Duplos Discursos Fragmentos

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Duplos discursos.

Duplos discursos.

 Duplos discursos.

 

Os Duplos Discursos (Dissoi Logoi) integram um texto anônimo, encontrado entre os manuscritos de Sexto Empírico. O título corresponde às palavras iniciais do primeiro capítulo, sendo a obra também conhecida por Discussões (Dialexeis). Escrita por volta de 400 a. C., em dialeto dórico com elementos jônicos, contém materiais heterogêneos, veiculando um conjunto de concepções muito propagadas na época e conotadas com pontos de vista sofísticos. A datação baseia-se na alusão feita na referida obra à vitória recente dos Espartanos sobre os Atenienses e seus aliados na Guerra do Peloponeso (l, 8), mas o valor deste testemunho suscitou algumas dúvidas (confira G. B. Kerferd, The Sophistic Movement, cit., p. 54, já existe tradução para o português). Embora as posições atribuídas ao autor do pequeno tratado sejam sobretudo associadas a Protágoras, essa interpretação não é consensual, pois há quem destaque como determinantes dos conteúdos expressos as influências de Hípias, de Górgias e outras oriundas dos círculos socráticos. Todos reconhecem a composição eclética da obra cujo teor reflete uma série de lugares-comuns, correntes no meio “dos que filosofam” (cf. 1.1), na acepção ampla daqueles que se interessam pelas questões do saber e buscam a paideia. A estrutura do tratado carece de uniformidade, possuindo os quatro primeiros capítulos um esquema assente em antilogias (Do Bem e do Mal, Do Decente e do Vergonhoso, Do Justo e do Injusto, Da Verdade e da Falsidade), embora o mesmo não suceda com os restantes capítulos que se diferenciam pelo estilo de argumentação e pelos temas debatidos, sem, no entanto, perder concatenação e unidade global. Mantém-se a apresentação dos discursos opostos, mesmo que a estrutura antilógica fique implícita ou desapareça. Os assuntos expostos reportam-se, como dissemos, a problemáticas de discussão habitual na época. O quinto capítulo foca o tema genérico da coincidência dos opostos, o sexto aborda a controversa possibilidade do ensino da arete, o sétimo critica a escolha por sorteio para os cargos públicos, o oitavo descreve os traços mais marcantes dos modelos de político e de orador, preconizando o conhecimento de todas as coisas como condição de acesso aos diversos saberes e artes, enquanto o nono elogia a técnica da memória entre outras afins.

 

O intento de estabelecer elos de identificação entre as ideias veiculadas no texto e as opiniões dos principais sofistas (com particular destaque para os já mencionados Protágoras, Górgias e Hípias) ou de outros autores absorveu, durante muitas décadas, a atenção dos especialistas, sem se ultrapassarem conclusivamente as divergências. Com efeito, são insuficientes os meios de que dispomos para apurar as posições do hipotético autor, nos meandros dos juízos enunciados em termos de “tese” e de “antítese”. De um modo geral, os referidos “duplos discursos” ou os denominados argumentos “antitéticos” não se enquadram na categoria lógica da contradição em sentido próprio, mas numa forma alargada de relativismo, resultante de modos de ver contrários, de acordo com os complexos e múltiplos fatores que determinam as opiniões de cada indivíduo.

 

Não se reduzem estes procedimentos ao modelo de argumentação erística que é objeto de crítica no Eutidemo platônico. Nesta obra, os sofistas mostravam a mestria na arte de interrogar e, no contexto do diálogo baseado em intervenções breves, com perguntas e respostas, o inquirido era intimado a optar por um dos termos da alternativa formulada de forma dilemática. A asserção assumida implicava a aceitação das respectivas consequências, o que levava a reconhecer a manifesta contradição entre estas e as afirmações anteriormente enunciadas ou a admitir a impossibilidade de sustentar em simultâneo, sobre o mesmo assunto, discursos radicalmente antagônicos e exclusivos entre si. A contraposição antilógica remetia para a refutação que constituía a arma por excelência de qualquer discussão, visando “vencer” o eventual adversário.

 

