visão geral

Você está aqui: Home | Sofistas da Atenas de Péricles | Visão geral

29 – Cronologia do embate entre os Sofistas e os demais pensadores.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

29 – Cronologia do embate entre os Sofistas e os demais pensadores.

 

Entendemos que olhar a cronologia da história da Filosofia, no caso, é muito importante, pois nos ajuda compreender a razão da exposição e a sua contestação, especialmente por demonstrar que aqueles que foram contraditados em seus ensinamentos já não estavam vivos quando isso ocorreu, portanto, não tiveram oportunidade de efetuarem uma refutação de seus contraditores, tendo essas ficado a cargo de ex-discípulos e, muitas vezes, de totais desconhecidos deles.

 

Embora haja a possibilidade de penetração de um movimento em outro, se superpondo, assim, as datas de nascimento e morte, para a nossa exposição vale o seguinte:

 

a) Os pré-socráticos:

 

a.1 “Tales”, 624 a 547.

 

a.2 “Heráclito”, estava vivo por volta de 504 - 500.

 

a.3 “Parmênides”, estava vivo por volta de 475 - 500.

 

a.4 “Demócrito”, 460 a 370.

 

b) Os Sofistas:

 

b.1 “Protágoras”, 492 - 422. (deu lei a Túrio em 444).

 

b.2 “Górgias”, 485 ou 480 ¨C 380 (ou seja, morre cerca de 100 de idade).

 

c) Platão e Aristóteles:

 

c.1 “Platão” 428 ou 427 – 348-347.

 

c.2 “Aristóteles”, 384 – 322.

 

Outras datas significativas:

 

Péricles, 495/492 – 429.

 

Sócrates, 469 – 399.

 

Guerra do Peloponeso, “431 – 404.

 

Quando Platão e Aristóteles nascem, Protágoras já estava morto.

Quando Platão nasce, Górgias já contava com cerca de 50 anos de idade. Já Aristóteles nasceu cerca de quatro anos após a morte de Górgias.

Diz Ateneu, como já informado acima, que, certa feita, mostraram a Górgias o diálogo homônimo de Platão que leva seu nome, ao que ele teria dito: “Que bem que Platão sabe satirizar!”.

 

O primeiro embate entre Sofistas e filósofos.

 

Ocorre, justamente, entre um pré-socrático, Parmênides, e um Sofista, Górgias.

Parmênides expõe seu pensamento no seguinte poema:

 

As éguas que me levam tão longe quanto possa aspirar meu coração formavam meu séquito:

tinham-me conduzido e colocado na célebre trilha do deus que leva o homem de conhecimento [...]

Ali encontrava-me eu sendo carregado; pois que as sábias éguas a mim transportavam, puxando meu carro, enquanto as donzelas indicavam o trajeto.

O eixo no mancal bramia de seu encaixe e ardia — pois era conduzido por duas rodas que giravam em cada extremidade —

enquanto as virgens, filhas do sol, se apressavam para acompanhá-lo,

tendo deixado a morada da Noite para a luz e arrancado, com as mãos, os véus que lhes cobriam a cabeça.

Encontram-se ali os portais das trilhas da Noite e do Dia, uma verga e uma soleira de pedra a guarnecê-los.

Eles próprios, os portais que a grande altura no éter se elevam, são vedados por imponentes portas,

e por toda a noite a vingadora Justiça guarda suas chaves alternantes.

A ela as donzelas abrandaram com doces palavras, persuadindo-a, com habilidade, a remover prontamente dos portais a tranca aferrolhada.

Retrocedendo em voo abriram elas um largo vão entre as portas, girando em sentido oposto as brônzeas articulações, ajustadas com cavilhas e chavetas.

E através delas conduziram as virgens o carro e as éguas diretamente à ampla estrada.

E a deusa afavelmente acolheu-me, tomando-me a mão direita nas suas;

e assim falou dirigindo-se a mim:

Jovem varão, companheiro das imortais aurigas e por estas éguas conduzido à minha morada, eu te saúdo.

Pois que não foi nenhuma sina cruel que te lançou em viagem por essa via (pois é grande sua distância da trilha dos homens), mas sim o Direito e a Justiça.

Deves instruir-te em tudo quanto há,

tanto no inabalável cerne da verdade persuasiva, [151]

como na opiniões dos mortais,

em que não reside nenhuma confiança legítima". [28 B 1.1-30]

...

