Sofística
(uma biografia do conhecimento)
22.4 - O princípio de não-contradição e sua confusão.
É Barbara Cassin quem diz:
“Face à ontologia, a tese sofística e a tese lacaniana são apenas uma: o ser é um "efeito de dizer", "um fato de dito" (Encore, 107). É exatamente sobre esse ponto, nesse posicionamento, que Lacan me parece dever ser chamado sofista. Bem entendido, os sofistas, à diferença de Lacan, foram bem mais exclusivamente práticos, pedagogos e oradores, não deixando reflexões sobre a sua prática. Por outro lado, já se percebeu isso, é [p. 304] sempre também com pesar que Lacan constata que não é parmenideano, platônico, aristotélico, heideggeriano, filósofo. Enfim, é evidente, Lacan dispõe de outros conceitos, em particular os da subjetividade e os da linguística. Mas se os dois mundos são, apesar de tudo, comparáveis, é exatamente e para resumir, porque os sofistas e Lacan têm o mesmo outro, o regime filosófico “normal” do discurso. Indiquemos simplesmente que a definição mais adequada desse regime normal deve ser construída a partir o libro Gama da Metafísica de Aristóteles, onde a demonstração do princípio de não-contradição só se sustenta pela confusão expressar entre "dizer" e "significar alguma coisa que tenha o mesmo sentido para si mesmo e para outrem". Essa identificação é explicitamente elaborada por Aristóteles como um contragolpe à sofística. É então menos plausível que um regime antearistotélico e um regime pós-aristotélico como a psicanálise possam se comunicar em seu não, e mesmo seu anti, aristotelismo.
Para explicitar essa posição que se pode nomear, com um termo de Novalis, "logológica", tentarei colocar lado a lado citação lacaniana supostamente mais familiar ao leitor analista e citação sofística.
O ser é um fato de dito: isso significa simplesmente que não há nenhuma realidade pré-discursiva. Cada realidade se funda e se define por um discurso" (Encore, 33). É preciso inverter o sentido do sentido, que não vai do ser ao dizer, mas do dizer ao ser, ou, nos termos do Tratado do não-ser de Górgias: "Não é o discurso que indica o exterior, mas o exterior que vem revelar o discurso" (Sextus Empiricus, Adv. Math., VII, 85). Assim, "a realidade", "o exterior", em uma palavra o ser, longe de ser anterior, se conforma, sempre posteriormente, ao discurso que efetuou sua predição, e tem sua existência, assim como Helena, essa concreção fetichizada de sopro, apenas por ter sido discursado. [Osório diz: texto maravilhoso. O ser como efeito do dizer!]
Que o ser seja um fato de dito convida a tomar precauções no que concerne à significação. A precaução elementar que levaria a refletir sobre a especificidade do escritor é, sem dúvida, a de "distinguir a dimensão do significante". "Distinguir a dimensão do significante só tem importância por formular que, aquilo que vocês ouvem, no sentido auditivo do termo, não tem [p. 306] nenhuma relação com o que isso significa" (Encore, 31). E assim como a logologia não procede do ser ao dizer mas do dizer ao ser, não se irá do significado ao significante, mas inversamente: “o significado não é o que se ouve. O que se ouve é o significante. O significado é o efeito do significante” (p. 34).
Os sofistas não utilizaram, como os estóicos, esse tipo de terminologia. Por outro lado, é manifesto que sua crítica da ontologia se apoia na autonomia de um discurso definido como som, em termos de ouvir e de escutar — a voz de Helena:
Da mesma forma que a vista não conhece os sons da voz, o ouvido não ouve cores mas sons, e aquele que diz diz mas não uma cor nem uma coisa... Pois, para começar, ele não diz uma cor, mas um dizer. De modo que não existe nem conceber nem ver cor, não há mais do que ruído, há apenas ouvir (Tratado do não-ser, 10).