A modalidade de argumentação prosseguida nos Dissoi Logoi não coincide com a antilogia em sentido restrito, inerente ao confronto erístico de razões opostas. Situa-se, antes, na linha da arte antilógica atribuída a Protágoras e da qual as respectivas Antilogias (que não chegaram até nós) talvez nos dessem exemplos esclarecedores. L. Versényi (Socratic Humanism, cit., pp. 20-21) aponta a íntima dependência entre os argumentos contrários e o relativismo que decorre quer do carácter polissemântico dos termos, susceptíveis de terem significados distintos conforme os contextos em que são usados, quer da complexidade das várias situações particulares. O estudioso acentua, por conseguinte, a distância que separa este tipo de oposição da contradição propriamente dita: “O esquema antilógico dominante nos Dissoi Logoi, 1-4, é simples: bom e mau (decente e vergonhoso, justo e injusto, verdadeiro e falso) são o mesmo e não são o mesmo. O mesmo porque a mesma coisa pode ser boa e má (justa e injusta, etc.) para diferentes indivíduos, em diferentes situações e perspectivas, em diferentes tempos; não são o mesmo, porque a mesma coisa não pode ser boa e má para o mesmo homem, nas mesmas situação e perspectiva, ao mesmo tempo. Os enunciados opostos (o mesmo e o não mesmo) são igualmente verdadeiros, sendo apenas aparentemente contraditórios. O seu caráter paradoxal surge do uso das mesmas palavras (bom e mau, etc.) em diferentes contextos; o paradoxo é resolvido quando ficamos conscientes da diferença que dá à mesma palavra um significado diferente, mas não contraditório” (ibidem, cit., pp. 20-21). Em moldes análogos, se desenrolam os duplos discursos utilizados no contexto da atividade dos médicos hipocráticos, que defenderam juízos contrários perante uma mesma situação ou, inversamente, o mesmo juízo perante situações contrárias, dada a pluralidade dos fatores presentes nos casos particulares. O uso deste gênero de argumentos é ricamente ilustrado nas obras de historiadores, como Heródoto e Tucídides, na comédia por Aristófanes (Nuvens), na tragédia, por Eurípides, entre outros. Insere-se no campo da arte de desenvolver raciocínios “a favor” e “contra” um determinado ponto de vista, de que nos fala Sêneca (Ep., 88.43; cf. DK 80 A 20), no sentido de mostrar os dois lados de cada argumento, mais numa perspectiva retórica do que em moldes estritamente lógicos ou filosóficos.

 

A unidade de conjunto de que se reveste o tratado foi defendida por T. M. Robinson (Contrasting Arguments, An Edition of the Dissoi Logoi, Salem, New Hampshire, 1979). Este sublinha a conexão dos conceitos relativos à sabedoria (sophia) e à ignorância (amathia) com os relativos à excelência (arete). Assim, regista-se uma sequência natural de assuntos: primeiro, a discussão em esquema antilógico dos conceitos morais e filosóficos, realizada nos primeiros parágrafos (caps. 1-4); depois, o interesse pelas questões respeitantes ao significado dos opostos (sophia/amathia) (cap. 5) e à viabilidade da aprendizagem da arete (cap. 6); por fim, a abordagem de questões aparentemente díspares, tais como a distribuição dos cargos públicos por sorteio (cap. 7), a descrição do paradigma do político/orador (cap. 8) e o papel do exercício da memória, no plano da sabedoria e da vida prática (cap. 9). O esteio que proporciona a harmonia das diversas partes baseia-se na articulação existente entre o interesse especulativo e o empenho no controle das artes indispensáveis à intervenção prática nas atividades da polis.

 

DK 90 DUPLOS DISCURSOS

 

[Dissoi Logoi é o título da obra, instituído a partir das duas primeiras palavras do texto. Estes “duplos discursos” ou “duplos argumentos” são proferidos na Hélade “pelos que filosofam”. Neste contexto, os que se dedicam à filosofia são aqueles que, numa acepção ampla, se interessam pelo saber, estando o termo “filosofia” desprovido do sentido técnico que só mais tarde adquire.]

 

1. Do bem e do mal

 

