visão geral

Você está aqui: Home | Sofistas da Atenas de Péricles | Visão geral

71 – Justiça, o que ela é, segundo os sofistas.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

71 – Justiça, o que ela é, segundo os sofistas.

 

Nos diz Guthrie:

 

Justiça não passa do interesse do mais forte”. Ampliando, diz que, quer o Estado seja governado por tirano, quer por aristocracia ou democracia, os poderes governantes fazem leis visando ao seu próprio proveito. Fazendo estas leis, declaram que é justo para seus súditos o que os beneficia, e punem a todos os que se afastam delas como transgressores e malfeitores. A Justiça é a mesma em todos os Estados, ou seja, o que beneficia o governo estabelecido. Uma vez que o governo detém o poder, a justiça em toda parte é o que beneficia o mais forte.

Respondendo a perguntas de Sócrates, Trasímaco acrescenta que, embora tenha dito que é justo para os súditos obedecer às leis promulgadas por seus governantes, não implica que devam obedecer mesmo se os constituídos no poder ordenassem, por engano, o que não é de seu interesse. Como qualquer outro perito ou artífice, afirma ele, o governante não é, falando estritamente, governante quando age por ignorância ou erroneamente, mas apenas quando exerce corretamente sua capacidade. [Osório diz: mais isso é questionar a lei! Pois quem diz o que é a lei é o governante, não o governado! Usurpação de função]

Sócrates se aproveita do fato de Trasímaco ter introduzido a analogia entre governo e artes como medicina, e, tomando sua frase "falando estritamente”, afirma que uma arte como tal não busca sua própria vantagem, mas a do objeto sobre que se exerce (ekeino hou techne estin, 342b), que Sócrates identifica com o corpo no caso da medicina, o cavalo no caso do treinamento e assim por diante. Ele conclui que a arte de governar, concebida estritamente, legisla não para a vantagem dos que a exercem mas para a vantagem de seus súditos [Joseph (A. and M. Phil. 24 e 22) nota que Sócrates está certo ao afirmar que o propósito de uma arte como tal não é beneficiar o praticante, ainda que com ela ganhe a vida, mas errado em admitir que o propósito de todas as artes é beneficiar outros para os quais elas são exercidas. Um caçador exerce sua arte pela carne de caça, mas não em benefício dela, um dançarino por seu próprio corpo, que pode) distender ou ferir para alcançar a perfeição.]. [Osório diz: Sócrates não se aproveita! Sócrates é um personagem construído para ganhar e o outro para perder ou levantar a bola para ser cortada, é o “escada” dos programas de humorismo].

Podes dizer da mesma forma, replica Trasímaco, que os pastores buscam somente o bem-estar de seus rebanhos, enquanto se os mantêm saudáveis e gordos, é para o benefício último, não das ovelhas, mas de seus donos ou de si mesmos [Cross e Woozley (Coram. on Rep. 48s) dizem que, uma vez que a afirmação de Sócrates sobre governo deduz-se de uma generalização baseada em indução imperfeita. Trasímaco a ataca legitimamente produzindo um exemplo contrário. Mas foi Trasímaco que introduziu a noção de uma arte no sentido estrito (isto é, ideal), para fechar sua observação de que nenhum governante erra agindo como tal; e Sócrates é, portanto, autorizado a responder que o trabalho de pastor como pastor volta-se somente para o bem-estar do seu rebanho. Cf. esp. 345b-c. Para visão contrária v. também Kerferd, \JD. U.J. 1947, 22.]. De modo semelhante, justiça significa servir ao bem de outro homem: para o súdito obediente é uma desvantagem. Injustiça é o oposto: ela governa sobre os genuinamente simples e justos, que agem para o beneficio dela porque ela é a mais forte. Para o homem justo sempre sai pior do que para o injusto, tanto em transações privadas como nas suas relações com o Estado (pagamento de taxas, serviços abnegado, incorruptibilidade). A vantagem da injustiça vê-se melhor em sua forma extrema e mais bem sucedida. Quando um tirano toma o poder, ele rouba, pilha e esmaga tudo ao que é sagrado, mas, em vez de ser punido como o transgressor de pequena escala, ele é congratulado e chamado feliz pelo povo que escravizou. Evidencia-se assim que injustiça é mais forte, mais livre e mais poderosa do que a justiça, e prova-se a tese geral de que a justiça é o que beneficia o mais forte. [Osório diz: Platão em Siracusa].

[Arete, comumente traduzido assim, mas não tenho necessariamente as implicações morais que se costumam ligar com “virtude”. Significa a excelência característica que faculta qualquer criatura, órgão ou instrumento realizar sua função específica.(V. p. 234, abaixo). Em 353a-b Sócrates fala de arete de olhos e ouvidos: até uma faca a tem se é bem desenhada e aguda. Imediatamente depois disso, Trasímaco concorda com Sócrates em que ele chamaria o tirano injusto de "sensato e bom", usando o T hjetivo agathos que corresponde a areie. Não precisa estar envolvido nenhum juízo moral, embora Sócrates o tome na esfera moral acrescentando palavras como kalon e aischron, e Trasímaco inadvertidamente concorda. [Osório diz: vejam como são as coisas! Todos os admiradores de Platão, e é o caso do autor, o têm por genial e sagaz, mas, quando lhes interessa, desonestamente, dizem que ele agiu “inadvertidamente”, logo ele, que tudo que faz é perfeito, estudado, analisado].

Mais tarde ele chama o homem justo de "simplório polido" e o injusto de "sensível e bom". Esta é uma proposição mais brutal, diz Sócrates. Ele podia entender Trasímaco mantendo que a injustiça compensava apesar de ser desonrosa, mas evidentemente a chamava nobre e de tudo o mais que se costuma associar com a justiça. Se for assim, eles não podiam argumentar com base em razões geralmente aceitas. E, de mais a mais, Trasímaco parece agora estar deixando falar sua própria mente e crendo na verdade do que diz. Em vez de simplesmente concordar com isso, Trasímaco replica: "O que importa a ti se eu o creio ou não? Apenas refuta a doutrina" — palavras que adquirem significado à luz de seu comportamento posterior. [Osório diz: tem sido assim!]

