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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

69 – Crátilo (o dedo de) – resumo e morte do diálogo.

 

Ensina Kerferd:

 

O subtítulo do diálogo de Platão, Cráticlo, é Sobre a correção das palavras. Por muito tempo essa foi considerada uma obra de interesse mais limitado, atitude tipificada por H. N. Fowler, na introdução da sua tradução do diálogo, na série Loeb, em 1926, onde lemos: "Não se pode dizer que o Crátilo seja de grande importância no desenvolvimento do sistema platônico, pois trata de um assunto especializado [a origem das palavras], um tanto quanto à parte da teoria geral da filosofia". Há como que uma revolução em curso, desde mais ou menos 1955, na interpretação erudita do diálogo, contudo, e provavelmente são poucos os que procurariam, hoje, negar a fundamental importância dos temas nele discutidos. O assunto do diálogo não é a origem da linguagem, mas sim a questão da possibilidade dos nomes serem corretos. O ponto de partiria de Platão é, como quase sempre, uma questão suscitada pelas especulações sofistas. O diálogo se abre com Hermógenes, irmão de Cálias, famoso patrono dos sofistas, expondo brevemente a posição de Crátilo, o Heracliteano, segundo o qual há uma natural correção nos nomes, a mesma para todos, gregos e bárbaros, após o que ele expõe a sua própria opinião: a única verdade dos nomes depende do acordo das pessoas ao designar, em dado momento, o nome de uma coisa. [Osório diz: na Amazônia, o boto, que era vermelho, veio a transformar-se em cor-de-rosa!]

Sócrates apoia, pelo menos nesse estágio, a teoria da correção natural e sugere (391b-e) que a melhor maneira de investigar a questão seria perguntar àqueles que sabem, isto é, aos sofistas. Mas como Hermógenes não domina bem a sua herança, e não é capaz de responder, o que poderia fazer era pedir a seu irmão que lhe ensinasse a doutrina da correção nos casos que aprendera com Protágoras. Hermógenes se recusa, alegando que seria absurdo fazer tal pedido, visto que rejeita a Verdade de Protágoras e, por isso, não poderia considerar de qualquer valor o que é dito nesse tipo de "Verdade". Sócrates, então, diz que Hermógenes deveria ler Homero e os outros poetas, nos quais a doutrina segundo a qual os deuses usavam, para as coisas, nomes diferentes dos usados pelos homens mortais é clara prova de uma crença em nomes que são naturalmente corretos. Isso nos fornece razões suficientes para concluir que em sua obra Sobre a Verdade Protágoras tinha de fato discutido a correção dos nomes, e a maneira natural de ler a passagem é supondo que o próprio Protágoras, em certo sentido e em certo grau, tinha expressado a crença na doutrina da correção natural.

Isso concorda com o testemunho, citado anteriormente, de sua crença de que havia usos certos e errados para de determinadas palavras. No mito que se encontra no Protágoras (322a3ss), nos é dito como a humanidade procedeu a uma distribuição articulada de vozes e nomes, e isso sugere que o processo envolvia algum tipo de diaeresis de nomes. O fato de a discussão, na qual Sócrates se refere a Hermógenes, ocorrer no tratado A Verdade sugere que a doutrina da correção dos nomes pode ter sido desenvolvida por Protágoras em relação com a doutrina de tornar um logos mais correto (orthos) do que o outro logos ao qual era oposto; mas, na ausência de detalhes só podemos especular como é que tudo isso se encaixava.

No restante do diálogo, isto é, naturalmente, na parte principal, Sócrates procede a um extenso exame, primeiro da tese de Hermógenes de que a correção das palavras depende simplesmente do acordo dos usuários sobre quais nomes devem ser aceitos como corretos e, depois, da tese de Crátilo, segundo a qual há uma base natural para a sua correção. Sócrates argumenta, de ponta a ponta, que a correção dos nomes procede de sua função de indicar a natureza das coisas nomeadas (ver, p. ex., 422dl-2), e supõe que fazem isso mediante um processo de imitação da coisa em questão. Mas as coisas que encontramos em nossa experiência são, do ponto de vista cognitivo, inconsistentes, porque sempre são e não são ao mesmo tempo. Isso as torna incapazes de corresponder plenamente aos nomes que usamos num discurso significativo — problema que já havia sido apresentado por Parmênides. A solução de Platão, contudo, não foi nem renunciar à linguagem, nem abandonar de vez o mundo da experiência mas, antes, a invenção de um "Terceiro Mundo" o das Formas platônicas. Essas Formas são como que deliberadamente imaginadas para satisfazer os requisitos de serem objetos de referência e significado linguísticos satisfatórios. Mas, embora de certa maneira possam ser descritas como deliberadamente imaginadas, em outro sentido, naturalmente, isso é falso — para Platão são entidades reais, os constituintes definitivos da realidade. [Osório diz: Platão e sua auto-ilusão! Mas com ela carrega muitos!].

As Formas platônicas foram assim destinadas a servir de referentes fundamentais para os nomes. Objetos perceptíveis, em relação aos quais esses mesmos nomes tendem a ser usados na fala cotidiana sobre o mundo, constituem uma espécie de esfera de referência derivada ou secundária. A introdução dessa distinção entre referentes primários e secundários tem sido corretamente vista como um primeiro passo na direção de uma distinção entre significação e referência. Uma das dificuldades com que se defronta a teoria da significação referencial, que propunha a relação um-a-um entre nomes e objetos fenomenais, era, como já vimos, que um nome para o qual não havia nenhum objeto correspondente a ser encontrado no mundo fenomenal poderia não ter sentido algum, porque não havia nada a que ele estaria de fato se referindo. Se pudermos dizer que a palavra possui sentido independentemente de ser ou não, de fato, usada para se referir a alguma coisa, então poderemos dizer que o problema está resolvido, ou, pelo menos, que está reduzido a proporções mais tratáveis. Foi exatamente isso que os estóicos realizaram, parcialmente, com a sua doutrina do lekta imaterial associado, como significações, a palavras e pensamentos, em um mundo no qual os únicos objetos reais eram todos materiais e corpóreos.

Mas não é provável que Platão tenha chegado até aí. Ele permaneceu sempre comprometido, ao que parece, com uma teoria da significação puramente referencial. O Crátilo conclui com a afirmação de que, embora possam ser dados e, portanto, possam ser atribuídos por uma espécie de acordo, os nomes somente serão corretamente dados por aqueles que têm um conhecimento direto da realidade imutável, isto é, do mundo das Formas, e que compõem os nomes de tal maneira que são semelhantes às coisas nomeadas e são imagens delas. Esta é a contribuição de Platão para o problema que herdou dos sofistas. Ele resolveu o problema da linguagem correta alterando a realidade para se ajustar às necessidades da linguagem, em vez de fazer o inverso. [Osório diz: mais um dos furos de Platão!].

[Osório diz: Aristóteles, contudo, detona/destrói a tese de Platão ao dizer:

 

Não há semelhança <entre nomes e coisas>. Pois, por um lado, os nomes e a pluralidade das definições são em número limitado, mas, por outro, as coisas são em número ilimitado. Então é necessário que um mesmo nome e uma mesma definição signifiquem muitas <coisas>.” (Aristóteles, Refutações Sofísticas, 165 a 10-13). (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 130-134).

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

O dedo de Crátilo

 

Crátilo, declara Aristóteles, "acreditava que não se deve dizer nada, e apenas agitava o dedo”. Gostaria de interpretar tanto o seu silêncio quanto o seu gesto.

O contexto nos ensina muito. Trata-se do capítulo 5 do livro Gama da Metafísica, onde Aristóteles tenta estabelecer o primeiro princípio da ciência do ser enquanto ser, célebre pelo nome de princípio de não-contradição. Ora, esse princípio primeiro, tão conhecido que "aquele que busca compreender um ente, qualquer que seja, o possui necessariamente", esse princípio então, não apenas alguns mal-educados pedem que seja demonstrado, como também, mais paradoxalmente, todos os grandes ancestrais filosóficos e literários, à exceção de Platão, recusaram-no pura e simplesmente.

O capítulo 5 propõe uma taxinomia desses adversários do princípio. A cisão maior passa-se entre "os que falam sob o efeito de uma aporia" e que podemos convencer "por persuasão", e "os que falam pelo prazer de falar", que podemos somente "coagir" refutando "o que é dito nos sons da voz e nas palavras" (1009a 16-22). Estes últimos são marginalizados, relegados aos confins da humanidade: sofistas puramente sofistas tão improváveis quanto plantas que falam. Mas os primeiros, que Aristóteles quer vencer em combate leal, quer dizer, racional, se distinguem por sua vez dependendo de duas eponímias [Osório diz: Nome das coisas tirado doutras coisas ou pessoas] diferentes: Heráclito o físico e Protágoras o sofista. A aporia chega aos físicos como Anaxágoras e Demócrito quando crêem observar que "os contrários pertencem ao mesmo tempo aos mesmos objetos". Ela chega aos sofistas, como Empédocles, Demócrito, o próprio Parmênides, Anaxágoras, Homero, desde que suponham que "todos os fenômenos são verdadeiros". A superposição dos exemplos faz por si só compreender que essas duas posições dão na mesma. Elas têm a mesma causa: é preciso e é suficiente, da parte do sujeito, fazer equivaler pensamento e sensação, quer dizer alteração (1009b 12s.: dia to hypolambánein phrónësin mèn tén aísthësin, taúten d'einal alloío-sirí) e, da parte do objeto, entes e sensíveis (1010a 2s.: tá d'ónta hypélabon eïnai tá aisthëtá mónorí). Têm também o mesmo efeito desesperante:

 

Em que um dos mais penosos é a consequência, pois se os que mais fixaram os olhos no verdadeiro e em sua possibilidade; e aqueles dos quais acabamos de falar são bem os que o buscam e o amam mais; se esses têm semelhantes opiniões e fazem essas declarações sobre a verdade, como exigir que os que empreendem filosofar não percam a coragem? Pois procurar a verdade seria perseguir pássaros em pleno voo (1009b 33-1010 a l). [Osório diz: Aristóteles está apenas desesperado na tentativa de salvar a filosofia/ciência! Nem que para isso ele não tenha argumentos racionais e concatenados, mas reste apenas uma quase “agressividade”, que o faz lutar pelo fim (salvar) e não pelo meio (como salvar)].

 

Crátilo se cala algumas linhas depois:

 

Vendo essa natureza totalmente em movimento, e nada que muda no domínio, em todo caso, do que muda em todos os pontos e de todas as maneiras, não se pode, pensa eles, dizer verdade. Foi bem sobre esse modo de tomar as coisas que floresceu a opinião mais extrema sustentara por todos aqueles dos quais falamos, a dos que declaram heraclitizar, e tal como devia ser a de Crátilo, que acreditava que não se deve, afinal, nada dizer, mus apenas agitava o dedo; ele reprovava Heráclito por dizer que não podemos entrar duas vezes no mesmo rio: nem mesmo uma, acreditava.

 

O que significa, antes de mais nada, o heraclitismo de Crátilo?

 

É preciso notar previamente a prudência de Aristóteles acerca do Heráclito histórico, como se o Obscuro estivesse sempre a distância de discípulo, a distância de interpretação. Assim, desde o capítulo 3, logo após o enunciado do princípio e para confirmar que é "o mais firme de todos", Aristóteles acrescenta que "é impossível que quem quer que seja sustente que o mesmo é e não é como alguns pensam que Heráclito diz; pois não é necessário que, o que alguém diz, ele o sustente também" (1005b 23-26). Duplo distanciamento nesse caso: entre o que Heráclito disse verdadeiramente e o que alguns pensam que disse, de um lado, e depois entre o que Heráclito poderia ter dito, e o que verdadeiramente assumiu pensar.

Aqui mesmo trata-se, com um hápax [Osório diz: “uma só vez”], daqueles que declaram "heraclitizar". Assim, o julgamento aristotélico se põe em questão. Heráclito tem na verdade Crátilo como objeto: Crátilo, representando a opinião mais extrema, seria mais heracliteano que Heráclito. Ele retomaria a citação heracliteana mas para lhe censurar sua pusilaminidade e para ir ainda mais longe. Como entender essa citação: "não podemos entrar duas vezes no mesmo rio" (potamôi ouk éstin embênai dïs tôi autôï)! Trata-se de um fragmento transmitido por Plutarco por outra via (Sobre o E de Delfos, 392b = 91b DK), mas que o próprio Sócrates utiliza no Crátilo (402a). Invocando a propósito dos nomes de Cronos e Réia "os antigos e sábios ditos" de Heráclito e de Homero, ele continua: "Heráclito diz em algum lugar que tudo passa e nada permanece e, comparando os entes ao correr de um rio, diz que não poderíamos entrar duas vezes no mesmo rio". Sócrates aceitou cratilizar para Hermógenes: trata-se para ele de encontrarcomo diz perfeitamente Gérard Genette retomando Proust — "os nomes escondidos nas palavras", ou ainda descobrir as eponímias sob as etimologias2 e de mostrar assim que as palavras "manifestam efetivamente a essência do objeto" (393d); assim Réia "flui" (rheí) e a citação heracliteana está aí para confirmar a correção natural da linguagem.