(l) Duplos discursos sobre o bem e o mal são proferidos na Grécia por aqueles que se dedicam à filosofia. Uns dizem que uma coisa é o bem e outra coisa é o mal; mas outros dizem que são o mesmo, e que uma coisa é um bem para uns, enquanto para outros é um mal ou que, para a mesma pessoa, uma coisa é um bem numa certa ocasião e um mal noutra ocasião [A última posição, assumida pelo autor, expressa uma forma de relativismo, baseada na experiência de que diferentes argumentos são proferidos de acordo com diferentes situações e perspectivas, em diferentes tempos e lugares, sem que isso implique contradição.]. (2) Eu próprio partilho da perspectiva destes últimos e analisarei o argumento a partir da vida humana, cujos cuidados são a comida, a bebida e os prazeres sexuais; tudo isto é um mal para o que está doente, mas é um bem para o que está de saúde e deles sente necessidade. (3) E o desregramento nestas coisas é um mal para os desregrados, mas é um bem para quem negoceia e se vende. E a doença é um mal para os que estão doentes, mas é um bem para os médicos. E a morte é um mal para os que morrem, mas é um bem para os comerciantes de serviços funerários e para os fornecedores de túmulos. (4) Também a agricultura que dá frutos é um bem para os agricultores, mas é um mal para os comerciantes. É um mal para o armador que os navios mercantes colidam e se danifiquem, mas é um bem para os construtores de navios. (5) E ainda é um mal seja para quem for que um utensílio de ferro fique corroído, se embote e se quebre, mas é um bem para o ferreiro. E é um mal seja para quem for que a loiça se parta, mas um bem para os oleiros. É um mal seja para quem for que os sapatos fiquem usados e se rompam, mas é um bem para o sapateiro. (6) Assim é também nas competições gímnicas [ginástica], artísticas e bélicas: por exemplo, para o que vence na prova da corrida a vitória é um bem, mas é um mal para os que perdem. (7) E o mesmo sucede aos que se exercitam na luta, os pugilistas e todos os outros que participam em competições artísticas; por exemplo, [a vitória] na prova de cítara é um bem para o vencedor, mas é um mal para os vencidos. (8) E na guerra (falarei primeiro dos acontecimentos mais recentes), a vitória dos Espartanos, que derrotaram os Atenienses e os aliados, foi um bem para os Espartanos, mas um mal para os Atenienses e aliados. E a vitória que os Gregos obtiveram sobre os Persas foi um bem para os Gregos, mas um mal para os bárbaros. (9) Também a derrota de Tróia foi um bem para os Aqueus, mas um mal para os Troianos. E o mesmo em relação ao que passaram Tebanos e Argivos. (10) E o combate entre os Centauros e os Lápitas foi um bem para os Lápitas, mas um mal para os Centauros. E também no famoso combate entre os deuses e os Gigantes, a vitória foi um bem para os deuses, mas um mal para os Gigantes. (11) Um outro argumento propõe que o bem seja uma coisa e o mal outra, e tal como o nome é diferente, assim também é a realidade. Eu próprio faço a distinção dessa maneira. Julgo que não se torna claro o que é o bem e o que é o mal, se cada um for o mesmo e não algo diferente (e seria realmente surpreendente). (12) Penso que quem defende tal ponto de vista não conseguirá responder a alguém que lhe pergunte o seguinte: “Diz-me, os teus pais já te fizeram algum bem?” Ele dirá: “Numerosos e grandes.” “Então deves-lhes males grandes e numerosos, se o bem é idêntico ao mal. (13) E fizeste algum bem aos teus familiares?” “[Numerosos e grandes].” “Ao mesmo tempo fazias mal aos teus parentes. Então já fizeste mal aos teus inimigos?” “Numerosos e [muito grandes].” “Mas ao mesmo tempo fizeste bem. (14) Vamos, responde-me também a isto. O que acontece não é que te apiedas dos mendigos, porque têm numerosos males, e simultaneamente os consideras afortunados, porque desfrutam de numerosos bens, se mal e bem são o mesmo?” (15) Nada impede que o Grande Rei se encontre em situação semelhante à dos mendigos. Tem numerosos e grandes bens, tal como tem numerosos e grandes males, pois bem e mal são o mesmo. Consideremos que isto foi dito em todos os casos. (16) Vou, no entanto, analisar cada um, começando pelo comer, pelo beber e pelos prazeres sexuais. Para os que estão doentes isto é um mal e, ao mesmo tempo, é para eles um bem, se bem e mal são o mesmo. E para os doentes estar doente é um mal e um bem, se o bem é idêntico ao mal. (17) E isto é válido em todos os outros casos mencionados no argumento anterior. Eu não digo o que é o bem, mas tento explicar que mal e bem não são o mesmo, mas diferentes um do outro.

 

[Muitos dos paradoxos referidos resultam diretamente da ambiguidade dos termos, susceptíveis de diferentes usos. Por conseguinte, aprender a utilizar corretamente os nomes permite clarificar as suas diferentes acepções e, com isso, pôr fim aos impasses suscitados pelas limitações da linguagem no que respeita à relação entre as palavras e as coisas.]

 

2. Do decente e do vergonhoso

 

[Os termos gregos constantes do título peri kalou kai aiscrou são difíceis de traduzir nas línguas modernas. Peri kalou significa, à letra, “sobre o belo”, mas o vocábulo grego “kalos” tem também a conotação valorativa, no plano moral, do que é “bom”, e “aischros” tem o significado pejorativo de “vil”, “indecoroso”. Também se usa, na linguagem vulgar, a oposição “bonito/feio”, num sentido próximo do antes indicado.]

 