[O primeiro deles pareceu a Joseph "absolutamente convincente" (A. and M. Phil. 31) e a Cross e Woozley "quase embaraçosamente mau" (Rep. 52).].

"Se eu estou certo" é que um Estado forte deve seu poder à injustiça. [Osório diz: veja o exemplo com os Estados Unidos atual].

Compare as seguintes expressões Estado 73 de Trasímaco: "Deixa assim ser, pois não quero te contradizer" (351d), "Podes gozar de teu argumento sem medo: não me oporei a ti, pois não quero ofender a companhia" (352b); "Assim parece segundo teu argumento" (353e); e suas palavras finais: "Bem, este pode ser teu dia de festa". Sócrates, é claro, segue o seu próprio curso de pensamento sem se importar se Trasímaco o está seguindo, e Trasímaco não está se importando com nada disso. [Osório diz: sto é Platão nu e cru! Platão puro]

Tal esclarecimento pode ser muito valioso, embora possa errar por negligenciar (como nunca é sábio fazer com Platão) a situação dramática e a tensão emocional entre os locutores, e o fato de que a força motriz atrás de Trasímaco é o sentimento apaixonado antes que a inquirição filosófica.

[Assim Kerferd (D.U.J. 1947,19) vê-Ias como (1) Niilismo ético, (2) Legalismo, (3) Direito Natural, (4) Egoísmo psicológico. Para Cross e Woozley (Rep. 29) elas se apresentam como (1) Definição naturalística, (2) Visão niilista, (3) Comentário incidental, e (4) Análise essencial. Referências às mais importantes discussões anteriores podem-se encontrar no artigo de Kerferd, com a exceção de que não faz menção da análise atilada de Max Salomon em ZeUschr. d,. Savigny-Stiftung, 1911.].

Trasímaco lança seu desafio em forma deliberada e amargamente paradoxal: “Justiça? Não passa do interesse do mais forte!” Isso não precisa significar literalmente o que diz, mais do que um homem faz quando, espantado pelo sucesso da maldade e iniquidade, exclama: “Não existe justiça!” O que quer dizer, com efeito, é que existe a coisa chamada justiça e que sabe perfeitamente o que é, mas que nesta vida esperou por ela em vão. O choque do paradoxo está em que para todo grego os termos justiça e justo (dikaion) transmitiam uma impressão de valor moral positivo: abarcavam, com efeito, campo tão vasto que quase se poderia dizer que o conceito de dikaion era coextensivo com o conceito de valor moral.

num discurso de Brasidas, de 'a justificação que está no poder superior'” (ischyos dikaiosei, 4.86.6).

Tucídides no livro 3 com toda sua nudez, embora, com mais frequência, como ele diz, se disfarçasse a ação odiosa com frases que. Bonitas. [Osório diz: Palavras e ação não se confundem! Assim como as palavras e as coisas para Górgias. Fala num sentido e age em outro, que é o seu oposto. É o que faz o próprio Platão!]

O objetivo de Trasímaco, tal como o vejo [É preciso ser pessoal, uma vez que esta agora é visão de uma minoria e outros têm muito a dizer em seu favor. Os que no passado assumiram visão semelhante à apresentada aqui incluem, entre outros, Grote, Barker, Joseph, Burnet e Taylor. Mais recentemente Kerferd sustentou que,Trasímaco prega uma doutrina de direito natural, e Cross e Woozley que ele mantêm que é dever moral do mais fraco servir ao mais forte, mas recomendando-nos depois cinicamente que não nos comportemos da maneira como devemos nos comportar.], é desmascarar a hipocrisia e mostrar que está sendo pervertido o sentido de justiça. Cidades e homens agem como se fora justo para os fracos serem oprimidos e para o forte abrir caminhos por nenhum direito senão pelo poder de fazê-lo, em geral negando que isso seja verdade e acusando seus opositores de agirem como se fosse. [Osório diz: Bom!].

Tal é o contexto em que se deve ver a interação de real e ideal, "é" e "deve" nas afirmações de Trasímaco. Gera certa confusão que impressiona-. de imediato o leitor, embora estudiosos tenham pretendido resolvê-la por análise sutil. Trasímaco começa fazendo, com escárnio e com raiva, uma afirmação de fato: "Estimo que a justiça não passa do interesse do mais forte", reduzido mais tarde em "o interesse do governo estabelecido". Poder-se-ia chamar isso ou de inversão da moralidade corrente — a palavra "justiça" ainda transmitindo aprovação, mas estando por algo que até o momento ninguém admitiria aprovar — ou de supressão do teor moral da própria palavra: o que hoje em dia leva o nome de justiça nada tem a ver com certo e errado; usa-se simplesmente para dizer o interesse de qualquer que, em dado momento, detém as rédeas do poder. Todos os governos fazem leis em seu próprio interesse, e chamam isso de justiça. São estes os fatos: louvor ou censura não entram aí. Desde de Tucídides se pode preencher o resto: é questão de natureza humana, de necessidade, que, como Hemócrates disse (p. 84 acima), não se deve censurar os fortes por buscar governar, nem, de outro lado, existe algo de moralmente digno de louvor em sua ação. Manter outros sob controle é simplesmente vantajoso, e para um poder governante é perigoso entregar-se a piedade e humanidade. É isto que Péricles e Clêon, e muitos outros, pregava na época de Trasímaco.

Mais tarde, porém, Trasímaco diz que para julgar as vantagens da injustiça (p. 90) dever-se-ia considerá-la em sua forma mais extrema, a do tirano que se apoderou do poder por uma combinação de força e traição. Malfeitores em pequena escala são punidos e desgraçados, mas a tal homem se bajula e se chama feliz e abençoado. Todavia “ele rouba e pilha, não no varejo, mas no atacado, não respeitando nem sagrado nem profano, nem propriedade particular nem pública”.

Ele é o exemplo acabado e supremo de injustiça"76 e isso, conclui Trasímaco, prova minha observação de que a injustiça é mais forte, mais livre e mais senhorio qúe ajustiça, e que o interesse do mais forte é justiça, enquanto a injustiça é o interesse e o proveito de si próprio".

