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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

41.32 – Eurípides e os deuses.

 

Kerferd ensina:

 

Críticas das doutrinas tradicionais a respeito dos deuses que se encontram nos poetas e tentativas de reinterpretações radicais não estavam limitadas aos sofistas profissionais. Heródoto (II.52ss) tinha especulado, com certa minuciosidade, sobre a origem dos deuses, seus nomes e suas funções. Segundo um relato, Protágoras teria lido em voz alta o início do seu livro sobre os deuses na casa de Eurípides [Osório diz: Protágoras lendo seu livro! Deve ser Heródoto.], e havia até uma história, preservada na Vida, por Sátiro, segundo a qual o próprio Eurípides fora processado por impiedade. Em muitas de suas peças há vários tipos de crítica lançadas contra os deuses. Às vezes elas não vão além da convicção, expressa com vários graus de paixão, por diferentes personagens, de que os deuses devem ser bons e não maus. Outras vezes, o tema central do drama é o comportamento profundamente impróprio de um deus ou dos deuses, como é certamente o caso de Ártemis em Hipólitos, Zeus em Hércules furioso e Apolo em Íon, Electra e Orestes. [Osório diz: comportamento dos deuses nas peças de Eurípides].

(...)

Tudo isso, contudo, pode ser considerado, de certa forma, a matéria natural da tragédia grega, os problemas levantados pelo relacionamento do homem com deus, e de deus com o homem. Eurípides, contudo, estava associado ao movimento sofista e foi influenciado por ele de modo muito mais profundo [Osório diz: poucos lembram disso ao exaltar Eurípides!]. De fato, não foi por acaso que veio ele a ser chamado, na Antiguidade, "o filósofo teatral ou filósofo do teatro" (Ateneu, 158e, 561a). Wilhelm Nestle intitulou seu grande estudo sobre ele, publicado em Stuttgart, em 1901, Eurípides der Dichter der Aufklärung, embora estivesse bem consciente de que ele é, primeiro e acima de tudo, um dramaturgo, e não pode ser tratado simplesmente como um conferencista expondo ideias sofistas. Isso pode ser ilustrado por uma outra seleção de algumas passagens especiais. Belerofon, nos seus indignados protestos contra a injustiça do governante divino, diz (Belerofon fr. 286):

 

Será que algum homem ainda diz que há deuses no céu? Não, não há nenhum. Se alguém diz isso, que deixe de ser tão tolo para acreditar nessa velha história. Não se deixem guiar pelas minhas palavras, pensem vocês mesmos. Digo que a tirania mata milhares e os priva de seus bens, e os homens que não cumprem seus juramentos são a causa das cidades serem saqueadas. E, fazendo isso, eles são mais felizes do que os homens que permanecem piedosos dia após dia. Sei de inúmeras pequenas cidades que reverenciam os deuses e são vencidas na guerra e são vassalas de cidades maiores que são mais impiedosas do que elas.

 

Em outro fragmento (292.7) lemos: "se deuses agem indignamente, então não são deuses".

Essas linhas são comparadas, por Nestle, com a posição que mais comumente encontramos em Sófocles. "Ambos os poetas admitem que Deus e pecado são termos mutuamente exclusivos. Mas dessa admissão eles tiram conclusões opostas. Sófocles infere: 'Conclui-se que tudo o que os Deuses fazem é bom'; e a fim de que não reste a menor dúvida, acrescenta: 'mesmo quando nos ordena ir além do que é certo'. A conclusão de Eurípides é diferente: 'Nesse caso, os deuses pecadores da mitologia grega são não-existentes'." Mas, então, se não há deuses, o que é que devemos supor? Uma possível resposta é dada em termos que poderiam ter vindo diretamente de um expoente das teorias sofistas. Em Hécuba 798ss., encontramos a rainha viúva de Príamo, Hécuba, apelando a Agamenon por misericórdia em uma passagem que tem sido muito discutida: "Somos escravos e, sim, talvez fracos. Mas os deuses têm poder, como o tem nomos que é o senhor dos deuses. Pois é por nomos que acreditamos nos deuses e reconhecemos em nossas próprias vidas uma distinção entre coisas que são certas e coisas que são erradas". Alguns têm suposto que Eurípides, aqui, está se referindo à lei divina que está acima dos deuses. Mas a declaração "é por nomos que acreditamos nos deuses" parece uma clara referência à controvérsia nomos-physis, e isso significa que, aqui, Eurípides está preparado para explicar os deuses como devendo sua existência à crença humana. Isso, contudo, não significa, necessariamente, que sua existência era meramente subjetiva aos seres humanos individuais. Em Rãs (889-894), Aristófanes faz Eurípides dizer que reza a vários deuses, que são especiais para ele, e os nomeia como "Aeté [uma variedade de feijão. (NT)], minha fonte de sustento, pivô, da minha língua, inteligência, narinas, ávido de perfume". Aqui é possível que ao menos a referência a aeté tenha algo de sério, e provavelmente à inteligência também, em vista da invocação que se encontra em Trôades (884-887), na boca de Hécuba: "Oh veículo da terra, oh tu que reclinas na terra, quem quer que sejas, difícil de conhecer até mesmo por conjetura, Zeus, quer sejais necessidade da natureza ou o poder da razão em homens mortais, é a vós que oro".