(1) Também acerca do decente e do vergonhoso se proferem duplos discursos. Uns dizem que uma coisa é o decente, outra coisa, o vergonhoso, e, tal como o nome é diferente, assim também a realidade. Outros, pelo contrário, dizem que decente e vergonhoso são o mesmo, (2) E eu tentarei explicar a questão da seguinte maneira: por exemplo, é decente para um jovem na flor da idade obsequiar um amante respeitável, mas é vergonhoso obsequiar alguém que não seja um amante honesto. (3) É decente as mulheres lavarem-se no interior da casa, mas na palestra é vergonhoso (no entanto para os homens é decente fazê-lo na palestra e no ginásio). (4) E ter relações sexuais com um homem em privado, onde se estará escondido por paredes, é decente, mas fazê-lo no exterior, onde alguém poderá ver, é vergonhoso. (5) Também ter relações sexuais com o próprio marido é decente, mas com outro é vergonhoso. E para o marido ter relações com a própria mulher é decente, mas com outra é vergonhoso. (6) E adornar-se, untar-se com pó branco e usar ornamentos de ouro é vergonhoso para o homem, mas decente para a mulher. (7) Fazer bem aos amigos é decente, mas aos inimigos é vergonhoso. E fugir dos inimigos de guerra é vergonhoso, mas fugir dos adversários no estádio é decente. (8) E chacinar os amigos e os concidadãos é vergonhoso, mas chacinar os inimigos é decente. E o mesmo a respeito de tudo. (9) Passo agora àquilo que as cidades e os povos consideram vergonhoso. Por exemplo, para os Espartanos é decente que as raparigas façam ginástica nuas e desfilem ora com vestes sem mangas ora sem túnica, mas para os Jônios é vergonhoso. (10) E para aqueles é decente que os rapazes não aprendam as artes e as letras, mas para os Jônios é vergonhoso não conhecer tudo isto. (11) Entre os Tessálios é decente para o próprio homem que escolhe os cavalos da manada domá-los a eles e às mulas e é decente para o próprio homem que escolhe um boi matá-lo, esfolá-lo e cortá-lo, mas na Sicília é vergonhoso e é tarefa de escravos. (12) Parece decente aos Macedônios que as raparigas, antes de se casarem, se apaixonem e tenham relações sexuais com um homem, mas, quando uma rapariga já está casada, é vergonhoso; para os Gregos é vergonhoso em ambas as situações. (13) Para os Trácios é um ornamento as raparigas tatuarem-se, mas aos olhos de outros povos as tatuagens são um castigo para os culpados de injustiça. Os Citas consideram decente que aquele que mata um homem o escalpe e transporte o escalpe na parte dianteira do cavalo, e, depois de revestir o pedaço do crânio de ouro ou de prata, beba por ele e faça libações aos deuses; mas, entre os Gregos, ninguém quereria entrar na mesma casa de quem cometesse estes atos. (14) Os Masságetas, depois de despedaçarem os progenitores, comem-nos, e eles consideram que não há túmulo mais belo do que ser sepultado no corpo dos próprios filhos; mas, na Grécia, se alguém fizesse isto, seria expulso da Grécia e pereceria em ignomínia por cometer atos vergonhosos e terríveis. (15) Os Persas consideram decente que também os homens se adornem como as mulheres e que um homem tenha relações sexuais com a filha, com a mãe e com a irmã, mas os Gregos consideram essas acções vergonhosas e contrárias às suas leis. (16) Aos Lídios parece-lhes decente que as raparigas se prostituam para ganhar dinheiro e depois casem, mas entre os Gregos ninguém quereria desposá-las. (17) Os Egípcios não consideram decentes as mesmas coisas que os outros: aqui parece-nos decente que as mulheres teçam e trabalhem a lã, mas ali o que parece decente é que os homens façam isso e que as mulheres levem a cabo o que os homens fazem aqui. Amassar a argila com as mãos e a farinha com os pés é para eles decente, mas para nós é o contrário. (18) Penso que se alguém ordenasse a todos os homens que reunissem num único monte o que cada um considera vergonhoso e, que, por sua vez, tomassem desse acervo o que cada um tem na conta de decente, nem uma única coisa seria deixada, mas todos levariam tudo, pois nem todos têm os mesmos pontos de vista.

 

(19) Apresentarei também um poema:

 

E, ao fazeres esta distinção, verás a outra lei

para os mortais: nada é em todas as circunstâncias

[nem decente

nem vergonhoso, mas o momento oportuno toma

[as coisas

e torna-as vergonhosas e transforma-as e torna-as

[decentes.

 

(20) Ora, para colocar a questão de uma maneira geral, tudo é decente no momento oportuno e vergonhoso no momento inoportuno. O que é que consegui fazer? Disse que demonstraria que as mesmas coisas são vergonhosas e decentes e demonstrei-o em todos estes casos. (21) Mas acerca do vergonhoso e do decente afirma-se também que são diferentes um do outro. Se alguém perguntar aos que sustentam que o mesmo é decente e vergonhoso, no caso de algo decente ser feito por eles, terão de admitir também algo de vergonhoso, se o vergonhoso e o decente são o mesmo. (22) E se conhecem um homem belo, ele é também feio. E se conhecem alguém branco, ele também é negro. É decente honrar os deuses e ao mesmo tempo é vergonhoso honrar os deuses, se vergonhoso e decente são o mesmo. (23) Podemos considerar que digo isso em todos os casos. Mas vou voltar ao argumento sustentado por eles. (24) Se é decente uma mulher adornar-se, será também vergonhoso, uma vez que o mesmo é vergonhoso e decente. E assim por diante nos outros casos. (25) Na Lacedemônia é decente que as jovens se exercitem nuas, e o mesmo nos outros casos. (26) Diz-se que, se alguns reunirem de todas as nações do mundo as coisas vergonhosas e, em seguida, uma vez convocados, se lhes ordenar que cada um retire o que considerar decente, tudo será retirado como decente. Eu fico espantado por as coisas vergonhosas, depois de reunidas, passarem a ser decentes e não se manterem tal como chegaram. (27) Certamente que se tivessem trazido cavalos, bois, porcos ou homens, não levariam nada de diferente. Nem se tivessem trazido ouro, levariam bronze; nem se tivessem trazido prata, levariam chumbo. (28) Levam realmente coisas decentes no lugar das vergonhosas? Vejamos. Se alguém tivesse trazido um homem desonesto, levá-lo-ia de volta honesto? Citam também como testemunhas os poetas [que] compõem poesia com vista ao prazer, não com vista à verdade.

 

[Como suporte da argumentação, o autor utiliza um vasto repertório de materiais de índole diversificada sobre uma ampla gama de objetos, ações, usos e costumes, salientando a divergência de juízos morais, consoante os vários grupos humanos e respectivas culturas, e também as modificações nas apreciações, qualitativas, em função do princípio da oportunidade (kairos). De um modo geral, todas as coisas no tempo oportuno (kairwi, kairoi) são, boas, enquanto as ocorridas no tempo inoportuno (akairiai, akairiai) são más.]