 

Deves instruir-te em tudo quanto há,

tanto no inabalável cerne da verdade bem torneada,

como na opiniões dos mortais,

em que não reside nenhuma confiança legítima.

Não obstante, aprenderás também estas coisas - como as aparências tiveram confiabilidade para, eternamente, a tudo permear. [B 1.28-32]

...

Tanto no inabalável cerne da verdade radiante

como nas opiniões dos mortais,

em que não reside nenhuma confiança legítima; [B 1.29-30]

...

Mas vem, e eu te direi - e guarda minhas palavras quando as escutares os únicos caminhos de investigação concebíveis:

o primeiro, que é e não pode não ser,

é o caminho da persuasão (pois que é acompanhado pela verdade);

o outro, que não é e que não deve ser

refiro-me a uma trilha destituída de todo conhecimento. [B 2.1-6] [152]

...

Pois não poderias reconhecer aquilo que Pião é (pois não cabe fazê-lo),

tampouco poderias mencioná-lo. [B 2.7-8]

...

Pois que as mesmas coisas podem ser pensadas e podem ser. [B 3]

...

Aquilo que é para ser e para pensar deve ser; pois lhe é possível, mas não ao que nada é. [B 6.1-2]

...

pois lhe é possível ser,

mas não ao que nada é. Isto te rogo que consideres.

Pois dessa primeira via da investigação <eu te afasto>, [B 6.1-3] <ele acrescenta>

e também do caminho ao longo do qual os mortais que nada sabem vagueiam, cabeças duplas;

pois que a impotência em seus peitos conduz-lhes o pensamento errante.

E deixam-se levar como surdos e cegos, multidões atônitas e desprovidas de discernimento,

para as quais ser e não ser tidos como iguais e desiguais; e o caminho para todas as coisas retorna a si mesmo. [B 6.4-9]

...

Jamais se provará isso, que o não-ser é:

afasta teu pensamento dessa via da investigação. [B 7.1-2]

...

Afasta teu pensamento dessa via da investigação,

e não permitas que o hábito, alicerçado em larga experiência, te force a esta via percorrer, [154]

dirigindo o olhar cego, os ouvidos ressoantes e a língua;

mas julga segundo a razão a prova muito contestada que te revelei. Somente uma história, um caminho, resta narrar agora. [B 7.2-6]

...

Somente uma história, um caminho resta narrar agora: aquele que é.

E sobre este abundantes são os indícios de que, sendo, é

não-gerado e imperecível,

total, único, inabalável e completo.

Tampouco foi, ou será, uma vez que é agora, todo junto, uno, contínuo.

Pois que origem se lhe poderá encontrar? Como, de onde, se desenvolveu?

Que tenha vindo do que não é, não admitirei que pronuncies ou concebas – pois que não é pronunciável ou concebível que o não-ser seja.

E qual necessidade o teria impelido, mais cedo ou mais tarde, a desenvolver-se – tivesse se originado de nada?

Por conseguinte, deve absolutamente ser ou não ser. Tampouco, a força da convicção permitirá surgir daquilo que é outra coisa além de si.

Por essa razão não relaxou a justiça seus grilhões para deixá-lo nascer ou perecer, mas firme o mantém.

A decisão nessas questões jaz no seguinte: é ou não é.

Mas foi decidido, conforme o necessário, abandonar uma via inominada (pois que não se trata de um caminho verdadeiro), e de considerar a outra como sendo e sendo verdadeira.

Como poderia, então, perecer o que é?

Como poderia ter sido gerado? [155]

Pois em sendo gerado, não é, tampouco é se alguma vez vier a ser.

Portanto, a geração é extinta e o perecimento inaudito.

Tampouco é dividido, uma vez que é totalmente homogêneo– nem é mais aqui (o que lhe impediria a coesão) nem menos; mas totalmente pleno do que é.

Por conseguinte, é todo contínuo; pois aquilo que é adere ao que é.

E, imóvel nos limites de grandes cadeias, é sem início e incessante,

uma vez que a geração e a destruição para longe se afastaram, e a legítima verdade expulsou-as.

O mesmo e o remanescente no mesmo estado, repousa em si próprio, e assim permanece fixo em seu lugar.

Pois a poderosa necessidade o mantém encerrado em um limite que o circunda por toda volta,

pois é acertado que o que é não deva ser incompleto. Pois não é carente – do contrário, de tudo careceria.

