a colônia de Turói, de cuja fundação participou Heródoto. Em III, 108 de sua História, parece certo que Heródoto usou o que Protágoras tinha escrito ou, pelo menos, se serviu da mesma fonte usada por ele, quando menciona a natureza prolífica dos animais sujeitos à destruição, em contraste com os animais fortes e corajosos, como o leão, que produzem relativamente poucos filhos. Isso se ajusta exatamente com o que nos é dito, no mito de Protágoras (Prot. 321b), a respeito das atividades de Epimeteu empreendidas para assegurar a preservação de várias espécies de animais.

Igualmente de inspiração sofista, embora certamente não baseado em Protágoras, é o famoso debate relatado em Heródoto III, 80-82. A cena é situada na Pérsia. Sete nobres persas, que tinham libertado a Pérsia dos magos, são apresentados discutindo quais das três formas políticas, democracia, oligarquia ou monarquia, é a melhor. Mas é perfeitamente claro que Heródoto está aproveitando a oportunidade de dramatizar, para ouvidos atenienses, uma batalha constitucional que estava sendo travada em Atenas na época em que ele estava escrevendo, ou pouco antes. E é evidente que ele está nos expondo um diálogo que, tanto na forma como no conteúdo, não pertence à Pérsia de 522 a.C., mas aos debates sofistas em Atenas, no século V. Primeiro, no estilo, ele envolve a oposição de um argumento a outro de tal maneira que sugere a técnica dos dois Logoi opostos. Mas também o conteúdo é de caráter contemporâneo e sofista. Primeiro, Otanes propõe a abolição da monarquia persa alegando (1) que um único governante pode fazer o que quiser e não é responsável perante ninguém, e (2) que qualquer um, elevado a essa posição, muda de atitude, mesmo que seja o melhor de todos os homens. [Osório diz: Montesquieu e a corrupção pelo poder] Torna-se presa da insolência, além da rivalidade e da desconfiança a que todos os homens estão sujeitos, e a combinação produz nele todos os vícios que existem. Em vez disso, o que é preciso é o governo de muitos. Este tem o nome mais justo de todos, isonomia, e está livre dos vícios da monarquia. Os magistrados são escolhidos por sorteio, e devem prestar contas de todas as suas ações, e todas as decisões políticas são submetidas à assembleia comum do povo. [Osório diz: democracia e igualdade].

Megabyzus, então, fala em favor da oligarquia. Concorda com a crítica da tirania expressa por Otanes, mas argumenta que o governo dos muitos não é menos insolente e arrogante e é, ao mesmo tempo, ignorante e sem educação [Osório diz: Parece Platão e Aristóteles!]. Argumenta em favor da oligarquia alegando que somente homens de saber e educação são aptos para governar. Daí se conclui que o que é necessário é uma coligação dos melhores homens, "pois é provável que as melhores decisões procedam dos homens que são os melhores".

Finalmente, Dario argumenta em favor do governo de um homem — nada poderia ser melhor do que o melhor homem. A oligarquia leva a desordens civis porque cada homem, na oligarquia, deseja ser ele mesmo o líder e ter suas opiniões aceitas, na hora das decisões, enquanto a democracia leva a conspirações na prática da corrupção. Pelo voto da maioria dos sete é essa terceira opinião que prevalece, e Dario, de fato, se torna rei.

A referência à seleção dos magistrados pelo sorteio e a exigência de que prestem contas de suas ações, como magistrados, diante de auditores públicos (euthunoí), ao deixar o cargo, é uma clara referência à prática da democracia instituída por Clístenes em Atenas [Osório diz: quem instituiu a democracia em Atenas]. É justamente essa prática de seleção por sorteio que provocou a ironia de Sócrates, que foi acusado, no seu julgamento, segundo Xenofonte (Mem. I, 2.9), de ter ensinado seus companheiros a desprezar as leis estabelecidas exatamente nesse ponto. Ele afirmara que era ridículo que os governantes da cidade fossem designados por sorteio, quando ninguém estaria disposto a empregar os serviços de um piloto, ou de um carpinteiro, ou de um flautista escolhido por sorteio, nem qualquer outro artesão para um trabalho no qual os erros são muito menos danosos do que os erros feitos na arte de governar [Osório diz: Sócrates é exemplo de contradição, pois, se ele como ele diz (respeitar as leis de sua cidade), jamais poderia contestá-la, como ele fez (contestava os sorteios, por exemplo). Sua posição correta era calar, ou apenas mexer o dedo!] e [Osório diz: É Platão! Protágoras e o mito, distribuição da dikê, da qual todos participam. A diferença é gritante nos exemplos (vid. p. 286)]. Vale a pena repetir que Péricles exercia sua liderança em Atenas não por ter sido escolhido por sorteio — quase impossível, de qualquer forma, sem fraude, se fosse repetidamente renovado no cargo — mas por ter sido eleito como strategos ou general, satisfazendo, assim, as exigências de Sócrates nesse ponto [Osório diz: ou de Platão?], bem como o argumento apresentado por Megabyzus.

No debate entre os três persas, em Heródoto, o termo isonomia, "o nome mais justo de todos", está claramente associado ao governo dos muitos. A significação exata do termo tem, contudo, sido assunto de muitos debates. A primeira parte do nome composto significa "igual" e a segunda parte se refere a leis ou nomoi. Conseqüentemente, alguns supuseram que a palavra isonomia significasse nada mais do que "igualdade perante a lei". O que significa que deve haver direitos civis iguais onde prevalece a isonomia, mas não necessariamente igual poder político ou igual acesso à participação, ou direitos iguais de participar no processo de governo. Os que sustentam essa opinião tendem a chamar a atenção para Tucídides III, 62.3, onde encontramos uma referência a uma oligarquia "isonômica" em contraposição a uma democracia, por um lado, e, por outro, a um grupo-de-poder consistindo em uns poucos homens, sendo este último o mais oposto às leis e ao ideal de austeridade. Mas a passagem em Tucídides não corrobora a inferência de que, portanto, a frase significa nada mais do que "igualdade perante a lei", visto que a referência é provavelmente aos direitos exercidos internamente pelos membros da oligarquia — na tradução de Richard Crawley, "uma constituição oligárquica na qual todos os nobres gozavam direitos iguais". Isso deixa inteiramente aberta a questão de saber qual era a série de direitos que está sendo considerada, isto é, se não deve haver exclusão alguma de "direitos iguais de mando ou governo", ao lado de outros direitos igualmente possuídos. [Osório diz: conceito de isonomia]

Talvez se possa obter mais ajuda da famosa e muito discutida passagem da Oração Fúnebre de Péricles (Tuc. II, 37.1), da qual uma possível tradução seria a seguinte:

 

[Nossa forma de governo] é chamada democracia porque sua organização favorece os muitos em vez dos poucos. Se considerarmos as leis, há participação igual para todos, considerando-se as diferenças individuais entre os cidadãos. Mas quanto à estima pública, quando um homem se distingue de alguma maneira, ele é mais altamente respeitado na vida pública, não em razão da classe mas por reconhecimento do mérito. Ainda se considerarmos a pobreza, um homem que é capaz de fazer alguma coisa em benefício da cidade não é impedido disso pela obscuridade de seu reconhecido status. [Osório diz: Platão odiava isso!]