 

3. Do justo e do injusto

 

(1) Também se proferem duplos discursos sobre o justo e o injusto. Uns defendem que uma coisa é o justo e outra coisa o injusto; outros dizem que justo e injusto são o mesmo. Quanto a mim, tentarei defender este último argumento. (2) E, em primeiro lugar, direi que é justo dizer mentiras e enganar. Dir-se-ia que fazer isto aos inimigos é [decente e justo] e é vergonhoso e perverso fazê-lo [aos amigos]. [Mas como é que é justo fazê-lo aos inimigos] e não aos mais amados? Por exemplo, aos pais: se o pai ou a mãe precisarem de beber ou ingerir um medicamento e não quiserem, não é justo dar-lho na comida ou na bebida e não dizermos que se encontra aí? (3) Por conseguinte [é justo] mentir e enganar os pais. E é justo roubar o que pertence aos amigos e exercer violência sobre os mais amados. (4) Por exemplo, se um dos familiares, abatido e transtornado por qualquer motivo, estiver prestes a matar-se com um punhal ou com uma corda ou com qualquer outro instrumento, é justo roubar-lhe esses utensílios, se possível, ou se se chegar demasiado tarde e já tiver o instrumento na mão, não é justo arrancar-lho à força? (5) Como é que não é justo reduzir os inimigos à escravatura e, se alguém puder conquistar uma cidade inteira, vender os habitantes como escravos? Também parece justo destruir as paredes dos edifícios públicos dos concidadãos. Se o pai de alguém, dominado pelos seus inimigos, tiver sido feito prisioneiro e condenado à morte, não será porventura justo abrir uma brecha no muro para retirar secretamente esse pai e o salvar? (6) E quanto ao perjúrio: se alguém, capturado pelos inimigos, jurar solenemente trair a cidade uma vez posto em liberdade, acaso agirá este homem de maneira justa ao cumprir o juramento? (7) Eu, por mim, não sou dessa opinião; penso que seria preferível que salvasse a cidade, os amigos e os templos ancestrais pelo perjúrio. Assim, por conseguinte, é justo perjurar; e pilhar os templos também. (8) Excluo os templos que são propriedade privada dos cidadãos; mas não é justo tomar e usar para fins bélicos templos que são propriedade pública da Grécia, os de Delfos e os de Olímpia, quando o bárbaro invasor está prestes a conquistar a Grécia, e a salvação depende das riquezas? (9) Também é justo assassinar os mais amados, uma vez que Orestes [Filho de Agamêmnon e de Clitemnestra, matou a mãe e o amante desta, Egisto, para vingar o assassínio de Agamémnon.] e Alcméon [Filho de Anfiareu e de Erifile, Alcméon matou a mãe em retaliação por esta ter traído seu pai.] o fizeram, e o deus fez saber que era justo agir assim. (10) Voltar-me-ei agora para as artes e para as obras dos poetas. Na composição de tragédias e na pintura o melhor artista é aquele que mais engana ao criar coisas semelhantes às verdadeiras. (11) Quero também citar o testemunho da poesia como a de Cleobulina:

 

Vi um homem a roubar e a enganar pela força

e fazer isto pela força era muito justo.

 

(12) São versos de há muito tempo. A citação seguinte é de Esquilo:

 

A divindade não se mantém afastada de um logro justo.

Há momentos em que a divindade respeita o momento

[oportuno de dizer mentiras.

 

(13) Há também um argumento contrário a este, segundo o qual o justo e o injusto são distintos; tal como o nome é diferente, assim também a realidade. Se alguém perguntar aos que dizem que injusto e justo são o mesmo, se já fizeram algo de justo aos pais, eles assentirão. Também terão feito algo de injusto, pois concordam em que o mesmo é injusto e justo. (14) Mas tomemos um outro caso. Se alguém sabe que um determinado homem é justo, também sabe que o mesmo homem é injusto e, segundo o mesmo raciocínio, um homem grande é também pequeno. Mas quem tiver cometido muitas injustiças deve morrer, tal como quem põe em prática ações justas merece morrer. (15) E acerca disto, já disse o suficiente. Voltarei aos argumentos com os quais pretendem demonstrar que justo e injusto são o mesmo. (16) Demonstrar que roubar os bens dos inimigos é justo é demonstrar que esta mesma ação é injusta, se é verdadeiro o argumento daqueles; e o mesmo nos outros casos. (17) Referem as artes, em que não existe o justo nem injusto. E os poetas compõem os seus poemas não com vista à verdade, mas para dar prazer aos homens.

