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45.12 – Influência sobre Heródoto exercida por Protágoras.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

45.12 – Influência sobre Heródoto exercida por Protágoras.

 

É geralmente admitido que houve claras influências sofistas atuando no historiador Heródoto. É bem provável que ele tenha conhecido Protágoras, que foi responsável pela elaboração de leis para a colônia de Turói, de cuja fundação participou Heródoto. Em III, 108 de sua História, parece certo que Heródoto usou o que Protágoras tinha escrito ou, pelo menos, se serviu da mesma fonte usada por ele, quando menciona a natureza prolífica dos animais sujeitos à destruição, em contraste com os animais fortes e corajosos, como o leão, que produzem relativamente poucos filhos. Isso se ajusta exatamente com o que nos é dito, no mito de Protágoras (Prot. 321b), a respeito das atividades de Epimeteu empreendidas para assegurar a preservação de várias espécies de animais.

Igualmente de inspiração sofista, embora certamente não baseado em Protágoras, é o famoso debate relatado em Heródoto III, 80-82. A cena é situada na Pérsia. Sete nobres persas, que tinham libertado a Pérsia dos magos, são apresentados discutindo quais das três formas políticas, demo- [255] cracia, oligarquia ou monarquia, é a melhor. Mas é perfeitamente claro que Heródoto está aproveitando a oportunidade de dramatizar, para ouvidos atenienses, uma batalha constitucional que estava sendo travada em Atenas na época em que ele estava escrevendo, ou pouco antes. E é evidente que ele está nos expondo um diálogo que, tanto na forma como no conteúdo, não pertence à Pérsia de 522 a.C., mas aos debates sofistas em Atenas, no século V. Primeiro, no estilo, ele envolve a oposição de um argumento a outro de tal maneira que sugere a técnica dos dois Logoi opostos. Mas também o conteúdo é de caráter contemporâneo e sofista. Primeiro, Otanes propõe a abolição da monarquia persa alegando (1) que um único governante pode fazer o que quiser e não é responsável perante ninguém, e (2) que qualquer um, elevado a essa posição, muda de atitude, mesmo que seja o melhor de todos os homens. [Osório diz: Montesquieu e a corrupção pelo poder] Torna-se presa da insolência, além da rivalidade e da desconfiança a que todos os homens estão sujeitos, e a combinação produz nele todos os vícios que existem. Em vez disso, o que é preciso é o governo de muitos. Este tem o nome mais justo de todos, isonomia, e está livre dos vícios da monarquia. Os magistrados são escolhidos por sorteio, e devem prestar contas de todas as suas ações, e todas as decisões políticas são submetidas à assembleia comum do povo. [Osório diz: democracia e igualdade].

Megabyzus, então, fala em favor da oligarquia. Concorda com a crítica da tirania expressa por Otanes, mas argumenta que o governo dos muitos não é menos insolente e arrogante e é, ao mesmo tempo, ignorante e sem educação [Osório diz: Parece Platão e Aristóteles!]. Argumenta em favor da oligarquia alegando que somente [256] homens de saber e educação são aptos para governar. Daí se conclui que o que é necessário é uma coligação dos melhores homens, "pois é provável que as melhores decisões procedam dos homens que são os melhores".

Finalmente, Dario argumenta em favor do governo de um homem — nada poderia ser melhor do que o melhor homem. A oligarquia leva a desordens civis porque cada homem, na oligarquia, deseja ser ele mesmo o líder e ter suas opiniões aceitas, na hora das decisões, enquanto a democracia leva a conspirações na prática da corrupção. Pelo voto da maioria dos sete é essa terceira opinião que prevalece, e Dario, de fato, se torna rei.