 

Infelizmente, nenhuma tradução dessa passagem vital é possível sem introduzir, na própria tradução, um elemento considerável de interpretação. Mas parece muito claro que Péricles deseja afirmar que a democracia ateniense, no seu tempo, tem dois aspectos. Ela se assenta no princípio da isonomia, mas também toma amplas providências para que homens de excepcional capacidade (entre os quais, sem dúvida, se incluía!) dêem uma contribuição muito maior do que a dos outros para a condução dos negócios da cidade. Isso, por sua vez, requer que o princípio de seleção para cargo por sorteio não se aplique no seu caso. Em outras palavras, Péricles, como Protágoras, está combinando o princípio de algum tipo de igualdade política com o de preferência por pessoas superiores. O que está sendo proposto aqui é governo para o povo, sem envolver também governo pelo povo. [Osório diz: curiosa essa passagem. Escolher os melhores, sem se saber, de antemão, em que classe eles estão].

Como fica, então, o sentido do termo isonomia? Algumas das complicações que surgiram na discussão do seu sentido são devidas ao fato de que há mais de uma questão envolvida — de modo especial a questão de saber a quem ou a que se refere o termo, e qual é a sua significação, ou sentido, quando se refere a qualquer determinada entidade. Para a primeira questão pode-se dar uma resposta clara. A despeito de umas poucas aplicações especiais, na esmagadora maioria dos casos o termo se refere a democracias entendidas como regimes nos quais o governo é considerado como confiado aos muitos na comunidade. A segunda questão é mais difícil. É certamente um engano tratar o termo como sinônimo de democracia — ele não significa a mesma coisa e é, portanto, possível que seja usado, ocasionalmente, para se referir a regimes ou grupos não-democráticos, quando se deseja afirmar que eles possuem as qualidades regularmente atribuídas às democracias. O que é que o termo significa, então? Dizer que significa nada mais do que "igualdade perante a lei" é ao mesmo tempo anacrônico e restrito demais. É de se notar que, como epíteto, isonomos não se aplica a cidadãos ou indivíduos, mas a cidades e comunidades. É assim que é empregado, na sua ocorrência mais antiga, no skolion que celebra a ocasião em que Harmódio e Aristogitão, ao matar Hiparcos, tornaram isonômica a cidade de Atenas, não os atenienses; e é assim que o termo é empregado sempre. Seu sentido, não seria, portanto, "possuir direitos iguais como cidadãos", mas alguma coisa como "conferir direitos iguais como objeto de prescrição pela cidade". Uma vez aceito isso, torna-se provável que isonomia não determine, como parte de seu sentido, nem a natureza nem os limites dos direitos assim prescritos. [Osório diz: isonomia e cidade].

Seja como for, a importância do termo para meu presente propósito é que ele introduz pelo menos alguns aspectos do conceito de igualdade política na arena da discussão política no século V a.C. Naturalmente, uma vez introduzido, o conceito de igualdade política podia ser aplicado de inúmeras maneiras diferentes, e será conveniente examinar algumas delas, uma por uma. Primeiro, igualdade econômica ou financeira. A importância das diferenças em riqueza como fonte de dissensão política era, naturalmente, coisa corriqueira. Mas era comumente tratada como um problema moral em vez de como um problema a ser resolvido mediante a abolição das desigualdades. Platão, entretanto, de fato sugeriu que os guardiães filosóficos não deveriam possuir nada de seu a fim de ficarem, o mais possível, livres de ser objetos de suspeita, nesse ponto, por parte dos demais cidadãos. Depois de criticar Platão por essa doutrina, Aristóteles passa a tratar um outro pensador a quem claramente considera anterior a Platão. [Osório diz: democracia e igualdade econômica] e [Osório diz: será que a família pode?]

O que ele nos diz é que havia alguns que sustentavam que as disposições convenientes em relação à propriedade eram politicamente mais importantes do que qualquer outra disposição, porque essa era a fonte de toda dissensão política. Assim Faleas de Calcedônia, que foi o primeiro a sugerir a introdução de regulamentações sobre a propriedade, propôs que todos os cidadãos deveriam ter quantidades iguais de propriedade. Ele supunha que isso não seria difícil de se conseguir na fundação de uma nova colônia, mas muito menos fácil nas comunidades já estabelecidas. Mesmo aí, isso poderia ser realizado se os ricos dessem dotes de casamento aos pobres, e o inverso se aplicava no caso dos que eram pobres, isto é, eles receberiam dotes mas não dariam dotes aos ricos (Política II, 7.2-3 = DK 39.1). A referência às colônias indica com certeza que o que está em questão, aqui, é a propriedade em terras, e não outras formas de riqueza. A exigência de uma redistribuição da terra nas cidades já existentes, frequentemente acompanhada da exigência do cancelamento das dívidas aos cidadãos privados, parece ter-se tornado quase que uma parte normal dos ataques aos proprietários de terra, e ambas as demandas foram condenadas no juramento Heliástico feito pelos jurados em Atenas, preservado em discurso na coleção que chegou até nós sob o nome de Demóstenes (XXTV, 149). [Osório diz: Faleas de Calcedônia, o Marx ateniense! Já?!].

Comparada a esses gritos de guerra, a abordagem de Faleas é realmente de caráter moderado e reformista. Embora não seja nomeado como sofista no sentido de um mestre profissional, Faleas pertence quase que certamente à última parte do século V a.C. e portanto deve ser considerado como fazendo parte do movimento sofista. Que estava interessado na educação é evidente pela afirmação de Aristóteles (Pol. II, 7.8), segundo a qual ele propusera não apenas igualdade em propriedade, mas também igualdade de educação [Osório diz: será que os sofistas ofereciam bolsas de estudo?]. Infelizmente não nos é dito de que forma ele supunha que isso seria organizado. Poderia ter sido baseado na prática em Esparta, mas mais provavelmente contempla a educação pública gratuita e universal [Osório diz: proposição sofística]. Se ela fosse concebida como se estendendo até a educação provida pelos sofistas, envolveria uma mudança na situação contemplada por Protágoras, na qual são os ricos que podem obter a melhor educação para seus filhos (Platão, Prot. 326c3-4). Em termos modernos, isso seria o equivalente à educação universitária para todos financiada pelo Estado.