Ora, parece que a função dessa citação na boca do Crátilo de Aristóteles é absolutamente contrária. Ela serve, não para fundar a correção natural da linguagem, mas para demonstrar sua inadequação radical: se o mundo é heracliteano, então nada se pode dizer de verdadeiro e, conseqüentemente, o filósofo deve se calar. Dizer que não poderíamos entrar duas vezes no mesmo rio é dizer simplesmente, validando a equivalência entre os entes e o fluxo, que não poderíamos perceber duas vezes os mesmos entes. Resta entretanto o rio propriamente dito: se não é "o mesmo rio", porque fluem sem cessar as águas do devir, não deixa de ser sempre um "rio". Para Sócrates, a esse ponto de seu cratilismo, todos os nomes dizem com efeito o fluxo, Réia como epistémé, a ciência, seguidor fiel de pistas; e é assim, pela forma como o lógos faz sempre aparecer o mesmo no outro, que poderíamos interpretar a tensão heracliteana entre os contrários. Dizer agora, como o Crátilo aristotélico, que não poderíamos entrar aí "nem mesmo uma vez", é dar a entender que é impossível demarcar o rio, ou que o fluxo não tem margens: não apenas os entes, quer dizer, os sensíveis fluem, mas também o pensamento, quer dizer, a sensação, se altera. Não há identidade no fluxo, no voo do que é: não somente não há lugar para uma predicação, um julgamento de conhecimento, mas não há nem mesmo lugar para essa atribuição mínima de identidade que é o nome, designando um objeto e pronunciado por um sujeito. É então preciso interpretar com determinação o extremismo de Crátilo: seu "não se deve, afinal, dizer nada" tem o rigor de um imperativo filosófico. Isso ocorre porque Crátilo se situa na exigência aristotélica de adequação entre dizer e ser, porque ele é um verdadeiro filósofo que só pode se calar, e seu silêncio faz dele o mais consequente dos pré-socráticos.

Resta ainda interpretar seu gesto do dedo. Em uma das duas outras ocorrências em que evoca Crátilo, Aristóteles apresentar-nos, para ilustrar que os "detalhes são persuasivos porque os fatos que conhecemos tornam-se símbolos daqueles que ignoramos”, os fatos", um Crátilo furioso: "Esquines diz de Crátilo que ele partiu sibilando (diasízõri) furiosamente e agitando os punhos" (!<"" iheroín diaseíõn) (Retórica, III, 16, 1417b 1-3). O silêncio de Crátilo, ruidoso e agitado, deixa assim ouvir um evitar da fala. Silêncio e gesto são ainda mais minimais, ou radicais, na Metafísica: Crátilo "apenas agita o dedo" (tòn dáktylon ekínei iiionon). Onde, em uma palavra-valise que uma "viagem à Cratília" nos autorizaria a forjar, ressoa sob Kratylos, Crátilo, Kratylos, dáctilo "o dedo", e mesmo alguma coisa como krateï dákíylos, o dedo que comanda, ou a potência do dedo. Podemos imaginar — com a condição de afastarmos as interpretações cínicas que, por serem obscenas, não seriam talvez sem pertinência — dois gestos. De início, para nós, o do "shhh!". Indicador diante da boca para impor e se impor silêncio; Crátilo consequente se cala e ordena que se faça o mesmo. Mas, de forma mais verossímil, o gesto da deíxis: o indicador, ao menos ele bem nomeado, apontado para o que passa, não designa sequer o pássaro, nem mesmo seu voo, mas sua transformação, seu desaparecimento.

Hegel, no capítulo da Fenomenologia do Espírito, intitulado "A certeza sensível, ou o isto e minha visada do isto", descreveu magistralmente a auto-refutação, a autocontradição constitutivas da deíxis, e a maneira pela qual a certeza sensível que aparece como o conhecimento mais rico "se revela expressamente como a mais abstrata e a mais pobre verdade": "O aqui é por exemplo a árvore. Eu me volto, essa verdade desapareceu e se transformou em verdade oposta: o aqui não é uma árvore, mas antes uma casa"4. O fluxo que derruba a deíxis está ligado à inadequação radical da linguagem ao sensível:

 

Eles visam esse pedaço de papel... mas o que visam, eles não dizem. Se, de um modo efetivamente real, quisessem dizer esse pedaço de papel que visam e se quisessem propriamente dizê-lo, então isso seria uma coisa impossível, porque o isto sensível que é visado é inacessível à linguagem que pertence à consciência, ao universal em si (ibidem, p. 91).

 

Hegel conclui: "é a linguagem que é o mais verdadeiro". E é por isso que um Crátilo consequente, que "quer propriamente dizer" o mundo de Heráclito, deve dar-se por vencido e baixar os braços.

Do silêncio de Crátilo e do seu sentido filosófico encontram-se as marcas, como uma prova antecipada, no diálogo platónico que leva seu nome. Crátilo fala pouco aí: um quinto do diálogo (entre 428b e 440c). No resto do tempo, fazem-no falar. É em primeiro lugar Hermógenes, que prefacia ao enunciar para Sócrates a tese de Crátilo, e lamenta que Crátilo não explique nada:

 

quando eu questiono e desejo saber o que ele quer dizer, ele não explica nada e me trata com ironia, fingindo meditar alguma coisa em seu foro interior, como se tivesse sobre isso um saber que, se ele quisesse enunciá-lo claramente, faria com que eu lhe desse meu acordo e dissesse o mesmo que ele diz (383b-384a).

 

Crátilo, segundo todas as aparências, pensa, sabe, mas quase não fala; e, quando fala, não é como um filósofo mas como um oráculo que se deve interpretar (ten Kratylou manteían: 385a 5), não menos do que Sócrates aliás, quando se põe a cratilizar (cf. 411 b, 428c). Pois é em seguida não mais Crátilo mas Sócrates quem cratiliza para Hermógenes e se deixa levar pelo entusiasmo dos nomes. Depois, quando Sócrates entra efetivamente em diálogo com Crátilo em pessoa, arrebata-o no fluxo heracliteano a ponto de transformá-lo em Hermógenes ("Não é verdade que concordas contigo mesmo e que a correção do nome se torna para ti uma convenção?", 435b). Assim deportado pela maré das palavras socráticas, Crátilo, uma vez mais se cala: "Tomarei, diz Sócrates, teu silêncio por aquiescência".

Mas é sobretudo o final aporético do diálogo, seu adiamento campestre, que exige análise. Sócrates acaba de estabelecer sua própria tese aparentemente modesta, que é preciso partir não dos nomes, mas das próprias coisas — e Crátilo concorda com isso (439b). Propõe então a Crátilo reexaminar o "turbilhão" heracliteano à luz do "devaneio" (439a) socrático do belo em si, da ideia. Se tudo passa, não se pode atribuir corretamente a nada (proseipein auto orthBs, 439d) nem nomeação ("é isto": hóti ekeïno estiri) nem predicação ("é assim": hóti toioütori). Não se trata mais apenas de uma projeção da vertigem do sujeito sobre o objeto, turbilhão, catarro (440d, cf. 411b-c), mas de uma tripla impossibilidade radical: se tudo se transforma, quer dizer, muda [p. 32] de forma, de eidos, então não poderia haver nem conhecimento (ouk àn eíë gnÕsis), nem conhecedor (oúte to gnõsómenon), nem conhecido (oúte to gnõsthêsómenori àn eíe, 440b). Eis o heraclitismo levado ao extremo que professam na Metafísica os extremistas como Crátilo. Ora, Crátilo, que Sócrates nesse momento trata à moda normanda* [Osório diz: “significa responder nem sim nem não”] e afaga como a um cavalo ("pode ser que sim, pode ser que não", "examina com coragem", "não te rendas facilmente", "tu és jovem", "na flor da idade", "conduz a investigação e se encontrares", etc.) persevera: "Prefiro bem mais o que Heráclito diz". Cai então a conclusão socrática: "Vai aos campos! De resto, Hermógenes acompanhar-te-á" (440e). Pois se não se trata apenas de emitir ou de escutar sons, mas de dizer alguma coisa e de conhecer, se a linguagem deve dizer o que é, seja por natureza ou por convenção, para Sócrates como para o Crátilo consequente de Aristóteles, a posição heracliteana é insustentável, quer dizer, muda: férias filosóficas, longe da agora, no vazio do campo. [Osório diz: diálogos de Platão que têm os sofistas como “personagens” principais: Górgias, Protágoras, Sofista, Hípias, Hípias Menor, Crátilo...]

Mas por que Crátilo não se cala por si mesmo, em Platão como em Aristóteles? Dito de outro modo, qual é a cada vez sua relação com a sofística?

Aristóteles coloca Crátilo ao lado de Heráclito e de Protágoras, entre aqueles que ele necessariamente conseguiu persuadir da verdade do princípio. A demonstração por refutação é, com efeito, tão econômica que é preciso e é suficiente que o adversário do princípio satisfaça à definição do homem, "animal dotado de lógos", para ser refutado: é suficiente que ele fale, quer dizer, segundo a série das equivalências aristotélicas, que "diga alguma coisa" (légoi ti, 4, 1006a 22), quer dizer ainda que ele "signifique alguma coisa para si mesmo e para outrem" (sema-neínein gê ti kal autõi kal állõi, 4, 1006a 21). Convencer-se-á assim todo partidário do mobilismo ou do relativismo de que alguma coisa ao menos escapa à mudança: a palavra que ele pronuncia, que não pode ter e não ter ao mesmo tempo o mesmo sentido.

Temos aqui, a meu ver, um ponto de clivagem maior entre Platão e Aristóteles. Na verdade Sócrates propõe abandonar aí as palavras para falar das coisas, e sonha com o bom em si "sempre semelhante a si mesmo": o modelo da identidade platônica é a ideia. Aristóteles, reconhecendo naturalmente que "o mesmo vinho é ora doce, ora não doce", seja porque o vinho ou porque o bebedor tenha mudado, estipula que "não é certamente o doce, tal como é a cada vez que é, que tenha jamais mudado" e que "o que for doce terá necessariamente tal natureza" (5, lOlOb 23-26): o modelo da identidade aristotélica é o sentido da palavra. De Platão a Aristóteles: do Doce em si ao "doce" entre aspas.

Daí a importância da posição de Crátilo, visto que, se Crátilo se cala, o dispositivo aristotélico desaba. Há assim duas maneiras de escapar à persuasão de Aristóteles. A primeira é esse silêncio obstinado de Crátilo que não dá margem à refutação. Mas o preço a pagar é exorbitante: "um tal homem enquanto tal é de saída semelhante a uma planta" (1006a 15). Crátilo não é mais especificamente um homem, mesmo se permanece genericamente um vivo; descortês e associal, é inumano por vontade filosófica. [Osório diz: por aí se vê que as palavras transformam uma coisa em outra!]

A segunda escapatória é o ruído não menos irredutível dos que falam sem intenção de significar. Na verdade, mesmo que façamos com que a refutação tenha como objeto os sons que eles pronunciam, ela — já que é um silogismo que deve concluir pelo contraditório — não poderia valer contra os que "estimam ter o direito de dizer coisas contrárias desde que eles as digam" (6, 1011a 16). Mas o preço a pagar é sempre o mesmo: "Não é possível para esse tipo de homem nem pronunciar nem enunciar (oúte phthénxasthai oúte eipein), pois ele quer dizer simultaneamente isto e não-isto. E se nada sustenta, mas crê tanto quanto não crê, em que diferiria ele dos seres puramente naturais (pephykótõn) das plantas (phytori)?” (1008b B-12). Só que, à diferença de Crátilo, esses verdadeiros sofistas são inumanos não por cegueira filosófica, mas por decisão ética, por "intenção" justamente (1004b 24s.), e seu discurso imbatível é prezado demais na cidade. Falar sem dizer nada é uma maneira vantajosa de se calar; face a eles, o Crátilo aristotélico permanece a encarnação; da idiotia filosófica.

Ora, é bem importante que seja o Crátilo falante de Platão, Crátilo e não Sócrates, quem instaure por conta própria a cisão entre falar como um homem e fazer ruído como um sofista. A pergunta de Sócrates: "Será que todos os nomes são estabelecidos corretamente?", sabe-se que Crátilo responde: "Ao menos todos os que são nomes" (429a, fim). Nesse ponto, Sócrates reconhece a já batida tese sofística de que é impossível dizer falsidades (pseudê légein., 429d). Tese que Crátilo sustenta de boa vontade à maneira de Antístenes, de Górgias, de Eutidemo, de Dlonisodoro, do Estrangeiro, no modo ontológico: "Dizer isto que se diz, como não seria dizer (d)o ente?" (429d 4; grifo meu)5. Mas Sócrates faz com que ele abandone aí essa argumentação esnobe ou chique demais (kompsóteros: 429d 8), não sem lhe fizer uma pergunta suplementar (tósonde, 429d 9), que parece, como frequentemente, ainda mais sutil: "Se não te parece possível dizer falsidades, não te parece possível entretanto proferi-las?"

