Sofística
(uma biografia do conhecimento)
45.7 – Sobre os deuses, por Protágoras.
“Tinha Protágoras já uns 70 anos quando algumas pessoas começaram a fartar-se dele. Seu texto Sobre os deuses, no qual expunha sua opinião, segundo a qual não se podia determinar se Deus existia ou não, valeu-lhe uma acusação por abjurar dos deuses. Diferentemente do que anos mais tarde faria o seu colega Sócrates, decidiu fugir [Osório diz: a fuga para ele, por não ser ateniense, portanto, não cidadão daquela cidade, era simples]. Existem versões diferentes, segundo as quais ou ele morreu durante a fuga num naufrágio perto das costas da Sicília, ou já se encontra em paz no exílio” [Osório diz: Ele não podia estar exilado, pois não era cidadão da cidade que, no caso, poderia tê-lo exilado, Atenas]. (Fonte: A História do Mundo em 50 frases. Helge Hesse. Tradução de Maria Irene Bigotte de Carvalho, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012, p. 23-26).
Kerferd diz:
“Em grande parte, a hostilidade à abordagem sofista da religião foi despertada pela famosa declaração de Protágoras (DK 80B4) que, na sua forma mais completa, parece ter sido a seguinte: "Em relação aos deuses, não estou em posição de saber nem que (ou como) são, nem que (ou como) não são, ou que aparência têm; pois há muitas coisas que impedem o conhecimento: a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana." Foi com base nessa declaração que Protágoras adquiriu a reputação de ateu [Osório diz: que queriam que ele dissesse? Que deus existe e que tem tal ou qual forma e aparência, como fazem todos os pilantras?]; e o epicurista Diógenes de Oinoanda disse, abusivamente, que quando Protágoras declarou que não sabia se os deuses existem era o mesmo que dizer que sabe que eles não existem [Osório diz: vejam a distorção, como sempre, do que foi dito! Mas essa distorção foi cultuada, pois é ela que interessa as religiões!]. Naturalmente, tudo o que a passagem afirma é a necessidade, para Protágoras, de suspender qualquer julgamento sobre a questão. É-nos dito que a declaração vinha no início de um dos seus escritos, mas não se diz se ele a fundamentava e como. Tendo em vista a sua importância, contudo, convém discutir as possíveis maneiras pelas quais a mente de Protágoras estava trabalhando quando ele escreveu as palavras que foram [Osório diz: que são!] tão extensivamente citadas.
Primeiro, foram feitas tentativas de interpretá-las à luz da doutrina do homem-medida. Tem-se sugerido que o que Protágoras deve ter dito, se ele supunha que a verdade de cada homem é a verdade que lhe parece, era: deuses existem para aqueles que acreditam neles; não existem para aqueles que não acreditam neles. A isso se replicou que, segundo o princípio do homem-medida, deuses existem para alguns e não para outros e, conseqüentemente, para o próprio Protágoras a suspensão do julgamento era o único caminho possível. Mas isso é, provavelmente, compreender mal a sua posição. Não há nada que sugira qualquer tentativa de Protágoras de se eximir da operação do princípio do homem-medida. Entretanto ele não está dizendo, aqui, que a verdade é como lhe parece a ele mesmo, ou como parece a qualquer outro. O que ele está dizendo é que não pode chegar a qualquer (aparente) verdade nesse caso particular. Gomperz está provavelmente certo em supor que seu raciocínio poderia ter sido: "Até aqui, ninguém viu deuses; mas a vida humana é curta demais, e o nosso campo de observação restrito demais para afirmar ou negar com certeza os traços de sua atividade no mundo da natureza e do homem. Por conseguinte, ele retém o seu veredicto". Isso diz Gomperz. Consta também que Péricles teria dito que nós não vemos os deuses, mas apenas fazemos inferências sobre eles (Estesimbroto citado por Plutarco, Vida de Péricles 8,9). É de duvidar que Protágoras tenha ido tão longe a ponto de dizer que ninguém tinha visto um deus — mas ele certamente teria concordado com Xenófanes na suposição de que ninguém poderia saber se ele [Osório diz: Protágoras] tinha ou não visto um deus.