O mesmo é pensar e o pensamento de que o ser é. Pois que desprovido do que é, no qual foi expresso, não encontrarás o pensamento.

Pois que nada é ou será se não o que é, uma vez que a sorte o agrilhoou de modo a ser inteiro e imóvel.

Por conseguinte, todas as coisas são um nome que os mortais atribuem e confiam em que seja verdade

geração e perecimento, ser e não ser,

mudança de lugar e alteração no brilho das cores.

E uma vez existindo um limite último, este se completa em todos os lados,

como uma massa ou uma esfera perfeitamente redonda,

igual em todas as direções a partir do centro. Pois que não deve ser absolutamente maior ou menor aqui ou ali.

Pois tampouco existe coisa alguma que não seja,

que pudesse detê-la de alcançar seu igual,

tampouco coisa alguma que seja de tal maneira que pudesse estar mais aqui ou menos ali do que aquilo que é, uma vez que é todo, inviolável. [156]

Portanto, igual a si mesmo em todos os lados, jaz uniformemente em seus limites.

Encerro aqui minha argumentação e reflexões fidedignas acerca da verdade. Doravante, assenhora-te das opiniões mortais,

dando ouvidos à enganadora ordem de minhas palavras. [B 8.1-52]

...

Observa as coisas que, embora ausentes, têm uma sólida presença no pensamento;

pois não hás de arrancar o que é de sua ligação com o que é, nem o dispersando por toda parte no universo

nem o reunindo. [B 4].

 

Pois aquele que tem esperança, como aquele que tem fé, enxerga com sua mente os objetos do pensamento e as coisas vindouras. (Clemente, Miscelâneas V, iii 15-5)

...

Pois aquilo que adere ao que é, [B 8.251

...

é indiferente para mim

onde comece, pois para ali deverei retornar, [B 5] [157]

...

Encerro aqui minha argumentação e reflexões fidedignas acerca da verdade. Doravante, assenhora-te das opiniões dos mortais;

dando ouvidos à enganadora ordem de minhas palavras. Pois elas determinaram em seu entendimento nomear ditas formas,

uma das quais não deveria sê-lo – e neste ponto equivocaram-se.

E distinguiram-nas como opostas em forma e estabeleceram sinais para elas,

separadamente uma da outra, de um lado a etérea chama do fogo,

suave e muito leve, idêntica a si mesma em todas as direções e não idêntica à outra; e aquela outra em si mesma é oposta – a noite obscura, de forma densa e pesada. Todo esse arranjo verossímil a ti revelo

de sorte que jamais sejas vencido por nenhum pensamento mortal [B 8.50-61]. (Fonte: Filósofos pré-socráticos. Jonathan Barnes. Tradução de Julio Fischer. Martins Fontes. São Paulo. 2003, p. 151-158).

 

Seus intérpretes irão dizer que este poema funda a “ontologia”, que nada mais é que “a ciência do ser”.

 

Mas a parte fundamental do poema acima, e que vai chamar a atenção de Górgias, é a decorrente da afirmação de Parmênides que diz:

 

1) o ser é (e o não-ser não é),

 

2) o ser é o mesmo que pensar (logo o ser é pensável) e

 

3) o não-ser não pode ser dito (mas o ser pode ser dito).

 

Diz Luís Felipe Bellintani Ribeiro, que a resposta de Górgias a isto virá com o seu “Tratado do não-ser”, onde ele explica:

 

Em seu Poema, Parmênides diz: 1) o ser é (e o não-ser não é), 2) o ser é o mesmo que pensar (logo o ser é pensável) e 3) o não-ser não pode ser dito (mas o ser pode). Pois o Acerca do não-ser diz: 1) coisa alguma é (nem o ser, nem o não-ser), 2) mesmo que algo fosse, não poderia ser pensado, 3) mesmo que algo fosse e pudesse ser pensado, não poderia ser comunicado a outrem. Portanto, tomado como réplica ao Poema, e não isoladamente, esse texto de Górgias produz de novo o efeito da antilogia. Mas a réplica não é uma mera inversão arbitrária, ela usa as mesmas armas da ontologia.