Tudo isso ilustra o fato histórico, de que Tucídides é testemunha, de que, nas circunstâncias atormentadas dos fins do séc. V, cânones morais estabelecidos eram ignorados e homens alteravam os sentidos aceitos dos termos morais para os conformar às suas ações. Tal alteração combina com a violência da política e da guerra (por exemplo, o rótulo de covardia ou fraqueza que se lança contra um homem que se opõe a um ato de injustificada agressão), mas dificilmente pode agüentar um exame filosófico [Embora eu não concorde inteiramente com a avaliação de Bignone de Trasímaco, existe força em sua observação (Studi, 38) sobre ele e Cálicles: "Mas atrás destes dois nomes ficamos mais conscientes da política do que da filosofia da época". [Osório diz: Platão.]. As associações morais da palavra dikaion — certo e justiça — são demais fortes para sua equiparação com "o interesse do mais forte" para ser conscientemente mantida em face do questionamento. Tem-se argumentado que Trasímaco está olhando para o assunto apenas do ponto de vista do governado, que para ele justiça consiste em o súdito buscar o interesse do governante ou, como ele o coloca, "o bem de outro homem" (343c); [Osório diz: esse é o perigo da associação do nome à coisa. Ou quem colocou a coisa, maior, na caixa do nome, que pode ser menor! A vida não é palavras. Palavras são versos da vida!] e que isto o resgata de inconsistência e na verdade é a chave para entender sua tese, que é uma forma da doutrina do direito natural. Mas que consistência existe, pode-se perguntar, em sustentar que (a) a justiça é o interesse do poder governante (que Trasímaco afirma simplesmente e sem qualificação), mas (b) não é justo para o governante buscar o seu próprio interesse, isto é, justiça? [Ambos os lados da tese são afirmados claramente por Adimanto em 376c, onde ele fala que “concorda com Trasímaco em que justiça é o bem outrem, sendo a vantagem do mais forte a injustiça, a vantagem e o proveito próprios, mas a desvantagem do mais fraco". Assim, a justiça consiste na obediência a leis que o poder governante (o exemplo escolhido por Trasímaco do "mais forte") estabeleceu em seu próprio interesse, isto é, injustamente. Uma visão mais consistente é aquela a que se refere Platão em Leis 10 (890a), daqueles (quem quer que sejam; não Trasímaco manifestamente) que dizem einai to dikaiotaton hoti tis an nika biadzomenos. [Osório diz: “Amar é ser fiel a quem o trai”, dizia Nelson Rodrifues]. [Osório diz: O que é a justiça para o governante pode não ser para o governado].

Quase todo comentador notou o contraste na discussão entre o ideal e o real, o fato e o valor, o 'V' e o "deve", mas houve desacordo sobre os lugares em que um ou o outro padrão se introduz. Numa das mais atiladas abordagens da questão, M. Salomon observou que a diferença entre o descritivo e o normativo ainda estava in nuce. Achamo-lo óbvio, mas manter a distinção pode não ter sido tão fácil para Platão e o Trasímaco histórico. O próprio Salomon viu Trasímaco como engajado em sociologia puramente descritiva descendo para o lugar (344a) aonde ele chega a mudança no poder governante e caracteriza o homem que derrubou as leis anteriores como "o maior criminoso" [Satze, die...f leâiglich soziologische Êrken,~tnisse geben wollen" (Savigny-Sti 1911, 143). Empreende-se um esclarecimento de idéias, mas não se fixa nenhuma norma como, p. ex.: "Age justamente, age de acordo com a lei".]. "Aqui Trasímaco não apenas explica, mas também julga": o leitor atento não pode deixar de ver o escárnio e a amargura com que ele fala. Tal como vê a vida, a maior inversão possível de valores ocorre diante de seus olhos. O mais injusto pode se tornar o mais justo; isto é, as pessoas o chamarão de justo quando uma vez no poder [Nesta última sentença Salomon vai além do texto. Fazendo justiça à exposição de Kerferd, deve-se dizer que Trasímaco em nenhum lugar chama o homem ou o partido no poder de justo", ou diz que é assim chamado por outros. (Eles o chamam de "feliz" e "abençoado"). O que ele diz é que justiça "é" C seu interesse, e o homem justo é o súdito que em sua simplicidade de coração está contente de se submeter e servir àquele interesse. Todavia o que Salomon diz pareceria ser apenas uma inferência legítima das palavras de Trasímaco, e ajuda a expor a inconsistência das afirmações de Trasímaco carregadas de emoção: justiça é o interesse do mais forte (equiparado com o governo estabelecido), mas para o mais forte buscar seu próprio interesse é injusto. Gláucon com seu reforço do argumento de Trasímaco diz (361a) que o homem perfeitamente injusto buscará adquirir a melhor reputação de justiça. [Osório diz: Isso prende Sócrates, que não poderia ir contra as leis da sua cidade! Aliás, eles nem pode falar de leis injustas, já que ele não pode contestar qualquer lei, pois as leis devem ser respeitadas e, contestá-las é não aceitá-las.].

Podemos concordar com esta interpretação da última parte das observações de Trasímaco, porém mantendo que até o momento dava mera "informação sociológica", Salomon ignora o fato de que o próprio Trasímaco introduzira o conceito de governante "em sentido estrito, o qual é infalível, ou seja, um ideal, e não um governante ie al. Foi isso que deu a Sócrates a abertura para o seu argumento que nenhum praticante como tal, quer da arte de governar, quer qualquer outro, exerce sua arte em seu próprio interesse. Afirmando que Sócrates não pode refutar a Trasímaco falando doj que acontece quando um homem governa corretamente (kalos, 347a), uma vez que Trasímaco perguntava não como o homem legisla quando governa corretamente, mas como de fato pessoas governam neste mundo, Salomon entra em contradição, pois nenhum governo é de fato infalível. Todavia o governante infalível ou ideal ainda é para Trasímaco governante que legisla sem errar em seus próprios interesses, e ele não visava a que sua admissão levasse à conclusão moral em que a engenhosidade de Sócrates o aporta. Sua rejeição da alternativa que lhe oferece Clítofon (de que o que ele quis dizer pelo interesse do mais forte era o que o mais forte pensa ser seu interesse, quer certa ou erradamente) colocou-o à mercê da dialética de Sócrates [Joseph, A and M. Phil. 18: "A defesa de Trasímaco... introduz um contraste entre o real e o ideal que é em última instância fatal para sua posição". Cross e Woozley também dizem (p. 46) que ele "podia ter feito melhor em ter aceitado a sugestão" de Clítofon, embora Kerferd o negue com (p. 92) a hipótese (não muito diferente da deles) que Trasímaco pregue doutrina do direito natural do mais forte.