O que introduz então essa substituição? Trata-se, para Sócrates, de esquivar a equivalência parmenideana do légein ao eînai, do dizer e do ser, que torna possível a demonstração sofística: ao banir o légein por demais filosófico em benefício de uma série de verbos cada vez mais contextualizados, cada vez mais pragmaticamente marcados, ele tenta deslocar a problemática, da ontologia para uma prática da enunciação. Há aqui um redobrar de sutileza, já que, se o sofista combateu de início a filosofia com a ajuda das próprias armas da filosofia, é agora o filósofo que busca combater o sofista com a ajuda das próprias armas da sofística [Osório diz: Contradição Platônica]. Assim se deve, creio, interpretar a sequência quase intraduzível: légein, verbo parmenideano, ontológico, filosófico ("dizer"); phánai, não no sentido veritativo ("afirmar", trad. Méridier), mas como chamando a atenção para o ato de "proferir", para a presença da enunciação mais do que para a validade do enunciado; eipeîn, que implica uma comunicação com outrem, até mesmo um diálogo ("falar"), precisado por proseipeîn, "dirigir a", que coloca sem equívoco possível, em situação concreta, face a um interlocutor determinado; dirige-se uma saudação e esse é justamente o exemplo tomado por Sócrates: "Bom dia, Hermógenes", dirigido a Crátilo. Como Crátilo assim implicado não se sentiria obrigado a confessar que essa saudação ao menos se engana de endereço?7 Para compreender o jogo socrático, é importante não separar, como faz por exemplo Méridier em sua tradução, essas diversas modalidades de enunciação que Sócrates reúne como equivalências: o homem que te saúda assim com o nome de Hermógenes "diria essas palavras, ou proferi-las-ia, ou enunciá-las-ia, ou dirigi-las-ia assim não a ti mas a Hermógenes que aqui está, ou a ninguém?" Sócrates, introduzindo ao mesmo tempo a modalidade e o alvo da enunciação, seu "como", consegue com esse subterfúgio uma refutação da demonstração sofística tão batida quanto ela. Se com efeito sempre se diz o ente, é necessário ainda, para dizer a verdade, dizê-lo como é preciso, ou como ele é. Opera aqui, no plano da pragmática, uma análise do falso e do não-ser como alteridade, análoga à que leva o estrangeiro ao plano sintático-semântico interno à frase ("Teeteto, voa", cf. Sofista, 263a-d).

Só que a resistência de Crátilo é notável e, por uma vez, sem dúvida a única em todo o diálogo, vitoriosa. Ele recusa sucessivamente cada um desses verbos que implicam uma enunciação, logo também um sentido enunciado, e propõe em seu lugar phlhéngesthai, "emitir sons". Essa saudação não é dirigida, ele protesta, mas terá sido apenas "emitida como ruído". E quando Sócrates tenta, contentando-se com esse verbo minimal, reintroduzir a problemática da verdade – "Serão verdades ou falsidades que ele emite?" –, Crátilo a recusa para ir ainda mais longe, phthéngesthai parecendo-lhe, como para Aristóteles ainda há pouco8, demasiado humano. Ele se refugia em psophein, "ressoar", como uma porta, pedras, um instrumento musical, mas sem nenhum dos acentos da voz humana, dessa phônê, que se arrisca sempre, mesmo apesar dela a ser semantikê: aquele que saúda assim "ressoa vibrando a si mesmo em vão, como se vibrasse algum vaso de bronze ao bater nele". Operação estritamente física: o sino de Crátilo vale bem a planta da Metafísica.

Será necessário concluir daí que Crátilo o heracliteano já é, em Platão, aristotélico? Vejamos antes a principal consequência da posição de Crátilo no diálogo: se todos os nomes são correios, todos os que ao menos são nomes, então "pode-se dizer absolutamente que, quando sabemos os nomes, sabemos também as coisas" (453d 5s.). A exclusão dos falsos nomes da classe dos nomes permite se ater apenas aos nomes. Ora, que os nomes, ou as palavras, sejam suficientes, é exatamente a posição — não de Aristóteles, que não cessa de trabalhar para dissipar a homonímia constitutiva da linguagem e fonte principal dos sofismas9 — mas realmente do sofista aristotélico, daquele que fala lógou chárin, contentando-se com as palavras como se existisse apenas linguagem. Na realidade, a hýbris ontológica de Crátilo, perfeita correção dos nomes, perfeita adequação da linguagem, não é senão o avesso, ou melhor, o direito filosófico, da meontologia sofística, as duas posições chegando à mesma palavra de ordem: apenas os nomes e unicamente eles. Mas a juventude platônica de Crátilo acredita ainda ser possível essa correção perfeita, enquanto sua idade aristotélica lhe impõe um silêncio não menos idealista. Assim compreendem-se ao mesmo tempo a força da injunção socrática, segundo a qual é preciso falar das coisas e não dos nomes, e a sutileza da posição aristotélica que imbrica coisa e nome no dispositivo intersubjetivo da significação. Elas nos ensinam que há duas maneiras simétricas e ligadas de abster-se do ser: sustentar até o silêncio ou até o ruído que a linguagem é o ser.

 

7. A sutileza socrática não pára aí, visto que a falsa saudação é por outro lado bem verdadeira: Crátilo, vimos, pode muito justamente ser confundido com Hermógenes, que o acompanha aos campos;

8. Cf. supra, lOOBb 8, onde traduzimos por "pronunciar". Sobre aambivalência de phthéngesthai, cf. por exemplo Sofista 237e 6; 262d 6. O uso aristotélico de psophein é análogo ao de Crátilo; cf. por exemplo hoi agrámmatoi psóphoi, "os ruídos que não poderíamos escrever", os que fiwni os animais (De Int., 2, 16a 28s.);

 

[O mal radical da linguagem e, na verdade, que os nomes sejam necessariamente em menor número que as coisas (cf. Ref. Sof., I, 165 a 12-14).][Osório diz: a palavra folha, por exemplo, serve tanto para a folha da parreira quanto para a folha de papel! E a palavra “manga”, tem “n” acepções]. [Osório diz: é aqui que Aristóteles matou o Crático platônico]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 27-37).

 

16

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

68 – Linguagem (teoria da), segundo os sofistas.

 

Guthrie leciona:

 

O uso correto da linguagem em geral.

 

[Para as technai escritas veja Platão, Fedr. 271c hoi nyn graphontes... technas logon e 266d. Isócrates, In Soph. 19, fala "daqueles de uma primeira geração" que escreveram tas kaloumenas technas. A orthoepeia de Protágoras é mencionada no mesmo contexto por Platão (267c; v. p. 192, n. 58, abaixo), e a lista de suas obras em D. L. inclui techne epistikon. Segundo Platão (Soph. 232d) ele publicou séries de argumentos para capacitar o homem a sustentar o seu próprio ponto de vista contra peritos em diversas artes e capacidades. Ele também escreveu sobre gramática. Para Górgias veja Platão, Fedr. 261b-c. Ele technas rhetorikas protos exeure, Diod. 12. 53. 2 (DK, A4). D. L. 8.59 fala dele como hyperechonta en rhetorike kai technen apoleloipota, e Quint. 3.1.8 (A 14) coloca-o entre os artium scriptores. Trasímaco escreveu uma techne retórica (Suda, Ai) que parece ter sido conhecida como a Megale Techne (B 3). Para algo de seu conteúdo veja Fedr. 276c com DK, B 6. Pródico e Hípias também são mencionados na recensão de Platão dos bíblia ta peri logon technes gegrammena (Fedr. 266d ss), e a perícia de Hípias nas minúcias do discurso em Hip. Min. 368d. A paixão de Pródico de distinguir entre sinônimos aparentes é referida com frequência por Platão, por ex., Prot. 337c, Eutid. 277c (peri onomaton orthotetos), Laches 197d (onomata diairein). Mais sobre isto, abaixo, pp. 207s]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 46).

 

Kerferd ensina:

 

A teoria da linguística foi discutida pelos sofistas sob o título de "dicção correta", orthoepeia, e "correção das palavras e nomes", orthotês onomatôn. Um tratado sobre Orthoepeia consta da lista de obras de Demócrito, e o tema teria sido discutido por Protágoras (DK 80A26). Onomatôn orthotês também teria sido discutido por Protágoras e por Pródicos. pias se interessava pela correção das letras, o que talvez se refira à correção das formas escritas das palavras (DK86A12) [Osório diz: Hípias era advogado? Daí... Conferir]. Platão, no Crátilo (391b), introduz sua própria discussão do problema da "correção dos nomes" com a declaração de que a melhor maneira de começar essa investigação é recorrendo à ajuda daqueles que sabem, e esses são os sofistas, patrocinados por Cálias, que gastou muito dinheiro neles, e assim adquiriu, ele mesmo, a reputação de sabedoria.

É claro, então, que o tópico "correção dos nomes" era como que um tema corrente nas discussões sofistas e é, como veremos, o assunto de todo um diálogo de Platão, o Crátilo. O que, podemos perguntar, o tópico envolve? Envolve, antes de tudo, detalhada discussão das palavras individualmente; e Xenofonte nos conta como, certa ocasião, num banquete, a conversa recaiu sobre nomes e a função específica de cada nome em separado (Mem. III, 14.2). Tais discussões, contudo, também envolviam o estabelecimento de categorias gramaticais de várias espécies. Assim, segundo um relato, Protágoras teria sido o primeiro a dividir o discurso (logos) em desejo, questão, resposta e ordem; segundo outro, em narração, questão, resposta, ordem, narrativa indireta, desejo e apelos; ao passo que o sofista Alcidamas propunha uma classificação diferente, em quatro divisões: asserção, negação, questão e discurso (DK 80A1, parágrafos 53-54). Além disso, Protágoras distinguia os três gêneros dos nomes como masculino, feminino e os que se referem a objetos inanimados (DK80A27).

Ao esboçar essas distinções, Protágoras não estava meramente tentando analisar e descrever o uso corrente do grego; seu objetivo era corrigir esse uso e, para isso, ele estava pronto a recomendar medidas drásticas. Assim, os gêneros gramaticais deveriam ser revistos como parte de um processo de correção da linguagem. As palavras gregas para "cólera", Mênis, e "elmo", Péléx, que são, de fato, femininas, deveriam ser corrigidas para o gênero masculino. Supõem, alguns, que o motivo disso é porque "cólera" e "elmo" não são palavras de caráter naturalmente "feminino", estando especialmente associadas ao sexo masculino, enquanto outros supõem que Protágoras estava simplesmente tentando racionalizar o uso com base na morfologia — nesse caso, o final das palavras. Ambos os critérios, o de consistência morfológica e o de consistência com o gênero natural, encontram-se na passagem satírica de As nuvens, de Aristófanes, que tem uma clara referência à doutrina da "correção dos nomes" (DK 80C3), e parece provável que ambas as considerações foram usadas pelo próprio Protágoras. A favor da opinião de que foram principalmente as considerações formais que influenciaram Protágoras, pode-se citar a afirmação de Diógenes Laércio (IX, 52 = DK 80A1) que Protágoras, ao argumentar, deixava de lado a Dianoia (no sentido do significado de uma palavra) a fim de se concentrar só no nome. Mas, infelizmente, a interpretação dessa afirmação é muito duvidosa. Uma segunda prova seria de caráter mais definido, se ao menos pudéssemos aceitá-la como bem fundada. Infelizmente, creio que não se pode aceitá-la como tal, mas cedo à tentação de incluí-la porque é interessante. Refiro-me, aqui, à fascinante teoria de Italo Lana.

De acordo com essa teoria, poderíamos realmente ter um exemplo da aplicação que faz Protágoras de sua própria teoria ao encontrarmos a única forma dynamia em lugar da normal dynamis ("força") em dois dos manuscritos com o texto do Proêmio das Leis de Charondas. Numa hipótese audaciosa, Lana sugere, primeiro, que essas leis foram revistas por Protágoras, quando foi convocado por Péricles para providenciar uma constituição para a nova colônia de Turói, por volta de 443 a.C.; e, segundo, que Protágoras aproveitou a oportunidade para alterar dynamis, forma que, a seu ver, devia ser tratada como masculina, para a forma, que não ocorre em nenhum outro lugar na Grécia, a saber, dynamia, com a apropriada terminação feminina em -a. A progressão de hipótese para hipótese infelizmente torna essa especulação difícil de aceitar. Mas se a especulação é moderna apenas, pode ser aceita como bene trovata!