Tudo isso pode servir de prelúdio e pano de fundo para o notável discurso dramático (DK 88B25) posto na boca de Sísifo, avô de Belerofon. A passagem tem sido comumente atribuída, pelos especialistas, a Crítias, com base na autoridade de Sexto Empírico, corroborada, nos tempos modernos, por Wilamowits. Mas, como foi afirmado antes (capítulo 5, p. 92-93 acima), os argumentos para atribuí-lo a Eurípides são bastante mais fortes, principalmente porque se sabe que Eurípides escreveu uma peça satírica intitulada Sísifo, quando ganhou o segundo prêmio com uma tetralogia que incluía a Trôades, na primavera de 415 a.C. (Aelia, V. H. II, 8). O discurso começa com palavras que se tornaram clichés, visto que se encontram também no começo do mito de Protágoras, no diálogo de Platão com esse nome. Houve um tempo em que o modo de vida humano era desordenado, igual ao do animal, e escravo da força. A esse se seguiu um segundo estágio, quando os seres humanos estabeleceram leis, impondo punições a fim de que reinasse a justiça e os excessos fossem controlados. Essas leis foram de fato bem-sucedidas no controle dos atos feitos em público, mas os atos de violência continuaram em segredo. Então se seguiu um terceiro estágio — alguém, ao mesmo tempo inteligente e sábio, inventou o medo dos deuses a fim de ameaçar os que eram secretamente maus nos atos, palavras ou pensamentos. Pois os deuses, que habitam nos céus lá em cima, possuem poderes divinos que lhes permitem estar informados das malfeitorias cometidas em cada uma das três áreas citadas acima, até mesmo a dos pensamentos secretos. A doutrina desse sábio não foi só extremamente útil — diz-se dela que esconde a verdade com um relato falso. O resultado, porém, foi que as leis acabaram com a desordem. [Osório diz: ou quase acabaram!]

Se tivéssemos apenas o relato acima, seria possível supor que a falsidade mencionada nele consistia meramente em atribuir aos deuses tais poderes extremos de supervisão sobre a humanidade. Mas Sexto cita duas outras linhas que, diz ele, ocorrem um pouco mais adiante: "Desta forma algum homem, assim suponho eu, inicialmente persuadiu os mortais a crer que existe uma raça de deuses". Isso parece justificar plenamente a inclusão da opinião assim expressa sob o título de ateísmo.” (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 287-288 e 288 a 291).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

41.31 – Heródoto e os deuses.

 

Kerferd enxina:

 

Críticas das doutrinas tradicionais a respeito dos deuses que se encontram nos poetas e tentativas de reinterpretações radicais não estavam limitadas aos sofistas profissionais. Heródoto (II.52ss) tinha especulado, com certa minuciosidade, sobre a origem dos deuses, seus nomes e suas funções. Segundo um relato, Protágoras teria lido em voz alta o início do seu livro sobre os deuses na casa de Eurípides [Osório diz: Protágoras lendo seu livro! Deve ser Heródoto.], e havia até uma história, preservada na Vida, por Sátiro, segundo a qual o próprio Eurípides fora processado por impiedade. Em muitas de suas peças há vários tipos de crítica lançadas contra os deuses. Às vezes elas não vão além da convicção, expressa com vários graus de paixão, por diferentes personagens, de que os deuses devem ser bons e não maus. Outras vezes, o tema central do drama é o comportamento profundamente impróprio de um deus ou dos deuses, como é certamente o caso de Ártemis em Hipólitos, Zeus em Hércules furioso e Apolo em Íon, Electra e Orestes. [Osório diz: comportamento dos deuses nas peças de Eurípides]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 287-288).