É por isso que o título Perì toû mè óntos é só uma alternativa ao primeiro título, Perì phýseos, Acerca da natureza, o mesmo título das obras dos filósofos pré-socráticos. A primeira das três teses se funda numa argumentação aparentemente tão “racional” quanto parece ser o truísmo “o ser é, o não-ser não é”. Se algo fosse, diz o texto, este ou bem seria o ser, ou bem seria o não-ser, ou bem seria o ser e o não-ser ao mesmo tempo. A eliminação das duas últimas possibilidades vai por si, desde os princípios da não-contradição e do terceiro-excluído. Problemático parece afirmar que sequer o ser é. Mas, se o ser fosse, continua, ou bem seria eterno, ou bem seria gerado. Se fosse eterno, não teria começo, meio e fim, não teria limite, não teria termo, mas nenhum ente é infinito, ilimitado e indeterminado, logo o ser não é eterno. Se fosse gerado, ou bem o seria desde o ser ou bem o seria desde o não-ser, mas, se o não-ser [90] pudesse gerar algo, não seria não-ser, seria antes ser, e, se o ser fosse gerado desde o ser, isso não seria uma geração, pois o ser já seria antes, logo o ser não é gerado. E, se não é nem eterno nem gerado, não é absolutamente. Górgias ainda opera seu jogo destrutivo manipulando as noções de uno e múltiplo, mas o espírito do jogo é este. Simples brincadeira? Ou desmascaramento da brincadeira encerrada na seriedade da ontologia?” (Fonte: História da filosofia - I. Luís Felipe Bellintani Ribeiro. UFSC. Florianópolis. 2008, p. 90-91).

 

As outras duas teses falam mais diretamente da posição gorgiana propriamente dita. Ora, se nem tudo que se pensa existe, como sustentar a identidade entre ser e pensar? Se a linguagem diz palavras e não as coisas, como a onto-logia seria mais que logo-logia? Veja-se o próprio texto (in: Sexto Empírico Adversus Mathematicus , VII, 65 seqq. Tradução: Fernando Santoro):

Górgias de Leontini de um lado fundamentou e pertenceu à mesma legião dos que refutam o critério, porém, não com o mesmo propósito dos seguidores de Protágoras, pois na obra intitulada Acerca do não-ser ou Acerca da natureza demonstra três proposições capitais. Uma e também primeira é que “nada existe”, a segunda que “e se existe, é incompreensível aos homens, e a terceira que “e se é compreensível, é, no entanto, realmente impossível de ser divulgado e interpretado para o próximo”.

Ora, que realmente nada existe ele argumenta desse modo: se existe algo, ou bem é o ser que existe ou o não-ser, ou tanto o ser existe quanto o não-ser. Porém, nem existe o ser, como se vai sustentar, nem o não ser, como se emendará, nem o ser e o não-ser, como se ensinará; portanto não existe coisa alguma.

E com certeza o não-ser não existe. Pois se o não-ser existisse, existiria ao mesmo tempo que não existiria: enquanto for pensado que não é, não existirá; mas enquanto existir um não-ser, ao contrário, existirá. Então resulta um completo absurdo: o de existir algo e ao mesmo tempo não existir; portanto não existe o não-ser. E se, pelo avesso, o não-ser existisse, o ser não existiria: pois frente a frente eles são avessos um ao outro, e, se para o não-ser tivesse coincido o existir, para o ser teria de coincidir o não existir. Mas, por outro lado, não é o ser o que não existe, e, assim, também não é o não-ser que existirá.

E ainda nem o ser existe. Pois, se o ser existe, ou é eterno, ou é gerado, ou é eterno e gerado ao mesmo tempo. Mas não é eterno, nem gerado, nem ambos, como demonstraremos: então não existe o ser. Pois, se o [91] ser é eterno (comecemos por aqui), não tem começo algum, pois tudo que nasce tem algum começo, enquanto o eterno, estabelecido como não gerado, não tem começo. Não tendo começo é então ilimitado. Se é ainda ilimitado, não está em nenhum lugar. Pois, se está em algum lugar, é diferente de si aquilo onde está, e assim não mais será ilimitado o ser, se for contido em algo. Pois é próprio do continente ser maior do que o contido, mas nada é maior do que o ilimitado, de modo que o ilimitado não está em nenhum lugar.

E também nem em si mesmo está contido, pois o mesmo existiria sendo o “em quê” e o “em si mesmo”, e o ser se repartiria em dois, lugar e corpo: de um lado, o lugar, o “em quê”, de outro lado, o corpo, o “em si”. Mas isso é certamente absurdo. Com efeito, nem em si mesmo está o ser. De modo que, se o ser é eterno, é ilimitado, e, se é ilimitado, não está em nenhum lugar, e, se não está em nenhum lugar, não existe. Com efeito, se o ser é eterno, nem no princípio o ser é.