 

4. Da verdade e da falsidade

 

(1) Proferem-se também duplos discursos sobre a falsidade e a verdade. Na opinião de uns uma coisa é o discurso falso e outra o discurso verdadeiro; para outros são o mesmo [Sobre esta temática, confira Platão, Eutidemo, 283 e segs.]. (2) Eu, por mim, defendo este último argumento, em primeiro lugar, porque se expressam com as mesmas palavras; depois porque, sempre que se profere um discurso, se os fatos sucederam tal como se afirmou, o discurso é verdadeiro; se não sucederam tal como se afirmou, esse mesmo discurso é falso. (3) Tomemos como exemplo um discurso que acuse uma pessoa de pilhar os templos. Se o ato aconteceu, o discurso é verdadeiro; se não aconteceu, é falso. E o mesmo se passa em relação ao discurso do que se defende de tal acusação. Até mesmo os tribunais julgam o mesmo discurso como falso e como verdadeiro. (4) Na verdade, se, sentados uns a seguir aos outros, dissermos, “sou um iniciado”, todos diremos o mesmo, mas só eu faço uma afirmação verdadeira, já que apenas eu sou um iniciado. (5) É evidente que o mesmo discurso é falso, sempre que a falsidade está nele presente; é verdadeiro, sempre que a verdade está presente nele (assim como também o homem é o mesmo, seja criança seja jovem seja adulto seja ancião). (6) Diz-se também que uma coisa é o discurso falso e outra, o discurso verdadeiro, tal como o nome é diferente [assim também a realidade]. Ao perguntarmos aos que defendem que o mesmo discurso é falso e verdadeiro se o discurso que proferiram é verdadeiro ou falso, se responderem “falso”, é evidente que falso e verdadeiro são duas coisas distintas; se responderem “verdadeiro”, esta mesma afirmação também será falsa. E, se uma pessoa alguma vez disser ou testemunhar algo como sendo verdadeiro, isso será também falso. E, se sabe que um certo homem é honesto, sabe que o mesmo homem é também falso. (7) De acordo com o seu argumento dizem o seguinte: tendo sucedido o fato, a afirmação é verdadeira; não tendo sucedido, é falsa. Por conseguinte, não é o nome que difere, mas a realidade. (8) Ao perguntarmos ainda aos juízes o que é que estão a julgar (não estiveram, naturalmente, presentes nos fatos), até eles concordam que é falso o discurso que contém falsidade e verdadeiro o que contém verdade. Mas isto é uma perspectiva diferente. [Osório diz: eis a justiça aprisionada!]

 

[Capítulo sem título, em que se foca o tema genérico da oposição dos termos e a ambiguidade das acepções dos mesmos. Não principia com a menção dos “dissoi logoi” proferidos sobre as mesmas coisas, mas mantém-se a estrutura antilógica do tratado, na medida em que se apresenta uma tese (1-5), seguida da sua refutação (6-15).]

 

5. (1) “Os loucos, os sãos de espírito, os sábios e os ignorantes dizem e fazem o mesmo [Partindo dos pares de opostos: os loucos e os homens sãos (toi mainomenoi kai toi sophonountes), os sábios e os ignorantes (toi sophoi kai toi amatheis), a tese (1-5) baseia-se em dois argumentos: indivíduos que possuem propriedades opostas poderão falar e agir de maneira idêntica: a mesma pessoa, ou coisa. é ela mesma possuidora de propriedades contrárias.]. (2) Em primeiro lugar, designam as coisas pelos mesmos nomes: terra, homem, cavalo, fogo e tudo o resto. E fazem as mesmas coisas: sentam-se, comem, bebem, dormem e assim por diante. (3) E, além disso, a mesma coisa é maior e menor, mais e menos, mais pesada e mais leve; deste modo, tudo é o mesmo. (4) O talento [unidade monetária grega que equivale a sessenta minas] é mais pesado do que a mina e mais leve do que dois talentos. O mesmo talento é, portanto, simultaneamente mais leve e mais pesado. (5) E o mesmo homem vive e não vive, e as mesmas coisas são e não são. Aquilo que existe aqui não existe na Líbia; nem o que existe na Líbia existe em Chipre. E assim por diante, segundo o mesmo argumento. Por conseguinte, as coisas são e não são.” (6) Os que dizem isto, que os loucos e [os sãos], os sensatos e os ignorantes fazem e dizem as mesmas coisas, e outras coisas que derivam deste raciocínio, estão errados [Segue-se a refutação da tese antes exposta (1-15), com a discussão dos critérios adotados para distinguir os opostos e a explicação das diferenças associadas às modificações fenomênicas.]. (7) Com efeito, se alguém lhes perguntar se a loucura difere da sanidade e a sabedoria, da ignorância, dizem “sim”. (8) É bem evidente a partir das ações de cada um que concordarão. Além disso, se fazem o mesmo, não só os sábios são loucos, como os loucos são sábios e tudo se confunde. (9) E deve levantar-se a questão de saber se são os sábios ou os loucos os que falam no momento adequado. Sempre que alguém lhes perguntar, respondem que ambos dizem o mesmo, com a diferença de que os sábios falam no momento adequado, enquanto os loucos falam nas ocasiões em que não é adequado. (10) E, quando dizem isto, parece que acrescentam pequenas expressões como “no momento adequado” e “no momento não adequado, de tal forma que já nada é o mesmo. (11) Eu não penso que as coisas sejam modificadas com a adição de tal pormenor, mas ao alterar-se um acento. Por exemplo, Glaúkus (Glauco) e glaukós (verde), Xánthos (Xanto) e xanthós (amarelo), ou Xoúthus (Xuto) e xouthós (dourado). (12) Estas palavras distinguem-se pelo lugar do acento, as seguintes por serem pronunciadas com quantidade vocálica longa ou breve: Túros (Tiro) e turós (queijo), sákos (escudo) e sakós (estábulo); e há outras que se distinguem pela sequência das letras, kártos (força) e kratós (da cabeça), ónos (burro) e nóos (espírito). (13) Uma vez que há uma diferença tão grande sem retirar nada, que diremos se alguém acrescenta ou retira algo? Mostrarei de que estou a falar. (14) Se alguém retirar um de dez ou acrescentar um a dez, já não haverá nem dez nem um, e assim por diante. (15) E a propósito da asserção de que o mesmo homem existe e não existe, pergunto: existe num aspecto particular ou em todos os aspectos? Se alguém disser que não existe, diz uma falsidade por estar a pressupor que não existe em aspecto nenhum. Na verdade, tudo existe de alguma maneira.

