Sofística
(uma biografia do conhecimento)
45.5 – Discurso forte e discurso fraco, de Protágoras.
Ensina Gilbert Romeyer-Dherbey:
“As Antilogias mostraram-nos uma natureza instável, indecisa, desempenhando sempre um duplo papel; ora, uma medida surgiu que vai travar este movimento da balança, decidir um sentido e anunciar a cor. Esta medida é o homem. É por isso que o escrito sobre A Verdade começava pela célebre fórmula:
“O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são”. [Osório diz: frase de Protágoras]
Notemos, antes de mais, que Protágoras não utiliza, para designar a coisa de que o homem é medida, o termo pragma, mas chrema, que significa mais particularmente uma coisa de que nos servimos, uma coisa útil.
Falta o problema da extensão a dar à palavra homem (ánthropos), problema posto, pela primeira vez – parece-nos – por Hegel. Os Antigos, na esteira de Platão, entenderam a palavra homem na fórmula de Protágoras como designando o homem singular, o indivíduo com as suas particularidades específicas. Mas pode alargar-se a extensão da palavra homem e compreender que significa não a singularidade contingente, mas o universal, a humanidade, cuja essência pertence a todo homem. Homem significa então a natureza humana; tal é a interpretação que se dá no séc. XIX. Mas, depois de ter distinguido estes dois sentidos possíveis da fórmula protagórica, Hegel pensa que esta distinção de sentidos ainda não tinha sido feita por Protágoras, que mistura os dois significados sem separar um do outro. Com efeito, escreve Hegel: “Para eles (os Sofistas), o interesse do sujeito na sua particularidade não se distingue ainda do interesse do sujeito na sua racionalidade substancial”.
Encontramo-nos, portanto, perante três interpretações possíveis. A primeira leva-nos diretamente, como reconheceu Platão, ao relativismo cético, doutrina que se destrói a si própria reduzindo todos os seus testemunhos ao mesmo plano: com efeito, Protágoras deveria confessar que não é superior em juízo “não digo apenas a qualquer outro homem, mas mesmo até a um peixe-cabeçudo” [Osório diz: idiotice platônica, já que peixe não emite juízo! O mau dele de misturar as coisas!]. O ensino torna-se inútil “se verdadeira é a Verdade de Protágoras” [Osório diz: não é “verdade”, é que a afirmação é apenas uma parte do ensino. O mito de Prometeu dá a outra parte!], porque a opinião do mestre não tem nenhuma precedência sobre a do aluno. Segundo esta primeira interpretação, Protágoras teria, portanto, afirmado de alguma maneira muito antes de Pirandello: “A cada um a sua verdade.” – A sorte desta leitura, que não conta sequer com as retificações de Platão na continuação do Teeteto, explica-se, sem dúvida, pela coincidência com a imagem desfavorável que se fizera dos Sofistas, que tradicionalmente só existem para servir de alavanca fácil.
A segunda interpretação é preferível e permite deixar continuar, no seio do fenomenismo, uma objetividade científica; uma convergência dos juízos é possível na aparência e, por conseguinte, na separação entre a verdade e o erro. Assim se fez mergulhar o pensamento de Protágoras no individualismo e no ceticismo quando, precisamente, o que pretende é sair deles; passados séculos ainda se interpretam em sentido contrário as intenções do seu autor. [Osório diz: Protágoras e o ceticismo. Ver Barbara Cassin, também]
A terceira leitura – O homem individual e o homem universal são, escreve Untersteiner, “dois momentos de um processo diatético”; a verdade está precisamente na passagem do primeiro ao segundo sentido: a opinião pessoal verifica-se pelo seu acordo com as opiniões dos outros. A opinião singular fortalece-se com o contributo de outras opiniões que lhe são adequadas; o seu encontro forma a verdade. Se a opinião singular não é reforçada por qualquer outra, ou por demasiado poucas, desaparece e não pode aspirar ao verdadeiro, pelo menos enquanto permanecer marginal [Osório diz: como se forma a verdade. O Professor Tercio usa isso quando fala de Hermenêutica]. O conceito de homem, uma vez que é, se se pode dizer, de extensão variável, entra em tensão consigo próprio: opõe-se a si quando as opiniões particulares divergem, e readquire a sua unidade quando as particularidades se conciliam. O momento da particularidade, ainda que real, permanece um momento negativo, que tende a mergulhar de novo, no terreno das antilogias; o momento da universalidade é o positivo e constitui o fundamento daquilo que Protágoras chama o discurso forte. Somos assim levados à análise da terceira tese de Protágoras.