O solvente da ideia de igualdade, contudo, teve um impacto maior em outras áreas além da econômica. Talvez o mais importante tenha sido na área das reivindicações de superioridade baseada no nascimento e nas origens da família. Caso se possa confiar na restauração um tanto incerta de uma passagem em papiro, parece que Antífon disse que respeitamos e admiramos os filhos de pais ilustres, mas os que não vieram de lares ilustres, nem admiramos, nem respeitamos (DK 87B44, II, p. 352). Se a restauração estiver correta, isso deve se relacionar com o que ele diz nas linhas que se seguem imediatamente, a saber, que por natureza, todos nós somos da mesma natureza sob todos os aspectos (para a passagem inteira, ver abaixo p. 268-269). O sofista Licofron (DK 83.4) é citado como tendo dito que "nobreza de nascimento é totalmente inútil. Pois disse ele que sua beleza não é alguma coisa que se possa ver, sua grandeza é uma questão do que os homens dizem (logos) — a preferência por ela é só uma questão de opinião. Na verdade, os que são ignóbeis não diferem em nada dos bem-nascidos" [Osório diz: nobreza e hereditariedade]. Aqui, as referências à verdade e à opinião sugerem que Licofron não está fazendo apenas uma declaração social e política, mas está também tentando sustentá-la recorrendo à oposição sofista entre physis e nomos.

Nossa informação sobre Licofron vem do diálogo Sobre o bom nascimento, composto por Aristóteles. Se tivéssemos mais do que os pouquíssimos fragmentos que sobraram dele, é provável que se revelasse ser um bom resumo do que ocorria nas discussões sofistas sobre o assunto. Nas atuais condições, podemos provavelmente obter mais informação sobre isso em uma notável passagem no Teeteto (174e-175b), de Platão, onde Sócrates louva a percepção do verdadeiro filósofo. Apesar de sua extensão, vale a pena citá-la toda.

 

Quando as pessoas cantam louvores da linhagem e dizem quão nobre é alguém porque pode mencionar sete ricos antepassados, ele pensa que o louvor vem de pessoas cuja visão é baça e míope, pessoas que, por causa de sua falta de instrução, são incapazes de manter os olhos fixos no todo, e não podem calcular que cada homem teve inúmeros milhares de ancestrais e antepassados, dentre os quais houve incontáveis casos de homens ricos e pobres, de reis e escravos, de bárbaros e gregos. Quando as pessoas se dão ares por conta de uma lista de vinte e cinco antepassados e traçam sua descendência desde Hércules, o filho de Anfitrion, isso o impressiona como revelador de uma estranha estreiteza de visão. Ele ri daqueles que não podem calcular que foi apenas uma questão de sorte o tipo de pessoa que foi o vigésimo quinto de Anfitrion para trás, ou o qüinquagésimo. Em todos esses cados, é do próprio filósofo que muitos riem, por parecer arrogante e por sua incapacidade de compreender os fatos [consagrados] da vida cotidiana. [Osório diz: Sócrates histórico e a nobreza de nascimento].

Semelhante, nas suas implicações, é a declaração do coro, em um fragmento de Alexandres de Eurípides, preservado por Estobeu (fr. 52N), onde lemos:

 

Nosso logos vai longe demais, se louvamos bom berço entre os mortais. Pois, quando há muito tempo viemos à existência, e a Terra que tinha dado nascença aos mortais depois separou uns dos outros, a terra, por seu processo de criação, imprimiu, em cada um, uma aparência igual. Não temos marcas especiais. Bem-nascidos e mal-nascidos são da mesma raça. É o tempo que, pelo nomos, faz do bom berço uma questão de orgulho.[Osório diz: os bem nascidos].

 

Aqui talvez valha a pena dizer que esta passagem não está dizendo que todos os homens são de igual mérito, somente que mérito não deve estar relacionado com bom berço. [Osório diz: mérito e berço].

Muito mais indefinida era a crítica da instituição da escravidão. Na verdade, é de se duvidar que alguém, no século V, tenha ido mais longe do que sugerir que muitos dos escravos existentes o eram apenas por acidente das circunstâncias. Embora Aristóteles aceitasse isso, sua conclusão era que, em um mundo ideal, a escravidão estaria confinada aos "escravos naturais" e todos aqueles que não eram escravos por natureza seriam libertos. Não chegou até nós nenhum texto do século V que de fato condenasse toda escravidão como tal. Que toda escravidão é contrária à natureza pode ser uma consequência da oposição desenvolvida por Antífon entre nomos e physis, mas não temos nenhum registro de que ele a tenha tirado, e não é suficiente argumentar que ele condenou então a escravidão porque "deve ter feito isso". A essa consequência finalmente se chegou e Aristóteles sabia disso quando escreveu Política I, 3.4. Há muitos que gostariam imensamente de poder atribuir essa visão ao século V. Mas, na verdade, a primeira pessoa de que se tem notícia que a defendeu é Alcidamas, um discípulo de Górgias que, no seu Discurso Messeniano, disse: "Deus deixou todos os homens livres, a Natureza não fez ninguém escravo". Mas a data do Discurso pode bem ser 362 a.C., ou mais tardia, e é só com os estóicos que encontramos toda a fundamentação teórica para a doutrina segundo a qual nenhum homem é escravo por natureza. [Osório diz: os sofistas e a escravidão! Vejam de quem Alcidamas era aluno! Se Platão e Aristóteles a defendiam, é por que alguém a condenava! Não se defende aquilo contra o que não existe acusação/oposição! Alcidamas nasceu onde?]

Estamos apenas um pouco melhor situados quanto ao testemunho relativo a gregos e bárbaros. De modo geral, os gregos tinham um forte senso de sua superioridade em relação aos outros homens. Segundo Hermipo, tal como citado por Diógenes Laércio (I, 33), havia alguns que costumavam dizer que Sócrates tinha o hábito de declarar que havia três coisas pelas quais devia agradecer a Fortuna: primeiro, por ter nascido ser humano e não um animal; segundo, por ter nascido homem e não mulher; e terceiro, por ter nascido grego e não bárbaro. O próprio Hermipo supunha que a história realmente se referisse a Tales de Mileto. De qualquer forma, ela corretamente incorporava a tradicional opinião grega sobre bárbaros e mulheres.

Ao discutir primeiro a comparação entre gregos e bárbaros, será conveniente começar com a posição adotada por Platão na República. Ele distingue entre os dois de maneira bem fundamental. O relacionamento natural entre grego e grego é o de parentesco e origem comum. Portanto são, por natureza, amigos. Quando lutam um contra o outro, isso significa que a Grécia está doente e dilacerada por guerra civil [Osório diz: sempre que se fala em guerra civil no século V deve-se entender a guerra do Peloponeso? As guerras que vieram após a derrota de Atenas?]. Portanto deve-se impor limites rigorosos acerca de que coisas podem ser feitas quando estão lutando entre si. De modo particular, é totalmente errado que Estados gregos vendam gregos como escravos. Totalmente ao contrário é o caso de gregos em luta com bárbaros. Pois gregos e bárbaros são inimigos por natureza. Quando lutam, estão envolvidos em guerra, e é adequado, então, que os gregos tratem os bárbaros como os gregos agora (erradamente) tratam outros gregos (Rep. 469b-471c). Daí fica claro que Platão aceita e aprova a instituição da escravidão mesmo no seu Estado ideal [Osório diz: Platão e a escravidão]. A razão disso é a sua crença de que os bárbaros são, por natureza, inferiores aos gregos, os únicos que, por sua inteligência e amor do saber, estão habilitados a ser senhores. Aristóteles está apenas acompanhando Platão quando, na Política (1252b7-9), cita com aprovação a opinião dos poetas segundo a qual está certo que os bárbaros sejam governados pelos gregos, porque os bárbaros são escravos por natureza [Osório diz: Aristóteles e a escravidão].