 

 

 

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(uma biografia do conhecimento)

 

41.30 – Eutidemo e Dionisodoro – identidades e ensinamentos.

 

Kerferd ensina:

 

Se Crítias talvez devesse ser excluído de uma lista padrão de sofistas, há duas outras pessoas que certamente deveriam ser incluídas. São eles dois irmãos, Eutidemo e Dionisodoro, nativos de Quios, que se uniram à colônia de Turói, mas depois foram para o exílio, passando o seu tempo como sofistas no continente, na Grécia. No diálogo Eutidemo de Platão eles são apresentados como tendo chegado recentemente a Atenas como mestres profissionais de sabedoria e virtude. Sócrates os encontrou perambulando com um grande número de estudantes — já tinha se encontrado com eles em outras ocasiões antes desta — e assim a cena está armada para o diálogo que se segue. A data encenada não é clara, mas pode ter sido por volta de 420 a.C., ou mais tarde, porque Sócrates já é um homem idoso. Que ambos, Eutidemo e Dionisodoro, eram pessoas reais está bem atestado por referências a eles feitas por Xenofonte e Aristóteles [Osório diz: fato que não ocorre em relação a Cálicles!]. E sabemos, através de Crátilo, 386d3-7, que Eutidemo discordava de Protágoras na aplicação da doutrina do Homem-medida. O testemunho de Aristóteles sugere que ele tinha diante de si um escrito de Eutidemo contendo argumentos sofísticos que não se encontram no diálogo de Platão. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 93).

 

(Osório diz: Kerferd é o único autor, que conheço, que trata Cálicles como sofista. O que recordo de outra leitura de Kerferd, ele não volta a falar ou nunca falou das doutrinas desses irmãos.)

 

 

 

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(uma biografia do conhecimento)

 

41.29 – Erística – conceito.

 

Kerferd ensina:

 

Dos dois termos, o mais direto é erística. É derivado do substantivo eris, que significa luta, disputa, controvérsia; quando Platão usa o termo, erística significa "buscar vitória na argumentação", e a arte que cultiva e provê os meios e estratagemas para alcançá-la. Segue-se daí que erística, como tal, estritamente falando, não é uma técnica de argumentação. Ela pode usar uma ou mais de uma série de técnicas a fim de alcançar seu objetivo, que é o sucesso no debate ou, pelo menos, a aparência de sucesso (cf. Teeteto 167e3-6). Falácias de qualquer tipo, ambiguidades verbais, monólogos longos e irrelevantes podem, todos, ocasionalmente, conseguir reduzir ao silêncio o oponente, constituindo, assim, instrumentos próprios de erística. Esse é o tipo de habilidade que Platão via exemplificada pelos irmãos Eutidemo e Dionisodoro, no diálogo Eutidemo, dos quais disse (272a7-bl) que se tinham tornado extremamente hábeis em debater nas argumentações e em refutar qualquer coisa que se dissesse, não importando se verdadeira ou falsa. Conseqüentemente, usado por Platão, o termo erística regularmente envolve desaprovação e condenação.” [Osório diz: conceito de erística/dicionário].(Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 109).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

41.28 – Aporia – o drama da (sem resposta, inclusão de tudo).

 

Kerferd ensina:

 

Uma vez que se distingam claramente os três termos, erística, antilógica e dialética, várias coisas entram nos seus lugares. Platão se opõe totalmente à erística e está completamente empenhado na dialética. A antilógica, para ele, fica entre a erística e a dialética. Pode ser usada simplesmente para finalidades erísticas [Osório diz: mas também não!]. Por outro lado, se for reivindicada como um caminho suficiente para a verdade, também sofre a condenação de Platão. Mas, em si mesma, ela é, para Platão, simplesmente uma técnica, nem boa nem má. Especialmente nos primeiros diálogos, subjacente à dialética e conduzindo a ela, há a notável técnica de argumentação conhecida como elenchus, que constitui talvez o mais impressionante aspecto do comportamento de Sócrates. Ela consiste tipicamente em obter uma resposta a uma questão, tal como "o que é Coragem" e, aí, assegurar aceitação para outras afirmações visivelmente inconsistentes com a resposta dada à primeira questão. Em raras ocasiões isso leva a algo que se aproxima de uma modificação aceitável da primeira resposta. Mas, muito mais frequentemente, o Diálogo se encerra com os participantes num estado de aporia, incapazes de ver qualquer caminho à frente ou qualquer saída das opiniões contraditórias nas quais se enredaram. Isso é claramente uma aplicação da antilógica. [Osório diz: Sócrates o sem respostas! O elenchus a caminho da aporia e, portanto, da antilógica! Tudo fica inconcluso! O contraditório!]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 113-114).