E o ser também não pode existir sendo gerado. Pois, se foi gerado, com certeza foi gerado de um ser ou de um não-ser. Porém não foi gerado do ser: pois, se é um ser, não foi gerado, mas já existia; nem tampouco do não-ser, pois o não ser não pode gerar algo, porque necessariamente aquele que gera deve participar da existência. Portanto o ser não é nem gerado.

Por isso mesmo nem é as duas alternativas juntas, eterno e ao mesmo tempo gerado: pois elas se ato-destroem e, se o ser fosse eterno, ele não seria gerado, e, se gerado, não existiria eternamente. Portanto, se o ser não é eterno, nem gerado, nem ambos, não poderia existir o ser.

E ainda, se existe, então é uno ou múltiplo; mas nem é uno, nem é múltiplo, como será sustentado, então não existe o ser. Pois, se é uno, então é uma quantidade, ou uma continuidade, ou uma grandeza, ou um corpo. Mas que seja algum desses e não será uno, porque, se for estabelecido como quantidade, será divisível, e, sendo uma continuidade, seccionável; semelhantemente, também, se pensado como grandeza, não existiria como indivisível. Como corpo, porém, ocorrerá de existir tríplice em dimensões, pois terá tanto comprimento, quanto largura e profundidade. Mas é absurdo dizer que o ser não é nada disso, portanto o ser não é uno.

Nem tampouco é múltiplo. Pois, se não é um, também não é múltiplo: pois o múltiplo é uma união de uns, e, como o um foi refutado, refutou-se junto com ele o múltiplo.

E com isso fica então manifesto que nem existe o ser, nem o não-ser. [92]

Que também não existem juntos, tanto o ser, quanto o não-ser, é fácil de deduzir. Pois, se o ser e o não-ser existem, serão o mesmo quanto à existência o ser tanto quanto o não-ser, e, quanto a isso, nenhum dos dois existem. Pois, que o não-ser não existe, já concordamos; foi explicado também que o ser se apresenta do mesmo modo e como tal não existirá.

Além disso, sendo o não-ser o mesmo que o ser, não podem existir juntos, pois, se os dois existem juntos, não são o mesmo, e, se são o mesmo, não existem ambos ao mesmo tempo.

Conclui-se com isso que nada existe. Se, pois, nem o ser existe, nem o não-ser, nem ambos juntos, e, como fora disso, nada é pensável, nada existe.

Que algo sequer existisse, o mesmo não seria cognoscível, como também não seria pensável pelos homens, é o que deve ser demonstrado em seguida. Se, pois, as coisas pensadas, afirma Górgias, não são coisas existentes, o ser não é pensado. E, segundo a linguagem: do mesmo modo que, se coincidisse nas coisas pensadas de existir o branco, também no branco coincidiria o ser pensado; assim, se às coisas pensadas coincidir de não existirem, necessariamente coincidirá de não existir algo em que se pensa.

Por isso nosso resultado, que “se as coisas pensadas não existem, então o ser não é pensado”, estará são e salvo. Mas certamente as coisas pensadas (antecipando, pois) não são existentes, como sustentaremos, portanto o ser não é pensado. Mas que as coisas pensadas não são existentes é evidente.

Pois, se as coisas pensadas são existentes, tudo o que é pensado existe por onde quer que se pense, o que é inverossímil. E que o é é fácil demonstrar, pois ninguém pensa num homem voando ou em carros correndo em pleno mar, e em seguida um homem voa ou carros correm em pleno mar, de modo que as coisas pensadas não são existentes.

Paralelamente, se as coisas pensadas são existentes, as não existentes não serão pensadas; pois para os contrários coincide o contrário, e ao ser é contrário o não-ser. Por tudo isso, se ao ser coincide o ser pensado, ao não-ser coincidirá o não ser pensado. Mas isso é absurdo: pois Scyllas e Quimeras e muitas coisas que não existem são pensadas. Portanto, o ser não é pensado.

Como as coisas visíveis, pela visualização mesma são ditas que são vistas, e as coisas audíveis, pela audição mesma que são ouvidas; e, de um [93] lado, não descartamos as coisas visíveis pelo fato de não serem audíveis, nem repudiamos as coisas audíveis pelo fato de não serem vistas (pois é vantajoso distinguir cada coisa pela sensação que lhe é peculiar e não por outra), também as coisas pensadas, mesmo se não são vistas pela vista, nem ouvidas pelo ouvido, existirão, pelo fato de serem apreendidas pelo critério apropriado.