A acusação de que Protágoras era ateu fundamenta-se claramente na asserção de que na sua famosa declaração ele estava pelo menos duvidando da existência dos deuses, se não claramente negando-a [Osório diz: qual o problema em se ser ateu?]. É certamente dessa maneira que suas palavras foram comumente entendidas na Antiguidade, como também subsequentemente. E justifica-se, às vezes, essa interpretação pela antítese entre a primeira parte — "que são ou que não são" — e a segunda frase, às vezes omitida, mas que é provável ter sido parte do original — "ou qual é a sua aparência" [Osório diz: hoje, passado 2,5 mil anos, alguém comprovou sua existência, ou somente acredita nela, e alguém sabe qual a sua aparência?]. Assim, a primeira parte é tida como concernente à sua existência, e a segunda, às suas qualidades e características. Mas talvez a questão simplesmente não esteja bem proposta. Cícero, em um lugar (De N.D. I, 63), traduz a primeira parte como se tivesse suposto que a construção fosse a de uma questão indireta, portanto, não "que são ou que não são", mas "como são e como não são", embora em outro lugar, no mesmo livro (I, 2,117), a entenda como uma afirmação indireta e, portanto, como se referindo à existência ou não existência dos deuses.
Na sentença homem-medida, vimos que a conjunção grega introduzindo a cláusula subordinada, que é a mesma conjunção usada na sentença sobre os deuses, é agora comumente entendida como se referindo à maneira pela qual as coisas aparecem ao homem atuando como medida, e não tanto à existência delas. Vimos também razões para duvidar se o verbo "ser", quando usado de modo absoluto, tinha realmente desenvolvido qualquer sentido plenamente existencial antes do século IV a.C.
Convém notar que a questão da existência dos deuses não é mencionada na paródia hostil de Timon de Flios, no início do século III a.C. (ver DK 80A12). Essa interpretação da sentença sobre os deuses não é excluída pela adição da segunda frase — "ou qual é a sua aparência", visto que a sentença completa poderia ser entendida como dizendo: "Concernente aos deuses, não estou em condição de conhecer seja a maneira pela qual são ou não são, ou a sua forma visível". Certamente a segunda frase, "não estou em condição de conhecer a forma visível dos deuses" sugere que pelo menos aí lhes é atribuída existência. Mas o sentido pode, naturalmente, ter sido: "ou se eles de fato existem, que aparência têm". Seja o que for que Protágoras tenha dito, foi quase imediatamente tomado como tendo, de fato, a intenção de se referir à questão da existência ou não existência dos deuses. É digno de nota que Charles Kahn, na sua importante discussão dos usos do verbo "ser" em grego, aceita a sentença como envolvendo, talvez, o uso técnico mais antigo de que se tem registro do verbo com um predicado existencial. Quanto a isso, ainda não estou convencido. Tudo o que se pode adequadamente inferir das palavras de Protágoras que chegaram até nós é que ele expressou a opinião de que não é possível descobrir a natureza dos deuses, uma espécie de ceticismo nem excepcional (ver abaixo, p. 288), nem ofensivo, pelo menos para as mentalidades cultas na segunda metade do século V a.C. A posição verdadeira talvez seja a que foi muito bem expressa por M. P. Nilsson, quando escreveu, referindo-se a esse período: "A crença nos deuses tinha se enfraquecido, mas não extinguido. Se a farra fosse longe demais, poderia acabar em histeria religiosa, como na partida da arriscada expedição contra Siracusa e as famosas perseguições que se seguiram à mutilação dos Hermai em 415 a.C." (Greek Piety, Oxford, 1948, p. 78). [Osório diz: Hermai, estátuas de Hermes com falo agigantado?]
