Crítias Fragmentos

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Crítias.

 

Crítias.

Crítias pertenceu a uma das famílias mais ilustres de Atenas, sendo bisneto de Drópides, contemporâneo de Sólon, e estava ligado a Platão por laços de parentesco muito próximos.

 

[Diógenes Laércio fornece-nos informações sobre os laços de parentesco de Crítias com uma das famílias mais ilustres de Atenas e sobre o fato de o mesmo ser tio de Platão]

 

Admirador do regime de Esparta, lutou como opositor da democracia ateniense, integrando o partido oligárquico. Foi acusado de envolvimento no escândalo da mutilação das estátuas de Hermes, na noite que antecedeu a partida da frota ateniense contra Siracusa, em 415 a. C. No final da Guerra do Peloponeso, em 404 a. C., foi eleito membro da Comissão dos Trinta e participou no governo de Os Trinta Tiranos, que se tornou famoso pelos atropelos à justiça e pelos excessos cometidos. Crítias foi responsável pela morte de Terâmenes, seu anterior aliado político, e, na sequência destas convulsões e intrigas, morreu em 403 a. C., no decurso das lutas civis que deram lugar à restauração da democracia.

 

Juntamente com Alcibíades, membro do partido democrático, frequentou o círculo de Sócrates, o que levou a que ambos fossem considerados discípulos deste. À má reputação que sobre eles recaiu, devido aos desmandos a que se entregaram, afetou indiretamente o bom nome do seu alegado mestre, e esse terá sido um dos fundamentos para a acusação dirigida contra o filósofo de corromper os jovens da sua cidade.

 

Crítias, além de participar no convívio com Sócrates, foi discípulo dos sofistas, sem que ele mesmo, em sentido restrito, fosse um sofista. De facto, não exerceu ensino remunerado, nem foi professor (não obstante a formação transmitida a partir da sua obra escrita). Filóstratro incluiu-o nas Vidas dos Sofistas, e Platão em Protágoras, 315 e, refere a sua presença na reunião que juntou os sofistas mais famosos em casa de Cálias. Estes fatos contribuíram para que os fragmentos de Crítias fossem incluídos por Diels na edição de Die Fragmente der Vorsokratiker.

 

[O estatuto de Crítias, na qualidade de sofista, é discutível atendendo ao fato de não ter sido nunca um professor itinerante, nem exercer qualquer atividade remunerada, no plano específico da docência.]

 

Escreveu em prosa e em verso.

 

Assinalam-se fragmentos das tragédias, Tenes, Radamanto e Pirítoo, e excertos da peça satírica Sísifo. Em Sísifo (cf. B 25) descreve a origem da crença nos deuses, merecendo atenção particular dos estudiosos, pelo testemunho a respeito das concepções relativas aos deuses e às práticas religiosas. Crítias foi acusado de ateísmo, por causa dos excertos em causa, mas os conteúdos veiculados no referido texto não permitem uma conclusão tão categórica. A narrativa aproxima-se de outras congêneres como, por exemplo, o mito de que o Protágoras platônico se faz porta-voz no diálogo homônimo (confira Protágoras, 320 d-321 a); narra a evolução da humanidade desde as origens, procurando esclarecer o estatuto dos seres humanos em face dos outros seres vivos e em confronto com os deuses. São focados vários tópicos: o homem começou num estado de natureza bruta; a lei foi introduzida, mediante acordo, para salvaguarda da segurança coletiva; a religião foi inventada para evitar as infrações secretas às leis estabelecidas, pelo receio da vingança divina por parte dos mortais, intimidados pela convicção de que aos deuses nada passa despercebido. Que estes deuses sejam fictícios, não obsta a que a crença que neles é depositada cumpra a sua função social. [Osóriod diz: antecipação de Rousseau?].

 

Diz Filóstrato, na sua obra Vidas dos Sofistas, (1, 16) que “mesmo que o sofista Crítias tenha destruído a democracia dos Atenienses, não é ainda assim um homem perverso: a democracia destruir-se-ia a si mesma, quando se tornou de tal forma orgulhosa que não se submetia aos que exerciam a função de magistrados segundo as leis. (…) Parece-me a mim o pior de todos os homens que adquiriram reputação por maldade. E se, por falta de cultura, tivesse sido conduzido a isto, corroborar-se-ia o argumento daqueles que dizem ter sido corrompido pela Tessália e pelas ligações com esta. Com efeito, naturezas incultas são muito facilmente induzidas em erro quanto à escolha do tipo de vida. Mas, uma vez que fora educado da melhor maneira, interpretara numerosos temas filosóficos e proclamara-se descendente de Drópides, que governou os Atenienses depois de Sólon, não poderia escapar, segundo a maioria, à acusação de ter cometido esses erros por maldade de caráter.

