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22.10 – Aristóteles contra Platão.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

22.10 – Aristóteles contra Platão.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

A qualidade da parte não é, como num corpo ou para Platão, a de ser adaptada ao todo e de permanecer em seu lugar; ela é somente a de ter uma qualidade qualquer, da qual o todo vai se apropriar. Em Platão, o todo otimiza as partes, fazendo de suas insuficiências como indivíduos a condição de sua qualidade, de sua qualificação como órgãos. Em Aristóteles, o todo otimiza as partes, retendo apenas suas qualidades e compondo-as. Com a imagem do piquenique (é assim que L.S.J. traduz tá symphoretá) retomada em 1286a29, é a diversidade por si só que constitui a [p. 91] qualidade, pois o que seria se, ao invés do "com", tivéssemos um "mesmo", e se todos trouxessem tomates?

Democracia ou aristocracia? (1281a 39-41). O alia alinha o argumento dos aristocratas ao dos democratas: a multidão guarda o melhor daqueles que a compõem, assim como os virtuosos em política reúnem neles as qualidades esparsas nuns e noutros. O segundo problema é o da relação entre o objeto pintado e a pluralidade de seus modelos. Tricot traduz: “os elementos disseminados aqui e ali foram reunidos sob uma mesma cabeça, já que, considerados pelo menos separadamente, o olho de uma pessoa em carne e osso, ou qualquer outro órgão de uma outra pessoa, são mais belos do que o olho ou o órgão desenhado”. A parte que serve de modelo é nesse caso superior à parte resultante: quer dizer que se perde alguma coisa quando se reúne, logo, que as qualidades da multidão ou do homem virtuoso são inferiores às qualidades tomadas uma a uma nos indivíduos. Ora, é o contrário que se deve demonstrar: a reunião reúne a cada vez somente o que há de melhor na multidão, no homem virtuoso, num quadro. Para Platão, a parte não deve ser ótima, é preciso mesmo que não o seja por si, a fim de que o todo o seja. Para Aristóteles, o todo só retém o ótimo: como testemunham aliás suas notas ad doc, Tricot cai aqui no platonismo. O litígio é muito circunscrito: trata-se da função de toü gegramménou, 14. Se ele é complemento do comparativo, kállion, então o olho do modelo é na verdade "mais belo do que o olho pintado". Se é um genitivo de posse, então escolheu-se por sua beleza o olho de um tal, reproduzido na pintura. Reconheçamos que a construção proposta por Tricot é aquela que vem imediatamente ao espírito; [p. 91]

Enfim, a diversidade pode ser mesmo substituída pelo número. É então a quantidade que é por si só uma qualidade, como testemunha, para além da louca imagem do corpo tentacular12, a última comparação que serve para justificar o fato de que "a massa dos cidadãos", quer dizer, "todos os que não têm nem riqueza nem qualificação para a virtude, nem mesmo uma" (to plëthos ton politôn. . . hósoi mete ploúsioi mete axioma échousin aretês mede hén, 1281b 24s.), participam do deliberativo e do judiciário:

pois todos têm, quando estão reunidos (synelthóntes), uma sensibilidade suficiente e, misturados com os melhores, eles ajudam a cidade, exatamente como um alimento que não foi purificado acrescentado a uma pequena quantidade de alimento puro torna o todo mais nutritivo; enquanto que a cada um tomado separadamente falta maturidade no julgamento (1281a 34-38).

Essa dietética está muito longe do modelo orgânico.

Talvez certas misturas físicas procedam assim a decantações, depurações automáticas: o resíduo se elimina por si só, caindo no fundo. Mas sem dúvida é mais correto supor que esteja aí a singularidade desse objeto que é a cidade, pois, qualquer que seja sua constituição ou seu regime, ela se define por ser "uma pluralidade de cidadãos" —, até mesmo a própria especificidade do político: constituir por si, entre todas as misturas, um tal procedimento de decantação. [p. 92]

12. Imagem retomada em III, 16, 1287b 25-31, a propósito do interesse de que haja muitos magistrados:

Pois cada magistrado julga bem quando foi bem formado pela lei e é sem dúvida absurdo que alguém veja com dois olhos, julgue com duas orelhas, aja com duas mãos e dois pés, melhor do que muitos com muitos; de fato, os monarcas se tornam muitos olhos, orelhas, mãos e pés: eles aliam a seu poder aqueles que amam seu poder e sua pessoa.

Seria interessante se perguntar como essa imagem de um corpo com pletora de órgãos se torna a da tirania;

A homónoia é assim o estado de equilíbrio produzido pelo exercício da singularidade e do interesse egoísta levado até o extremo: novamente a mistura democrática tira partido dos próprios defeitos. Há aí uma astúcia objetiva, não da razão, mas da democracia. Com a condição — é preciso talvez enfatizá-lo mais uma vez — de que o movimento não cesse: a democracia é o contrário de uma "ideia", consiste apenas no seu devir. Aí se encontra, para aquém de Aristóteles, a prática sofística, e inclusive o gesto exemplar de Heráclito narrado por Plutarco16: a seus concidadãos que lhe perguntavam o que pensava da homónoia, Heráclito teria respondido preparando um kykeón (mistura sem dúvida de água, de farinha de cevada e de menta), agitando-o "sem dizer uma só palavra... diante dos efésios estupefatos", antes de bebê-lo e de se retirar. Pois é a mistura, e o movimento criador de mistura, que faz consenso em democracia. [p. 94] (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 91 a 94).

 

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