 

6. Sobre a sabedoria e a virtude, se podem ser ensinadas

 

(1) Profere-se uma afirmação que nem é verdadeira nem nova: que sabedoria e virtude não podem ser ensinadas nem aprendidas [O debate sobre a possibilidade do ensino da arete é particularmente apaixonante para os intelectuais da época, que equacionam a temática à luz da oposição entre nomos e physis. Salientam a importância dos fatores decorrentes do que nos é dado por natureza e os elementos adquiridos por convenção, que dependem da aprendizagem e do ensino. Confira Platão, Protágoras, 319 a e segs., e Mênon, 70 a e segs.]. Os que afirmam isto recorrem às seguintes provas. (2) Que não é possível, se se entregar algo a outrem, continuar a manter posse disso. Esta é uma prova. (3) Uma outra prova consiste em que, se aquelas pudessem ser ensinadas, haveria professores reconhecidos, tal como há nas artes. (4) Uma terceira prova consiste em que os homens que se tornaram sábios na Grécia teriam ensinado a sua arte aos amigos. (5) Uma quarta prova é que já alguns conviveram com os sofistas e não tiraram daí proveito algum. (6) Uma quinta prova é que muitos que nunca se associaram aos sofistas se tornaram dignos de menção. (7) Eu, por mim, penso que este argumento é muito pouco elaborado. Sei que os professores ensinam as letras que por acaso cada um conhece e que os tocadores de cítara ensinam a tocar cítara. E, respondendo à segunda prova, que não existem professores reconhecidos, o que é que ensinam os sofistas senão sabedoria e virtude? (8) E o que é que foram os seguidores de Anaxágoras e de Pitágoras? Quanto ao terceiro ponto, Policleto ensinou o filho a fazer esculturas. (9) E se alguém não ensinou, não significa nada; mas, se houve um único que ensinou, prova que é possível ensinar. (10) Quanto à quarta prova, que os que conviveram com os sofistas não se tornaram sábios, também muitos que estudaram as letras não as aprenderam. (11) Existe também uma disposição natural, graças à qual uma pessoa que não tenha estudado com um sofista, no caso de ser bem dotada, é capaz de aprender facilmente a maior parte das matérias, depois de aprender uma pequena parte com aqueles que nos ensinam também as palavras. E algumas destas, seja em maior ou menor número, aprendem-se com o pai, outras, com a mãe. (12) Se alguém não está convencido de que aprendemos as palavras, mas nascemos sabendo-as já, que forme uma opinião a partir do seguinte: se se enviar uma criança, logo depois de nascer, para Pérsia, e aí for criada, sem saber a língua grega, falará persa; se for educada aqui, falará grego. É por isso que aprendemos as palavras e não sabemos quem foram os nossos professores. (13) Fica assim concluído o meu argumento; eis o começo, o fim e o meio. E não digo que [a sabedoria e a virtude] não podem ser ensinadas, mas que aquelas provas não me satisfazem.

 

7. Alguns dos que fazem discursos nas assembleias populares sustentam que é preciso que os cargos públicos sejam escolhidos por sorteio, mas não pensam da melhor maneira [Neste capítulo, o logos respeitante à escolha por sorteio para os cargos públicos é enunciado e criticado, sem que o autor apresente a proposta alternativa: atribuir os cargos mediante eleição. O principal argumento da crítica consiste na necessidade de uma preparação especializada, com vista ao exercício eficiente das várias funções.]. (2) Perguntará alguém ao que defende isto: “Porque não atribuis aos teus escravos domésticos as tarefas por sorteio, para que o condutor de bois, se lhe couber em sorte o ofício de cozinheiro, cozinhe, e o cozinheiro conduza os bois, e assim por diante? (3) Por que motivo não reunimos os ferreiros e os sapateiros, os carpinteiros e os ourives, fazemos um sorteio e obrigamos cada um a exercer a arte que lhe couber em sorte e não aquela que conhece?” (4) E o mesmo nos concursos artísticos: sortear e fazer cada um competir no concurso que lhe couber em sorte: ao flautista poderá caber tocar cítara e ao citarista tocar flauta; e na guerra, [os] archeiros e [os] hoplitas combaterão a cavalo, enquanto o cavaleiro combaterá com arco, de tal modo que ninguém faça nem o que sabe nem o que é capaz de fazer. (5) Dizem que isto é bom e muito democrático. Eu, pelo contrário, penso que é o menos democrático possível. Nas cidades há homens inimigos do povo, e, se tivessem oportunidade, aniquilariam o povo. (6) Sem dúvida que é imprescindível que o próprio povo mantenha os olhos abertos e escolha todos os que são benevolentes para com ele, para chefiar o exército deve escolher os que se adequam a isso, para zelar pela lei deve escolher outros, e assim por diante.