IV - O discurso forte
Cada indivíduo é, certamente, a medida de todas as coisas, mas é uma medida muito fraca se permanece só com a sua opinião. O discurso não partilhado constitui o discurso fraco (hettón logos); aliás, mal chega a ser um discurso porque dizer é comunicar, e toda a comunicação supõe algo de comum. Quando um discurso pessoal, pelo contrário, encontra a adesão de outros discursos pessoais, este discurso, reforçando-se com todos os outros, torna-se discurso forte (kreitón logos) e constitui a verdade. [Osório diz: como se produz a verdade].
(...)
Portanto, a teoria do discurso fraco e do discurso forte não constitui, de modo nenhum, o ato de nascimento da erística, como afirma Aristóteles; não consiste em fazer viajar a evidência ao gosto da eloquência de um hábil advogado, de acordo com as necessidades da causa e o interesse da sua parte, como fez crer uma tradição obstinada. Na realidade, esta teoria parece estar em estreita relação com uma certa prática política, precisamente a da democracia ateniense. Certos indícios podem, antes de mais, encaminhar-nos para semelhante interpretação. Vimos Platão sublinhar que, aos olhos de Protágoras, o Bem não pode existir só e único como deve existir o Bem em si; Protágoras só pode pensar um Bem com facetas, disperso, multicolor, em síntese, um “Bem variegado”. Ora, esta palavra poikilon é retomada por Platão em A República para caracterizar a democracia: a constituição democrática é “como um manto multicolor”. Outro indício. No Protágoras de Platão, Protágoras mostra que a lei da cidade se aplica a todos, “obriga os que mandam e os que obedecem a conformar-se-lhe”. Ora, esta expressão é utilizada por Aristóteles para caracterizar a democracia. Este regime pensa assegurar a liberdade dos cidadãos pela alternância do poder: o cidadão é, com efeito, “alternadamente governado e governante”. É pela alternância do poder, característica da democracia, que a lei da cidade pode efetivamente aplicar-se indistintamente a todos, e tanto aos governantes como aos governados. Evocamos agora o terceiro argumento, que é mais um indício. No mito de Epitemeu e de Prometeu, Protágoras estabelece uma clara diferença entre a arte política e as restantes; uma vez que estas últimas são da alçada de especialistas, Hermes, pelo conselho de Zeus, distribuiu entre todos os homens a virtude política, cujas duas componentes são a justiça e o respeito. “Que todos dela partilhem, diz Zeus; com efeito, as Cidades não poderiam crescer se apenas uns tantos delas partilhassem, como é o caso das outras artes.” É por isso, conclui Protágoras, que os atenienses e as outras cidades democráticas estabelecem uma diferença entre os problemas técnicos e problemas políticos: para os primeiros, só admitem a opinião dos especialistas; para os segundos, pensam que todo o homem se pode pronunciar validamente. Sem a posse unânime da virtude política, as cidades não poderiam existir. A afirmação da competência política partilhada por todos caracteriza o regime democrático; será – não nos esqueçamos – recusada por Platão que, precisamente por isso, estabelecerá a arte política acima das outras e dela fará um assunto de especialistas. (p. 27) [Osório diz: muito boa esta explicação em especial por mostrar o espírito antidemocrático de Platão e Aristóteles!].
Ora, se cada um é capaz de possuir a virtude política, isso significa que na cidade se pode constituir um discurso unânime ou, pelo menos, maioritário, que constitui o discurso forte, representando então o discurso isolado e marginal o discurso fraco. A concepção do discurso forte tem pois, como fundamento, uma experiência política, e esta experiência, longe de ser a do despotismo ou da ditadura, é a da democracia; o que dá ao discurso a sua força é o consensus que provoca. A verdade da pessoa privada é então o cidadão, e na igualdade democrática não se pesam as vozes, contam-se. É por isso que, num primeiro tempo pelo menos, a constituição do discurso forte é uma tarefa essencialmente coletiva; cada qual privilegia dele o que há de comum com outrem, o que é universalizável. A educação é, então, coeducação; se a virtude política é, de fato, a tarefa de todos, é porque vem de todos, e Protágoras, para convencer Sócrates, lança mão de uma comparação esclarecedora:
“Toda a gente ensina a virtude o melhor que pode, e não te parece que haja alguém para a ensinar; é como se procurasses o mestre que nos ensinou a falar grego: não o encontrarias.”