 

Se na verdade, o discurso não for concordante com o carácter, parecerá que falamos com a língua de outrem, como os tocadores de flauta.

 

Xenofonte, na sua obra Memoráveis (1, 2, 12 e segs.) informa: “Mas, dizia o acusador, Crítias e Alcibíades, que foram discípulos de Sócrates, fizeram os maiores males à cidade. [Osório diz: ninguém dá atenção a isso!]

 

(…) Ao aperceber-se de que Crítias estava enamorado de Eutidemo e tentava tirar partido dele, como aqueles que desfrutam dos prazeres do corpo, Sócrates esforçou-se por dissuadi-lo, dizendo que era grosseiro e impróprio de um homem honesto insistir junto do amado, a quem pretende aparecer como muito digno, suplicando como os mendigos e pedindo-lhe para ceder; e isto não é próprio de alguém íntegro, (30) Mas, uma vez que Crítias não acatava estes conselhos, nem se deixava dissuadir, conta-se que Sócrates, na presença de muitos outros e de Eutidemo, disse que Crítias parecia experimentar o mesmo que os porcos, ao desejar esfregar-se a Eutidemo como os bácoros às pedras. A partir disto, Crítias passou a odiar Sócrates de tal maneira que, quando, por ser um dos Trinta Tiranos, foi legislador com Cálicles, conservou o rancor contra ele e estipulou por lei que não se ensinasse a arte da palavra.

 

Conta Licurgo, em sua obra Contra Leócrates (113), que “A assembleia popular votou, sob proposta de Crítias, que se julgasse por traição o morto 17 e, se fosse reconhecido que, apesar de traidor, fora sepultado no solo pátrio, as suas ossadas seriam desenterradas e banidas das fronteiras da Ática.

 

[Frínico, morto em 411. Quando se restaurou a democracia, Crítias procurou colaborar com os vencedores e fez uma proposta de votação contra o oligarca Frínico, acusando-o de traição. Teria assim manifestado uma habilidade sem escrúpulos: confira: Tucídides, 8, 92, 2.]

 

[Durante a sua permanência na Tessália, Crítias promoveu a revolta dos servos contra os seus senhores, apoiando os democratas locais contra os oligarcas.]

 

Diz Xenofonte, na sua obra Helênicas (2, 4, 8) que: “Depois disto, os Trinta, considerando que a situação já não era segura para eles, quiseram apoderar-se de Elêusis, de modo que aí tivessem um refúgio, se fosse necessário. Depois de terem dado instruções aos cavaleiros, Crítias e o resto dos Trinta chegaram a Elêusis. Na sequência disto, Trasíbulo, levando consigo os já cerca de mil homens de File que tinha reunido, chegou de noite ao Pireu... Os de File... marcharam em coluna em direção a Muníquia. Dos Trinta, Crítias e Hipómaco morreram aí.

 

B. Fragmentos poéticos

 

No Escólio a Eurípides, Hipólito, p. 264, consta: “Pertence a um dos Sete Sábios a expressão “nada em excesso”, que se atribui a Quílon, como faz Crítias. Diógenes, 1, 41, sobre Quílon, diz:

 

Era lacedemônio o sábio Quílon, que disse o seguinte:

 

“Nada em excesso.” Ao momento oportuno está ligado tudo o que é belo.

 

Dramas

 

Radamanto

 

[Radamanto, filho de Zeus e de Europa, representa o paradigma do justo; escapou à morte e foi para os Campos Elísios, dos quais se tornou governante].

 

(…)

 

Estobeu (2, 8, 12. IV 20, II, 61) diz: “Em Radamanto, de Eurípides:

 

Na vida temos vários amores.

Um deseja adquirir nobreza;

outro não se preocupa com isso, mas quer

ser chamado senhor de muitas riquezas em casa.

Agrada a outro, em cujos pensamentos nada há de saudável,

persuadir o próximo com malévola audácia.

Há ainda entre os mortais os que procuram

lucros vergonhosos em vez do belo;

assim a vida humana vai andando errante.

Eu [por mim] não desejo conseguir nada disto,

mas gostaria de desfrutar da glória da boa reputação.