A situação é um pouco mais clara quando nos voltamos para Pródicos. Ele era famoso, em toda a Antiguidade, pelo seu estudo de sinônimos, que deve seguramente ter figurado na sua preleção Sobre a correção dos nomes. A discussão dos sinônimos era considerada um aspecto distintivo de todo o seu ensino e de suas preleções. O aspecto mais notável de seu estudo das palavras era a maneira pela qual distinguia os sentidos de conjuntos de palavras — mais comumente duas, mas às vezes três ou mais —, todas elas de sentido muito semelhante. Isso pode ser ilustrado melhor com um exemplo de sua arte, fornecido por Platão no Protágoras (337a-c = DK 84A13):

 

Os que frequentam discussões desse tipo devem ouvir ambos os oradores imparcialmente, mas não igualmente. Pois há uma diferença: deveríamos ouvir ambos com imparcialidade, contudo não dar igual atenção a cada um e, sim, mais ao mais sábio e menos ao menos instruído. De minha parte, Protágoras e Sócrates, peco-vos que concordem com meu pedido de disputar, não brigar, um com o outro, por causa dos vossos argumentos: pois amigos disputam com amigos em espírito de boa vontade, ao passo que briga é entre es que estão em desacordo e em estado de inimizade um com o outro. Dessa forma, nossa reunião será o maior sucesso, visto que vós, os oradores, ganharão, assim, a maior estima, mas não louvor, de nós que vos ouvimos. Pois estima está presente no âmago das almas dos ouvintes, sendo algo genuíno e livre de engano, mas louvor se encontra frequentemente na linguagem daqueles que falam ao contrário de sua real opinião. E nós, que ouvimos, teríamos, assim, a maior alegria, mas não prazer. Pois o homem obtém alegria quando aprende alguma coisa e ganha uma cota de compreensão puramente em seu espírito, ao passo que tem prazer quem come algo ou tem alguma outra experiência corporal prazerosa. [Osório diz: diferença entre disputa e briga].

Essa passagem deixa evidente a possível aplicação retórica da técnica de Pródicos. Mas é claro que ele não queria que suas distinções entre palavras fossem meramente arbitrárias — seu objetivo era relacionar cada nome, ou onoma, a uma determinada coisa, e a nenhuma outra, exatamente como o nome de uma pessoa é o nome dessa determinada pessoa e de nenhuma outra (cf. DK 84A19), na crença de que é valioso e importante usar somente o nome certo em cada caso. Mas os exemplos dados na passagem do Protágoras deixam evidente que onoma, ou nome, era usado para palavras em geral, não simplesmente para o que hoje chamamos de nomes. Seus exemplos são, na maioria, compostos de verbos e adjetivos. Na verdade, todas as partes de uma sentença, e até uma sentença inteira, são tratadas como um nome, ou onoma, no Crátilo, de Platão. Mas um nome, para ser um nome, precisa ser o nome de alguma coisa. A coisa que é nomeada é considerada o significado do nome em questão. Daí se segue que um nome que não é o nome de coisa alguma não é um nome no sentido real do termo, e não tem, necessariamente, nenhum sentido. Assim, no Eutidemo (283e9-286b6), de Platão, é dito que o que uma sentença ou logos afirma é aquilo a que se refere a sentença. A cada segmento da realidade pertence exatamente um logos e a cada logos corresponde exatamente um segmento distinto da realidade.

As consequências dessa maneira de ver as palavras são, contudo, paradoxais, e os paradoxos assim gerados fornecem matéria para uma considerável parte da história da filosofia grega em ambos os períodos, arcaico e clássico. Primeiro, priva de sentido toda declaração manifestamente negativa, visto que o que não é não pode ser nomeado, e isso leva à doutrina que não se pode contradizer — ouk estin antilegein — discutida abaixo (pp. 151ss) [Osório diz: em algum canto eu, Osório, disse que Parmênides leva a Protágoras quanto a tal doutrina]. Segundo, há uma dificuldade mais ou menos crucial que tem de ser enfrentada no caso de todas as expressões que envolvem qualquer grau de negação. Sentimo-nos obrigados a dizer que muitas declarações incluindo vários tipos de negação são, de fato, verdadeiras. Mas, nesse caso, o que é que eles querem dizer com a sua concepção do significado resumida acima? Heráclito estava pronto a rejeitar muito do que as pessoas sem conhecimento ordinariamente declaram ser fato. Mas ele mantinha que seu próprio logos, ou explicação, também era uma explicação correta da estrutura da realidade. Mas essa explicação correta era, para ele, uma explicação de estados de coisas que são contraditórias — o mundo aparente ao qual se refere a linguagem se acha cheio de contradições objetivas. [Osório diz: por que é impossível a contradição! A melhor explicação que encontrei!].

Para Parmênides, contudo, essa visão não era aceitável. Pois um mundo que está cheio de contradições objetivas está cheio de negações e, portanto, de não-mundos. Semelhante concepção não pode ser nem pensada nem falada. Por conseguinte, um mundo assim descrito não pode, absolutamente, ser real. Foi isso que levou Parmênides a separar o mundo das aparências do mundo do ser, ao tratar o primeiro dos dois como nada mais do que uma peça de ficção. "Pois nada é ou será, além daquilo que é, visto que o Destino o restringiu a ser inteiro e isento de mudança. Por isso, tudo o que os mortais postularam na crença de que era verdadeiro será nome apenas, vindo a ser e perecendo, ser e não ser, mudança de lugar e intercâmbio de luminosa cor" (DK28B8.36-41). [Osório diz: as razões de Parmênides!]

O contraste entre a posição de Heráclito e a de Parmênides foi claramente estabelecido por volta da metade do século V a.C. e forneceu o ponto de partida para discussões sofistas da teoria linguística. O próprio Parmênides, contudo, não teve seguidores, entre os sofistas, quando quis negar a realidade do mundo fenomenal. Para eles, o ponto de partida era o próprio mundo fenomenal, regularmente visto como constituindo a realidade toda e, conseqüentemente, como sendo o único objeto possível de cognição. Às vezes era considerado sujeito a contínua mudança. Esse era sabidamente ocaso do Crátilo Heracliteano (cf. DK 65.3). Segundo Sexto Empírico (DK 80A14), Protágoras tinha realmente descrito o mundo físico como em estado de fluxo, com emissões continuamente substituídas por acréscimos que recuperavam o que era perdido. Platão equiparava Protágoras a Eutidemo e considerava que ambos defendiam teorias que excluem a possibilidade de que as coisas tenham algum ser fixo próprio; em vez disso, pretendem que as coisas sejam arrastadas "para cima e para baixo" ao aparecer para nós (Crat. 386c-e, não em DK) [Osório diz: isso não é o fenômeno de Kant e Hurssel?]. Em Teeteto ele atribui a Protágoras uma doutrina "secreta" de percepção com implicações semelhantes. Embora o atributo "secreto" provavelmente signifique que essa doutrina nunca foi expressa por escrito pelo Protágoras histórico, a doutrina pode, contudo, representar bem o que Platão considerava a implicação natural das conhecidas concepções de Protágoras. Górgias andou um pouco na mesma direção, explicando a percepção dos objetos físicos da mesma maneira que Empédocles, a saber, postulando contínuas emanações de objetos que entram ou deixam de entrar nos vários poros do corpo (DK82B4). Platão, no Fédon, como já vimos, atribuiu aos antilogikoi e aos sofistas em geral a concepção de que todas as coisas que existem movem-se para cirna e para baixo, como se estivessem no Euripos, e nunca permanecem em repouso, em lugar nenhum, por qualquer período de tempo [90c4-6). [Osório diz: por que os sofistas não viam possibilidade de fazer ciência].

Mais importantes, contudo, eram as consequências do relativismo sofista (discutido abaixo, no capítulo 9), que era, na maioria das vezes, associado a uma forma de fenomenismo segundo a qual todas as aparências são igualmente verdadeiras (ou pelo menos igualmente válidas como cognições). Vendo desse modo o mundo real, embora permanecendo, ao mesmo tempo, totalmente comprometidos com a concepção de que as palavras devem nomear exatamente as coisas às quais se referem, senão não têm significação, os sofistas adotaram dois expedientes. A linguagem, como um todo, deve prover fórmulas para exibir a realidade, e a estrutura da linguagem deve exibir a estrutura das coisas. Mas o mundo da experiência é caracterizado pelo fato de que todas as coisas nele, ou a maioria delas, ao mesmo tempo são e não são. Portanto, a linguagem também deve exibir a mesma estrutura. Isso ela deve fazer dando expressão a dois logoi opostos concernentes a todas as coisas. Mas isso, por si mesmo, não é suficiente. Ficamos com o problema da negação que corre o grave perigo de se tornar algo totalmente sem sentido, a menos que se encontre algum objeto que lhe possa servir de referência [Osório diz: por que da necessidade dos duplos discursos].

Esse problema foi atacado de duas maneiras diferentes, vistas como alternativas mutuamente excludentes, ou usadas para suplementar uma à outra. A primeira era corrigir a linguagem renunciando às sentenças negativas. Daí as famosas afirmações vinculadas: que não é possível contradizer, e que é impossível dizer o que é o falso. Isso restringiria a linguagem a afirmações positivas verdadeiras a respeito do mundo fenomenal. Mas sustentar que todas as afirmações são de igual valor não seria muito satisfatório, no mínimo porque privaria o sofista de sua reivindicação de maior sabedoria. De modo que se considerou um segundo artifício segundo o qual, entre logoi opostos, um logos na estrutura das coisas era superior, mais correto do que o outro, e esse constituía o orthos logos. Essa situação havia de ser repetida no discurso e na argumentação em que, de novo, um logos ou era, ou teria de se fazer ver como mais correto e mais forte do que o outro. [Osório diz: explicação da necessidade do argumento forte e argumento fraco!].

A arte de fazer um logos superior a outro estava especialmente associada a Protágoras, ao passo que a busca do onomatôn orthotôs, ou correção dos nomes, estava acima de tudo associada a Pródicos. Constituía uma segunda maneira pela qual a linguagem haveria de ser corrigida para ser posta de acordo com a estrutura da realidade percebida. A importância dessa tentativa na história da filosofia é considerável — representa o primeiro passo na busca daquilo que, nos tempos modernos, tende a se denominar linguagem única, a chamada linguagem filosófica, a linguagem primordial ou atômica, a linguagem "corrigida" do lógico, o ideal que inspirou, entre outros, o primeiro Wittgenstein nas suas tentativas de restringir e delimitar o uso da linguagem significativa à que descreve o mundo, e a qual, na sua própria estrutura, refletirá a estrutura da realidade. Mas as tentativas modernas visam principalmente a reformar a estrutura da linguagem em relação à suposta estrutura (lógica) da realidade. O pensamento, no século V a.C., não estava interessado, em primeiro lugar, na estrutura lógica, mas em buscar uma relação uma-a-uma entre coisas e nomes, tendo por base que o sentido de qualquer nome deve ser sempre a coisa ou coisas a que se refere. [Osório diz: cada coisa um nome? Vide parágrafo seguinte].

Contudo, mesmo assim a correção envolvida poderia ser extremamente radical e o Crátilo, de Platão, se abre com a notável afirmação atribuída a Crátilo, segundo a qual (383a-b) "Cada coisa tem um nome correto próprio seu, que vem por natureza; e um nome não é o que quer que as pessoas chamem uma coisa por convenção, meramente algo de sua própria voz aplicada à coisa, mas há, nos nomes, uma espécie de correção estabelecida, que é igual para todos os homens, tanto gregos como bárbaros". Isso nos introduz ao ideal de uma única língua natural e, acima de tudo, universal que, idealmente, poderia substituir todas as línguas existentes.

O método de procedimento de Pródicos não estava limitado a ele — segundo Platão (DK 84A17), ele o obteve de Damon e dele partilhavam também outros sofistas. O método consistia em Diaeresis ou Divisão dos nomes e assim é regularmente rotulado por Platão e, depois dele, por Aristóteles. Podemos dizer que seu método normal consistia, como argumentou Classen, em pôr dois nomes um contra o outro a fim de abstrair deles o sentido básico que partilham e descobrir as sutilezas de sentido em que diferem. Mas as palavras não são definidas individualmente — ele não está perguntando "o que é x?", mas "em que aspecto x é diferente de y?" Isso serve para distinguir a sua abordagem da de Sócrates, do qual, no entanto, ele continua sendo o precursor em todos os pontos essenciais. Sócrates pergunta simplesmente “o que é x?”. Mas não há por que tentar descobrir uma outra diferença, sugerindo que Pródicos está interessado no sentido próprio das palavras, ao passo que Sócrates está interessado na coisa real. Como vimos, para ambos, o significado de uma palavra consiste naquilo a que ela se refere, e a visão correta foi expressa por Classen, quando diz que ao descrever qualquer objeto, ou uma dada situação, Pródicos observará: essa palavra é apropriada, ao passo que aquela, embora quase equivalente e idêntica quanto ao sentido, não é. Sócrates vai pelo mesmo caminho, exceto que, quando indaga o que é x, o onoma ou nome que está investigando não é usualmente uma única palavra, mas antes uma fórmula consistindo em uma série de palavras, um logos ou uma definição.

O subtítulo do diálogo de Platão, Cráticlo, é Sobre a correção das palavras. Por muito tempo essa foi considerada uma obra de interesse mais limitado, atitude tipificada por H. N. Fowler, na introdução da sua tradução do diálogo, na série Loeb, em 1926, onde lemos: "Não se pode dizer que o Crátilo seja de grande importância no desenvolvimento do sistema platônico, pois trata de um assunto especializado [a origem das palavras], um tanto quanto à parte da teoria geral da filosofia". Há como que uma revolução em curso, desde mais ou menos 1955, na interpretação erudita do diálogo, contudo, e provavelmente são poucos os que procurariam, hoje, negar a fundamental importância dos temas nele discutidos. O assunto do diálogo não é a origem da linguagem, mas sim a questão da possibilidade dos nomes serem corretos. O ponto de partiria de Platão é, como quase sempre, uma questão suscitada pelas especulações sofistas. O diálogo se abre com Hermógenes, irmão de Cálias, famoso patrono dos sofistas, expondo brevemente a posição de Crátilo, o Heracliteano, segundo o qual há uma natural correção nos nomes, a mesma para todos, gregos e bárbaros, após o que ele expõe a sua própria opinião: a única verdade dos nomes depende do acordo das pessoas ao designar, em dado momento, o nome de uma coisa. [Osório diz: na Amazônia, o boto, que era vermelho, veio a transformar-se em cor-de-rosa!]