Os pontos essenciais da posição platônica parecem ter sido antecipados por Górgias (DK 82B5b), que, nos seus esforços para unir os gregos e dirigir suas energias contra os bárbaros, declarou que as vitórias sobre os bárbaros exigiam hinos de louvor, ao passo que as vitórias sobre os gregos exigiam lamentos. Opinião diferente teria sido defendida por Hípias, no Protágoras (337c-d), quando declara aos presentes que os considera como "parentes da mesma classe e como concidadãos por natureza, embora não por nomos. Pois o semelhante é aparentado ao semelhante por natureza, ao passo que a lei, que é tirana sobre os seres humanos, frequentemente impõe repressões que são contrárias à natureza". Todos "os presentes" eram, de fato, gregos [Osório diz: porém estrangeiros em Atenas!], de modo que é possível que ele não queira dizer nada além do que Platão tinha dito na República, a saber, que os gregos constituem uma família e afins. As necessidades do contexto no qual Hípias está falando estariam de fato satisfeitas se ele estivesse afirmando nada além de que há uma afinidade natural entre homens sábios onde quer que se encontrem, gregos ou bárbaros, ou talvez meramente onde quer que se encontrem entre os gregos. Mas a universalidade da segunda sentença citada acima, segundo a qual por natureza o semelhante é aparentado ao semelhante, sugere que provavelmente ele queria ir além e defender o parentesco universal de todos os seres humanos que participam de qualquer semelhança específica, por exemplo todas as crianças, todas as mulheres, todos os sábios ou todos os mendigos, e assim por diante.

Uma declaração mais explícita, ainda que infelizmente difícil de interpretar de maneira exata, encontra-se no fragmento de papiro de Antífon (DK 87B44, II, pp. 352-3), cuja primeira sentença já foi citada em conexão com a questão do respeito que advém aos homens de nascimento superior.

Respeitamos e admiramos os filhos de pais ilustres, mas os que vêm de lares não-ilustres, não respeitamos nem admiramos. Nisso nos barbarizamos em relação uns aos outros. Pois somos todos, por natureza, da mesma maneira plenamente adaptados para ser bárbaros ou helenos. Isso se pode ver pelas coisas que são, por natureza, necessárias a todos os seres humanos. Elas estão abertas para todos para serem obtidas da mesma maneira, e em todas elas nenhum de nós é distinguido como bárbaro ou grego. Pois todos nós respiramos o ar com nossas bocas e narizes, e todos comemos com nossas mãos. [Osório diz: sofistas contra a escravidão].

Aqui há incertezas a respeito de algumas das reais palavras do texto grego traduzidas nas duas últimas sentenças. Mas não há dúvida quanto ao sentido geral da passagem. O que ele está dizendo é que não há diferença fundamental, fixada pela natureza, entre gregos e bárbaros, ou entre bem-nascidos e mal-nascidos. Menos clara é a sequência do argumento e a conclusão particular que Antífon deseja alcançar. Na tradução usualmente adotada para a terceira sentença da passagem acima, no lugar das palavras em itálico temos alguma coisa como: "Pois por natureza somos feitos para ser iguais sob todos aspectos, tanto os bárbaros quanto os gregos". Aí temos, então, uma sequência lógica muito estranha, como observa Guthrie, a saber: "Damos muita atenção a nascimento nobre, mas isso é se comportar como os bárbaros, pois na realidade não há diferença entre bárbaros e gregos" [Osório diz: será que ele não queria dizer que os bárbaros dão especial importância ao nascimento nobre, e que os helenos não deveriam segui-los, quanto a isso? Em seguida afirma que não há diferença entre eles, logo, todos são iguais, não quanto a costumes (nascimentos nobres), mas quanto a natureza “humana”]. Isso simplesmente não tem sentido, nem é uma tradução acurada. O que é preciso, diz Guthrie, é voltar à tradução usada pelos primeiros editores do papiro, Grenfell e Hunt, que é a das palavras acima em itálico: Pois somos todos, por natureza, da mesma maneira plenamente adaptados para ser bárbaros ou helenos [Osório diz: não é Heródoto que nos conta a história de um rei que mandou uma criança ir viver entre outro povo que não aquele onde nascera e lá passou a falar a língua onde foi criada, que era diversa da do seu lugar de nascimento?]. Com esta tradução, muda-se a interpretação global da sequência do argumento, e a não-compreensão disso é, sem dúvida, a razão pela qual esta tradução foi substituída por outra menos acurada e menos plausível.

Creio que uma chave para a correta interpretação pode ser encontrada em uma passagem do tratado de Hipócrates Sobre ares, águas e lugares, cap. 12. O tratado como um todo diz respeito aos efeitos das diferenças de clima e meio ambiente sobre a saúde e o caráter. No capítulo 12, a comparação é entre a Ásia Menor e a Europa (isto é, a Grécia), e é dito que as condições na Ásia Menor são tais que coragem, indústria e o impulso para a ação não poderiam manifestar-se lá, seja entre os nativos, seja entre os imigrantes. Lá, o prazer reina de modo absoluto. O contraste é claramente com os gregos, que vivem no continente e que de fato possuem essas qualidades. Mas, se eles emigram para a Ásia Menor, tornam-se como os nativos lídios asiáticos, que os atenienses consideravam incapazes e voluptuosos em comparação consigo mesmos.

Tomando-se por base esse texto, que pertence ao século V, é possível sugerir a seguinte interpretação do que Antífon está dizendo. Fisicamente, e por natureza, não há diferença entre os seres humanos — nossas necessidades e nosso equipamento são os mesmos em todos os casos. Mas somos capazes de nos desenvolver de diferentes maneiras devido a influências subsequentes — podemos, então, ser ou gregos ou bárbaros, ou inteligentes e civilizados, ou amantes do prazer e estúpidos. Ao admirar estupidamente os filhos de pais nobres e classificá-los acima dos que se originam de famílias humildes, nós nos comportamos à maneira [Osório diz: que atribuímos aos] dos bárbaros, como se nós mesmos tivéssemos nos tornado [Osório diz: o que condenamos nos] bárbaros e perdido a inteligência apropriada [Osório diz: que atribuímos] a nós, os gregos. Isso resolve o problema da sequência do pensamento na passagem e tem a vantagem de nos autorizar a manter a tradução mais acurada da sentença em itálico. Devido à falta do resto da passagem no papiro, não se pode, naturalmente, afirmar que esta interpretação esteja absolutamente certa.