Embora a declaração que acabamos de discutir seja, de longe, a mais famosa expressão das opiniões de Protágoras sobre os deuses, não é a única peça de informação que sobreviveu. Na lista dos escritos de Protágoras há uma obra intitulada Sobre as coisas em Hades. No mito posto na boca do sofista, no Protágoras de Platão, os deuses existiam antes que houvesse criaturas mortais, e foram os deuses que, chegado o tempo marcado pelo destino para a sua geração, moldaram criaturas mortais no seio da terra depois de terem feito uma mistura de terra, fogo e elementos que se fundem com terra e fogo. A elas foram então atribuídos, por Prometeu e Epimeteu, vários poderes úteis para a sobrevivência. Depois de algum tempo o homem adquiriu a dádiva do fogo e então foi trazido à luz do dia. A história continua (322a3-5) com as palavras: "Agora que o homem veio a ter uma participação na divina Moira, em virtude de seu parentesco com deus, o único entre as criaturas vivas, ele, em primeiro lugar, veio a ter respeito pelos deuses, e se dedicou a construir altares e imagens dos deuses; e em segundo lugar, rapidamente passou a uma articulada distribuição de voz e nomes".
A interpretação ortodoxa dessa passagem toca as raias do despropositado ao querer argumentar que a expressão "em virtude de seu parentesco com deus" deveria ser excluída do texto por ser inconsistente com o agnosticismo declarado de Protágoras, ou que, se for mantida, é testemunho de que o mito é obra de Platão e não de Protágoras. Mas o mito, como um todo, está construído em torno das atividades de Zeus, Prometeu e Epimeteu, e o fato de ser um mito despoja-o de qualquer possível conflito com o agnosticismo de Protágoras. A distribuição divina, ou Moira, na qual o homem veio a participar, não é tanto a dádiva do fogo, embora esta esteja incluída, quanto a sabedoria (Sofia), que sempre foi associada ao divino; e o parentesco com os deuses é provavelmente algo que resulta da participação do homem na sabedoria divina. De fato, o mito todo, tanto aqui como alhures, apresenta nada mais do que uma espécie de projeção ou reflexão, no nível divino, das forças identificáveis que operam entre os seres humanos neste mundo. Exatamente o mesmo se aplica no caso da concessão de aidós e dikê, que forma o estágio seguinte no mito — o dom deles representa a aquisição, através do estudo, daquelas qualidades, nos seres humanos, que são a condição para a manutenção de sociedades humanas ordenadas. Isso significa que sua preocupação com a religião não era, primeiramente, para conduzir uma polêmica contra as ideias tradicionais dos deuses, mas, antes, para tratar a religião como um fenômeno humano positivo com a valiosa função de atuar nas sociedades”. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 281-286).
Já para Gilbert Romeyer-Dherbey:
“O agnosticismo de Protágoras é talvez disto resultante, o ponto neutro entre os dois discursos opostos que, a propósito dos deuses, se confrontam, o da crença e o da descrença. Se os dois discursos aqui se anulam em vez de deixar um sobrepor-se ao outro, é porque se trata do domínio do invisível e do escondido; o sofista guarda a sua resposta, ou adia-a, na impossibilidade de poder levar a cabo uma fenomenologia do divino, ou de querer elaborar uma teologia do obscuro. Em todo o caso, este agnosticismo prepara e permite o momento seguinte do pensamento de Protágoras, a afirmação do homem-medida: se os deuses não se deixam afirmar, então fica o homem. A prova está em que Platão, nas Leis, substituirá a fórmula protagórica de ánthropos métron por esta: “o deus é a medida de todas as coisas.” [Osório diz: Platão joga a toalha!]
Protágoras prepara, assim, pela negação de todo o recurso ao absoluto, um humanismo radical.