Portanto, a virtude política é, na cidade, a coisa mais bem distribuída: o discurso tirânico é um discurso violento, mas não um discurso forte; também a dimensão propriamente “política” desaparece com a submissão.
Vendo no homem essencialmente um cidadão que, em relação ao Poder, é parte beneficiada, não há dúvida que Protágoras é, realmente, o criador da cultura geral [Osório diz: afirmativa poderosa e desconsertante!]. A divisão do trabalho não permite a constituição do discurso forte porque destrói todo o espaço de troca [Osório diz: o trabalho como impeditivo do discurso]; compreende-se então, a razão da desconfiança de Protágoras perante as diversas técnicas (téchnai) que opõe à política. A condição de possibilidade da virtude política será um conjunto de conhecimentos possuídos por todos os cidadãos, permitindo-lhes encontrar-se numa plataforma comum, ou antes, na praça-forte do discurso partilhado. Compreende-se também que Protágoras tenha dedicado a sua existência à educação do cidadão, e que a seus olhos toda a educação seja educação política [Osório diz: que governo o adotaria?]. É que a paideia tem como efeito substituir os desvios particulares por um modelo cultural consistente, que engloba os indivíduos não apenas no espaço, geograficamente, mas também no tempo, historicamente. A cultura é um discurso forte porque a História a reforça com toda a unanimidade das gerações passadas. Nesta época, é normal que Protágoras tenha tido – como Aristóteles nos explica – grande preocupação pela gramática. Com efeito, a gramática regula a língua para a fazer linguagem de todos; as suas regras universalizam o emprego dos signos. Portanto, é por ela que a palavra ganha força, ao passo que o grito é o discurso fraco, sendo radicalmente individual.
Apesar disso, se o discurso forte extrai, de fato, a sua força da massa dos sufrágios que granjeia, isto não significa que Protágoras professe uma igualdade radical de todas as opiniões e uma identidade de sabedoria em todos os indivíduos. Com efeito, os homens melhores sabem propor aos outros os discursos capazes de captar a sua adesão; o discurso de um só torna-se então discurso forte a par da sua capacidade intrínseca de universalização. A sabedoria consiste em saber substituir, pela persuasão e argumentação, um discurso inconsistente, porque local, por um discurso mais pleno, porque global. O espírito superior sabe, pois, substituir uma aparência pobre, cujo impacto é limitado, por uma aparência rica, isto é, capaz de estreitar os consentimentos e de construir uma república dos espíritos. A educação é, portanto, possível e legítima, já que é o resultado deste espírito superior que sabe fazer a separação entre a opinião que vale menos e a que vale mais, e sabe levar a partilhar a segunda e deixar de lado a primeira, tal como o médico, com os seus remédios, substitui os sintomas da doença pelos sintomas da saúde. Assim também, há em política governos mais ou menos sábios; o mais sábio é o que, por meio do seu discurso, leva a adotar pelos seus concidadãos – isto é, universaliza – as disposições mais úteis à comunidade. O líder politico, polarizando os votos à volta do seu nome, cria o discurso forte da cidade e dá-lhe, com isso, a verdade e a justiça, já que o seu discurso livremente partilhado se torna o discurso comum. O discurso em questão pode, por outro lado, ser tanto mais eloquente porque mudo, e consistir numa simples atitude significativa, um comportamento cujo exemplo é contagioso; tal parece ser o sentido de um fragmento, referido por Plutarco, em que Protágoras faz referência à atitude de Péricles depois da morte dos seus dois filhos Paralos e Xantipos, mortos havia oito dias, não deixando o pai transparecer a sua dor:
“Com efeito, todos os que o viam suportar com coragem os seus lutos pessoais julgavam que era magnânimo e corajoso e mais forte que eles, conhecendo apesar de tudo o desapontamento que era o seu em tais provas.”
Assim, se para medir o discurso forte se contam mais as vozes que o seu peso, não é menos verdade que certas vozes pesam mais que outras na medida em que são capazes de juntar as outras à sua volta, isto é, ao fim e ao cabo, de conter afirmações e decisões generalizáveis. A teoria do discurso forte em Protágoras parece-nos, por conseguinte, apresentar uma inspiração política correta, e esta inspiração não é a do maquiavelismo, é a da democracia, tal como Atenas a conheceu na brilhante época de Péricles.” [Osório diz: a melhor explicação que li sobre o discurso forte e o fraco!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 23-30).