Sócrates apoia, pelo menos nesse estágio, a teoria da correção natural e sugere (391b-e) que a melhor maneira de investigar a questão seria perguntar àqueles que sabem, isto é, aos sofistas. Mas como Hermógenes não domina bem a sua herança, e não é capaz de responder, o que poderia fazer era pedir a seu irmão que lhe ensinasse a doutrina da correção nos casos que aprendera com Protágoras. Hermógenes se recusa, alegando que seria absurdo fazer tal pedido, visto que rejeita a Verdade de Protágoras e, por isso, não poderia considerar de qualquer valor o que é dito nesse tipo de "Verdade". Sócrates, então, diz que Hermógenes deveria ler Homero e os outros poetas, nos quais a doutrina segundo a qual os deuses usavam, para as coisas, nomes diferentes dos usados pelos homens mortais é clara prova de uma crença em nomes que são naturalmente corretos. Isso nos fornece razões suficientes para concluir que em sua obra Sobre a Verdade Protágoras tinha de fato discutido a correção dos nomes, e a maneira natural de ler a passagem é supondo que o próprio Protágoras, em certo sentido e em certo grau, tinha expressado a crença na doutrina da correção natural.

Isso concorda com o testemunho, citado anteriormente, de sua crença de que havia usos certos e errados para de determinadas palavras. No mito que se encontra no Protágoras (322a3ss), nos é dito como a humanidade procedeu a uma distribuição articulada de vozes e nomes, e isso sugere que o processo envolvia algum tipo de diaeresis de nomes. O fato de a discussão, na qual Sócrates se refere a Hermógenes, ocorrer no tratado A Verdade sugere que a doutrina da correção dos nomes pode ter sido desenvolvida por Protágoras em relação com a doutrina de tornar um logos mais correto (orthos) do que o outro logos ao qual era oposto; mas, na ausência de detalhes só podemos especular como é que tudo isso se encaixava.

No restante do diálogo, isto é, naturalmente, na parte principal, Sócrates procede a um extenso exame, primeiro da tese de Hermógenes de que a correção das palavras depende simplesmente do acordo dos usuários sobre quais nomes devem ser aceitos como corretos e, depois, da tese de Crátilo, segundo a qual há uma base natural para a sua correção. Sócrates argumenta, de ponta a ponta, que a correção dos nomes procede de sua função de indicar a natureza das coisas nomeadas (ver, p. ex., 422dl-2), e supõe que fazem isso mediante um processo de imitação da coisa em questão. Mas as coisas que encontramos em nossa experiência são, do ponto de vista cognitivo, inconsistentes, porque sempre são e não são ao mesmo tempo. Isso as torna incapazes de corresponder plenamente aos nomes que usamos num discurso significativo — problema que já havia sido apresentado por Parmênides. A solução de Platão, contudo, não foi nem renunciar à linguagem, nem abandonar de vez o mundo da experiência mas, antes, a invenção de um "Terceiro Mundo" o das Formas platônicas. Essas Formas são como que deliberadamente imaginadas para satisfazer os requisitos de serem objetos de referência e significado linguísticos satisfatórios. Mas, embora de certa maneira possam ser descritas como deliberadamente imaginadas, em outro sentido, naturalmente, isso é falso — para Platão são entidades reais, os constituintes definitivos da realidade. [Osório diz: Platão e sua auto-ilusão! Mas com ela carrega muitos!].

As Formas platônicas foram assim destinadas a servir de referentes fundamentais para os nomes. Objetos perceptíveis, em relação aos quais esses mesmos nomes tendem a ser usados na fala cotidiana sobre o mundo, constituem uma espécie de esfera de referência derivada ou secundária. A introdução dessa distinção entre referentes primários e secundários tem sido corretamente vista como um primeiro passo na direção de uma distinção entre significação e referência. Uma das dificuldades com que se defronta a teoria da significação referencial, que propunha a relação um-a-um entre nomes e objetos fenomenais, era, como já vimos, que um nome para o qual não havia nenhum objeto correspondente a ser encontrado no mundo fenomenal poderia não ter sentido algum, porque não havia nada a que ele estaria de fato se referindo. Se pudermos dizer que a palavra possui sentido independentemente de ser ou não, de fato, usada para se referir a alguma coisa, então poderemos dizer que o problema está resolvido, ou, pelo menos, que está reduzido a proporções mais tratáveis. Foi exatamente isso que os estoicos realizaram, parcialmente, com a sua doutrina do lekta imaterial associado, como significações, a palavras e pensamentos, em um mundo no qual os únicos objetos reais eram todos materiais e corpóreos.

Mas não é provável que Platão tenha chegado até aí. Ele permaneceu sempre comprometido, ao que parece, com uma teoria da significação puramente referencial. O Crátilo conclui com a afirmação de que, embora possam ser dados e, portanto, possam ser atribuídos por uma espécie de acordo, os nomes somente serão corretamente dados por aqueles que têm um conhecimento direto da realidade imutável, isto é, do mundo das Formas, e que compõem os nomes de tal maneira que são semelhantes às coisas nomeadas e são imagens delas. Esta é a contribuição de Platão para o problema que herdou dos sofistas. Ele resolveu o problema da linguagem correta alterando a realidade para se ajustar às necessidades da linguagem, em vez de fazer o inverso. [Osório diz: mais um dos furos de Platão!].

 

[Osório diz: Aristóteles, contudo, detona/destrói a tese de Platão ao dizer:

 

Não há semelhança <entre nomes e coisas>. Pois, por um lado, os nomes e a pluralidade das definições são em número limitado, mas, por outro, as coisas são em número ilimitado. Então é necessário que um mesmo nome e uma mesma definição signifiquem muitas <coisas>.” (Aristóteles, Refutações Sofísticas, 165 a 10-13). (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 119-134).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

67 – Inveja, segundo os sofistas.

 

Nos informa Guthrie:

 

Há, disse Hípias, dois tipos de inveja, uma certa e outra errada. É certo sentir inveja quando as honras vão para os homens maus, e errado quando vão para os bons. De mais a mais, os invejosos têm dupla porção de sofrimento: são molestados, como todos os homens, por seus próprios sofrimentos, mas também pela boa sorte dos outros.” (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 264).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

66.2 – Igualdade social, vista pela Sofística.

 

Nos diz Guthrier:

 

O espírito de igualitarismo levou a questionar as distinções baseadas não só em riqueza, mas também em nascimento e razão, e até mesmo a distinção entre patrão e escravo, que até então parecera à maioria dos gregos natural e fundamental. [Osório diz: questionamento à aristocracia/Platão].

Antífon, o opositor do nomos em todas as suas formas, expressou seu desafio ao nascimento nobre e à raça em importante parágrafo que até o momento não apareceu no nosso sumário dos fragmentos de papiro. É o seguinte:

 

Os filhos de pais nobres nós os respeitamos e consideramos, mas os filhos de lares humildes nem respeitamos nem consideramos. Nisso nos comportamos uns para com os outros como bárbaros, pois por natureza todos fomos feitos para sermos iguais em todos os aspectos, bárbaros e gregos. Pode-se vê-lo das necessidades que todos os homens têm. [A elas se pode satisfazer da mesma forma por todos os homens, e em tudo isso] nenhum de nós está marcado como bárbaro ou grego; pois todos nós respiramos o ar com nossa boca e nossas narinas [comemos com nossas mãos?]... [Osório diz: Antifonte o anti Platão]

 

[Barbaroi significa estritamente todos os povos de fala não-grega, e usa-se com frequência para fazer esta distinção de fato sem nenhuma implicação pejorativa. Todavia os gregos tinham forte senso de sua superioridade com respeito aos outros homens, e com mais frequência se destacava a implicação pejorativa. No discurso comum, a palavra portava imputação de ignorância, estupidez, ou falta de senso moral. É um insulto quando Tindareu diz a Menelau (Eur. Or. 485) bebarbarosai, chronios on en barbarois.[Osório diz: Bárbaro – Dicionário].

 

Se a lógica desta passagem parece estranha ("Damos grande atenção a nascimento nobre, mas isso é comportar-se como bárbaros, pois (epei) na realidade não ha nenhuma diferença entre bárbaros e gregos"), pode ser devido ao estado fragmentário do texto [E sem dúvida também a uma busca sofística de efeito retórico por meio do duplo significado (fatual e pejorativo) de bárbaros. A argumentação inteira pode ter sido mais ou menos assim: "Damos demasiada atenção a raça de um homem ou, dentro de nossa própria raça, a sua descendência. Chamamos o resto da humanidade de barbaroi, e usamos o termo para dizer ignorantes ou sem civilização; e ao mesmo tempo respeitamos ou desprezamos as pessoas segundo sua ascendência. Se bárbaros significa estúpido, não somos os reais barbaroi aqui? De fato não existe nenhuma diferença de natureza entre gregos e não-gregos. Todos os homens são o mesmo na base, tendo as mesmas necessidades e meios de satisfazê-las. Também não existe diferença essencial entre nascidos nobres e nascidos pobres".[Osório diz: Bárbaro – Dicionário]], mas ao menos a mensagem de Antifon é clara, que na natureza não há nenhuma distinção essencial entre nascimento nobre e baixo nem entre diferentes raças. [Osório diz: Antifonte o anti Platão]

Outro que pela mesma época ou um pouco mais tarde (há muita incerteza acerca da data) censurou as distinções baseadas em nascimento foi o sofista Licófron. Sabemo-Io por Aristóteles:

 

E coisa preciosa e boa, ou, como Licofron, o Sofista, escreveu, algo inteiramente inútil? Comparando-o com outros bens, ele diz que seu esplendor não é aparente, e sua dignidade está em palavras, sustentando que preferi-lo é questão de opinião, já que na verdade nenhuma diferença há entre nascimento pobre e nascimento nobre.

 

Semelhantes sentimentos acerca do nascimento nobre estão freqüentemente nos lábios de personagens de Eurípedes. [Osório diz: um dedicado aluno dos sofistas]

[No interesse da precisão, deve-se dizer que no prólogo o camponês se proclama descendente de linha nobre, que desceu ao mundo, mas como ele diz: "a pobreza elimina a nobreza",e em vista das [p. 144] observações de Orestes parece que pouco alcance se dá ao fato. Na Grécia, também nos tempos de Eurípedes, linhagem nobre e posse material ainda se associavam mais do que entre nós (Nestle, Euripides, 323), e a inutilidade da primeira sem a segunda frisa-se alhures em Eurípedes (fr. 22, 95, 326). Para sua atitude para com o dinheiro em geral, v. Nestle, Eur. 334ss. Que a pobreza não precise destruir a nobreza de caráter repete-se num fragmento do seu Arquelau (fr. 232). Mas nunca se deve esquecer que estas linhas são faladas por personagem. O fr. 235 expressa total desprezo por riqueza, mas o fr. 248 parece ultrajar a pobreza, e todos os três fragmentos são da mesma peça. [Osório diz: de personagens com visões diversas?]].

Reflexões como estas (367ss): “Sobre virtude varonil nada é claro, pois há confusões na natureza dos homens. Vi filho sem valor de nobre pai, e filhos justos nascidos dos indignos, pobreza de sagacidade num homem rico e grande mente no corpo de homem pobre”. Mais franca é uma personagem não-identificada em Dictys (fr. 336): “De nascimento nobre tenho pouco bem a falar. A meus olhos, o homem bom é o nobre, e o injusto é o de nascimento pobre ainda que seu pai seja maior que Zeus”. Estão de acordo com isso diversas passagens sobre bastardia que insistem que o bastardo é por natureza igual ao legítimo, e apenas inferior pelo nomos, ou pelo nome [Que os bem-nascidos são os virtuosos foi afirmado, diz-se, por Antístenes (DL, 6.10) (Androm. 638, fr. 141, 168,377.).[Osório diz: nesta afirmação ele é sofista ou socrático?]]. O tema de Alexander (o príncipe Príamo disfarçado como pastor escravo) deu a Eurípides a oportunidade de levantar as questões do nascimento e da escravidão de ambos os lados. Sobre o nascimento o coro canta (fr. 52): [Osório diz: os sofistas estavam adiantados no tempo / Péricles e outros, traíram sua classe (aristocracia)]

 

Iremos longe demais se elogiármos o nascimento nobre entre os mortais. Quando, há muito tempo, a raça humana nasceu, e a Terra nossa mãe os produziu, a terra gerou-os a todos para parecerem iguais. Não temos nenhum traço peculiar, nascidos nobres e nascidos pobres são do mesmo material, mas com o passar do tempo o nomos fez do nascimento uma questão de orgulho. [Osório diz: unificar o nome de Eurípides ou Eurípedes?]