Na história citada anteriormente, Sócrates foi apresentado como dizendo não só que estava contente por não ter nascido bárbaro, mas também igualmente contente por não ter nascido mulher. Em Atenas, no século V, a posição legal, econômica e política da mulher era, de fato, verdadeiramente fraca, estando todos os poderes substancialmente nas mãos dos homens. Socialmente e em termos de influência pessoal, sem dúvida sua posição era frequentemente muitas vezes melhor, mas era só isso. Portanto não é de surpreender que a nova maneira de pensar do movimento sofista levasse a uma série de questões concernentes aos direitos e à posição das mulheres nas sociedades gregas, embora não haja testemunhos de que isso tenha levado a qualquer movimento real para a melhoria da sua condição. [Osório diz: os Sofistas trataram da condição da mulher na sociedade grega?] e [Osório diz: Sócrates, que era sofista, foi quem levantou a questão, que é a primeira forma de questioná-la!]

O ponto de partida era, sem dúvida, a percepção de que aqui, como alhures, as organizações sociais existentes não estavam inexoravelmente fixadas mas eram apenas relativas. Assim, no Dissoi Logoi II, 17 (DK 90), lemos que os egípcios não pensam da mesma maneira como os outros povos, visto que em nosso país consideramos conveniente que as mulheres teçam e trabalhem com lã, mas lá eles acham adequado que os homens façam isso e que as mulheres façam o que os homens fazem no nosso. Em Heródoto II.35 nos é dito a mesma coisa como exemplo de como os egípcios têm nomoi diferentes das de outros povos; e Édipo, no Édipo em Colônia 337, de Sófocles, refere-se à mesma coisa quando quer expressar sua admiração e agradecer às suas filhas, que tinham assumido as responsabilidades de seu infeliz pai, no que hoje chamaríamos de inversão de papéis entre masculino e feminino.

O próprio Péricles, podemos inferir, não estava de acordo, segundo Tucídides, que lhe atribui, na Oração Fúnebre, (Tuc. II, 45.2) a declaração, que se tornou famosa, concernente à Aretê das mulheres, a saber, que elas não deveriam deixar de corresponder ao seu caráter natural. Então grande seria a sua reputação (doxa) e maior será a daquela que for menos falada, seja para ser exaltada, seja para ser censurada, por lábios masculinos. Esse conselho, com efeito, tem muitas vezes parecido gratuito e inapropriado para a ocasião da comemoração dos atenienses que morreram em combate. É possível que tenha sido inserido como forma de réplica a Górgias (DK 82B22), que tinha dito que não era a beleza da mulher, mas a opinião que dela se tinha (doxa) que deveria ser conhecida por muitos, afirmação que talvez se deva associar com a importância que ele dava à opinião (DK 82B26) [Osório diz: Aspásia não teria nada a ver? Justificar sua condição de estrangeira?].

Mas todas essas são meras referências esparsas. O que é de maior importância é o testemunho de Platão e a sua relação com o de Aristófanes. Na República, Platão tinha argumentado que é dever de todas as pessoas devotar suas energias ao cumprimento da função para a qual foram, por natureza, mais bem dotadas (423d). Quando chega no Livro V, contudo, ele revela a sua consciência de que a questão da posição das mulheres envolve todo um enxame de argumentos (logoi) que, até esta altura do diálogo, tinha permanecido dormente (450bl). Sua opinião pessoal é que a única diferença entre homens e mulheres é a da função física na reprodução. Fora isso, ambos, homens e mulheres, deveriam dedicar-se à mesma série de ocupações e desempenhar as mesmas funções na comunidade. Para isso, devem receber a mesma educação. Mas se homens e mulheres forem levar a mesma vida, será preciso abolir a família. A procriação será organizada cientificamente em base comunitária; as crianças serão cuidadas em instituições públicas, de modo que ambos, mulheres e crianças, serão "comuns", pertencendo mais ao Estado do que aos maridos e pais individuais. [Osório diz: em fim concordo com algo que diz Platão! Mas o que ele queria mostrar é que essa solução as mulheres não aceitam, pois querem ser mães dos filhos do homem que “amam”! Talvez Platão dissesse: “apoio, mas aguentem as consequências”!].

Após uma minuciosa crítica do esquema platônico, Aristóteles afirma, em Política II, 7, que inúmeros outros esquemas constitucionais tinham sido propostos por particulares, por filósofos e por estadistas. Mas são todos menos radicais do que o de Platão e nenhum tinha introduzido a proposta revolucionária de comunidade de esposas e filhos, ou de refeições em comum para as mulheres. Com base nessa afirmação, pensa-se, às vezes, que Platão inventou e elaborou, sozinho, o esquema todo. Entretanto, ele tinha sido antecipado, no mínimo, em alguns detalhes. Heródoto (IV, 104) tinha relatado que o cita Agatirsiano praticara uma espécie de comunidade de mulheres a fim de que os homens pudessem ser irmãos entre si e, sendo todos quase aparentados, não sentissem inveja ou rancor um do outro. Eurípides, no seu Protesílaos (fr. 653N), tinha se referido a algo semelhante, e o próprio Aristóteles (Política 1262a19) reporta-se a uma prática do mesmo tipo na Líbia Superior. Isso deixa claro que a idéia era conhecida, e tinha despertado interesse bem antes que Platão produzisse a República. [Osório diz: Platão plagiário!]

Mas isso é apenas o começo do problema. A idéia de uma revolução política realizada por mulheres (usando a arma de uma greve de sexo contra os homens) foi o tema de Lisístrata, de Aristófanes, produzido em 411 a.C.; e por volta de 392 a.C., no Ecclesiazusae (A assembléia das mulheres), descreve-se uma outra revolução das mulheres, onde o programa das mulheres contém semelhanças bem notáveis com o que encontramos na República. Uma hipótese radical pretenderia que, portanto, deveria ter havido uma versão anterior da República, publicada ou não, acessível a Aristófanes, por volta de 392 a.C., visto que é provável que a versão que temos não tenha sido completada antes de 375 a.C. Talvez não seja algo surpreendente demais descobrir que quase exatamente o inverso dessa hipótese também tem sido defendido. O coro, em A assembléia das mulheres (577-579), declara que a cidade de Atenas está precisando de uma invenção inteligente, e convida para a consideração de coisas que nunca tinham sido feitas ou faladas antes. Praxinoa então revela o seu programa numa longa passagem de diálogo com mais de cem linhas (583-724). Toda propriedade, todos os alimentos e todo o dinheiro devem pertencer à comunidade e, em conseqüência, a pobreza será abolida. Haverá completa liberdade sexual e todas as mulheres serão compartilhadas em comum pelos homens. Os filhos resultantes considerarão todos os homens como seus pais. Não haverá ações judiciais porque não há propriedade privada, e a punição, quando necessária, consistirá na exclusão das refeições comunitárias.