 

[Pirítoo, filho de Zeus e de Dia, esposa de Ixíon, tomou parte na luta contra os Centauros. A tradição mitológica refere a amizade que ligou os dois heróis, Teseu e Pirítoo, e as peripécias em que estiveram envolvidos. Desceram ao Hades para raptar Perséfone e, segundo uma versão, não puderam abandonar os Infernos, condenados a uma pena eterna (confira a Odisseia, 11, 631). Numa outra versão, Teseu é libertado por Héracles, recaindo sobre Pirítoo a hybris e respectivo castigo. Crítias ressalta a amizade dos dois heróis: é por pura amizade e não por ser constrangido pelos deuses que Teseu fica junto de Pirítoo, no reino de Hades, até que Héracles os liberta, servindo-se de persuasão, para convencer a deusa do mundo subterrâneo a deixá-los partir.]

 

Diz Plutarco, na sua obra Das Amizades (7, p. 96 c) que: “São poucos os que, não tendo obtido qualquer benefício dos amigos quando eles eram prósperos, estão dispostos a perecer com eles na desventura. E sofrem sobretudo assim os homens cultos e gentis como Teseu, que a Pirítoo, castigado e acorrentado, “foi preso, com cadeias de honra nos pés, não com cadeias de bronze.”

 

Estobeu (2, 8, 4), No Pirítoo, de Eurípides afirma:

 

Não fora com um espírito inexperiente que, pela primeira vez,

 

se exprimira, aquele que criara a seguinte frase:

 

a sorte alia-se aos que pensam bem.

 

[Esta obra, assim como as anteriores Tenes, Radamanto e Pirítoo foram atribuídas a Eurípides por muitos estudiosos. Sexto Empírico menciona Crítias como seu autor, e o fragmento é particularmente interessante pela forma como explica a origem das religiões, no âmbito da controversa oposição entre nomos e physis. A doutrina exposta coaduna-se com as posições sofísticas acerca do caráter convencionalista das crenças e das normas. Ressalta a preocupação moralista de precaver o desrespeito pelas leis, quando não existem testemunhas. A concepção de uma divindade que tudo observa e a quem não escapam as más ações cometidas às ocultas vem reforçar o receio do castigo e acautelar o cumprimento do que é justo. É de notar a antítese entre “público” e “privado” que, constantemente, surge em discussões deste tipo. Ao referir a necessidade de “inventar” a existência de deuses, para proteger a ordem pública, Crítias posiciona-se pragmaticamente perante o fenômeno religioso, o que levou a que o considerassem como ateísta, desde tempos antigos. Os modos de ver este assunto são divergentes e muitos exprimem reservas de que se possa falar de ateísmo, em sentido próprio, nesta época. Veja-se, nesta linha, G. B. Kerferd, The Sophistic Movement, cit, pp. 163-172. [livro já traduzido para o português]

 

Também Eurípides, o poeta trágico, não quis manifestar as suas ideias, receando o Areópago, mas deu-as a entender do seguinte modo: pôs em cena Sísifo como representante desta opinião e fê-lo exprimir--se a favor da sua ideia. Disse: “Houve um tempo em que,... serva” [versos 1-2]. Em seguida disse que a ilegalidade cessara com a introdução das leis. Porque a lei podia afastar os aspectos manifestos das injustiças, e muitos cometiam injustiças às ocultas, um certo sábio determinou então que era preciso obscurecer a verdade com um discurso falso e persuadir os homens de “que existe... com vida, quem ouve e vê estas coisas e com suma inteligência” [versos 17-18] Écio, l, 6, 7 (D. 294). Por isso Eurípides também diz: “e o brilho estrelado do céu, sábio... o tempo” [versos 33-34]:

 

Houve um tempo em que a vida humana era desordenada"

e serva de uma força selvagem,

quando nem existia nenhuma recompensa para os indivíduos

[honestos

nem havia castigo para os maus.

E parece-me que, em seguida, os homens instituíram leis

punitivas a fim de que a justiça fosse soberana

[de todos igualmente] e que fizesse da insolência uma escrava.

Se alguém cometesse uma falta seria penalizado.

Em seguida, uma vez que as leis os impediam

de praticar manifestos atos de violência

e eles os praticavam às ocultas, parece-me que nesta altura

[pela primeira vez] um certo homem, ousado e sábio na maneira

[de pensar

inventou o receio [dos deuses] para os mortais, para que

os malvados tivessem receio de fazer

ou dizer ou pensar [algo] às ocultas. Por isso, introduziu o divino:

“Há uma potestade florescente, com vida indestrutível,

que, com o espírito, ouve e vê, e, com suma inteligência,

vigia estas ações, dotada ela própria de uma natureza divina.

