Sofística
(uma biografia do conhecimento)
41.32 – Eurípides e os deuses.
Kerferd ensina:
“Críticas das doutrinas tradicionais a respeito dos deuses que se encontram nos poetas e tentativas de reinterpretações radicais não estavam limitadas aos sofistas profissionais. Heródoto (II.52ss) tinha especulado, com certa minuciosidade, sobre a origem dos deuses, seus nomes e suas funções. Segundo um relato, Protágoras teria lido em voz alta o início do seu livro sobre os deuses na casa de Eurípides [Osório diz: Protágoras lendo seu livro! Deve ser Heródoto.], e havia até uma história, preservada na Vida, por Sátiro, segundo a qual o próprio Eurípides fora processado por impiedade. Em muitas de suas peças há vários tipos de crítica lançadas contra os deuses. Às vezes elas não vão além da convicção, expressa com vários graus de paixão, por diferentes personagens, de que os deuses devem ser bons e não maus. Outras vezes, o tema central do drama é o comportamento profundamente impróprio de um deus ou dos deuses, como é certamente o caso de Ártemis em Hipólitos, Zeus em Hércules furioso e Apolo em Íon, Electra e Orestes. [Osório diz: comportamento dos deuses nas peças de Eurípides].
(...)
Tudo isso, contudo, pode ser considerado, de certa forma, a matéria natural da tragédia grega, os problemas levantados pelo relacionamento do homem com deus, e de deus com o homem. Eurípides, contudo, estava associado ao movimento sofista e foi influenciado por ele de modo muito mais profundo [Osório diz: poucos lembram disso ao exaltar Eurípides!]. De fato, não foi por acaso que veio ele a ser chamado, na Antiguidade, "o filósofo teatral ou filósofo do teatro" (Ateneu, 158e, 561a). Wilhelm Nestle intitulou seu grande estudo sobre ele, publicado em Stuttgart, em 1901, Eurípides der Dichter der Aufklärung, embora estivesse bem consciente de que ele é, primeiro e acima de tudo, um dramaturgo, e não pode ser tratado simplesmente como um conferencista expondo ideias sofistas. Isso pode ser ilustrado por uma outra seleção de algumas passagens especiais. Belerofon, nos seus indignados protestos contra a injustiça do governante divino, diz (Belerofon fr. 286):
Será que algum homem ainda diz que há deuses no céu? Não, não há nenhum. Se alguém diz isso, que deixe de ser tão tolo para acreditar nessa velha história. Não se deixem guiar pelas minhas palavras, pensem vocês mesmos. Digo que a tirania mata milhares e os priva de seus bens, e os homens que não cumprem seus juramentos são a causa das cidades serem saqueadas. E, fazendo isso, eles são mais felizes do que os homens que permanecem piedosos dia após dia. Sei de inúmeras pequenas cidades que reverenciam os deuses e são vencidas na guerra e são vassalas de cidades maiores que são mais impiedosas do que elas.
Em outro fragmento (292.7) lemos: "se deuses agem indignamente, então não são deuses".
