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22.7 – As partes e o todo – Aristóteles.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

22.7 – As partes e o todo – Aristóteles.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Uma pluralidade de pessoas, que são, cada uma, homens sem valor político, é entretanto capaz quando está reunida (synelthóntas) de ser melhor que uma elite (ekeínon retoma toüs arístous mén, olígous dê, 1281a 40s.), não quando a tomamos uma a uma, mas todas juntas (ouch'hòs hékaston, alVhõs sympantas), como as refeições onde cada um traz seu quinhão, são melhores do que aquelas onde um só oferece tudo. Na verdade, quando há pluralidade (pollon gàr óntõn), cada parte possui uma parte de virtude e de sabedoria prática, e quando a pluralidade se reúne (synelthóntòri), exatamente como a multidão (íò plethos) se torna um único homem cheio de pés, cheio de mãos e cheio de sensibilidades, acontece o mesmo com as disposições morais e intelectuais (tá íthë kai tên diánoian). É por isso que a pluralidade julga melhor as obras musicais e poéticas: cada um julga uma [p. 90] parte e todos julgam o todo (álloi gàrdê páníes)11 (1281a42b 10).

A qualidade da parte não é, como num corpo ou para Platão, a de ser adaptada ao todo e de permanecer em seu lugar; ela é somente a de ter uma qualidade qualquer, da qual o todo vai se apropriar. Em Platão, o todo otimiza as partes, fazendo de suas insuficiências como indivíduos a condição de sua qualidade, de sua qualificação como órgãos. Em Aristóteles, o todo otimiza as partes, retendo apenas suas qualidades e compondo-as. Com a imagem do piquenique (é assim que L.S.J. traduz tá symphoretá) retomada em 1286a29, é a diversidade por si só que constitui a [p. 91] qualidade, pois o que seria se, ao invés do "com", tivéssemos um "mesmo", e se todos trouxessem tomates?

Democracia ou aristocracia? (1281a 39-41). O alia alinha o argumento dos aristocratas ao dos democratas: a multidão guarda o melhor daqueles que a compõem, assim como os virtuosos em política reúnem neles as qualidades esparsas nuns e noutros. O segundo problema é o da relação entre o objeto pintado e a pluralidade de seus modelos. Tricot traduz: “os elementos disseminados aqui e ali foram reunidos sob uma mesma cabeça, já que, considerados pelo menos separadamente, o olho de uma pessoa em carne e osso, ou qualquer outro órgão de uma outra pessoa, são mais belos do que o olho ou o órgão desenhado”. A parte que serve de modelo é nesse caso superior à parte resultante: quer dizer que se perde alguma coisa quando se reúne, logo, que as qualidades da multidão ou do homem virtuoso são inferiores às qualidades tomadas uma a uma nos indivíduos. Ora, é o contrário que se deve demonstrar: a reunião reúne a cada vez somente o que há de melhor na multidão, no homem virtuoso, num quadro. Para Platão, a parte não deve ser ótima, é preciso mesmo que não o seja por si, a fim de que o todo o seja. Para Aristóteles, o todo só retém o ótimo: como testemunham aliás suas notas ad doc, Tricot cai aqui no platonismo. O litígio é muito circunscrito: trata-se da função de toü gegramménou, 14. Se ele é complemento do comparativo, kállion, então o olho do modelo é na verdade "mais belo do que o olho pintado". Se é um genitivo de posse, então escolheu-se por sua beleza o olho de um tal, reproduzido na pintura. Reconheçamos que a construção proposta por Tricot é aquela que vem imediatamente ao espírito; [p. 91]

Enfim, a diversidade pode ser mesmo substituída pelo número. É então a quantidade que é por si só uma qualidade, como testemunha, para além da louca imagem do corpo tentacular12, a última comparação que serve para justificar o fato de que "a massa dos cidadãos", quer dizer, "todos os que não têm nem riqueza nem qualificação para a virtude, nem mesmo uma" (to plëthos ton politôn. . . hósoi mete ploúsioi mete axioma échousin aretês mede hén, 1281b 24s.), participam do deliberativo e do judiciário:

 

pois todos têm, quando estão reunidos (synelthóntes), uma sensibilidade suficiente e, misturados com os melhores, eles ajudam a cidade, exatamente como um alimento que não foi purificado acrescentado a uma pequena quantidade de alimento puro torna o todo mais nutritivo; enquanto que a cada um tomado separadamente falta maturidade no julgamento (1281a 34-38).

 

Essa dietética está muito longe do modelo orgânico.

Talvez certas misturas físicas procedam assim a decantações, depurações automáticas: o resíduo se elimina por si só, caindo no fundo. Mas sem dúvida é mais correto supor que esteja aí a singularidade desse objeto que é a cidade, pois, qualquer que seja sua constituição ou seu regime, ela se define por ser "uma pluralidade de cidadãos" —, até mesmo a própria especificidade do político: constituir por si, entre todas as misturas, um tal procedimento de decantação 13. [p. 92]

12. Imagem retomada em III, 16, 1287b 25-31, a propósito do interesse de que haja muitos magistrados:

Pois cada magistrado julga bem quando foi bem formado pela lei e é sem dúvida absurdo que alguém veja com dois olhos, julgue com duas orelhas, aja com duas mãos e dois pés, melhor do que muitos com muitos; de fato, os monarcas se tornam muitos olhos, orelhas, mãos e pés: eles aliam a seu poder aqueles que amam seu poder e sua pessoa.

Seria interessante se perguntar como essa imagem de um corpo com pletora de órgãos se torna a da tirania;

A homónoia é assim o estado de equilíbrio produzido pelo exercício da singularidade e do interesse egoísta levado até o extremo: novamente a mistura democrática tira partido dos próprios defeitos. Há aí uma astúcia objetiva, não da razão, mas da democracia. Com a condição — é preciso talvez enfatizá-lo mais uma vez — de que o movimento não cesse: a democracia é o contrário de uma "ideia", consiste apenas no seu devir. Aí se encontra, para aquém de Aristóteles, a prática sofística, e inclusive o gesto exemplar de Heráclito narrado por Plutarco16: a seus concidadãos que lhe perguntavam o que pensava da homónoia, Heráclito teria respondido preparando um kykeón (mistura sem dúvida de água, de farinha de cevada e de menta), agitando-o "sem dizer uma só palavra... diante dos efésios estupefatos", antes de bebê-lo e de se retirar. Pois é a mistura, e o movimento criador de mistura, que faz consenso em democracia. [p. 94]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 90 a 94).

 

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