Sofística
(uma biografia do conhecimento)
14 – Sofística: da Física à Política.
É Barbara Cassin quem diz:
“O mundo assim produzido é, antes de mais nada, o que J. Burckhardt nomeava "o sistema mais tagarela de todos": a cidade grega.
A sofística desconstruiu a identidade do ser e da natureza, a imediaticidade de sua presença e, com elas, a evidência de uma fala que teria por tarefa dizê-los adequadamente. Desde então a identidade não pode mais aparecer senão como o resultado de um procedimento, quer se trate da quadratura do círculo ou desse substituto do kósmos que é a cidade: ao físico que a fala descobre, se substitui o político que o discurso cria.
Essa nova identidade não constitui uma unidade de unicidade, sobre o modelo da esfera de Parmênides; ela não hierarquiza as diferenças como na república platônica estruturada como um [11] organismo, nem as reduz à indistinção de uma simpatia entre amigos, como na ética aristotélica; é, ao contrário, o resultado sempre precário de uma operação retórica de persuasão, que produz para a ocasião uma unidade inteiramente feita de diferenças.
O discurso sofístico, na verdade, está para a alma assim como o phármakon, remédio/veneno, está para o corpo: induz uma mudança de estado para o melhor ou para o pior. Mas o sofista, como o médico, sabe utilizar o phármakon e pode transmitir esse saber; sabe e ensina como fazer passar, não, segundo a bivalência do princípio de não-contradição, do erro à verdade ou da ignorância à sabedoria, mas, segundo a pluralidade inerente ao comparativo, de um estado menos bom a um estado melhor [Osório diz: o que os sofistas propõem-se a fazer]. Protágoras, que professa a virtude, o diz pela boca de Sócrates que, então, o defende: "É de uma disposição à disposição que vale mais que deve se fazer a passagem, mas o médico produz essa passagem através das drogas, o sofista através dos discursos" (Teeteto, 167a).
Assim, pode-se a cada vez discursivamente alcançar aquilo que Górgias, e sobretudo Ântifon, nomeiam homología, ou homónoia, ao mesmo tempo acordo, consenso e concórdia [Osório diz: o que é possível obter entre os homens]. É antes de mais nada a própria lei, por diferença com a natureza, que é por essência um tal acordo (Ântifon, B44D.K.) e, quanto à Grécia, ela se distingue pela lei que prescreve aos cidadãos de prestar o juramento de concordância, quer dizer, o juramento de obediência às leis (B 44a). Essa reunião que reduz os dissensos constitui explicitamente não apenas o modelo das relações entre cidades, e da relação entre cidadãos de uma mesma cidade, mas serve para pensar até a harmonia, conflitual e temporalizada, constitutiva de cada indivíduo.
Diante do cálculo do melhor, do mais útil, "a fronteira entre bem e mal se apaga: aí está o sofista" (Nietzsche, Fragments postumes, 87-88, 343ss.,11 [375]). É assim que podemos explicar o paradoxo de uma sofística ora tirânica e ora democrata, ora cínica, sadísta, revolucionária, e ora conformista e conservadora [Osório diz: isso explicaria Protágoras democrata e Antifonte junto aos aristocratas]. O personagem de Ântifon pode servir com razão de paradigma, a ponto de ter sido fragmentado pela tradição em vários indivíduos distintos: a obediência à natureza, cuja necessidade ele demonstra, deve teoricamente conduzir à liberação dos instintos e à anarquia social; ora, ele não cessa de propor como exemplo as condutas gnômicas14 convencionais e esteriotipadas. Mas é de forma correta que no Sobre a Verdade, natureza e lei são distinguidas somente por seu "uso" ou sua "utilidade": pelas conseqüências que sua [12] transgressão ocasiona. A transgressão da necessidade natural produz um dano segundo a "verdade", independente das circunstâncias, enquanto a transgressão de uma regra convencional só produz efeito na "opinião”, logo radicalmente diferente segundo se trate de uma conduta privada ou de uma conduta pública; no secreto do privado se opera assim um retorno ao natural, mas a natureza então não é mais do que uma escapada ao imperialismo dessa legalidade que pretende coagir até a sensibilidade e prescrever aos olhos "o que eles devem e o que não devem ver" (B 44A, col. 2 e...3 D.K.). [Osório diz: doutrina de Antifonte].
Encontrando-se assim difratada25 a identidade dos indivíduos e das condutas, concebe-se que o mesmo Ântifon possa propor como modelo de retórica judiciária Tetralogias, quer dizer, séries de quatro discursos: uma acusação, uma defesa, uma nova acusação que leva em consideração a primeira defesa, depois uma última defesa, cada uma propondo sua narrativa e sua versão de uma mesma ação, segundo as exigências instantâneas da tática. [Osório diz: é o que ocorre no Júri!]
À destituição da identidade ontológica se sucede, com a prática retórica, a construção de uma identidade política que leva em consideração a diversidade das opiniões. Simultaneamente, a moral fundada sobre uma virtude ou um bem únicos como a verdade é substituída pela consideração das condutas efetivas e a preocupação com o melhor, que leva a marca de uma vivência da finitude.” [Osório diz: o que a sofística propõe em substituição à verdade]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 10 a 13).
1 4 Gnômico = sentencioso.
2 5 [Do lat. cient. diffractio, onis < lat. diffractus, part. pass. do lat. diffringere, 'quebrar em pedaços'.] S. f. Fís.
1.
Fenômeno que ocorre quando uma onda caminhante é limitada, em seu avanço, por um objeto opaco que deixa passar apenas uma fração das frentes de onda, e que pode ser observado como uma propagação da onda para regiões além do objeto e situadas na sombra deste em relação à direção da onda incidente, ou como a propagação da onda em direções preferenciais, etc.