Salomon deve também ter antecipado uma objeção de que se introduz linguagem normativa. em 339c e 341a, onde Trasímaco concorda em que o que o governante decreta não é só "justo" (isto é, segundo Sócrates, que é chamado justo o homem que obedece à lei) mas também poieteon tois archonwnois. Isto, poder-se-ia argumentar, mostra que, no modo pessoal de ver de Trasímaco, o súdito deve obedecer. Poder-se-ia responder: (a) Neste estágio do pensamento, e na ausência de recursos de vocabulário para fazer distinções filosóficas tais como podem dispor os filósofos do séc. XX, alguma confusão entre linguagem descritiva e prescritiva era inevitável e completa do mundo e sua sugestão de obrigação impossível; (b) que a compulsão implicada por adjetivos verbais desta forma não eram absolutamente exclusivamente moral: podia se referir à força de circunstâncias ou ao que se deve fazer para conseguir determinado objetivo (o que Aristóteles chamaria mais tarde de necessidade hipotética: exemplos deste uso aparecem em 361c).

E. L. Harrison, em seu interessante artigo em Phoenix, 1967, expressa a opinião de que é este um dos pontos em que Platão "manipula" Trasímaco, isto é, faz o sofista falar, como personagem, em prol de seu próprio desígnio artístico na República.].

Como Hobbes, ele sustenta que o homem só age em vista de seu próprio interesse privado – se faz leis, ele as cogita para seu próprio proveito; se lhes obedece, obedece-lhes pensando que mais lhe vale obedecer-lhes do que cumprir as penalidades da desobediência, ainda que o ato em si visasse ao proveito não dele, mas do governante. [Osório diz: Não é o contrário?].

Diversamente de Hobbes, Trasímaco não sente necessidade de justificar o absolutismo do “soberano” apelando ao “contrato social” pelo qual ele se investiu de seus poderes soberanos; ima vez que não considera que “o justo” tenha algum sentido, não se vê obrigado a demonstrar que o soberano tenha algum direito à obediência; basta-lhe observar que o seu poder de exigir obediência é garantido pelo mero fato de ser o soberano.

[Semelhante à de Grote é a afirmação mais recente de J. P. Maguire: "Diversamente de Cálicles, nem Trasímaço nem Gláucon admite a existência de um direito natural em absoluto" (Yale Class. Stud. 1947, p. 164). Pará -Popper tanto Trasímaco co-MoCálicleã são "niilistas éticos” (Open Soc. 1,116).[Osório diz: ver Rommily].

Enfim, esta interpretação do Trasímaco platônico concorda com uma das várias peças de prova independente sobre o homem mesmo. Um comentarista de Fedro diz que ele "escreveu num de seus discursos algo como: Os deuses não vêem o que se passa entre os homens. Se o vissem, não descuidariam do maior dos bens humanos, a saber, a justiça, e, no entanto vemos homens não fazer nenhum uso dela" (Hérmias = Trasímaco fr. 8 DK).84 Fala aí o moralista desiludido, que no diálogo de Platão, por sua expressão mal pensada e mal humorada e também paradoxal daquilo que é essencialmente a mesma visão deixa abertos os flancos aos rigores da contraprova socrática. No meio do geral menoscabo da justiça, o homem, que tenta praticá-la, só se pode descrever como "nobre simplório" (348c) [Osório diz: Engraçado o autor! Prova maior não seria o dito {“o homem somente prática o mal por engano”} de Sócrates? Por que, então, dizer que “No meio do geral menoscabo da justiça”? É, mas como eles não são democratas, a maioria sempre está errada!]

 

Gláucon e Adimanto

 

Depois do episódio anterior, Gláucon (no início do livro 2) lamenta que não foi fácil confundir Trasímaco.

O que estes prescreviam chamaram de legal e justo. É esta a origem e natureza da justiça, não sendo esta estimada boa em si mesma, mas pela falta de poder de fazer o mal com impunidade. Um homem capaz de praticar a injustiça com sucesso consistente seria louco se permitisse ligar-se a tais pactos. Imagine um homem que tivesse o anel fabuloso de Giges, que, tornando-se invisível o usuário a seu bel-prazer, lhe facultasse escapar das conseqüências de seus atos. Suprimiria completamente a distinção entre os bons e os maus, pois ninguém poderia resistir à tentação de roubar, cometer adultério e entregar-se a toda espécie de maldades proveitosas e agradáveis. Bondade, ou justiça, nunca se pratica por escolha, mas só por necessidade, por medo de, por sua vez, sofrer dano.

Sendo assim, o que importa não é ser, mas parecer justo.

Para comparar as vidas do homem justo e do injusto, devemos considerá-los em sua forma pura, cada um perfeito a seu modo. Quem levou sua iniqüidade à perfeição, obviamente, não será pego — o que o estigmatizaria como sanguinário — mas irá pela vida afora com reputação imaculada de integridade. E, de outro lado, o homem perfeitamente justo não deverá ter o crédito de sua virtude: o que lhe traria honras e riquezas, e nunca se poderia estar seguro de que foi virtuoso por causa destas gratificações antes do que por causa da virtude mesma. Sua virtude deverá ser testada sofrendo a vida inteira reputação desmerecida de iniqüidade. Não é difícil predizer a sorte dos dois. O perfeitamente justo aprenderá pela prisão, tortura e execução que escolheu o caminho errado, ao passo que o perfeitamente injusto será abençoado pela riqueza, pelos amigos e pela prosperidade de toda sorte, e até mesmo gozará do favor dos deuses, pois poderá lhes oferecer os sacrifícios mais generosos. [Osório diz: Sócrates é a prova?].