 

A obscuridade e a confusão que Eurípedes e Licofron viram neste tópico eram demasiado naturais [Osório diz: natural para quem?] numa época em que a divisão aristocrata-homem do povo absolutamente não coincidiam com a divisão política oligarco-democrata [Osório diz: mas isso era o germe e já percebido por alguns, certamente. Platão apenas desenvolve, ou ele criou? Se ele criou foi ele pior do que eu o tenho como tal]. "Toda a evolução mostra que até o fim do sec. V em Atenas a nobreza formou um poder que podia tornar sua influência fortemente sentida tanto do lado da constituição democrática como também, as vezes, em veemente oposição a ela". 19 Para Eurípedes, o teste é moral. Não mais nobre e bom, nascido pobre e mau, podem ser termos intercambiáveis como o foram para Teógnis, cujas palavras são obviamente a datadas para um sentido moral nas linhas: "Nobreza não se associa com o mal, mas com o bem" (Alex. Fr. 53).” (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 143-145).

5

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

66.1 – Igualdade racial, vista pela Sofística.

 

Nos diz Guthrier:

 

Platão, que só admitiria a escravização de bárbaros (República 469b-c) [Platão defendeu a escravidão até o fim de sua vida, nas Leis e também na República. … A passagem em Politicus (262c-e) onde apresenta gregos e bárbaros como exemplo de classificação falha, porque uma raça não-grega difere de outra tanto quanto ambas da grega, tem sido citado como prova de mudança temporária de ideia (Schlaifer, op. cit. 98). Talvez seja duvidoso que a ilustração queira ter mais que sentido lógico formal. Apesar de Skemp ad lac., é difícil ajustar "sarcasmo mordente" aí na visão geral de Platão, que durou até as Leis, e a observação de Platão não envolve negação necessária que todas as diversas raças bárbaras sejam sob certos aspectos inferiores à grega. Vale notar, porém, que em Fedo (78a) ele recomenda buscar não só a totalidade da Grécia mas também todas as nações bárbaras para encontrar uma cura para o medo da morte.] [Osório diz: foi escrito por Platão o autor, Guthrie, quer justificar tudo!]… o tratado hipocrático do séc. V sobre Ares, águas e lugares, faz registro detalhado dos efeitos do clima sobre o caráter e o intelecto como também o físico. As condições na Ásia Menor produz pessoas de bom físico, mas amantes do prazer e carentes de coragem e diligência, os habitantes dos pântanos quentes da região dos Fásis são gordos, lerdos e desaparelhados para o trabalho, e assim por diante. Os gregos, vivendo numa posição geográfica intermediária, possuem inteligência e coragem, que fazem deles uma raça natural de senhores. [Osório diz: no mundo atual, os países ditos desenvolvidos são aqueles de clima frio!].

Distinções de raciais são não-naturais, existentes apenas por nomos, o último esteio teórico da escravidão foi removido, e esta afirmação, como vimos, já fora feita por Antífon [Osório diz: um sofista!].

Num fragmento de Eurípedes (902) encontramos: "o homem bom [em alguns documentos "sábio"], ainda que viva numa terra distante, ainda que meus olhos nunca o encontrem, estimo ser meu amigo", e parece ter sido uma expressão proverbial visando dizer que a terra natal de homem bom era o mundo inteiro.

É importante distinguir entre pan-helenismo e cosmopolitismo mais amplo que abarcava os bárbaros. As relações entre as cidades-Estado gregas eram paradoxais. Independentes e invejosas, guerreavam continuamente entre si, todavia o senso da unidade helênica era forte, e fomentado pelos grandes festivais pan-helênicos em Olímpia, Delfos e o Istmo, pelos quais se afastavam temporariamente querelas e se proclamava uma trégua sagrada. Nestes tempos os laços de uma linguagem comum (mesmo se dividido em dialetos), religião e cultura (tipificada pelos poemas homéricos) superavam as diferenças entre os Estados. [Osório diz: fatores que davam unidade aos gregos para se sentirem tal: linguagem comum, religião e cultura (poemas homéricos)]

Hípias no Protágoras (337c) chama todos os gregos companheiros dos diversos Estados, de “meus parentes e minha família, meus conterrâneos – por natureza, e não por nomos, pois semelhante por natureza é parente e de que se deve gostar, mas o nomos, tirano da humanidade, viola de muitas formas a natureza”. [Osório diz: mesmo que os sofistas não fossem universalistas (cosmopolitas) eles lutavam pela igualdade racial entre os gregos, o que já era algo fundamental e, lembremos, alguém tem que iniciar as conquistas de direitos].

Seria, pois, escandaloso se eles, os mais sábios dos gregos, se desaviessem entre si [Osório diz: os sofistas?!]. Quanto a isso, diferiram as opiniões sobre a questão se está pregando a unidade do gênero humano ou somente dos gregos, ou na verdade dos filósofos, pois pode perfeitamente ser estes que tem em mente ao chamar de "naturalmente semelhantes" (homoioi). 38 [Osório diz: o pensamento dito racional estava nascendo. Era início. Tinham, assim, que começar pela própria casa! No caso, a Grécia. As cidades eram independentes (Estados), portanto, dever-se-ia buscar a unidade entre elas, inicialmente, para depois partir para o mundo. Por fim, Górgias e outros eram estrangeiro e, nessa condição, certamente, não quereria ficar de fora da igualdade].

Sócrates de Platão em Rep. 470c quando ele diz que a raça grega “é uma família e um parentesco”, mas imediatamente acrescenta que gregos e bárbaros não são só estranhos, mas também inimigos naturais. [Osório diz: que beleza! Esse é o homem perfeito!]

Embora nosso conhecimento infelizmente seja escasso, seria estranho se a crença em leis "naturais" universais de comportamento humano não fossem acompanhadas da convicção de que a razão humana é fundamentalmente aparentada. A ideia da igualdade básica do gênero humano estava firmemente enraizada em teoria antropológica. Uma vez que todos os homens vieram originalmente da terra, um subproduto da fermentação de lodo e barro, a natureza não deu a ninguém o direito de se gabar de ter nascido de material melhor do que o dos outros. Esta espécie de distinção apareceu em cena somente mais tarde como produto do nomos. Esta base antropológica para a antítese nomos-physis significa que sua justificação da igualdade é universal, e é razoável supor que um homem, com alguma pretensão a filosofia que achou pertinente a distinção, a tenha aplicado a todos - os de nascimento pobre e os de nascimento nobre, os escravos e os senhores, os atenienses e espartanos, os gregos e os não-gregos.” [Osório diz: aqui Guthrie arrasa Platão e Aristóteles!]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 150-153).

 

4

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

66 – Os sofistas e a igualdade política (isonomia) entre os homens.

 

Doutrina Guthrie:

 

No séc. V, a democracia, como instituição política estabelecida e como ideal, atingiu seu clímax em Atenas e algumas outras cidades gregas. Contra ela levantava-se a oligarquia [Osório diz: proprietários rurais. Donos das terras, em especial], de nenhuma maneira uma força gasta, e, quer no poder, que na oposição, sempre um inimigo com que se devia contar [Osório diz: Platão é o seu maior escritor/defensor!]. Desenvolveu-se, portanto, naturalmente um conflito ideológico que levou os homens para além de questões constitucionais, a problemas mais abrangentes sobre a natureza humana e as relações humanas. A democracia constituía parte de um movimento geral rumo à igualdade, e a necessidade de defender a democracia era estímulo a ulteriores argumentos em seu favor. Tucídides fornece algumas das melhores amostras deles, por exemplo, no discurso de Atenágoras, líder democrático de Siracusa [Osório diz: justamente onde Platão foi tentar impor, mais ainda, a tirania!], que fala a jovens oligarcas de sua cidade (6.38.5): [Osório diz: Vico / Renascimento (sempre). Democracia (a) oligarquia-rico; (b) comércio-rico; (c) indústria-rico. Ou seja, os ricos sempre comandam as “revoluções”, justamente para se manterem poderosos. É o capital se adaptando às circunstâncias.)

 

Desagrada-vos estar politicamente em pé de igualdade com um número mais amplo? Mas como é justo que a membros do mesmo Estado se neguem os mesmos direitos? Dir-me-ão que a democracia não é sensata nem eqüitativa [literalmente, “igual”], e que os ricos são os mais bem qualificados para governar; mas, replico eu, primeiramente, que demos significa o Estado inteiro, e oligarquia apenas parte; em segundo lugar, que os ricos podem ser os melhores guardiães da propriedade, mas os melhores conselheiros são muitos. E na democracia, todos estes, quer agindo separadamente, quer em conjunto, têm participação igual. [Osório diz: Eis o que é a democracia. Platão devia odiar esse discurso!].

 

Temos aqui o ideal de uma democracia, em que os ricos têm o seu lugar, mas é papel dos mais inteligentes dar conselho – com certeza conselho conflitivo, pois há dois lados para cada questão – e a decisão está em mãos do povo todo, quando ouviu e entendeu os argumentos. Na prática, nem sempre funcionava assim, pois demos, não menos que oligoi, podia-se aplicar a uma só secção da população – podia significar plebs assim como também populus [Vlastos diz: "A ambiguidade em demos (plebs ou populus) e tanto melhor. Opositores da democracia podem tomá-lo no primeiro sentido ... ao passo que pensadores democratas podem invocar o segundo" (Is. pol. 8, n. 1).] – e como tal podia ser insensível no seu trato com os ricos e os intelectuais [Osório diz: justamente como os ricos e intelectuais costumam ser insensíveis com o populus!].

Para Protágoras, é a justiça que "acarreta ordem em nossas cidades e cria laços de amizade e união" (Platão, Prot. 322c). [Osório diz: quando Platão atribui discursos à Sócrates ninguém os põe em dúvidas a autoria, quando atribui um a Protágoras ocorre o oposto, todos duvidam. Também, convenhamos, o discurso protagórico é fulminante, logo seus adversários não o querem em sua boca, nem na de ninguém!]

Aristóteles diz que, se os cidadãos são amigos, pode-se dispensar a justiça. [Osório diz: A justiça é, portanto, para os inimigos! Direito Penal do Inimigo]

Os legisladores interessam-se ainda mais por amizade do que por justiça, pois sua meta é substituir facção por concórdia, e concórdia assemelha-se a amizade.

Concórdia é uma palavra aplicada a cidades quando os cidadãos concordam acerca de seus interesses comuns, fazem as mesmas opções politicas e as levam a efeito [em Schmid, Gesch. 163. Bignone (Studi, 87ss) argumentou em favor de intima relação entre a doutrina moral da concórdia no p. homonoias de Antifon e sua doutrina sobre ajustiça desenvolvida na Aletheia. No Clitopho, observou ele, diz-se de um dos discípulos de Sócrates ter mantido que philia era o produto de dikaiosyne e homonoia a mais verdadeira manifestação de philia (4o9a-e, acrescentando que não é homodoxia, de sorte que toda a passagem está em relação muito estreita com Aristóteles, especialmente EN 1167a22ss). Bignone podia ter acrescentado Rep. 351d, onde Sócrates diz a Trasímaco que injustiça leva a ódio e briga, mas justiça, a homonoia e philia. Apesar das passagens interessantes que Bignone aduz para comparação, dificilmente conseguiu seu objetivo. Infelizmente, os fragmentos restantes do p. hom. não fazem nenhuma referência a homonoia, por isso estamos bastante no escuro quanta ao que Antifon disse sobre ela. Ademais, ao reconciliar At. e p. hom. ele ignora completamente a col. 5 de OP 1364 fr. 1 (DK, II, 349s), onde Antifon diz que pessoas que não atacam outros a não ser provocadas, e que respondem ao trato mau dos pais com delicadeza, agem contra a natureza. [Osório diz: instinto de defesa, mesmo que exercido contra os pais! Nem todo pai é flor que se cheire!]].

Em época em que a democracia podia significar na prática não a igual participação da cidade inteira no governo, mas a tomada do poder pelos até então pobres e sem privilégios às custas dos ricos e bem-nascidos. [Osório diz: os ricos eram os super-homens de Platão/Sócrates e que foram dominados pelos fracos! Eis Platão ao vivo e em cores! Eis Platão/Cálicles. Platão trouxe o grito, antes de Marx: ricos/oligarcas, UNI-VOS!].

Igual e igualdade constituem o lema mais frequente em meados e em fins do sec. V, e o Ideal são os direitos políticos e jurídicos iguais. [Osório diz: justamente! Ninguém quer perder o poder!]

Na democracia ateniense, o poder está nas mãos do povo, nas disputas privadas todos são iguais perante a lei, e atribuem-se responsabilidades públicas não segundo qualquer sistema da classe, e sim somente pelo mérito, e a pobreza jamais é impedimento para o ofício público. [Osório diz: Platão : ({triste} com esse absurdo! O mundo, para ele, é dos melhores! E quem são os melhores? Os bem nascidos...]