 

 

 

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(uma biografia do conhecimento)

 

41.27 – Matemática e verdade.

 

Esta discussão não visava instaurar uma hierarquia nos níveis da responsabilidade (fez-se saber que, para o direito arcaico, um objeto pode ser declarado culpável), mas segundo interpretação de G. Rensi, devia mostrar a impossibilidade em que se estava para a determinar, a não ser arbitrariamente. Três causas da morte de Epitímio podem ser invocadas, e igualmente legítimas segundo o ponto de vista adotado: para o médico, foi o dardo que causou a morte; para o juiz, foi quem o lançou; para a autoridade política, foi o organizador dos Jogos. A lição deste fragmento é, portanto, a de um perspectivismo que tende a provar que não existe um perfeito absoluto e em si, permitindo discernir ao vivo e certeiramente, nos casos jurídicos concretos. [Osório diz: Porque Péricles passou um dia discutindo com Protágoras]

Se há uma disciplina que não se adapta ao perspectivismo é a matemática, que, aos olhos de Protágoras, é uma arte (techné). Também procura demonstrar que é igualmente antilógica e, como as outras artes, se contradiz. Com efeito, a geometria ensina-nos que a reta tangente ao círculo toca este círculo em um ponto, mas se traçamos o círculo e a reta perceptíveis, apercebemo-nos de que a reta toca sempre o círculo em vários pontos e que nunca poderemos obter uma figura conforme com as definições matemáticas. Ora, a geometria não pode, para raciocinar, dispensar a consideração das figuras, cujo traçado desmente o discurso que o matemático elabora a seu respeito: “Com efeito, o círculo toca a tangente não apenas num ponto, mas como disse Protágoras na sua refutação dos geómetras.” Se a matemática é antilógica, a fortiori também o serão as outras artes. No final das Antilogias põe-se, portanto, de maneira premente, o problema da verdade.” [Osório diz: daí os matemáticos serem mais uns “inimigos” do Sofista). (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 22).

 

 

 

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(uma biografia do conhecimento)

 

41.26 – Homossexualidade e oligarquia.

 

Ensina Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

No parágrafo 3º do apólogo de Héracles, Pródico passa à condenação da homossexualidade: Areté estigmatiza o fato “de usar homens como se fossem mulheres”. Vê-se, portanto, como era falso dizer que a homossexualidade era geral na Grécia antiga [Osório diz: a homossexualidade na Grécia antiga. Platão era homossexual, daí sua defesa, enrustida, da causa! Lembremos que as desgraças sobre os Labdácidas (Édipo e os seus) decorreu de um ato homossexual! Nada contra, apenas para colocar as coisas no contexto tido por histórico!]; era mais característica da aristocracia dórica, e limitada a esta casta guerreira. Pode-se deduzir desta passagem o afastamento de Pródico relativamente aos costumes e tradições aristocráticas, dado que “por toda a Grécia, os aristocratas sofreram uma forte influência dórica”. Este cambiante está confirmado por uma outra conotação política do texto quanto à escolha de Héracles. Depois de ter declarado: “sou honrada mais do que qualquer outra”, Excelência (Areté) delineia o campo da sua atividade; é “colaboradora amada pelos artistas”, “companheira bondosa dos servos”. Reconhecer que os artistas e servos têm parte na virtude, isto é, na excelência, revela a amplitude do humanismo de Pródico e traduz tendências políticas preferentemente democráticas ou, pelo menos, não oligárquicas. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 66).

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

41.25 – Homossexualidade na Grécia antiga.