 

8. (1) Considero que é próprio do [mesmo] homem e da mesma arte conseguir discutir em estilo breve, saber [a] verdade das coisas, saber julgar corretamente, ser capaz de falar em público, conhecer as técnicas dos discursos e sobre a natureza de todas as coisas ensinar como são e como se tornaram o que são [Aparentemente, a exigência de um saber sobre a totalidade das coisas contraria a especialização preconizada no capítulo anterior, mas trata-se de uma inteligência global acerca da realidade, a qual representa a condição do acesso aos diversos saberes particulares. Neste capítulo, também destituído de título (como os capítulos 5, 7 e 9), delineiam-se os traços característicos de um paradigma de político e de orador. Uma mesma e única techne habilita um indivíduo ao domínio de diversos saberes e competências, entre os quais se encontram a capacidade de fazer discursos curtos, o conhecimento da verdade das coisas, a arte de levar a cabo uma autodefesa nos tribunais, a facilidade de falar em público com o controle dos instrumentos relativos à argumentação eficaz, o conhecimento da natureza de todas as coisas.] (2) E, em primeiro lugar, aquele que conhece a natureza de todas as coisas, como é que não conseguirá agir corretamente em todas as ocasiões e [ensinar a cidade] a fazer o mesmo? (3) Além disso, aquele que conhece as técnicas dos discursos saberá também falar corretamente sobre tudo. (4) O que tenciona falar corretamente precisa de falar a respeito daquilo que conhece: conhecerá, por conseguinte, tudo. (5) Conhece as técnicas de todos os discursos e todos os discursos [são] acerca de todas as coisas [que existem]. (6) E o homem que tenciona falar corretamente precisa de conhecer as coisas a respeito das quais vai falar, quaisquer que elas sejam, e precisa de ensinar a cidade a realizar boas ações e a evitar as más. (7) Ao conhecer isto conhecerá também o que difere disto; conhecerá, portanto, tudo. Estes objetos de conhecimento são parte de todos os objetos de conhecimento, e a necessidade da situação fornecer-lhe-á, se for necessário, outros objetos para o mesmo fim. (8) Quem não sabe tocar flauta conseguirá tocar flauta, se for preciso fazê-lo. (9) O que sabe argumentar no tribunal tem de conhecer corretamente o que é o justo, pois as sentenças são sobre isto. E, ao conhecê-lo, conhecerá também o seu contrário e as outras coisas que diferem [destas]. (10) Precisa também de conhecer todas as leis. Se não conhecer os fatos, não conhecerá as leis. (11) Quem conhece as leis da música é um homem que também sabe música. O que não sabe música não conhece a sua lei. (12) Se um homem conhece a verdade das coisas, o raciocínio facilmente se encaminha no sentido de que conhece tudo. (13) E assim [consegue discutir em estilo] breve, no caso de ser interrogado e precisar de responder sobre todos os assuntos. Em suma, tem de conhecer tudo.

 

9. (1) A maior e mais bela descoberta foi a memória; é útil para tudo, para o estudo e para a sabedoria prática [O elogio da memória é um tópico frequentemente tratado. A referência mais pormenorizada às técnicas de memorização levou a que se associasse este passo à influência de Hípias, famoso pela sua extraordinária memória e também pela invenção de mnemotécnicas (cf. DK 86 A 2, 5 a, 11, 12).]. (2) Isto é verdade, como se verá, se se fixar a atenção. Por este processo, o intelecto perceberá mais, conseguindo uma visão de conjunto daquilo que se aprendeu. (3) Em segundo lugar, sempre que se ouvir alguma coisa há que prestar atenção: ouvir e dizer muitas vezes o mesmo faz vir à memória tudo o que se aprendeu. (4) Em terceiro lugar, há que relacionar com o que se sabe o que se ouve. Por exemplo, se é preciso memorizar o nome Crisipo, relacionamo-lo com chysos (ouro) e hippos (cavalo); (5) para memorizar Pirilampo relacionamos o nome com pyr (fogo) e com lampein (brilhar). Isto faz-se para os nomes. (6) No caso das coisas, faz-se assim: para a coragem, pensa-se em Ares e Aquiles; para a arte do ferreiro, pensa-se em Hefesto; para a cobardia, em Epeu.

 

[A alusão à recente vitória dos Espartanos sobre os Atenienses na guerra do Peloponeso, ocorrida em 404 a. C., foi decisiva para datar o tratado, mas pode resultar de um erro de leitura, como extensamente explica T. M. Robin-son (Contrasting Arguments, cit., pp. 35-41). O mesmo cepticismo em aceitar a referida datação como exacta é expresso por G. B. Kerferd (The Sophistic Movement, cit., p. 54).]

 

Fonte: todas as informações acima sobre os Duplos Discursos foram retiradas de: SOFISTAS – testemunhos e fragmentos, tradução e notas: Ana Alexandre Alves de Sousa e Maria José Vaz Pinto, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2005, a qual, portanto, deve ser consultada.

 
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