Talvez se possa ver melhor a nova ênfase na igualdade nas peças teatrais de Eurípedes. Sobre a democracia mesma, o seu Teseu reflete os sentimentos de Atenágora e Péricles. (Suppl. 404): "A cidade é livre, as pessoas governam em turnos anuais de ofício, e ao pobre se dá participação igual à dos ricos". Para o elogio da igualdade como tal, temos Phoenissae (531ss), onde Jocasta suplica ao filho que deixe o pernicioso daimon da Ambição, honrando, ao invés, a Igualdade: [Osório diz: o que é a democracia e por que contra ela se volta o ódio de Platão]

 

que une amigo a amigo, cidade a cidade, aliado a aliado. O que é igual e elemento estável na vida humana, mas o menor é sempre inimigo do maior e anuncia-se em dias de ódio. Foi a Igualdade que estabeleceu pesos e medidas para os homens e delimitou o número. Iguais, no passar dos anos, são as veredas da noite escura e da luz do sol, e nenhuma inveja a vitória da outra. Servirão os dias e as noites aos mortais e tu não tolerarás dar ao teu irmão participação igual na dinastia contigo mesmo? Onde está nisto a justiça? [Osório diz: o que é a igualdade]. [Osório diz: aqui posso fundar minha tese no sentido de que Polinices não estava errado ao atacar não Tebas, mas ao seu irmão traidor!]

 

Nota-se uma vez mais a prontidão com que os gregos apelam a natureza em geral para endossar o curso da ação humana [Osório diz: o bom é que eles não se igualam aos indianos, por exemplo, que comparam animais racionais (homens) com os irracionais (insetos, por exemplo), exceto Platão]; e como lembrete de que estamos na era do fermento em que todo argumento tem dois lados, podemos ver que no Ajax de Sófocles (668ss), o ato de o inverno ceder ao verão e a noite ao dia usa-se para apoiar a moral contrária de que em todo lugar há governantes e súditos, e a submissão de um ao outro e necessária [Osório diz: diz isso quem? Platão, claro].

[É interessante que para descrever igualdade democrática nas Leis Platão usa as mesmas três palavras que Eurípedes na mesma ordem [Osório diz: mas Platão é sempre o original, o que tudo sabe!]: é ten metro . ..Jisen kai stathmo kai arithmo, e em seu louvor da isotes Jocasta diz (541s): Kai gar metr' anthopoisi kai mere stathmon [sotes etaxe karithmon diorise. V. também SM. fro 399N. A frase out' arithmo oute stathmo em Xen. Symp. 4.43 sugere elemento proverbial. [Osório diz: ver o filme “Advogado do diabo”! (veja, mas não olhe…)]]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 139-142).

 

5

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

65 – Igualdade de riqueza, segundo a Sofística.

 

Em Guthrie se colhe:

 

Quanto a riqueza, há, em seu contexto, algo quase cristão na designação que Jocasta faz dela como depósito em custódia pelo céu (555): "Nós, mortais, não temos nossa riqueza como posse privada; é dos deuses, e cabe a nós cuidar dela, e, quando eles quiserem, levá-Ia-ão de volta". [Osório diz: não é o contrário? Não é no cristianismo que há algo quase euripidiano/jocástico? Quem precedeu quem? Logo... Não esqueçamos a influência sofística sobre Eurípedis]

Distribuição real da riqueza em base igualitária, mesmo se numa forma, imperfeita (para nós), foi proposta pela primeira vez por certo Fáleas de Calcedônia, provavelmente pelos fins do séc. V. (Sobre esta data v. Gomperz, Gr. Th. I, 578). Aristóteles (Pol. 1266 a39ss, nossa única fonte) diz que ele foi o primeiro a afirmar que os cidadãos de um Estado deviam ter posses iguais [Mais tarde, porém, … Aristóteles diz que ele o limitava à posse da terra [Osório diz: mas, na época, e muito depois ainda, não era a terra a grande fonte de riqueza?] . Com certeza, a igualdade, como se esperaria nesta época, aplicava-se somente a cidadãos, e Fáleas até propôs que todos os artesãos deviam ser escravos de propriedade pública …]. Abolindo a necessidade ele esperava abolir o crime, mas Aristóteles comenta que frio e fome não são os únicos incentivos ao crime, e de fato os maiores crimes são causados por excesso e não por necessidade: não são as posses humanas, e sim seus desejos e ambições que se devem levar à igualdade, e isto precisa de educação apropriada. Fáleas também pensara assim, e foi bastante moderno para propor que não só riqueza, mas também educação devia ser providenciada igualmente pelo Estado: mas, diz Aristóteles, não é de nenhum proveito todos terem a mesma educação se é do tipo errado, e Fáleas deve nos dizer que tipo de educação ele propõe. [Osório diz: E a dele, Aristóteles, qual é? Eu penso que qualquer educação é melhor que nenhuma! Bem como que a educação a ser dada é aquela que permita ao homem conhecer para decidir]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 142-143).

 

2

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

64.2 – Escravidão, vista pelos sofistas.

 

Guthrie afirma:

 

A única testemunha no séc. V da existência de uma crença de que a escravidão é não-natural é Eurípides, cujas personagens expressam sentimentos deste tipo: “Somente o nome traz vergonha para um escravo: em tudo o mais ele não é pior que os livres, se ele for homem bom”. [Osório diz: Escravidão]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 28).

 

Ensina Kerferd:

 

Muito mais indefinida era a crítica da instituição da escravidão. Na verdade, é de se duvidar que alguém, no século V, tenha ido mais longe do que sugerir que muitos dos escravos existentes o eram apenas por acidente das circunstâncias. Embora Aristóteles aceitasse isso, sua conclusão era que, em um mundo ideal, a escravidão estaria confinada aos "escravos naturais" e todos aqueles que não eram escravos por natureza seriam libertos. Não chegou até nós nenhum texto do século V que de fato condenasse toda escravidão como tal. Que toda escravidão é contrária à natureza pode ser uma consequência da oposição desenvolvida por Antífon entre nomos e physis, mas não temos nenhum registro de que ele a tenha tirado, e não é suficiente argumentar que ele condenou então a escravidão porque "deve ter feito isso". A essa consequência finalmente se chegou e Aristóteles sabia disso quando escreveu Política I, 3.4. Há muitos que gostariam imensamente de poder atribuir essa visão ao século V. Mas, na verdade, a primeira pessoa de que se tem notícia que a defendeu é Alcidamas, um discípulo de Górgias que, no seu Discurso Messeniano, disse: "Deus deixou todos os homens livres, a Natureza não fez ninguém escravo". Mas a data do Discurso pode bem ser 362 a.C., ou mais tardia, e é só com os estóicos que encontramos toda a fundamentação teórica para a doutrina segundo a qual nenhum homem é escravo por natureza. [Osório diz: os sofistas e a escravidão! Vejam de quem Alcidamas era aluno! Se Platão e Aristóteles a defendiam, é por que alguém a condenava! Não se defende aquilo contra o que não existe acusação/oposição! Alcidamas nasceu onde?]

Estamos apenas um pouco melhor situados quanto ao testemunho relativo a gregos e bárbaros. De modo geral, os gregos tinham um forte senso de sua superioridade em relação aos outros homens. Segundo Hermipo, tal como citado por Diógenes Laércio (I, 33), havia alguns que costumavam dizer que Sócrates tinha o hábito de declarar que havia três coisas pelas quais devia agradecer a Fortuna: primeiro, por ter nascido ser humano e não um animal; segundo, por ter nascido homem e não mulher; e terceiro, por ter nascido grego e não bárbaro. O próprio Hermipo supunha que a história realmente se referisse a Tales de Mileto. De qualquer forma, ela corretamente incorporava a tradicional opinião grega sobre bárbaros e mulheres.

Ao discutir primeiro a comparação entre gregos e bárbaros, será conveniente começar com a posição adotada por Platão na República. Ele distingue entre os dois de maneira bem fundamental. O relacionamento natural entre grego e grego é o de parentesco e origem comum. Portanto são, por natureza, amigos. Quando lutam um contra o outro, isso significa que a Grécia está doente e dilacerada por guerra civil [Osório diz: sempre que se fala em guerra civil no século V deve-se entender a guerra do Peloponeso? As guerras que vieram após a derrota de Atenas?]. Portanto deve-se impor limites rigorosos acerca de que coisas podem ser feitas quando estão lutando entre si. De modo particular, é totalmente errado que Estados gregos vendam gregos como escravos. Totalmente ao contrário é o caso de gregos em luta com bárbaros. Pois gregos e bárbaros são inimigos por natureza. Quando lutam, estão envolvidos em guerra, e é adequado, então, que os gregos tratem os bárbaros como os gregos agora (erradamente) tratam outros gregos (Rep. 469b-471c). Daí fica claro que Platão aceita e aprova a instituição da escravidão mesmo no seu Estado ideal [Osório diz: Platão e a escravidão]. A razão disso é a sua crença de que os bárbaros são, por natureza, inferiores aos gregos, os únicos que, por sua inteligência e amor do saber, estão habilitados a ser senhores. Aristóteles está apenas acompanhando Platão quando, na Política (1252b7-9), cita com aprovação a opinião dos poetas segundo a qual está certo que os bárbaros sejam governados pelos gregos, porque os bárbaros são escravos por natureza [Osório diz: Aristóteles e a escravidão].

Os pontos essenciais da posição platônica parecem ter sido antecipados por Górgias (DK 82B5b), que, nos seus esforços para unir os gregos e dirigir suas energias contra os bárbaros, declarou que as vitórias sobre os bárbaros exigiam hinos de louvor, ao passo que as vitórias sobre os gregos exigiam lamentos. Opinião diferente teria sido defendida por Hípias, no Protágoras (337c-d), quando declara aos presentes que os considera como "parentes da mesma classe e como concidadãos por natureza, embora não por nomos. Pois o semelhante é aparentado ao semelhante por natureza, ao passo que a lei, que é tirana sobre os seres humanos, frequentemente impõe repressões que são contrárias à natureza". Todos "os presentes" eram, de fato, gregos [Osório diz: porém estrangeiros em Atenas!], de modo que é possível que ele não queira dizer nada além do que Platão tinha dito na República, a saber, que os gregos constituem uma família e afins. As necessidades do contexto no qual Hípias está falando estariam de fato satisfeitas se ele estivesse afirmando nada além de que há uma afinidade natural entre homens sábios onde quer que se encontrem, gregos ou bárbaros, ou talvez meramente onde quer que se encontrem entre os gregos. Mas a universalidade da segunda sentença citada acima, segundo a qual por natureza o semelhante é aparentado ao semelhante, sugere que provavelmente ele queria ir além e defender o parentesco universal de todos os seres humanos que participam de qualquer semelhança específica, por exemplo todas as crianças, todas as mulheres, todos os sábios ou todos os mendigos, e assim por diante.

Uma declaração mais explícita, ainda que infelizmente difícil de interpretar de maneira exata, encontra-se no fragmento de papiro de Antífon (DK 87B44, II, pp. 352-3), cuja primeira sentença já foi citada em conexão com a questão do respeito que advém aos homens de nascimento superior.

Respeitamos e admiramos os filhos de pais ilustres, mas os que vêm de lares não-ilustres, não respeitamos nem admiramos. Nisso nos barbarizamos em relação uns aos outros. Pois somos todos, por natureza, da mesma maneira plenamente adaptados para ser bárbaros ou helenos. Isso se pode ver pelas coisas que são, por natureza, necessárias a todos os seres humanos. Elas estão abertas para todos para serem obtidas da mesma maneira, e em todas elas nenhum de nós é distinguido como bárbaro ou grego. Pois todos nós respiramos o ar com nossas bocas e narizes, e todos comemos com nossas mãos. [Osório diz: sofistas contra a escravidão].

Aqui há incertezas a respeito de algumas das reais palavras do texto grego traduzidas nas duas últimas sentenças. Mas não há dúvida quanto ao sentido geral da passagem. O que ele está dizendo é que não há diferença fundamental, fixada pela natureza, entre gregos e bárbaros, ou entre bem-nascidos e mal-nascidos. Menos clara é a sequência do argumento e a conclusão particular que Antífon deseja alcançar. Na tradução usualmente adotada para a terceira sentença da passagem acima, no lugar das palavras em itálico temos alguma coisa como: "Pois por natureza somos feitos para ser iguais sob todos aspectos, tanto os bárbaros quanto os gregos". Aí temos, então, uma sequência lógica muito estranha, como observa Guthrie, a saber: "Damos muita atenção a nascimento nobre, mas isso é se comportar como os bárbaros, pois na realidade não há diferença entre bárbaros e gregos" [Osório diz: será que ele não queria dizer que os bárbaros dão especial importância ao nascimento nobre, e que os helenos não deveriam segui-los, quanto a isso? Em seguida afirma que não há diferença entre eles, logo, todos são iguais, não quanto a costumes (nascimentos nobres), mas quanto a natureza “humana”]. Isso simplesmente não tem sentido, nem é uma tradução acurada. O que é preciso, diz Guthrie, é voltar à tradução usada pelos primeiros editores do papiro, Grenfell e Hunt, que é a das palavras acima em itálico: Pois somos todos, por natureza, da mesma maneira plenamente adaptados para ser bárbaros ou helenos [Osório diz: não é Heródoto que nos conta a história de um rei que mandou uma criança ir viver entre outro povo que não aquele onde nascera e lá passou a falar a língua onde foi criada, que era diversa da do seu lugar de nascimento?]. Com esta tradução, muda-se a interpretação global da sequência do argumento, e a não-compreensão disso é, sem dúvida, a razão pela qual esta tradução foi substituída por outra menos acurada e menos plausível.