 

Ensina Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

No parágrafo 3º do apólogo de Héracles, Pródico passa à condenação da homossexualidade: Areté estigmatiza o fato “de usar homens como se fossem mulheres”. Vê-se, portanto, como era falso dizer que a homossexualidade era geral na Grécia antiga [Osório diz: a homossexualidade na Grécia antiga. Platão era homossexual, daí sua defesa, enrustida, da causa! Lembremos que as desgraças sobre os Labdácidas (Édipo e os seus) decorreu de um ato homossexual! Nada contra, apenas para colocar as coisas no contexto tido por histórico!]; era mais característica da aristocracia dórica, e limitada a esta casta guerreira. Pode-se deduzir desta passagem o afastamento de Pródico relativamente aos costumes e tradições aristocráticas, dado que “por toda a Grécia, os aristocratas sofreram uma forte influência dórica”. Este cambiante está confirmado por uma outra conotação política do texto quanto à escolha de Héracles. Depois de ter declarado: “sou honrada mais do que qualquer outra”, Excelência (Areté) delineia o campo da sua atividade; é “colaboradora amada pelos artistas”, “companheira bondosa dos servos”. Reconhecer que os artistas e servos têm parte na virtude, isto é, na excelência, revela a amplitude do humanismo de Pródico e traduz tendências políticas preferentemente democráticas ou, pelo menos, não oligárquicas. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 66).

 

 

 

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(uma biografia do conhecimento)

 

41.24 – Poesia, seu uso pela Sofística, em especial, por Górgias.

 

Nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Qual é a natureza profunda desta persuasão, que é a única a dar ao discurso a sua convicção? É poética a palavra ritmada, dizia Górgias; pensa-se então na relação desta palavra com a música. As figuras do estilo inventadas por Górgias mostram-no atento a tudo o que marca o ritmo, martela a expressão, e há que lembrar que a poesia antiga era cantada. [Osório diz: bem como, o sucesso, que até hoje fazem os cantores ditos “pops”! As multidões que levam aos seus espetáculos].

(...)

Magia, que, aliás, já o seu mestre Empédocles exercia (“Górgias e le pouvoir de la poésie”).

(...)

Jacqueline de Romilly insistiu, com muita razão, no aspecto mágico constitutivo, segundo Górgias, do poder da poesia. A persuasão do discurso age por feitiço; o seu dizer aparenta-o com as fórmulas encantatórias dos ritos e das evocações mágicas; o sofista é o feiticeiro, possui a palavra exata que outrora fazia mover as pedras e agora abre os corações, os fascina e cura. O discurso de Górgias age, portanto, como a magia que também se serve da linguagem; “com efeito, os encantamentos sagrados que utilizam palavras dão prazer e afastam a dor. Porque, misturado com a opinião da alma, o poder do encantamento fascinou-a, metamorfoseou-a por enfeitiçamento.” A medicina estava na época de Górgias muito próxima da magia; também esta magia linguística não tem para ele algo de perverso: a persuasão é para o discurso o que o remédio é para o médico. Pela sua arte, o sofista é o médico das almas. [Osório diz: a poesia para o Sofista!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 46 e 47).

 

Diz mais Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

III – A poesia da ilusão

 

Destas ruínas da ontologia, Górgias não vai deduzir um niismo nem um ceptismo, mas um pensamento não ontológico ou antimetafísico que, sob certos aspectos, não pode deixar de ser anterior ao de Nietzsche. [Osório diz: ao contrário, tudo será trazido para o humano e racional quando conjugado com o ensinamento de Protágoras no Mito de Prometeu]

A primeira consequência da crítica de Parmênides é a reabilitação das aparências e a afirmação da identidade entre o real e a manifestação. Uma condenação do mundo anterior platônico aparece já na letra do fragmento 26: “o ser eclipa-se se não lhe outorgarmos a aparência, a aparência extingue-se se não lhe outorgarmos o ser”. Se a aparência é modificável, o ser também o será: isto nada tem de escandaloso já que a realidade é contraditória, e o princípio de identidade origina apenas uma ontologia que depressa se contradiz a si própria...

(...)

As contradições nunca fazem as pazes.

 

A doxa é o estado de espírito dilacerado pelos contrários; a saber, o estado de espírito limitado pelo aspecto do real, de que o discurso consagra a legitimidade. O discurso é, de facto, o mestre das aparências e é ele que cria as que constituem a realidade humana escolhendo o aspecto do real que deve sobressair. [Osório diz: “os problemas filosóficos são todos problemas de linguagem”, já o disse quem?