Protágoras, sem negar radicalmente toda a possibilidade de uma imortalidade da alma, devia sublinhar a nossa total impotência para conhecer, com certeza, o que acontece ao homem no além. A presença tutelar do deus desaprece, portanto, no horizonte do homem, antes do nascimento deste como depois da morte. O homem encontrar-se-á num mundo errado. [Osório diz: que religião prestigiará um homem desses?]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 20-21).
Gutrhie explica:
“Segundo Diógenes Laércio (9.24), o filósofo eleata Melisso disse que era errado fazer qualquer pronunciamento sobre os deuses porque era impossível o seu conhecimento. Mas o caso clássico de agnóstico neste século é o seu contemporâneo Protágoras, que ficou famoso por ter escrito:
Quanto aos deuses, sou incapaz de descobrir se existem ou não, ou que forma têm; pois há muitos empecilhos para o conhecimento, a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana. [Osório diz: o cara confessa uma fraqueza sincera (o desconhecimento) e é condenado? Deveria ele mentir, como faz Platão? Aliás, mentir sobre deus é a melhor coisa, pois é impossível provar a mentira na forma que se requer!]
A forma da afirmação é de uma opinião pessoal (“Sou incapaz...") e contrasta significativamente com uma expressão como a de Xenófanes (fr. 34) de que nenhum homem viu, e nenhum homem também nunca saberá a verdade sobre os deuses [Osório diz: Protágoras não fecha portas! Não diz que o tema deva ser encerrado. Não o dá por findo para o homem, apenas para ele próprio, Protágoras]. Alguns acreditavam nos deuses e outros não, e, sendo assim, de acordo com o princípio "o homem é a medida", os deuses existiam para alguns e não para outros; mas para o próprio Protágoras a suspensão de juízo era a única maneira possível. [Cf. Jaeger, TEGP, 189. Isto se acomoda satisfatoriamente coma alegação de T. Gomperz (GT, 1, 457) de que se Protágoras cresse, como Platão disse que cria, que "toda a verdade de um homem é a verdade que lhe parece", ele não poderia ter dito o que disse sobre os deuses.” [Osório diz: claro que poderia. Uma coisa não exclui outra! Para ele, Protágoras era assim. Isso não impedia que para outro fosse diferente! Mas, daí seu gênio: um poderia convencer o outro de sua tese! Esse Gomperz, tanto pai quanto filho são dois fanáticos!] [Osório diz: isso mesmo! Enfim o autor, Guthrie, reconhece o que deveria ser do conhecimento de todos! Protágoras jamais proibiu, até porque nem poderia, a crença nos deuses, mas a entregou a cada qual!]
Protágoras (…) defendeu o culto religioso segundo os nomoi antepassados.” (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 218 e 219).
Guthrie pontua que:
“Protágoras não negou a existência dos deuses, mas se recusou a discutir a questão pelo motivo de que era impossível ter certeza (fr. 4 e Platão, Teet. 162d-e). Seu amigo Péricles disse que nossa crença nos deuses repousa nas honras que lhes prestamos assim como também nos benefícios que conferem (Stesimbrotus ap. Plut. Per. 8). Protágoras provavelmente pensou que esta prova dificilmente suficiente. Assim Nestle, ed. de Prot. pp. 19s. V. mais abaixo, pp. 218s. Linguagem semelhante ocorre em Xenofonte, Mem.1.4.13 (o homem é a única raça que cultua deuses) e 4.3.14 (a alma do homem tou theiou metechei).” (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 66).
Doutrina Untersteiner:
"Sobre os deuses, não estou em condições de provar sua existência ou inexistência fenomênica, nem qual é sua essência em relação à sua mamfestação exterior. De fato, muitas são as dificuldades que impedem essa prova, não somente a impossibilidade de uma experiência sensível deles, mas também a brevidade da vida humana". (Fonte: A obra dos sofistas: uma interpretação filosófica, Mario Untersteiner, tradução: Renato Ambrósio, Paulus, São Paulo, 2012, p. 59-60).