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41.57 - Heidegger sofista.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

41.57 - Heidegger sofista.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Mas eu seria tentada por uma outra abordagem, que partiria dessa vez do Acheminement vers Ia parole. "Nosso pensamento atual, diz Heidegger, tem como tarefa tomar o que foi pensado de maneira grega para pensá-lo de uma maneira ainda mais grega" (trad. Beaufret, Brokmeier, Fédier, p. 125). Deve então haver uma maneira possível de ser pré-socrático de outra forma: sendo, como Heidegger, ainda mais pré-socrático. Gostaria de propor ler em conjunto alguns fragmentos sofísticos e trechos do Acheminement, sem esconder nem por um instante a unilateralidade das minhas escolhas: trata-se simplesmente de sugerir que uma certa linha mais pré-socrática de Heidegger é de tipo sofístico.

Com o mais matinal daquilo que, através do pensamento ocidental, chegou a se fazer ouvir, há a relação da coisa e da palavra, e a verdade sob a figura da relação do ser e do dizer. Essa relação assalta o pensamento de uma maneira tão desconcertante que se anuncia em uma só palavra: lógos. Essa palavra fala simultaneamente como nome do ser e como nome do dizer. Contudo, ainda mais desconcertante para nós é o fato de que, apesar disso, nenhuma experiência com a fala é feita —nenhuma experiência onde a própria fala viesse propriamente à fala na medida dessa relação (p. 169).

Podemos adiantar entretanto que é essa experiência cuja impossibilidade, o "interdito", faz parte da própria fala, que tentam, como dois extremos que aí se encontrassem, tanto a sofística quanto o Acheminement. Ambos praticam a palavra não enquanto ela expressa ou significa, maneira moderna e redução do aristotelismo, tampouco a palavra na medida em que o ser nela se diz na co-filiação que abrigaria precisamente o Poema e de onde deverá se seguir a adequação: eles praticam "a palavra pela palavra". Légein lógou chárin, bastião da resistância sofística contra Aristóteles; ora, diz Heidegger, a propósito do poema de Stefan George,

 

a palavra pela palavra não se deixa encontrar em nenhum lugar onde o destino concede ao ente a fala que o nomeia e o institui, a fim de que ele seja e, sendo, brilhe e desabroche. A palavra pela palavra — um tesouro, na verdade... (p. 176).

 

A palavra, o dizer, não tem ser: "ela dá" (es gibi) e "ela é". "A palavra: o que dá. Dá o quê? Segundo a experiência poética e segundo a mais antiga tradição do pensamento, a palavra dá: o ser" (p. 178). Essa supremacia do lógos que faz com que ele ocupe o lugar do ser na medida em que ele se apaga ou se nega, face ao ente que corre o risco de se tornar o ser ao qual dá lugar, essa potência poética na qual Heidegger insiste, não estaria mais próxima de uma demiurgia discursiva à moda de Górgias ("o lógos é um grande soberano que com o corpo mais minúsculo e o mais imperceptível finaliza os atos mais divinos", Elogio de Helena, 8, 82b, 11D.K. II, 190) do que da mesmidade parmenideana? Bem entendido, podemos ao final, como logo de início, alegar a diferença de intenção, tanto mais que ela é muito precisamente — e é mais do que nunca de primeiríssima importância — diferença de linguagem: entre efeito e dispensa, discurso e fala. Mas para concluir sobre o caráter perpetuamente equívoco da própria estrutura, basta ler por inteiro o fragmento de Novalis intitulado "Monólogo", de onde parte e para onde volta Heidegger em sua última conferência, "O Caminho para a fala" (1959). Por inteiro ou quase, para contextualizar também como sofística a única frase que apoia aqui a meditação de Heidegger:

 

É no fundo uma coisa engraçada falar e escrever; a verdadeira conversação, o diálogo autêntico, é um puro jogo de palavras. Pura e simplesmente assombroso é o erro ridículo das pessoas que pensam falar pelas próprias coisas. Mas o próprio da linguagem, a saber, que ela só se ocupa simplesmente de si mesma, todos ignoram [Precisamente o que a fala tem de próprio, a saber, que ela só se preocupa com ela mesma, ninguém o sabe (trad. de Acheminement, p. 227 e 253)]. É por isso que a linguagem é um mistério tão maravilhoso e tão fecundo: é justamente quando alguém fala simplesmente por falar que realmente exprime as mais magníficas verdades. Mas que queira ao contrário falar de alguma coisa de preciso, eis logo a língua maliciosa que lhe faz dizer os piores absurdos, as patranhas mais grotescas. Também é daí que vem o ódio que tantas pessoas sérias têm da linguagem. Sua petulância e sua traquinice elas notam; mas o que elas não notam é que a tagarelice atabalhoada e seu desleixo tão desdenhoso são justamente o lado infinitamente sério da língua... (Oeuvres Completes, trad. Guerne, II, p. 86).

 

Assim sendo, talvez não fosse errado propor, para caracterizar ao mesmo tempo o último Heidegger e a sofística, o nome comum de "logologia" ousado por Novalis.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 70-72).

 

 

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