Górgias não tem um tom demasiado elogioso para cantar este poder demiúrgico da palavra: “a linguagem é um grande potentado, que com um corpo minúsculo e imperceptível leva a cabo as obras mais divinas. Porque tem o poder de acalmar o medo, de eliminar o desgosto, de produzir a alegria, de aumentar a piedade.” [Osório diz: o discurso, para Górgias] Górgias tem o sentimento penetrante de que a linguagem não evoca senão uma aparência, mas que esta aparência é legítima [Osório diz: a linguagem de o fenômeno, e este “é” do modo que o vê o locutor]. Tomemos como exemplo o Elogio de Helena. Helena, culpada ou não culpada? O caso de Helena é ambíguo, é o mínimo que se pode dizer, e o seu próprio nome simboliza o seu caso [“encantadora” e “encantada”, ao mesmo tempo.]. Mas a escolha de Górgias levanta a ambiguidade e acaba com a questão... A linguagem é, então, o médico das almas divididas. … “Idêntica é a relação entre o poder da linguagem sobre a disposição da alma e a prescrição dos remédios sobre a natureza dos corpos.” A linguagem médica é, portanto, curadora e salvadora. Não suprime a contradição, porque é real, por conseguinte inexcedível, mas pacifica-a ao nível linguístico que é o seu, realizando o desvio de um dos contrários e mantendo-o de fora. Porque o real está dilacerado pelas contradições, o mundo humano exige uma tomada de posição e este mundo humano está por fazer, e é, de acordo com a etimologia, à poesia que Górgias se dirige para o fazer. A tomada de posição a favor de um dos contrários não é atitude de força, mas uma pacificação pela poesia no sentido amplo do termo, diríamos hoje, pela arte. Com efeito, Górgias refere o exemplo do pintor que é também capaz de apaziguar o conflito dos contrários pela redução da pluralidade. “E os pintores saciam a vista quando, a partir de múltiplas cores e corpos, completam com perfeição, um corpo inteiro, uma figura inteira.” [Osório diz: o real é dilacerado pelas contradições!]

O prazer que a arte nos proporciona é, pois, o de um acesso à consonância que cria um mundo habitável pelo homem: neste sentido o raciocínio lógico, que Górgias atua com maestria, não exprime a realidade, não tem significado ontológico, mas faz parte da poesia; cimenta a visão unilateral em que o espírito encontra seu repouso. [Osório diz: poesia]

O papel da poesia é, portanto, criar a ilusão, ilusão porque esta obra não está em conformidade com o real, mas ilusão desejável e boa, porque cria uma coerência mental que Górgias chama justiça e sabedoria. A tragédia de Ésquilo é uma obra de arte e neste sentido é uma ilusão, mas é esta ilusão, esta poetização – que é a tragédia – que nos permite suportar o trágico vivido, isto é, justificá-lo e compreendê-lo [Osório diz: poesia]. Com efeito, a tragédia cria

 

uma tal ilusão que, por um lado, o que cria a ilusão é mais justo que aquele que não a cria e, por outro lado, aquele que se deixa encantar é mais sábio que aquele que não se deixa levar. De fato, um é mais justo porque aquilo que prometeu fê-lo; o outro, o que cede ao encanto, é mais sábio; com efeito, deixa-se levar pelo prazer das palavras, o que não deixa de ter um sentido.[Osório diz: quem é mais honesto o que engana ou o enganado?].

 

A arte do sofista, isto é, do homem sábio, é, portanto, para Górgias, o que era a poesia trágica para Ésquilo, uma “ilusão justificada.” [Osório diz: a arte do sofista].

O discurso sofístico, ainda que expresso em prosa, faz, apesar de tudo, parte da poesia, já que – declara Górgias – a poesia, no seu conjunto, a considero e chamo uma palavra habitada pelo ritmo. [Osório diz: o que é a poesia]