Se, com efeito, alguém pensar que carros correm em pleno mar e no entanto não avistar o mesmo, deve acreditar que existem carros correndo pelos mares. Mas isso é absurdo: portanto o ser não é pensado nem compreendido.

E, mesmo se for compreendido, não pode ser comunicado a outrem, pois, se as coisas que existem são visíveis e audíveis e perceptíveis por sensações comuns como coisas que subsistem de fora, do mesmo modo que, de um lado, as coisas visíveis devem ser compreendidas se vendo e, de outro lado, as audíveis, se ouvindo, e não o inverso, como alguém poderá revelá-las para outrem?

Pois o meio pelo qual nós revelamos é a linguagem, mas a linguagem não é o subsistente e o que existe realmente. Portanto o que existe realmente não é revelado aos vizinhos, mas a linguagem é que é revelada, ela, que é um outro solo subjacente; do mesmo modo que aquilo que é o visível não se tornaria audível e vice-versa. Assim, pois, já que o ser se fundamenta de fora, não se tornaria uma linguagem nossa.

Mas não sendo linguagem, não se manifestará para outrem. De um lado, ele diz, a linguagem certamente vem ao nosso encontro se unir desde as realidades externas [vale dizer, das sensações], pois, desde o encontro com o sabor nasce em nós a palavra feita representando o mesmo sentido, e, desde a impressão da cor, a palavra de acordo com a cor. Mas, se é assim, não é a palavra que exprime a realidade externa, mas a realidade externa é que torna a palavra reveladora.

E, de um lado, nem é possível dizer que aquela modalidade que fundamenta as coisas visíveis e audíveis, do mesmo jeito fundamente também a linguagem, de modo que seja possível, desde um mesmo solo subjacente, tanto ser os fundamentos do ser quanto as coisas reveladas do ser. Mais, diz, e se a linguagem se fundamenta em algo que difere dos demais fundamentos, os corpos visíveis serão muito mais distantes ainda da linguagem, pois o objeto visível será apreendido através de uns instrumentos, e a linguagem, através de outros, de modo que um não revelará a natureza do outro. [94] Portanto, de acordo com as aporias de Górgias, vão-se, pelo que depende delas, os critérios de verdade: pois algo nem existe, nem é possível de ser conhecido, nem para outros sustentado, e naturalmente não pode haver nenhum critério.

Destarte a sofística completa a exploração do terreno parmenidiano, como já o fizera com relação a Heráclito. De um lado, a conclusão “tudo é verdade”, arrancada do interdito anunciado no Poema: “jamais obrigarás os não-seres a ser, antes afasta teu pensamento desta via de investigação” (se não existe absolutamente o não-ser, não é possível pensá-lo, nem dizê-lo, logo tudo que se pensa e diz é verdade). De outro lado, a conclusão “nada é verdade”, por ser tudo aparência e opinião, por serem o real, o pensamento e a linguagem solos subjacentes irredutíveis uns aos outros.

É por isso que o grande desafio de Platão e Aristóteles é estabelecer um nexo entre linguagem e realidade que não seja aderência total, para que um terceiro termo possa se insinuar entre o nada mudo e o discurso pleno de ser, o falso, que contém certa positividade, pois é discurso e não silêncio, mas “erra o alvo”. Na jaula do falso é que a metafísica clássica pretende aprisionar a sofística. Mas esse é outro capítulo. Agora está em causa não o espantalho da sofística forjado por Platão e Aristóteles, que certamente não é arbitrário, mas aquilo que os sofistas pensaram e disseram numa época em que aqueles dois sequer haviam entrado em cena.