A psicanálise, como a sofística, faz soar o significante, é por isso que Lacan lacaniza e Górgias, seus contemporâneos diziam com não menos odioamoração, "gorgianiza". Com efeito, o grande recurso do significante é o de baralhar a certeza do sentido — desde Aristóteles, sentido único, "o um sentido" — jogando com o equívoco: "A interpretação... não é interpretação de sentido, mas jogo com o equívoco. É por isso que coloquei ênfase sobre o significante na língua (Roma, 552). Poder-se-ia reler, para censurar L'Etourdit, as Refutações sofísticas de Aristóteles onde, após ter deplorado o pecado original da língua — há menos palavras do que coisas e falamos, em suma, como com as pedrinhas utilizadas para fazer cálculos —, ele acua o equívoco característico dos sofismas. Os sofismas que dizem respeito a confusões no pensamento são fáceis de refutar, utilizando as características ontológicas, lógicas e físicas para definir; mas contra os que dizem respeito apenas à elocução (léxis), por exemplo, ao acento, ao encadeamento e à divisão das sílabas e das palavras, à cadência da voz, logo, aos puros jogos de significante, Aristóteles pode fazer apenas um simples retorno ao emissor e um banimento para, exatamente, a insignificância. Insignificância que entretanto o chiste sabe bem tornar falante.
Que o ser seja um fato de dito convida a tomar precauções no que concerne à significação. A precaução elementar que levaria a refletir sobre a especificidade do escritor é, sem dúvida, a de "distinguir a dimensão do significante". "Distinguir a dimensão do significante só tem importância por formular que, aquilo que vocês ouvem, no sentido auditivo do termo, não tem [p. 306] nenhuma relação com o que isso significa" (Encore, 31). E assim como a logologia não procede do ser ao dizer mas do dizer ao ser, não se irá do significado ao significante, mas inversamente: “o significado não é o que se ouve. O que se ouve é o significante. O significado é o efeito do significante” (p. 34).
Os sofistas não utilizaram, como os estóicos, esse tipo de terminologia. Por outro lado, é manifesto que sua crítica da ontologia se apoia na autonomia de um discurso definido como som, em termos de ouvir e de escutar — a voz de Helena:
Da mesma forma que a vista não conhece os sons da voz, o ouvido não ouve cores mas sons, e aquele que diz diz mas não uma cor nem uma coisa... Pois, para começar, ele não diz uma cor, mas um dizer. De modo que não existe nem conceber nem ver cor, não há mais do que ruído, há apenas ouvir (Tratado do não-ser, 10).
A psicanálise, como a sofística, faz soar o significante, é por isso que Lacan lacaniza e Górgias, seus contemporâneos diziam com não menos odioamoração, "gorgianiza". Com efeito, o grande recurso do significante é o de baralhar a certeza do sentido — desde Aristóteles, sentido único, "o um sentido" — jogando com o equívoco: "A interpretação... não é interpretação de sentido, mas jogo com o equívoco. É por isso que coloquei ênfase sobre o significante na língua (Roma, 552). Poder-se-ia reler, para censurar L'Etourdit, as Refutações sofísticas de Aristóteles onde, após ter deplorado o pecado original da língua — há menos palavras do que coisas e falamos, em suma, como com as pedrinhas utilizadas para fazer cálculos —, ele acua o equívoco característico dos sofismas. Os sofismas que dizem respeito a confusões no pensamento são fáceis de refutar, utilizando as características ontológicas, lógicas e físicas para definir; mas contra os que dizem respeito apenas à elocução (léxis), por exemplo, ao acento, ao encadeamento e à divisão das sílabas e das palavras, à cadência da voz, logo, aos puros jogos de significante, Aristóteles pode fazer apenas um simples retorno ao emissor e um banimento para, exatamente, a insignificância. Insignificância que entretanto o chiste sabe bem tornar falante.