A ilusão justificada, criada pela poesia do discurso, é tanto mais justificada quanto é partilhada por um maior número de ouvintes: acaba por elaborar o mundo cultural humano [Osório diz: a “ilusão justificada”, seria o que em Direito se diz “decisão fundamentada”! Já aqui está o encontro entre Górgias e Protágoras: as rais da impossibilidade e a adesão]. Mas – dir-se-á – Górgias não demonstrava a incomunicabilidade do cognosvícel? Certamente, mas esta incomunicabilidade não entra em ação enquanto a linguagem se gabar de por as coisas em palavras; ora, o que a poesia transmite não é precisamente as coisas, já que é criadora de ilusão, mas a emoção que as coisas produzem ou o sofista quer produzir [Osório diz: por que Górgias não se contradiz com a sua incomunicabilidade. Perfeito!]:

 

Os que o ouvem recebem em si o arrepio do medo, a compaixão das lágrimas e o remorso que gela. Face às prosperidades e aos reveses de causas e pessoas, que lhe são estranhos, a alma experimenta uma paixão muito sua, graças ao discurso.”

A intersubjetividade é, portanto, completamente possível para Górgias: se a linguagem não transmite um conhecimento adequado das coisas, veicula, pelo contrário, perfeitamente, a emoção. O que assegura a comunicação entre os homens é a emoção partilhada por meio da linguagem. [Osório diz: como Górgias explica a intersubjetividade/a comunicação entre as pessoas. Texto magnífico e explicativo].

A linguagem não tem que designar o real apagando-se perante ele, mas tocar a alma. [Osório diz: finalidade da linguagem]

Por conseguinte, se se lida só com as palavras, é impossível parar, e o sofista gaba-se que “o discurso nunca o fez faltar ao prometido.”

Portanto, a ilusão justificada é, essencialmente, o fruto da linguagem poética, que age no ouvinte de modo a sugestioná-lo. O problema central dos poderes da linguagem vai, pois, desembocar no estudo da receptividade da alma, numa psicologia do homem cativado pela musicazinha das palavras. A este estudo, os Antigos chamaram-lhe “psicagogia”, arte de levar a alma, pela persuasão, até onde se quiser levar. [Osório diz: Psicagogia – conceito – dicionário]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 41-44).

 

Diz ainda Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Jacqueline de Romilly insistiu, com muita razão, no aspecto mágico constitutivo, segundo Górgias, do poder da poesia. A persuasão do discurso age por feitiço; o seu dizer aparenta-o com as fórmulas encantatórias dos ritos e das evocações mágicas; o sofista é o feiticeiro, possui a palavra exata que outrora fazia mover as pedras e agora abre os corações, os fascina e cura. O discurso de Górgias age, portanto, como a magia que também se serve da linguagem; “com efeito, os encantamentos sagrados que utilizam palavras dão prazer e afastam a dor. Porque, misturado com a opinião da alma, o poder do encantamento fascinou-a, metamorfoseou-a por enfeitiçamento.” A medicina estava na época de Górgias muito próxima da magia; também esta magia linguística não tem para ele algo de perverso: a persuasão é para o discurso o que o remédio é para o médico. Pela sua arte, o sofista é o médico das almas. [Osório diz: a poesia para o Sofista!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 47).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

41.23 – Realidade – o que é.

 

Ensina Guthrie:

 

Aristóteles fala do ponto de vista de sua própria filosofia e da filosofia platônica, de acordo com a qual existe uma realidade além e independente de nossos conhecimentos e crenças, e contrastando com ela a doutrina de Protágoras segundo a qual nada existe a não ser o que cada um de nós percebe e conhece. (Uma vez que nossas percepções nesta teoria são infalíveis, deve-se dar a elas o nome de conhecimento, Teet. 152c). São nossos próprios sentimentos e convicções que medem e determinam os limites e a natureza da realidade, que só existem em relação a elas e é diferente para cada um de nós. A oposição de Aristóteles mostra que para ele a doutrina de Protágoras era doutrina de puro subjetivismo e relativismo. Será que esta avaliação era correta? Duas visões foram tomadas. Para colocá-lo nos termos do exemplo de Platão (Teet. 152b), se o vento está frio para mim que o sinto frio, e é quente para você que o sente quente, significa isto que o vento em si mesmo é tanto quente como frio, ou que o vento em si mesmo não é nem quente nem frio? Em termos gerais, devemos dizer (a) todas as propriedades percebidas por alguém coexistem no objeto físico, ou (b) que as propriedades perceptíveis não têm nenhuma existência independente no objeto, mas vêm a ser como são percebidas, e para o percipiente?” [Osório diz: ver sobre o vento em Gilbert / Realidade e conhecimento]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 174).

 

 

 

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