Diga-se mais uma vez: a sofística era a genuína filosofia de sua época. A secularização que retira definitivamente o homem da clausura das teocracias, da comodidade da heteronomia, e o joga sobre si mesmo, no risco da autonomia, chega à explicitação filosófica pelas mãos, ou antes, pelas bocas, dos sofistas. Eles são as testemunhas da tomada de consciência da diferença irredutível entre phýsis e nómos, entre natureza e lei, entre o âmbito daquilo que brota espontaneamente por si e não pode não ser como é (e, portanto, diante do qual cabe apenas aceitação resignada) e o âmbito daquilo que é convencionado abertamente pelos homens e que pode ser de outro modo, se eles assim instituírem. Mas que coisas exatamente estão no interior de cada âmbito? Nesse último certamente as leis propriamente ditas, mas também os valores em geral, e as palavras – a multiplicidade de línguas está aí [95] para prová-lo – e não apenas os significantes (como se as próprias coisas, conforme dirá mais tarde Aristóteles, fossem “as mesmas para todos”), mas também, aquilo que só vem à tona pelos recortes dos significantes, isto é, os significados, isto é, as próprias coisas. Ora, se o âmbito da natureza é o da matéria, do devir, da mistura, do cadinho de átomos agitados ao acaso, qual é, então, o estatuto ontológico das formas? Resposta: nómos, convenção. Aqui mais uma vez é preciso dizer que o empenho de Platão e Aristóteles em garantir um caráter katà tèn phýsin (segundo a natureza) para as formas (eíde) é reativo. Sobre isso, Aristóteles diz do sofista Antifonte (Física, 193a 9):

 

A natureza, para alguns, e a essência dos entes por natureza, parece ser o primeiro subsistente em cada um, por si mesmo destituído de forma, como, por exemplo, a natureza da cama seria a madeira e a da estátua, o bronze. Como prova, diz Antifonte que se alguém enterrasse uma cama e a putrefação tivesse poder de fazer levantar um rebento, esse não viria a ser cama, mas madeira, existindo a primeira por acidente, por disposição segundo a lei e por arte, enquanto a segunda seria a essência, a qual permanece, e padece continuamente essas coisas. Numa primeira visada, parece que Antifonte está minimizando o ser da cama, mero artifício acidental, em favor da madeira, essência necessária. Até porque quem conhece Antifonte sabe que ele também disse (Oxyrhynchus Papyri XI n. 1364 ed. Hunt):

 

Justiça, com efeito, é não transgredir as prescrições da lei da cidade da qual se é cidadão. De fato, um homem utilizaria convenientemente a justiça para si mesmo, se, diante de testemunhas, exaltasse as leis, mas sozinho e sem testemunhas, exaltasse as prescrições da natureza. Pois as prescrições das leis são impostas de fora, as da natureza, necessárias.

 

Teocracias Do Grego theós, deus + krateía, kratós, poder, força. s.f. – governo em que os chefes da nação pertencem à classe sacerdotal.

 

E as prescrições das leis são pactuadas e não geradas naturalmente, enquanto as da natureza são geradas naturalmente e não pactuadas. Transgredindo as prescrições das leis, com efeito, se encoberto frente aos que compactuam, aparta-se de vergonha e castigo, se não se encobre, porém, não. Se alguma das coisas que nascem com a natureza é violentada para além do possível, mesmo que isso ficasse encoberto a todos os homens, em nada o mal seria menor, e se todos vissem, em nada maior, pois não é prejudicado pela opinião, mas pela verdade. [96]

Lei: grilhão da natureza. Enunciado de um anarquista? De um individualista que se esconde no privado para aí gozar despudoradamente do fluxo amoral do prazer? Pode até ser que a lei seja apenas um mal necessário para garantir a vida em rebanho, fresta ínfima sobre o mar infinito da natureza, mas é naquela frestinha que se vive, não neste mar. É num mundo de camas e estátuas que se vive, não debaixo da terra. Nesse ponto os sofistas separam-se dos pré-socráticos, com os quais caminhavam juntos até então. É que em física eles concordam, mas trata-se agora exatamente de fazer política, não física. Trata-se de laborar no domínio do artifício, trata-se de recortar aqui e não ali para obter essa e não aquela coisa: política como criação ontológica. Assim, a fresta domina até o mar: segundo Crítias, outro sofista, sendo a força a realidade última e dependendo a justiça do controle público, o sábio inventou o medo do olhar onisciente dos deuses, para que, mesmo no privado, os indivíduos se sentissem observados e preservassem o pudor diante dos valores legais. E quando Trasímaco, sem papas na língua, faz equivaler o justo por natureza ao útil do mais forte, ele também faz equivaler o útil do mais fraco ao justo por lei (deixando-lhe a possibilidade de, pela lei, compensar sua inferioridade).

A definição de justiça como a conveniência do mais forte não é em si um ato de força. Os tiranos, aliás, não costumam lançar mão dela para justificar sua tirania, ainda que em seu íntimo bem o saibam.