As semelhanças com o que Platão diz na República são realmente notáveis, e não só é possível como também bastante provável que Platão conhecesse a peça na época em que estava escrevendo a República. A única alternativa plausível é a de uma fonte escrita para ambas as composições. Mas se essa fonte tivesse existido é estranho que ninguém, na Antiguidade, parece tê-la mencionado, fora a declaração geral de que Platão tirara o conteúdo da República do Antilógica de Protágoras. É, por conseguinte, muito provável que as semelhanças verbais devam ser explicadas pelo uso da peça de Aristófanes por Platão. Mas não é provável que o programa todo fosse algo simplesmente inventado por Aristófanes. Por causa do crivo acidental e altamente seletivo através do qual a literatura do século V teve de passar antes de se tornar acessível a nós, há constante perigo de se subestimar o vigor e a extensão das contínuas discussões, escritas e não-escritas, travadas sobre assuntos de interesse público. Embora não se possa fazer atribuições pessoais, pode-se ter como virtualmente certo que teorias revolucionárias sobre os direitos e a posição das mulheres estavam no ar durante o tempo de vida de Aristófanes. Senão ele não teria dedicado pelo menos três comédias a tais questões, a saber, Lisístrata, Thesmophoriazusae (As celebrantes das Tesmofôrias) e Assembleia das Mulheres [Osório diz: é o que digo sobre o gasto de tinta sobre os Sofistas por Platão e Aristóteles]. Exatamente o que estava na mente de muitas pessoas pode ser claramente depreendido do elaborado relato das desvantagens que afligiam as mulheres na primeira fala de Medeia, na peça de Eurípedes (Medeia, 230-266). Ela começa com a declaração de que ter que comprar um marido é bastante ruim: ser sua escrava física é pior ainda [Osório diz: que frase magnífica!]. Aqui, como já foi dito, "ela contrasta as condições físicas e sociais da existência das mulheres com a liberdade usufruída pelos homens. Um complemento desse relato das condições presentes é suprido pela visão confiante, na primeira estrofe e antístrofe do coro seguinte. Uma mudança vem vindo, o futuro será melhor" (410-430). Tudo isso tem seu lugar na história da própria peça. Mas dificilmente teria sido possível que um auditório escutasse o que estava sendo dito sem também estar consciente de suas implicações maiores.” [Osório diz: daí o Sócrates de As nuvens e As rãs ser o Sócrates de todos conhecido! Entretanto, poucos autores falam do Sócrates d'As rãs!]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 237-276).

 

34

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

95 – Kairós – tempo – oportunidade, por Górgias.

 

Vide item 94 acima.

 

(Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 48-51).

 

1

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

94 – Tempo – kairós – oportunidade, por Górgias.

 

Nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

O tempo como momento oportuno

 

O sentimento de que o tempo não é um meio homogêneo e indiferente, em que todo o instante é igual a qualquer outro, mas apresenta ocasiões favoráveis para a ação que vem a propósito, este sentimento é já agudo no helenismo antes de Górgias; encontramo-lo, por exemplo, em Teógnis, Baquílides, Píndaro sobretudo. Mas Górgias foi o primeiro, diz-se, a escrever sobre o Kairós e a dar-lhe uma teoria.

A concepção lógica do mundo, o princípio da não-contradição, repousam inteiramente no postulado do tempo contínuo, de um tempo que dura e que permite, pela sua duração contínua, comparar os instantes uns com os outros e denunciar o seu não-alinhamento. O que verdadeiramente é deve estar num tempo alinhado, isto é, deve ser idêntico a si ao longo da duração. A metafísica platônica irá derivar daqui a necessidade para que o ser seja plenamente ser, de ser eterno; o ser não existe apenas devido a esta ou àquela circunstância, existe sempre em si.

Ora Górgias, assim como rejeitara o Ser parmenidiano, recusa esta concepção que faz da eternidade a verdade do tempo e consagra no tempo a realeza do sempre. Concebe um tempo essencialmente descontínuo, feito de a-propósitos e de contratempos, que não se deixa perspectivar; por conseguinte, o valor de um conteúdo não se deixará julgar pela sua perdurabilidade: o melhor pode ser fogo de palha! Essa concepção do tempo vem legitimar a teoria do engano justificado tal como antes a expusemos. A realidade é contraditória e a poesia da ilusão poupa o homem ao sofrimento privilegiando um dos contrários por uma tomada de posição unilateral; ora, esta escolha de um dos dois contrários não é arbitrária e gratuita: é feita segundo o kairós. Exige um espírito perfeitamente desprendido, uma habilidade de grande fineza, de uma agilidade extrema; que há de mais difícil para agarrar que a ocasião? Como diz a canção do marinheiro El pénor em Giraudoux:

 

A ocasião só tem uma madeixa / uma madeixa de cabelos.”

 

É preciso uma sabedoria autêntica para escolher no momento exato o aspecto que a situação requer, e ocultar o outro; assim o kairós implica, além da sabedoria, a justiça: é justo como o que vem no momento exato. A justiça é justeza, e é sempre com justeza que se captam – segundo a bela expressão de Górgias – “as coisas cheias de seiva e de sangue”. Não há que dizer que o sofista se entrega a subterfúgios; não faz mais que seguir os saltos do tempo. [Osório diz: a justiça é – justeza, e é sempre com justeza que se captam “as coisas cheias de seiva e de sangue”. / Vivas, portanto!].

Por isso, Górgias é o primeiro pensador de uma temporalidade essencialmente prática, e está preparado para formar os homens políticos, os futuros governantes. Como escreveu Balzac em Louis Lambert: “a política é uma ciência sem princípios definidos, sem fixidez possível; é o gênio do momento, a aplicação constante da força de acordo com a necessidade do dia. O homem que visse a dois séculos de distância morreria na praça pública sob o peso das imprecações do povo[Osório diz: Política é – ...]. O kairós tem valor político também na medida em que é kairós retórico, e em que a retórica é na democracia ateniense um instrumento do poder [Osório diz: isso mata Platão!]. O kairós intervém também na formação dos chefes militares: Carls von Clausewitz chamar-lhe-á, mais tarde, “golpe de vista” e dele fará uma das componentes do gênio guerreiro. Mas é na vida ética que o conhecimento do kairós é essencial. Se em vez de estudarmos as virtudes particulares e as circunstâncias precisas em que são verdadeiramente virtudes, isto é, “excelências”, procurarmos definir uma essência única da virtude em geral, encontramo-nos a braços com um universal mal-estar e inaplicável na vida concreta; todas as especificações sutis que tornam uma análise manejável numa dada situação são apagadas pela determinação da essência válida para todos, em todos os lugares e tempos. Definir a virtude segundo o kairós é exprimir a variação da excelência de acordo com os diferentes estados do sujeito moral: uma será a excelência da criança e outra a do velho, do cidadão ou do não-cidadão, do homem em tempo de guerra ou em tempo de paz, etc. É de notar que Aristóteles tenha apreciado a concepção que Górgias fazia da virtude (areté) a ponto de a preferir à dos platônicos; o seu realismo não lhe parecia, pois, confundir-se com o oportunismo:

 

Com efeito, os que falam em geral iludem-se a si próprios quando dizem que a virtude é a boa disposição da alma ou a ação correta ou alguma coisa deste gênero; os que enumeram as virtudes, como Górgias, falam muito melhor que aqueles que as definissem assim.” [Osório diz: testemunho de Aristóteles sobre Górgias! Para aqueles que acham que Ari serve para algo].