Oferecem-se estas idéias como as do tipo ordinário do gênero humano. Não devemos, pois, esperar alguma defesa heróica caliclesiana do super-homem poderoso e sem escrúpulos. Temos, ao invés, mistura bastante sórdida de avidez, inveja, mesquinhez e medo. Todos, se pudessem, tirariam proveito injusto de seus companheiros, mas, se bem que viver justamente seja mal, é mal necessário. Na verdade, a única coisa importante é parecer justo, mas, uma vez que o anel de Giges é apenas conto de fada, isso implica manter-se, consideradas todas as coisas, dentro das fronteiras da lei e da moral convencional. O "homem perfeitamente injusto" é ideal inatingível. [Osório diz: AA? Um retrato da maldade humana].

 

Natureza e necessidade

 

Interesse próprio, diz Gláucon (359c), é o que toda natureza (physis) colima como bem, embora a lei e a convenção (nomos) a constranjam a desviar-se para o respeito da igualdade. Esta é a espécie de realismo que enfrenta os fatos que encontramos em Tucídides, na afirmação com frequência repetida de que é da natureza humana fazer o mal e dominar os outros sempre que possível, e no sofista Górgias (Hel. 6, DK, II, 290): "Não está na natureza do forte ser contrariada pelo mais fraco, mas, na do mais fraco governada e dirigida pelo mais forte, e do forte dirigir e do fraco seguir".

Mais tarde, no drama (1075), o Argumento Injusto fala de “necessidade da natureza” com referência ao adultério, e chama a sem-vergonhice e o comodismo de “exercício da natureza”. O próprio Demócrito fez a transferência para a vida humana de maneira menos provocativa quando disse (fr. 278) que a concepção de filhos era considerada uma das necessidades da natureza [Referências nos escritores hipocráticos à physis anthropou sem dúvida ajudaram a transferir a palavra constituição do universo à natureza do homem, embora a usassem em sentido fisiológico antes que ético. Para mais sobre este tema v. vol. II, 351-3 [Osório diz: o homem é a natureza animada.].

Esta associação de necessidade com a natureza é usada como argumento pelos oponentes do nomos, que eles representam como tentativas de contrariar forças naturais que por isso são destinadas ao malogro. Assim lemos em Antífon, numa passagem que expõe as vantagens de transgredir a lei se se pode passar despercebido, que os ditames da lei impõe-se artificialmente por acordo humano, ao passo que os da natureza são necessários precisamente porque surgiram naturalmente. [Osório diz: Lei e phýsis].

A conclusão a se tirar é que, uma vez que as leis da natureza são inexoráveis e se aplicam à humanidade não menos que ao mundo em geral, os homens as seguirão inevitavelmente a não ser que impedidos pela intervenção do nomos.

Para alguns, como Tucídides e (se estou certo) Trasímaco, este era fato simples que tinha que ser aceito. Outros tiraram a conclusão positiva e prática de que contrariar as "leis da natureza" deve inevitavelmente ser danoso, e ela devem ser seguidas ativamente sempre que possível [Heinimann, N. u. Ph. 125s (embora eu não possa concordar quando ele diz (126, n. 4) que o uso de anagke como força cosmológica por Leucipo e Demócrito é irrelevante para seu emprego pelos sofistas). Deve-se notar que "necessário" pode-se aplicar de maneira muito diferente ao próprio nomos, a compulsão imposta pela lei e convenção. A este, diz Gláucon na República, a maioria dos homens se submete como necessário, mas não aceita como bom (desde o ponto de vista de auto-interesse do indivíduo). A compulsão da natureza é absoluta, e a do nomos é contingente.].

Era da natureza humana, tanto para os Estados como indivíduos, comportar-se egoística e tiranicamente, se dada a oportunidade, alinhavam-se aqueles para os quais isto pareceria não só inevitável, senão também justo e adequado. Para estes, o tirano era fato não só inevitável, como também ideal. [Osório diz: é o caso do siracusano Platão? {Apenas para constar: ele foi duas, e não uma única vez à ilha! Ou seja, é reincidente!}].

Estas ideias são sustentadas por homens que aos olhos dos jovens parecem sábios, tanto escritores em prosa como em versos, que dizem que a perfeição da justiça é conquista ganha pela força [Estes homens são, pois, de estampa diversa de Trasímaco, para o qual a tirania era he teleotate adikia e o tirano ten holen adikian edikekos (p. 91, n. 79, acima). [Osório diz: e o siracusano Platão?]. Daí os jovens caem na irreligião, como se não houvesse deuses tais como nos mandam acreditar. Daí também irrupções de discórdias civis, sendo os homens atraídos para a “vida certa segundo a natureza”, que, expressa claramente, significa vida de dominação sobre os companheiros e recusa de servir aos outros como lei e costume (nomos) ordenam. [Osório diz: Platão/Sócrates queria mudar as leis de Atenas com sua República!].

[Osório diz: Sócrates, se tivesse algo a ensinar, foi tão “perverso” que não escreveu nada!].

Cálicles é figura um tanto misteriosa, pois, além de seu aparecimento como personagem no diálogo de Platão, não deixou nenhum traço na história registrada. [Osório diz: ver, sobre a identidade de Cálicles, o que diz Rommily] Todavia é descrito com soma de pormenores autênticos que é difícil acreditar ser personagem fictícia. E provável que tenha existido e sido conhecido como tendo as idéias que Platão lhe adscreve, embora, em sua ânsia de apresentar em toda sua brutalidade o caso que quer demolir, Platão pode muito bem ter tomado elementos de diversas fontes e edificado na pessoa de Cálicles uma apresentação um tanto estilizada da doutrina "força é direito" em sua forma mais extrema [Por "pormenor autêntico" quero dizer que se atribui aldeia real e se lhe dão características-~ históricas como a seus amigos e conhecidos. Três modos de ver são possíveis e foram sustentados: (1) ele é pura ficção, (2) o nome é uma máscara para uma personagem bem conhecida como Crítias ou Alcebíades, (3) ele é uma figura histórica. O último ponto é mais provável. Veja Dodds, Górgias, 12s, e para várias opiniões também Untersteiner, Sophists, 344, n. 40. Dodds conjectura que um homem "assim ambicioso e tão perigosamente franco" pode muito bem ter perdido a vida nos anos tormentosos dos fins do séc. V, antes de ter marcado a história. [Osório diz: quais amigos e conhecidos?]. Ele é jovem rico e aristocrata [Osório diz: ou seja, é Platão!], que entrou há pouco na vida pública (515a), e, se bem que agindo como tropa de Górgias, não é sofista [Osório diz: Ufa!]. Ele descarta os “que professam educar os homens na arete” como porção sem valor. [O próprio Górgias, embora se possa com certeza classificar como sofista (p. 41, n. 29, acima), ria, diz-se, dos que exerciam esta profissão (Menu 95c). Cálicles pode ter pensado sobretudo em Protágoras, que enfaticamente a exerceu, e cuja moderação e cujo respeito pelo nomos não se lhe teriam recomendado. [Osório diz: Platão usa o mesmo tema em vários diálogos! Quando suas idéias “fazem água”/furam, ele as reescreve, assim como a Igreja Católica tem reescrito a Bíblia para tentar melhorar suas incoerências e inconsistências].