Os tiranos preferem dizer que agem em nome do bem ou de qualquer outro valor transcendente. Nesse caso, a metafísica é que é o sofisma, e a frase do sofista, uma honesta expressão da verdade, como também a tese do homem-medida não é humanismo nem antropocentrismo, mas consciência da finitude e desmascaramento preventivo de qualquer posição meramente humana que pretenda se impôr como espelhamento fiel das coisas. Antropocêntrica é a frase de Platão, “deus é a medida de todas as coisas”, pois é porque o homem age teleologicamente que, por transferência para todas as coisas, todas as coisas são experimentadas como efeito de uma providência, de uma causalidade teleológica.

Se, portanto, ninguém mais detém previamente o saber quanto ao que é e o que não é, se é nas assembleias que, pelo entrechoque de opiniões se há de chegar a um consenso, instância da unidade [97] (política) feita inteiramente de multiplicidade, então que se eduque os homens para as assembleias, que se os ensine muitas coisas, os conteúdos coligidos pela tradição cultural, mas sobretudo a falar por si, a defender o que lhes parece ser o caso. E é isso que os sofistas fazem. Por isso Hegel diz: “os sofistas foram os mestres da Grécia”. (Fonte: História da filosofia I, UFSC, Florianópolis: 2008, p. 90-97).

 

Assim, quando Parmênides afirma:

 

Somente ‘aquilo que é’ pode ser expresso e conhecido, porque o ser e o pensar são a mesma coisa; ‘aquilo que não é’, portanto, não pode ser pensado nem expresso”.

 

Górgias retrucará:

 

Se só o que é pode ser expresso, o que ocorre quando eu expresso: “carruagens andam sobre o mar”?

Após o título [da obra] e a série, finalmente, cada uma das três teses de Górgias se apresenta, por sua vez, como uma inversão irônica ou grosseira do Parmênides escolar que cada um de nós, de Platão aos nossos dias, teve que memorizar: inicialmente, que há o ser pois o ser é e o não ser não é; em seguida, que esse ser é por essência cognoscível [Osório diz: é passível de ser conhecido], já que ser e pensar são a mesma coisa; por meio disso a filosofia, e mais especificamente essa filosofia primeira que foi denominada de metafísica, pôde se engajar muito naturalmente em seu caminho – conhecer o ser enquanto ser – e se cunhou em doutrinas, discípulos e escolas. Ser, conhecer, transmitir: não é, não é cognoscível, não é transmissível”. [Osório diz: eis a batalha entre Górgias e Parmênides]. [Bárbara Cassin em O efeito sofístico trata do tema].

Portanto, quando Górgias respondeu à Parmênides, este já estava morto, logo, não podia contradizê-lo.

É no meio dessa disputa que se coloca Platão, que vai advogar a causa em favor de Parmênides, pois sem um ser fixo e passível de conhecimento é impossível fazer-se “ciência”, que é o objetivo platônico, segundo o próprio.

Onde Platão tenta se igualar a Parmênides:

A imagem que faz Diotima da ascensão do amante até a Beleza foi muitas vezes refletida na literatura ocidental, tomada de empréstimo por filósofos místicos, pelos primeiros escritores cristãos, como Orígenes e Santo Agostinho, e por inumeráveis poetas. Tal descrição da Forma da Beleza como totalidade imutável e imortal, sempre e em toda parte a mesma, mostra que as Formas platônicas são muito similares ao Uno de Parmênides, porém revivida, multiplicada e colocada em relação com o mundo físico. É claro, enquanto para Parmênides existia somente o Uno, para Platão existia uma Forma diferente para todo termo ou conceito geral, e não apenas para a ‘beleza’. E, se até onde dizia respeito a Parmênides o mundo físico de objetos mutantes era apenas uma ilusão, para Platão ele era bastante real, embora inferior sob vários aspectos”. [Fonte: O sonho da razão. Anthony Gottlieb. Tradução de Pedro Jorgesen Jr. Rio de Janeiro. Difel. 2007, p. 216)

Estava, portanto, fundada a controvérsia que se arrasta a mais de dois milênios sem uma resposta conveniente, ou seja, sem que a “verdade” prometida por Platão tenha vindo a lume, tenha sido parida por essa parteira similar a mãe de seu mestre Sócrates.

 

28

Você está aqui: Home | Sofistas da Atenas de Péricles | Visão geral