Creio que uma chave para a correta interpretação pode ser encontrada em uma passagem do tratado de Hipócrates Sobre ares, águas e lugares, cap. 12. O tratado como um todo diz respeito aos efeitos das diferenças de clima e meio ambiente sobre a saúde e o caráter. No capítulo 12, a comparação é entre a Ásia Menor e a Europa (isto é, a Grécia), e é dito que as condições na Ásia Menor são tais que coragem, indústria e o impulso para a ação não poderiam manifestar-se lá, seja entre os nativos, seja entre os imigrantes. Lá, o prazer reina de modo absoluto. O contraste é claramente com os gregos, que vivem no continente e que de fato possuem essas qualidades. Mas, se eles emigram para a Ásia Menor, tornam-se como os nativos lídios asiáticos, que os atenienses consideravam incapazes e voluptuosos em comparação consigo mesmos.

Tomando-se por base esse texto, que pertence ao século V, é possível sugerir a seguinte interpretação do que Antífon está dizendo. Fisicamente, e por natureza, não há diferença entre os seres humanos — nossas necessidades e nosso equipamento são os mesmos em todos os casos. Mas somos capazes de nos desenvolver de diferentes maneiras devido a influências subsequentes — podemos, então, ser ou gregos ou bárbaros, ou inteligentes e civilizados, ou amantes do prazer e estúpidos. Ao admirar estupidamente os filhos de pais nobres e classificá-los acima dos que se originam de famílias humildes, nós nos comportamos à maneira [Osório diz: que atribuímos aos] dos bárbaros, como se nós mesmos tivéssemos nos tornado [Osório diz: o que condenamos nos] bárbaros e perdido a inteligência apropriada [Osório diz: que atribuímos] a nós, os gregos. Isso resolve o problema da sequência do pensamento na passagem e tem a vantagem de nos autorizar a manter a tradução mais acurada da sentença em itálico. Devido à falta do resto da passagem no papiro, não se pode, naturalmente, afirmar que esta interpretação esteja absolutamente certa. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 265-270).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

64.1 – Escravidão e/ou imperialismo (existem por) – phýsis ou nomos.

 

Guthie diz:

 

Sobre igualdade, se o domínio de um homem sobre o outro (escravidão) ou de uma nação sobre outra (impérios é natural e inevitável, ou somente por nomos e assim por diante.” (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 59).

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

64 – Escravidão e os gregos.

 

Expõe Guthrie:

 

Para a maior parte dos gregos, era impensável sociedade sem escravidão [Osório diz: a genialidade está em ver onde ninguém consegue enxergar! E os sofistas viram além!]. O trato dos escravos, e o trabalho que se lhes confiava, variavam muito. Em Atenas eles eram empregados em serviços domésticos, em fábricas de posse privada, em minas (onde as condições podiam ser de fato duras [Osório diz: se na Inglaterra e Estados Unidos, milênios depois, ainda eram assim, imagine-se no século IV antes da era atual, por exemplo!), e em medida menor no campo, que na Ática era mormente cultivado por pequenos proprietários camponeses. A sorte dos escravos domésticos naturalmente variava, mas Aristóteles os descreve falando livremente, e as vezes descaradamente a seus senhores. Aos inteligentes se davam postos de responsabilidade como secretários e gerentes de banco, e podiam finalmente ser libertados por seus próprios donos. No sec. IV Arquestrato legou em testamento o seu banco a seu antigo escravo Pásion, que por sua vez o arrendou a seu próprio escravo liberto. Uma prática comum era para os donos de escravos industriais permitir-Ihes trabalhar independentemente, pagando uma soma fixa de seus ganhos e ficando com o resto, e estes podiam economizar bastante para comprar a própria liberdade. A queixa do "Velho Oligarca" (pseudo-Xen. Ath. Pol. 1.1o) é bem conhecida: os escravos em Atenas são gente insolente que não se afastarão de teu caminho nas ruas, e não se te permite bater neles pela simples razão de que não há nada em sua veste e em sua aparência geral que os distinga dos atenienses livres. Demóstenes também diz que escravos em Atenas tem maiores direitos de discurso livre do que os cidadãos de outros estados, e havia uma lei sob a qual qualquer pessoa podia ser perseguida por ato de hybris contra o escravo da mesma forma que contra o cidadão. Apesar de tudo isso, permanecia o fato de que o escravo era uma posse que podia ser comprada e vendida. Alguns ricos compravam um número grande de escravos e auferiam grandes rendas emprestando-os como trabalhadores.

Se a escravidão como instituição era aceita [Osório diz: com exceção dos sofistas], havia sentimento geral contra escravizar gregos.

Desta forma, a questão da escravidão estava ligada, na mente grega, como na americana, com a questão da inferioridade racial [Osório diz: e na mente inglesa? O autor parece simpatizar com a escravidão! Mas isso é natural, afinal ele é inglês!]. Como Ifigênia diz em Eurípedes (1. A 1400): "É direito dos gregos dominar os bárbaros, mas não de os bárbaros dominarem os gregos, pois eles são escravos e nós, livres". É provável, portanto, que Antifon, que negou qualquer distinção natural entre grego e bárbaro, também se tenha oposto a doutrina dos "escravos naturais" que predominava na época e depois foi defendida por Aristóteles [ … a descrição de Aristóteles do escravo como “ferramenta viva”...]; mas o fato não se registra explicitamente [Osório diz: claro que se regista! Aristóteles é confesso em sua Política!].

Dava-se cor à idéia da inferioridade bárbara pela vitória grega contra persas e pela tendência de outros povos a serem governados despoticamente, pois submissão a um tirano humano antes que às leis era ao ver dos gregos equivalente a escravidão. [Osório diz: ver passagem de Heródoto].

Eurípedes pelo fato de que, embora ele proclame que o escravo possa ser melhor do que seu dono e por isso erroneamente escravizado, ele tinha a crença comum que alguns eram ajustados pela natureza somente para a escravidão [Veja o ensaio informativo de Schlaifer em Finley, p. 127. Mas para a crença de Eurípedes na escravidão natural ele se apoia inteiramente no fr. 57, ao passo que (a) este está inteiramente sem contexto, e soa como se fosse falado por um tirano ou outra personagem desagradável, (b) o próprio texto é incerto e a palavra physei é emenda. [Osório diz: quando ele, Guthrie, quer, ele sabe justificar até os sofistas, mas, calhordamente, talvez diga: mas Eurípedes não era um deles!].]. Isolar suas opiniões pessoais é difícil, uma vez que era dramaturgo e suas personagens expressam sentimentos opostos, mas pelo menos fornece prova de maré montante de protesto contra a escravidão nos tempos em que vivia. [Osório diz: o que não fez Platão e Aristóteles! / Esse pensamento do autor, Guthrie, deveria servir para Platão também!].

Fr. 50: "Escravos que são bem dispostos para com a casa de seu dono incorrem em grande hostilidade da parte de seus iguais".

 

[Platão, que não era nenhum abolicionista, diz que escravos amiúdes se provaram melhores que irmãos e filhos, salvando a vida, as posses e a família de seus donos …[Osório diz: confissão impressionante por parte de Guthrie!].

 

Arquelau (fr. 245): "Uma coisa eu aconselho: não te deixes pegar vivo para a escravidão se tens a possibilidade de morrer como homem livre".

Uma escrava de Andrômaca consentindo em ir em missão perigosa para sua patroa (Andr. 89): "Eu irei, e se alguma coisa me acontecer - bem, a vida de mulher escrava tem pouco valor"; e em Helena (1639) outra escrava defende sua dona com as palavras: "Não mates tua irmã, mas a mim, pois para escravos nobres é glória morrer por seus senhores".

Em Íon dá-se forma universal a afirmação. (…) "Só uma coisa traz vergonha ao escravo, o nome. Em tudo o mais o escravo, se for homem bom, não e pior do que o livre". (…) A escravidão é errada em si mesma. [Osório diz: Platão e Aristóteles não a viram assim!] (…) O escravo como tal não é de menos valor que o homem livre. Se ele for moralmente inferior, isto se deve ou ao seu caráter individual ou a própria escravidão, que teria arruinado homem originalmente bom. 32

Citação de aluno de Górgias chamado Alcidamas: “Deus fez todos os homens livres; a natureza não fez nenhum homem escravo”. [Osório diz: uma única frase e a imortalidade!]

A universalidade do princípio enunciado.

[Por isso coloco tais referências numa nota de rodapé. As palavras (eleutherous apheke pantas theos' oudena doulon !1(? physis pepoieken) são citadas por um comentador sobre AI. Rhet. 1373b, onde Aristóteles argumenta pela existência de uma justiça natural enquanto distinta da meramente legal. Depois de citar as linhas familiares da Antígona sobre a lei eterna, não-escrita, e uma passagem na mesma tendência de Empédocles, ele diz: "e assim também Alcidamas no discurso de Messene". Assim o próprio Aristóteles não teve nenhuma dúvida de que Alcidamas falava de uma lei universal da natureza. Zeller (citado por Newman, Politics, 1,141, n.1), porém, pensou que atacar toda a instituição da escravidão não teria servido ao objetivo de seu discurso, e por isso não teria agido assim, e Levinson concorda (D. ofP. 142): é "muito improvável que ele fosse levado a fazer uma aplicação universal deste princípio" (um excelente exemplo do argumento retórico de manual ek tou eikotos. V. pp 169 abaixo). Mas o fato é que a afirmação é universal, e nenhuma conjetura sobre o que era prudente ou diplomático pode-se impor contra as palavras mesmas. A sinceridade do sofista, ou sua capacidade de pensamento duplo, não entra na questão. Brzoska (RE, 1,1536) supôs que a obra não era um discurso verdadeiro para a ocasião, mas apenas um "Schulstiick" (exercício escolar). O uso do comentador do verbo meletan (hyper Messenion meleta kai lege i) o apóia. Para Alcidamas V. pp. 287ss abaixo. [Osório diz: foi para ser contra sofista se arranja qualquer argumento contra! Ninguém fuça a obra de Platão tão minuciosamente! Popper? Não que devêssemos esconder, apenas fazermos para todos! Se essa defesa tivesse saído da boca dos santificados Sócrates, Platão ou Aristóteles eles seriam mais endeusados ainda! Se era um exercício escolar ou não, não vem ao caso, o que vem ao caso é que foi escrito e dito! Não se pode esquecer que o discurso somente poderia ser universal pois os sofistas eram estrangeiros em Atenas!].

A escravidão, como frisou Newman (Politics, I, 143), já "passava por rigoroso exame, em cujo decurso suas formas, uma depois da outra, se pesou na balança e se achou falha, e se eliminaram sucessivamente primeiro a escravidão por dívida, depois a escravidão de gregos, e, finalmente, a escravidão por guerra, de tal sorte que uma total condenação da instituição podia muito bem estar a mão". [Osório diz: menos nas mãos de Platão e Aristóteles!]

Levinson frisa que o código justiniano, depois de estabelecer como princípio que “a escravidão é contrária à natureza”, passa a expor os direitos do proprietário de escravos nos mínimos pormenores; e no séc. XIX um proprietário estadunidense de escravos pôde concordar com as palavras de Declaração de Independência de “que todos os homens foram criados iguais”. [Osório diz: basta lê-los! Embora tudo isso seja bem posterior aos gregos do século V!].

E uma poderosa arma para os opositores da escravidão se forjou, quando se fez pela primeira vez em público a afirmação de que não tinha nenhum fundamento na natureza. [Osório diz: o sofista Alcidamas, não esqueçamos!]

Alcidamas escreveu seu discurso de Messene cerca de 360 [Osório diz: qual a fonte?]. No fim do mesmo século reaparece numa peça de Filêmon (fr. 95 KOck): “Ainda que um homem seja escravo, ele tem a mesma carne; ninguém jamais foi escravo pela natureza, embora a causalidade escravize o corpo”. A difusão da ideia na segunda metade do séc. IV também é atestada por Aristóteles, que escreve na Política (1253b20): “Alguns, porém, sustentam que propriedade de escravos é não-natural. É somente por nomos que um é escravo e outro é livre, pois na natureza não há nenhuma diferença. E, portanto, também não é justo, pois se baseia na força”. Por esta época (provavelmente depois de 335), portanto, estes sentimentos liberais eram bem conhecidos, mas é questão de vívida controvérsia se já eram correntes no tempo com que agora sobretudo lidamos, na Atenas de Eurípides e Sócrates, e se devem ser atribuídos a uma geração de sofistas anterior a Alcidamas. Até que ponto é verdadeira a afirmação de Nestle em 1901 de que “Redundará por todo tempo para a glória da sofística grega que, partindo da concepção da lei natural, tenha se oposto à existência da escravidão por motivos teóricos, e a escola socrática, Platão e Aristóteles, representam neste ponto um passo decididamente retrógrado”? [Osório diz: até o ponto máximo! Só não vêm os fanáticos!]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 146-147, 148-149).

 

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