Demos, o filho de Pirilampes, padrasto de Platão, e sua amizade com Ândron, que foi um dos Quatrocentos estabelecidos no poder na revolução oligárquica de 411, e seu orgulho de sua descendência menciona-se em 512d [ Possivelmente também por defesa da própria physis. Dodds observa (Gorgias, p. 13) que "o louvor da physis comumente se associa a um pressuposto aristocrático, de Píndaro em diante", mas a situação talvez fosse mais complexa. Veja c. X abaixo. [Osório diz: o povo queria a lei escrita, em princípio, pois ela, inicialmente, trazia a igualdade. Entretanto, depois…]. [Osório diz: justamente a família de Platão! Inveja? Raiva? Seu tio Crítias].

Cálicles retoma a argumentação com Sócrates depois da derrota de Pólus, o jovem e impetuoso aluno de Górgias, que tentou sustentara mesma tese de Trasímaco, segundo a qual "muitos atingem a felicidade mediante a injustiça" (470d).

Chamando-os de iníquos, como Cálicles frisa, fez o jogo de Sócrates [Osório diz: do autor da peça!], pois lhes restou moral convencional bastante para concordar que, se bem que a iniqüidade seja coisa boa para o iníquo, todavia é desonrosa e censurável [Osório diz: e daí?]. Absurdo, diz Cálicles. Pólus errou ao conceder a Sócrates sua alegação de que cometer injustiça era mais censurável do que sofrê-la. Esta visão convencional, mas apresentá-la como a verdadeira é vulgar e medíocre. Natureza e convenção opõem-se geralmente, de forma que, se um homem é impedido por vergonha de dizer o que pensa, é compelido a se contradizer. Os que estabelecem as convenções a fazerem as leis são “os mais fracos, isto é, a maioria” [Osório diz: mas era pela minoria que advogava Sócrates/Platão, desde que a minoria da aristocracia da qual eles faziam parte]. São eles que dizem que a autopromoção é infame e injusta, e equiparam a injustiça com o desejo de ter mais que os outros. A natureza diz que é justo para o melhor ter mais do que pior, e o mais poderoso do que o menos poderoso [Cálicles diz que usa beltion, kreitton e ischyroteros — melhor, superior e mais forte —como sinônimos). Esta sentença e a seguinte (483c-d) mostram claramente a influência da associação de Cálicles com Górgias (se na verdade neste ponto ele é mais do que a boca pela qual ele reproduz a retórica inescrupulosa do próprio Górgias). Cf. Gorg. Hel. 6 pephykegar ou to kreisson hypo tou hessonos kolyesthai alfa to hesson hypo tou kreissonos archesthai kai agesthai.].

Observamos aí a contradição formal a Trasímaco, o qual disse que os que fazem as leis são a parte mais forte, quer tirano, quer oligarca, quer democrata (Rep. 338e). [Osório diz: Cálicles versus Trasímaco!] Adimanto aproximou-se mais de Cálicles ao argumentar que os fracos são os que defendem a justiça (no sentido convencional em curso) e censuram a injustiça, não por convicção, mas por causa de sua própria impotência.

Mas ambos receberiam a censura de Cálicles, como Pólus recebeu, por usarem justiça e injustiça em seus sentidos convencionais [Trasímaco, podemos lembrar, não admitiria que ele estimasse a injustiça não só vantajosa, mas também honrosa e virtuosa (p. 90, acima). As próprias idéias diferenciam de alguém que disposto a aplicar a palavra justo" ao que o mundo considera injusto podem ser provas a mais que foi deliberado o fato de ele evitar o comprometimento.[Osório diz: As palavras fluem! Quem as cumpre? Os políticos? Não é o que diz o povo! Ver Carolina Maria de Jesus]].

Muitas coisas estão a indicar que o critério da justiça para o mais forte é tirar o melhor do mais fraco, como, por exemplo, o comportamento dos animais e dos homens coletivamente como Estados e raças. Dario e Xerxes, invadindo o território de outros povos [Osório diz: E Péricles invadindo as outras cidades gregas?], agiam de acordo com a natureza da justiça — e também segundo a lei, se entendes a lei da natureza, se bem que não segundo as leis que nós, homens, estabelecemos. A frase "lei da natureza”, nesta sua primeira ocorrência, usa-se como paradoxo deliberado, e, com efeito, em nenhum de seus sentidos posteriores, nem da lex naturae, que teve longa história na teoria ética e legal desde os estóicos e Cícero até os tempos modernos, e nem no sentido das leis da natureza dos cientistas que são "apenas uniformidades observadas". 101 Mas ela sintetizou uma atitude já corrente em fins do séc. V, e os atenienses, no diálogo de Melos de Tucídides, chegaram muito perto dela até verbalmente, ao expressar o princípio de que devia governar quem é capaz, como questão de "necessidade natural" e ao mesmo tempo lei eterna. 102 [Osório diz: isso não é Sócrates?] O critério bestial do comportamento natural (tomando os animais como modelos [Osório diz: isso é , convenhamos, ridículo. A racionalidade e os desejos são suficientes para mostrar quão diferentes são) também era conhecido no séc. V. Heródoto, ao citar um exemplo, exclui expressamente os gregos (2.64), mas é parodiado mais de uma vez em Aristófanes (Nuvens 1427ss, Pássaros 753ss).