A referência à seleção dos magistrados pelo sorteio e a exigência de que prestem contas de suas ações, como magistrados, diante de auditores públicos (euthunoí), ao deixar o cargo, é uma clara referência à prática da democracia instituída por Clístenes em Atenas [Osório diz: quem instituiu a democracia em Atenas]. É justamente essa prática de seleção por sorteio que provocou a ironia de Sócrates, que foi acusado, no seu julgamento, segundo Xenofonte (Mem. I, 2.9), de ter ensinado seus companheiros a desprezar as leis estabelecidas exatamente nesse ponto. Ele afirmara que era ridículo que os governantes da cidade fossem designados por sorteio, quando ninguém estaria disposto a empregar os serviços de um piloto, ou de um carpinteiro, ou de um flautista escolhido por sorteio, nem qualquer outro artesão para um trabalho no qual os erros são muito menos danosos do que os erros feitos na arte de governar [Osório diz: Sócrates é exemplo de contradição, pois, se ele como ele diz (respeitar as leis de sua cidade), jamais poderia contestá-la, como ele fez (contestava os sorteios, por exemplo). Sua posição correta era calar, ou apenas mexer o dedo!] e [Osório diz: É Platão! Protágoras e o mito, distribuição da dikê, da qual todos participam. A diferença é gritante nos exemplos (vid. p. 286)]. Vale a pena repetir que Péricles exercia sua liderança em Atenas não por ter sido escolhido por sorteio — quase impossível, de qualquer forma, [257] sem fraude, se fosse repetidamente renovado no cargo — mas por ter sido eleito como strategos ou general, satisfazendo, assim, as exigências de Sócrates nesse ponto [Osório diz: ou de Platão?], bem como o argumento apresentado por Megabyzus.

No debate entre os três persas, em Heródoto, o termo isonomia, "o nome mais justo de todos", está claramente associado ao governo dos muitos. A significação exata do termo tem, contudo, sido assunto de muitos debates5. A primeira parte do nome composto significa "igual" e a segunda parte se refere a leis ou nomoi. Conseqüentemente, alguns supuseram que a palavra isonomia significasse nada mais do que "igualdade perante a lei". O que significa que deve haver direitos civis iguais onde prevalece a isonomia, mas não necessariamente igual poder político ou igual acesso à participação, ou direitos iguais de participar no processo de governo. Os que sustentam essa opinião tendem a chamar a atenção para Tucídides III, 62.3, onde encontramos uma referência a uma oligarquia "isonômica" em contraposição a uma democracia, por um lado, e, por outro, a um grupo-de-poder consistindo em uns poucos homens, sendo este último o mais oposto às leis e ao ideal de austeridade. Mas a passagem em Tucídides não corrobora a inferência de que, portanto, a frase significa nada mais do que "igualdade perante a lei", visto que a referência é provavelmente aos direitos exercidos internamente pelos membros da oligarquia — na tradução de Richard Crawley, "uma constituição oligárquica na qual to- [258] dos os nobres gozavam direitos iguais". Isso deixa inteiramente aberta a questão de saber qual era a série de direitos que está sendo considerada, isto é, se não deve haver exclusão alguma de "direitos iguais de mando ou governo", ao lado de outros direitos igualmente possuídos. [Osório diz: conceito de isonomia]

Talvez se possa obter mais ajuda da famosa e muito discutida passagem da Oração Fúnebre de Péricles (Tuc. II, 37.1), da qual uma possível tradução seria a seguinte:

 

[Nossa forma de governo] é chamada democracia porque sua organização favorece os muitos em vez dos poucos. Se considerarmos as leis, há participação igual para todos, considerando-se as diferenças individuais entre os cidadãos. Mas quanto à estima pública, quando um homem se distingue de alguma maneira, ele é mais altamente respeitado na vida pública, não em razão da classe mas por reconhecimento do mérito. Ainda se considerarmos a pobreza, um homem que é capaz de fazer alguma coisa em benefício da cidade não é impedido disso pela obscuridade de seu reconhecido status. [Osório diz: Platão odiava isso!]

 

Infelizmente, nenhuma tradução dessa passagem vital é possível sem introduzir, na própria tradução, um elemento considerável de interpretação. Mas parece muito claro que Péricles deseja afirmar que a democracia ateniense, no seu tempo, tem dois aspectos. Ela se assenta no princípio da isonomia, mas também toma amplas providências para que homens de excepcional capacidade (entre os quais, sem dúvida, se incluía!) dêem uma contribuição muito maior do que a dos outros para a condução dos negócios da cidade. Isso, por sua vez, requer que o princípio de seleção para cargo por [259] sorteio não se aplique no seu caso. Em outras palavras, Péricles, como Protágoras, está combinando o princípio de algum tipo de igualdade política com o de preferência por pessoas superiores. O que está sendo proposto aqui é governo para o povo, sem envolver também governo pelo povo.” [Osório diz: curiosa essa passagem. Escolher os melhores, sem se saber, de antemão, em que classe eles estão]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 255-260).

 

 

 

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