 

O erro seria, portanto, definir a arte do kairós por uma habilidade de oportunista; o seu ideal é, pelo contrário, tornar a vida moral praticável e Aristóteles lembrar-se-á disto na sua ética. Mas o seu alcance é vasto: o kairós não significa apenas o momento favorável na vida prática e a arte de o colher, ou ainda o domínio da improvisação retórica, ele decide da natureza do tempo e concebe-o como atomizado. O que exclui a valorização da duração, do longo prazo, da eternidade, valorização relacionada com a ontologia combatida por Górgias.

A coerência das concepções de Górgias não nos permite pensar que este, longe de ser um pensador, se tivesse simplesmente entregue às diversões retóricas sem outra consequência que a de demonstrar o seu talento oratório [Osório diz: que “disse para fazer graça”!]. É claro que chama ao Elogio de Helena um “jogo”, mas Platão também chama ao seu Parménides um “jogo de criança”, o que não basta para lhe negar toda a seriedade, se se compreender bem o sentido e o valor do jogo no helenismo. Lógico implacável, excelente artista e pensador profundo, Górgias, como testemunha a abundância dos seus fragmentos, exerceu nos seus sucessores uma profunda influência. Mas o seu melhor título de glória permanece talvez o de Platão ter encontrado em Górgias um rival, que não era indigno dele.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 48-51).

 

4

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

93 – Tempo, segundo a Sofística.

 

Nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Assim, o tempo será experimentado como um meio homogêneo, uniformemente fragmentado; ainda não existe o relógio mecânico, que expressará a duração em fragmentos iguais e mensuráveis; o tempo é, pelo contrário, o da ocasião propícia (kaipós), que aparece e desaparece arritmicamente, dado ora a um ora a outro, nunca sendo, por conseguinte, bom para toda a gente. O desequilíbrio do tempo que fere o que vem a tempo e a contratempo agrava-se com uma dispersão dos lugares. O espaço homogêneo não existe como o tempo homogêneo; o mundo político grego é constituído por inúmeras Cidades-Estados, átomos do poder dispersos e que perpetuamente se entrechocam e confrontam. O sofista nómade, ao ir de uma para outra, experimenta uma contínua sensação de descentração; como ser o rapsodo dos seus discursos tão desconexos? (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 17-18).

 

Prossegue Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

O sentimento de que o tempo não é um meio homogêneo e indiferente, em que todo o instante é igual a qualquer outro, mas apresenta ocasiões favoráveis para a ação que vem a propósito, este sentimento é já agudo no helenismo antes de Górgias; encontramo-lo, por exemplo, em Teógnis, Baquílides, Píndaro sobretudo. Mas Górgias foi o primeiro, diz-se, a escrever sobre o Kairós e a dar-lhe uma teoria.

A concepção lógica do mundo, o princípio da não-contradição, repousam inteiramente no postulado do tempo contínuo, de um tempo que dura e que permite, pela sua duração contínua, comparar os instantes uns com os outros e denunciar o seu não-alinhamento. O que verdadeiramente é deve estar num tempo alinhado, isto é, deve ser idêntico a si ao longo da duração. A metafísica platônica irá derivar daqui a necessidade para que o ser seja plenamente ser, de ser eterno; o ser não existe apenas devido a esta ou àquela circunstância, existe sempre em si.

Ora Górgias, assim como rejeitara o Ser parmenidiano, recusa esta concepção que faz da eternidade a verdade do tempo e consagra no tempo a realeza do sempre. Concebe um tempo essencialmente descontínuo, feito de a-propósitos e de contratempos, que não se deixa perspectivar; por conseguinte, o valor de um conteúdo não se deixará julgar pela sua perdurabilidade: o melhor pode ser fogo de palha! Essa concepção do tempo vem legitimar a teoria do engano justificado tal como antes a expusemos. A realidade é contraditória e a poesia da ilusão poupa o homem ao sofrimento privilegiando um dos contrários por uma tomada de posição unilateral; ora, esta escolha de um dos dois contrários não é arbitrária e gratuita: é feita segundo o kairós. Exige um espírito perfeitamente desprendido, uma habilidade de grande fineza, de uma agilidade extrema; que há de mais difícil para agarrar que a ocasião? Como diz a canção do marinheiro El pénor em Giraudoux:

 

A ocasião só tem uma madeixa / uma madeixa de cabelos.”

 

É preciso uma sabedoria autêntica para escolher no momento exato o aspecto que a situação requer, e ocultar o outro; assim o kairós implica, além da sabedoria, a justiça: é justo como o que vem no momento exato. A justiça é justeza, e é sempre com justeza que se captam – segundo a bela expressão de Górgias – “as coisas cheias de seiva e de sangue”. Não há que dizer que o sofista se entrega a subterfúgios; não faz mais que seguir os saltos do tempo. [Osório diz: a justiça é – justeza, e é sempre com justeza que se captam “as coisas cheias de seiva e de sangue”. / Vivas, portanto!].