Nossas leis não-naturais, continua Cálicles, modelam nossos melhores homens desde sua juventude, ensinando-lhes que a igualdade é bela e justa, mas, se surgisse um caráter naturalmente mais forte, sacudiria, como um leãozinho, estes grilhões, quebraria sua jaula e tornar-se-ia patrão ao invés de escravo. Brilharia então com toda a sua glória a justiça da natureza. Sócrates tenta fazê-lo retirar pelo menos para a posição do Trasímaco platônico, frisando que na democracia, uma vez que “os muitos” fazem e sancionam as leis, eles são o elemento mais forte e melhor (tendo o próprio Cálicles equiparado estes dois epítetos), e por isso, com base no argumento de Cálicles, o que eles decretam é naturalmente certo e direito; mas são muitos os que insistem que justiça significa direitos iguais para todos e que fazer injustiça é mais desonroso do que sofrê-la, e, portanto, tudo isso deve ser certo segundo a natureza e não só segundo o nomos. [Osório diz: E se vários leãozinhos se unirem, como, aliás, ocorre? Mas Sócrates/Platão não acreditavam na maioria! Isso é Platão e seu balão de ensaio! Justamente eles que não defendiam a democracia, aqui aparecem como democratas. Podem até ser democratas, mas com a finalidade de destruir a democracia]

Cálicles replica numa explosão de raiva que Sócrates fala absurdo e está enganando-o com palavras [Osório diz: e o autor Platão sabe que estava mesmo, daí revelar isso!]. Ao dizer que os mais fortes eram os melhores, ele quis dizer homens melhores — melhores naturalmente (492a), e não uma população indefinível e abjeta [Osório diz: e era o que Sócrates/Platão pensava mesmo, já que era aristocrata e tirano!].

A ideia de que devam "governar a si mesmos", isto e, exercer autocontrole, é ridícula. A bondade e justiça natural decreta que o homem que vivesse corretamente não deveria controlar seus desejos, mas deixá-los crescer tanto quanto possível, e por sua coragem 104 e senso prático ser capazes de satisfazê-los ao máximo. [Osório diz: Ridículo é dizer que o forte tem que também ser burro!]

O tipo comum de homens condena tais excessos apenas por vergonha de sua própria incapacidade para eles [Osório diz: pois se tornam seus praticantes no primeiro momento que podem fazê-lo!].

A verdade é esta: intemperança, libertinagem e liberdade de restrições, se apoiadas pela coragem, constituem excelência (arete) e felicidade; tudo o mais é conversa bonita, acordos humanos contrários à natureza, absurdo sem valor [Osório diz: quem discorda disso, honestamente?].

É o hedonismo extremado que realmente identifica prazer e bem, depois arranca-o de sua posição por táticas de choques até ele dar meia-volta desavergonhada e dizer que não falava sério: ele crê com certeza que alguns prazeres são bons e outros maus. [Osório diz: Bingo! As palavras têm limites se justificam isso ou aquilo].

[Osório diz: A história do super-homem é ridiculamente distorcida para atingir um objetivo {justificar ou fundamentar um posicionamento}, como sempre ocorre! Se ele é um super-homem {inclusive na inteligência} é para enfrentar um contra um ou ele contra todos? Se ele é super-homem ele debe ser maior que o todo. Mas, mesmo que ele, sozinho, não seja maior que o todo, pode fazer aliança com outros super-homens maus e, assim, todos os super-homens maus do mundo podem enfrentar os bonzinhos! Mais: sendo ele super-homem e inteligente, quem disse que ele não encontrará partidários entre os bonzinhos? O capital escraviza, mas todos querem estar ao seu lado!].

Os nomoi humanos existentes são totalmente não-naturais, porque representam a tentativa da multidão de fracos e sem valor de impedir a meta da natureza, segundo a qual o forte deve prevalecer [Osório diz: posição aristocrática de Platão!]. O homem verdadeiramente justo não é o democrata, nem o monarca constitucional, mas o tirano insensível [Osório diz: perfeito! É o Platão siracusano].

É esta a moralidade contra a qual Platão se voltou resoluta e decididamente [Osório diz: inclusive indo apoiar, por duas vezes, o tirano de Siracusa?], desde o tempo em que, como jovem fervoroso seguidor de Sócrates, aprendeu deste que "nenhum homem erra voluntariamente" (no sentido ordinário) [Osório diz: essa pode ser uma situação confortável: até o fim de sua vida, quando a ele mais uma vez se opôs nas Leis e, visto que suas raízes estavam na ciência natural do homem, tornou-se ele próprio cosmogônico no Timeu para aluir seus fundamentos mais profundos.

É preciso enfatizá-lo porque existe uma teoria curiosa de que Platão nutria secreta simpatia para com Cálicles, que representava algo profundamente implantado em sua natureza pessoal, que talvez só tenha reprimido sua familiaridade com Sócrates. Cálicles é "um retrato do eu rejeitado de Platão" [Osório diz: rejeitado!?]. "Embora fundamentalmente se oponha às idéias de Cálicles, ele as afirma com a facilidade e simpatia de homem que as suprimiu em si próprio [Osório diz: a supressão deu-se em Siracusa?], ou ainda havia de suprimi-Ias, ou como Rensi o coloca, “o conflito Sócrates-Cálicles no Górgias não é conflito entre dois indivíduos mas conflito que se passa dentro de uma só mente” [As citações são de H. Kelsen como citadas por Levinson, Defense of P. 471, e Highet e Rensi citados por Untersteiner, Sophists, 344, n. 40.]. Dodds concorda com isso até a medida que, visto Platão ter sentido "certa simpatia" por homens da estampa de Cálicles, o seu retrato de Cálicles "não só tem calor e vitalidade, 106 mas se tinge de afeição pesarosa". [Osório diz: Platão/Cálicles – ida à Siracusa e amante de Esparta, portanto, nada de supressão!].