Essas linhas são comparadas, por Nestle, com a posição que mais comumente encontramos em Sófocles. "Ambos os poetas admitem que Deus e pecado são termos mutuamente exclusivos. Mas dessa admissão eles tiram conclusões opostas. Sófocles infere: 'Conclui-se que tudo o que os Deuses fazem é bom'; e a fim de que não reste a menor dúvida, acrescenta: 'mesmo quando nos ordena ir além do que é certo'. A conclusão de Eurípides é diferente: 'Nesse caso, os deuses pecadores da mitologia grega são não-existentes'." Mas, então, se não há deuses, o que é que devemos supor? Uma possível resposta é dada em termos que poderiam ter vindo diretamente de um expoente das teorias sofistas. Em Hécuba 798ss., encontramos a rainha viúva de Príamo, Hécuba, apelando a Agamenon por misericórdia em uma passagem que tem sido muito discutida: "Somos escravos e, sim, talvez fracos. Mas os deuses têm poder, como o tem nomos que é o senhor dos deuses. Pois é por nomos que acreditamos nos deuses e reconhecemos em nossas próprias vidas uma distinção entre coisas que são certas e coisas que são erradas". Alguns têm suposto que Eurípides, aqui, está se referindo à lei divina que está acima dos deuses. Mas a declaração "é por nomos que acreditamos nos deuses" parece uma clara referência à controvérsia nomos-physis, e isso significa que, aqui, Eurípides está preparado para explicar os deuses como devendo sua existência à crença humana. Isso, contudo, não significa, necessariamente, que sua existência era meramente subjetiva aos seres humanos individuais. Em Rãs (889-894), Aristófanes faz Eurípides dizer que reza a vários deuses, que são especiais para ele, e os nomeia como "Aeté [uma variedade de feijão. (NT)], minha fonte de sustento, pivô, da minha língua, inteligência, narinas, ávido de perfume". Aqui é possível que ao menos a referência a aeté tenha algo de sério, e provavelmente à inteligência também, em vista da invocação que se encontra em Trôades (884-887), na boca de Hécuba: "Oh veículo da terra, oh tu que reclinas na terra, quem quer que sejas, difícil de conhecer até mesmo por conjetura, Zeus, quer sejais necessidade da natureza ou o poder da razão em homens mortais, é a vós que oro".
Tudo isso pode servir de prelúdio e pano de fundo para o notável discurso dramático (DK 88B25) posto na boca de Sísifo, avô de Belerofon. A passagem tem sido comumente atribuída, pelos especialistas, a Crítias, com base na autoridade de Sexto Empírico, corroborada, nos tempos modernos, por Wilamowits. Mas, como foi afirmado antes (capítulo 5, p. 92-93 acima), os argumentos para atribuí-lo a Eurípides são bastante mais fortes, principalmente porque se sabe que Eurípides escreveu uma peça satírica intitulada Sísifo, quando ganhou o segundo prêmio com uma tetralogia que incluía a Trôades, na primavera de 415 a.C. (Aelia, V. H. II, 8). O discurso começa com palavras que se tornaram clichés, visto que se encontram também no começo do mito de Protágoras, no diálogo de Platão com esse nome. Houve um tempo em que o modo de vida humano era desordenado, igual ao do animal, e escravo da força. A esse se seguiu um segundo estágio, quando os seres humanos estabeleceram leis, impondo punições a fim de que reinasse a justiça e os excessos fossem controlados. Essas leis foram de fato bem-sucedidas no controle dos atos feitos em público, mas os atos de violência continuaram em segredo. Então se seguiu um terceiro estágio — alguém, ao mesmo tempo inteligente e sábio, inventou o medo dos deuses a fim de ameaçar os que eram secretamente maus nos atos, palavras ou pensamentos. Pois os deuses, que habitam nos céus lá em cima, possuem poderes divinos que lhes permitem estar informados das malfeitorias cometidas em cada uma das três áreas citadas acima, até mesmo a dos pensamentos secretos. A doutrina desse sábio não foi só extremamente útil — diz-se dela que esconde a verdade com um relato falso. O resultado, porém, foi que as leis acabaram com a desordem. [Osório diz: ou quase acabaram!]
Se tivéssemos apenas o relato acima, seria possível supor que a falsidade mencionada nele consistia meramente em atribuir aos deuses tais poderes extremos de supervisão sobre a humanidade. Mas Sexto cita duas outras linhas que, diz ele, ocorrem um pouco mais adiante: "Desta forma algum homem, assim suponho eu, inicialmente persuadiu os mortais a crer que existe uma raça de deuses". Isso parece justificar plenamente a inclusão da opinião assim expressa sob o título de ateísmo.” (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 287-288 e 288 a 291).