Por isso, Górgias é o primeiro pensador de uma temporalidade essencialmente prática, e está preparado para formar os homens políticos, os futuros governantes. Como escreveu Balzac em Louis Lambert: “a política é uma ciência sem princípios definidos, sem fixidez possível; é o gênio do momento, a aplicação constante da força de acordo com a necessidade do dia. O homem que visse a dois séculos de distância morreria na praça pública sob o peso das imprecações do povo[Osório diz: Política é – ...]. O kairós tem valor político também na medida em que é kairós retórico, e em que a retórica é na democracia ateniense um instrumento do poder [Osório diz: isso mata Platão!]. O kairós intervém também na formação dos chefes militares: Carls von Clausewitz chamar-lhe-á, mais tarde, “golpe de vista” e dele fará uma das componentes do gênio guerreiro. Mas é na vida ética que o conhecimento do kairós é essencial. Se em vez de estudarmos as virtudes particulares e as circunstâncias precisas em que são verdadeiramente virtudes, isto é, “excelências”, procurarmos definir uma essência única da virtude em geral, encontramo-nos a braços com um universal mal-estar e inaplicável na vida concreta; todas as especificações sutis que tornam uma análise manejável numa dada situação são apagadas pela determinação da essência válida para todos, em todos os lugares e tempos. Definir a virtude segundo o kairós é exprimir a variação da excelência de acordo com os diferentes estados do sujeito moral: uma será a excelência da criança e outra a do velho, do cidadão ou do não-cidadão, do homem em tempo de guerra ou em tempo de paz, etc. É de notar que Aristóteles tenha apreciado a concepção que Górgias fazia da virtude (areté) a ponto de a preferir à dos platônicos; o seu realismo não lhe parecia, pois, confundir-se com o oportunismo:

 

Com efeito, os que falam em geral iludem-se a si próprios quando dizem que a virtude é a boa disposição da alma ou a ação correta ou alguma coisa deste gênero; os que enumeram as virtudes, como Górgias, falam muito melhor que aqueles que as definissem assim.” (66) [Osório diz: testemunho de Aristóteles sobre Górgias! Para aqueles que acham que Ari serve para algo].

 

O erro seria, portanto, definir a arte do kairós por uma habilidade de oportunista; o seu ideal é, pelo contrário, tornar a vida moral praticável e Aristóteles lembrar-se-á disto na sua ética. Mas o seu alcance é vasto: o kairós não significa apenas o momento favorável na vida prática e a arte de o colher, ou ainda o domínio da improvisação retórica, ele decide da natureza do tempo e concebe-o como atomizado. O que exclui a valorização da duração, do longo prazo, da eternidade, valorização relacionada com a ontologia combatida por Górgias.

A coerência das concepções de Górgias não nos permite pensar que este, longe de ser um pensador, se tivesse simplesmente entregue às diversões retóricas sem outra consequência que a de demonstrar o seu talento oratório [Osório diz: que “disse para fazer graça”!]. É claro que chama ao Elogio de Helena um “jogo”, mas Platão também chama ao seu Parménides um “jogo de criança”, o que não basta para lhe negar toda a seriedade, se se compreender bem o sentido e o valor do jogo no helenismo. Lógico implacável, excelente artista e pensador profundo, Górgias, como testemunha a abundância dos seus fragmentos, exerceu nos seus sucessores uma profunda influência. Mas o seu melhor título de glória permanece talvez o de Platão ter encontrado em Górgias um rival, que não era indigno dele.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 48-51).

 

Finaliza Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

O arrythmiston é estável e permanente, indestrutível e imortal; sendo substrato, está, pois, fora do tempo e, inversamente, o tempo, que é passagem, não pode ser substrato. É por isso que o tempo não tem realidade serão para o ser limitado que é medido por ele e para o indivíduo particular que o pensa, porque este indivíduo tem um nascimento e uma morte [Osório diz: o tempo não tem realidade]. O fragmento B9 exprime esta substração ao tempo do arrytmiston, que é substrato (hypostasin): “o tempo é pensado e medido, não substrato”. É nesta atmosfera de intemporalidade que há que compreender o que dizíamos da juventude do “livre de estrutura”: é jovem na medida em que, fugindo ao envelhecimento e à morte, existe sempre. Cera que desfaz todas as suas impressões retirando-se delas, é indestrutível porque é a destruição. O “ritmo” tem sorte contrária. Ronsard é antifoniano sem o saber quando escreve: “a matéria permanece e a forma perde-se”. A mudança assim concebida é antes, como mostra Nicolau Grimaldi, da ordem da metamorfose. Na experiência tal como está determinada pela metafísica clássica, “é a materialidade das coisas que muda e a ordem formal da sua sucessão que permanece. Mas na metamorfose é a matéria que permanece e as formas que mudam”. A consequência da concessão da verdadeira realidade ao arrythmiston é, para as configurações particulares que reveste, isto é, para todos os seres, o estatuto da precariedade e a urgência da morte. O indivíduo privado de consistência ontológica é, por essência, um ser para a morte; donde o patético de todo o destino individual levando consigo a dissolução como a promessa mais certa, não durando senão para provar a sua fugacidade, não vindo à luz do sol, que lhe dá a forma, senão pelo espaço de uma manhã. Também a morte não deixa de estar presente nos fragmentos de Antífon; [Osório diz: Aristóteles enfrenta Antifon: matéria ou forma?] o fr. B 50, que é talvez o que o helenismo nos deixou de mais pungente, confessa esta precariedade do homem:

 

A vida é a véspera de um dia, e a duração da existência uma só jornada: ao levarmos os olhos para a luz, deixamos para os outros, que vêm depois, a sua vez”.

 

O homem é um velador de dia e, por figurar com o ser do dia, é também o ser de um dia. Mas a palavra trágica do fragmento é, sem dúvida, “outros” (hetérois): as figuras, não tendo nenhuma consistência ontológica, dissolvem-se sem remédio. Antífon recusa ao indivíduo a consolação dos eternos retornos pelos quais – para Aristóteles – o pai se reitera, especificamente falando, no seu filho, numa repetição sinonímica. Para Antífon, aquilo que o substitui é verdadeiramente um outro e não um outro eu. O livre de estrutura fica sempre o mesmo, mas não adquire jamais uma máscara idêntica; nenhuma figura (rhythmos) é adiada, nunca mais volta a repetir-se, o que seria ainda uma maneira de ir ficando. A partir daqui, para o indivíduo, cada ponto do tempo é um ponto de não-retorno, e a atitude daqui resultante relativamente à vida é dupla: a vida é mesquinha e frágil, tendo duração curta e grandes sofrimentos, em suma, ela não é quase nada, mas é precisamente por ser quase nada que é preciosa, tal como uma moeda é uma riqueza para um pobre. A vida não é nada, mas este nada é tudo [Osório diz: lindo sobre a vida]. Não é preciso, portanto, passar a vida a preparar uma outra vida que não existe e que nos tira o tempo da vida presente. A morte não é, como no teatro, uma morte para rir, depois da qual o mesmo ator entra em cena com um novo papel; a morte a sério dá à vida uma seriedade absoluta. A vida não é um jogo; Antífon afirma-o noutro fragmento decisivo: “está fora de questão – como no jogo dos dados – jogar duas vezes a vida”. As concepções lúdicas da vida estão ligadas à idéia de repetitividade; para elas, a morte é uma aparência e até a verdadeira vida. Para Antífon, a verdadeira vida é a nossa: somos irremediavelmente indivíduos, configurações passageiras que além-túmulo não conservam a sua forma própria e que, por consequência, nunca mais regressam. Esta seriedade da existência põe, em termos penetrantes, o problema da felicidade, a felicidade no seio da cidade e a felicidade pessoal.” [Osório diz: a vida e a vida depois da morte. Isso não faz sentido para o religioso em busca de consolo, o desamparado!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 98-100).

 

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