Podemos mais facilmente nos associar ao brando protesto de Levinson (Defense of P. 472) de que "não é sadio identificar Platão com as personagens dele que ele detesta" [Osório diz: e ele detesta? Onde, quando e como?]. É instrutivo comparar o tom da conversação aqui com o tom em Protágoras, em que Sócrates fala a um homem pelo qual, embora esteja em desacordo com ele em coisas fundamentais, tem verdadeiro respeito. [Osório diz: o autor fraqueja! Ã hã!].

Quando Protágoras, ocasionalmente, e justificadamente, irrita-se, Sócrates o acalma, e os amigos de ambos logo se dispõem a arranjar as coisas entre eles com palavras de calma. A crítica é bem-humorada, a atmosfera é de amizade e tolerância, e o diálogo termina com expressão de mútua estima. Aqui, de outro lado, há evidente amargura e mau humor. Falar disparates, oratória de populacho, trocadilhos de sofista [Osório diz: vejam como não foi apenas Aristófanes que sabia que Sócrates era um sofista!], mentalidade medíocre, violência, e a marcação barata de pontos para o debate, são algumas das acusações que Cálicles arremessa contra Sócrates, e Sócrates faz retornar da mesma forma como recebe [Osório diz: essa é uma das teses de que Platão traiu Sócrates e talvez o detestasse]. Considerando psicologicamente, tudo isso é sem dúvida compatível com a existência de um Cálicles reprimido no próprio Platão, mas visto no contexto de toda a sua filosofia parece muito improvável [Osório diz: Parece? Se parece pode ser!]. Dodds vê até maior importância na "vigorosa e perturbadora eloquencia que Platão concedeu a Cálicles", mas não deve ser nenhuma novidade para nós que Platão foi soberbo dramaturgo [Osório diz: a fuga conveniente do autor, pois Platão somente é dramaturgo quando está em becos sem saída! Do contrário é só filósofo profundo e único!]. Esta eloquência convenceu o jovem Nietzsche, ao passo que o raciocínio de Sócrates o deixou frio. Isto não é surpreendente, mas pouco relevante. O apóstolo da Herrenmoral (Moral do senhor), da Wille zur Macht (Vontade de poder) e Unwertung ller Werte (Revolução de todos os valores) não precisava de muito convencimento, pois ele era irmão de sangue de Cálicles, ao passo que Sócrates se ornou para ele, para citar de novo Dodds, "uma nascente de falsa moralidade" [O que Nietzsche chamou de cultura sofistica para ele era "este movimento sem valor no meio do engano moral e ideal das escolas socráticas". "Os sofistas", disse ele, "eram gregos: quando Sócrates e Platão tomaram o lado da virtude e da justiça, foram judeus ou não sei o que". Não admira que foi Cálicles que o atraiu. Estas passagens são citadas na p. 146 de A. H. J. Knights em seu livro Some aspectos of the life and work of Nietzsche, and particularly of his connexion with Greek literatura and thought, que podiam talvez ter sido mencionadas por Doods quando, no começo de seu apêndice informativo sobre Sócrates, Cálicles e Nietzsche (Gorgias, 387-91), ele diz que o laço entre Nietzsche. Nas pp. 147s Knight cita um longo extrato do discurso de Cálicles no Górgias. V. também Nestle, V MzuL, 341s.]. [Osório diz: É que o pensamento de Sócrates não fecha dentro da racionalidade humana]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 86-103).

 

Ensina Kerferd:

 

Quem foi o primeiro a introduzir essa equiparação, não sabemos. Mas temos uma útil declaração histórica de Aristóteles no Sophistici Elenchi, 173a7-18:

 

Um topos muito difundido leva os homens a proferir paradoxos na aplicação dos padrões de natureza e lei, como Cálicles é retratado fazendo em Górgias, e que todos os antigos consideravam válido; pois, segundo eles, Natureza e Lei são opostos, e justiça é uma coisa boa de acordo com a lei, mas não de acordo com a natureza. Assim, para um homem que falou em termos da natureza você deve replicar em termos da lei, e quando ele fala em termos da lei você deve conduzir o argumento em termos da natureza; porque em ambos os casos o resultado será ele proferir paradoxos; na opinião dessas pessoas, o que estava de acordo com a natureza era a verdade, ao passo que o que estava de acordo com a lei era o que era aprovado pela maioria. É claro, portanto, que eles também, como os homens de hoje, estavam tentando refutar o interlocutor ou fazê-lo dizer paradoxos. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 193-194).

 

Prossegue Kerferd:

 

Mas tais teorias eram conhecidas no período que nos interessa aqui. Segundo Xenofonte (Mem. IV, 4.13), Hípias falava das leis como declarações escritas do que devia e não devia ser feito, em decorrência de acordos realizados entre os cidadãos de um Estado; mas depois ele passa a minimizar as obrigações que deles resultam. Sua própria opinião, como vimos, era que se deve preferir a natureza à lei, e que é a natureza a verdadeira fonte das obrigações humanas. No segundo livro da República, o irmão de Platão, Glauco, pretende declarar (358cl) o que é que os homens dizem que é a natureza e a origem da justiça. O que eles dizem (358e3ss.) é que, por natureza, praticar a injustiça é bom, e ser injustiçado é mau, mas que as desvantagens de sofrer a injustiça excedem as vantagens de infligi-la. Depois de provar ambas, portanto, os homens, que são incapazes de escapar de uma e alcançar a outra, decidem que lhes é mais vantajoso entrar em acordo um com o outro, tendo por base que nenhum mal deve ser infligido, e nenhum deve ser sofrido. Começaram, por conseguinte, a fazer leis e contratos por conta própria, e dão o nome de legal e justo ao que a lei prescreve. Essa é a origem e a natureza da justiça [Osório diz: legislação (lei) e justiça]. Não é diferente a posição esboçada no fragmento do Sísifo (DK 88B25), conforme a qual a ausência de recompensas e de punições para os bons e para os maus, no estado original em que os homens a princípio se encontraram, levou-os a estabelecer leis a fim de que reinasse a justiça. Embora o termo "acordo" não esteja incluído, a implicação aponta exatamente para essa base. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 252-253).

 

25

Você está aqui: Home | Sofistas da Atenas de Péricles | Visão geral