Para o prazer/em pura perda
É preciso refletir ainda sobre a ficção de palavra, creio, para levantar um último problema: o da ética. Lacan o assinala em Encore: "A ficção a partir da palavra... foi daí que parti quando falei da ética" (p. 107). Em sua intervenção de Roma, ele esboça uma bipartição entre a posição que se deve, em virtude de seu próprio nome, qualificar de filosoficamente moral: a do Da-Sein, que ele mesmo ocupava então; e a do analisando, que se define por ter a dizer seja o que for: "Ele se regozija com alguma coisa... porque tudo indica, tudo deve mesmo lhes indicar que vocês não lhe pedem de forma alguma apenas para "daisenar", para estar aí como eu estou agora, mas antes e bem ao contrário, para experimentar essa liberdade de ficção de dizer seja o que for" (p. 558). De um lado então o "o ser aí", "o aí do ser", seu "pastor", o homem de Parmênides a Heidegger via Aristóteles; do outro, o discurso puro, embriagado, "hibrístico", sobre o qual Aristóteles não sabe se ele caracteriza uma planta (aliás: que faz exatamente o lírio do campo? se pergunta Lacan, 556), ou bem um deus, mas que em todo caso bane o sofista, e seria necessário acrescentar, o analisando, fora da comunidade filosófico-humana [Osório diz: mas ele pertence a essa comunidade! Falta recurso para caracterizá-lo? Classificá-lo?]. Por não poder descrever aqui a Metafísica de Aristóteles, contentar-me-ei em citar a condenação de Heidegger quando comenta "o princípio de contradição [Osório diz: “o ser é, o não-ser não é” - Parmênides. “O ser não pode ser e não ser - Aristóteles] enquanto [p. 308] princípio do ser": "Ao sabor de afirmações contraditórias que o homem é capaz de de produzir à vontade sobre uma só e mesma coisa, ele mesmo sai de sua própria essência para entrar na não-essência: rompe toda relação com o ente enquanto tal"' (Nietzsche, l, 468, trad. Klossowski). Aí se vê o motivo das reticências de Lucan que, por ser analisando, não é por isso menos homem. Mas não se poderia duvidar que ele tome mais frequentemente o partido de "alíngua onde o gozo se deposita" 556) e não participe por esse fato da presunção dos primeiros sofistas: "Gabo-me por ser capaz de fazer, em uma frase, qualquer palavra dizer qualquer sentido" (p. 55). Mais uma vez com o remorso que faz com que, gozando, não se tenha o coração alegre:
Tenho a impressão de que a linguagem é verdadeiramente o que só pode avançar torcendo-se e enrolando-se, deformando-se de um modo do qual não posso dizer que eu não dê aqui o exemplo. Não se deve acreditar que, para aceitar seu desafio, para marcar em tudo que nos concerne a que ponto dependemos dela, não se deve acreditar que eu faça isso com muita alegria no coração. Preferia que isso fosse menos tortuoso (p. 560).
O que o leva a concluir: "Perdão por ter falado tanto tempo" (p. 567).
Aristóteles fazia a distinção entre os antigos físicos, cheios de boa vontade mas perdidos na aporia do sensível e que se enredam na contradição para dizer mais adequadamente o devir, e os sofistas irredutíveis: estes não podem ser persuadidos, mas com eles é preciso usar de "violência", pois é preciso "refutar o que há nos sons da voz e nas palavras". Essa violência é, aliás, perfeitamente inoperante, eles continuam, imperturbáveis a enunciar os contraditórios, "estimando que têm o direito de dizer contrários desde que o digam" (Metafísica, Gama, 6, 1011a 15-16). É que eles falam lógou chárin, como se poderia traduzir, "graças ao discurso", "em vista do discurso", "pelo prazer de falar". Lacan define a psicanálise como Aristóteles a sofística, com uma inversão reveladora dos séculos aristotélicos, da reticência cristã em relação ao dionisíaco, mas também ao prazer da perda e ao próprio odioamoração: "A psicanálise, a saber a objetivação daquilo que o ser falante passa ainda o tempo a falar em pura perda" (Encore, 79)”. [p. 309]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 304 a 308).