Ouvirá tudo o que se disser entre os mortais

e poderá ver tudo [o] que é feito.

Se, em silêncio, planeares algum mal,

isso não passará despercebido aos deuses. A inteligência

é nela [suma].” Fazendo esta afirmação,

introduziu a mais agradável das doutrinas

e encobriu a verdade com um discurso falso.

Defendia que os deuses habitavam num lugar que,

só de o mencionar, assustava imenso os homens.

Sabia que daí partiam os receios para os mortais

e os consolos para a sua vida desditosa,

vindos da esfera celeste, onde via

 

existirem relâmpagos e terríveis estrondos

de trovão e o estrelado corpo 69 do céu,

obra admiravelmente variegada do sábio artífice, o tempo.

Daqui avança a massa incandescente da estrela

e a tempestade de chuva sai em direção à terra.

Em tais medos envolveu os homens,

pelos quais [ele] integrou bem a divindade

no discurso e num local conveniente;

e com as leis destruiu a ausência de leis.

E um pouco adiante, acrescentou:

Penso que foi desta maneira que alguém, pela primeira vez,

[persuadiu os mortais a pensarem que existia uma raça de deuses.

 

Estobeu (3, 14, 2) cita “Crítias:

 

Aquele que na relação com os amigos faz

tudo para agradar transforma o prazer imediato

que causa em ódio no momento seguinte.

 

E prossegue: (4, 33, 10):

 

É melhor ter como companheira em casa

inabilidade rica ou pobreza sábia?

 

Pólux (7, 59) escreve: “Também chamam “calções” (skeleaz, skeleas) às calças largas tipicamente persas. Este termo encontra-se em Crítias nas Constituições.

 

[Neste fragmento e seguintes, as informações sobre o uso dos termos mostram, por um lado, o interesse em registar os usos linguísticos dos diversos grupos e povos e, por outro lado, a preocupação com a correção dos nomes, nota característica da abordagem sofística da problemática da linguagem.]

 

Platão, na sua obra Cármides (161 b), diz: “Cármides: - Lembrei-me agora de já ter ouvido alguém dizer que a prudência consiste em fazer, cada um, as coisas que lhe dizem respeito”.

 

Da Natureza do Amor e das Virtudes

 

Crítias (na sua obra Das Epidemias, 3, 17, 11 [III 134 Littré] uma mulher de nome Disânio). V. dysanies: Crítias na sua obra Da Natureza do Amor ou das Virtudes explica assim o nome: “Um insatisfeito é uma pessoa que se aflige com os pequenos e os grandes problemas em maior grau ou durante mais tempo do que os outros homens.”

 

Élio, na sua obra História Variada (10, 13), diz que “Crítias censura Arquíloco por ter falado muito mal de si mesmo: “Se ele não tivesse divulgado uma tal opinião sobre si mesmo entre os Gregos, depois de abandonar Paros, por causa da pobreza e da dificuldade, não teríamos sabido nem que ele era filho da escrava Enipo nem que chegou a Tasos nem que, ao chegar, se tornou inimigo dos que aqui vivem nem mesmo que disse igualmente mal dos amigos e dos inimigos. Além disto, não teríamos sabido que era adúltero, (Osório diz: Charles Bukowski ou Tati Bernardi (não sei de quem é a autoria) não está só ao cunhar a frase “Se for falar mal de mim me chama, sei coisas terríveis a meu respeito.”!).

 

Prossegue Élio (10, 17) dizendo que “Crítias diz que Ternístocles, filho de Néocles, antes de ter começado a carreira política, tinha o patrimônio paterno de três talentos. Mas, quando ficou à frente da democracia, fugiu a seguir e foi-lhe confiscado o património: descobriu-se que tinha um patrimônio de mais de cem talentos. Do mesmo modo também Cléon, antes de entrar nos negócios públicos, não tinha bens disponíveis, mas deixou depois uma fortuna de cinquenta talentos. (Osório diz: A corrupção vem de longe!)

 

Para o homem que nasce, segundo o filho de Calescro, um dos Trinta Tiranos, “nada é certo senão o morrer, depois de nascer, e, enquanto está vivo, é impossível escapar à fatalidade...”

 

Platão, na sua obra República (2, 368 a) põe Sócrates para dizer: “Ó filhos de um homem ilustre, o amante de Gláucon fez muito bem em vos dedicar a vós que adquiristes renome na batalha de Mégara o começo daquela elegia que diz: “Filhos de Aríston, estirpe divina de um homem glorioso!” (Osório diz: Gláucon é irmão de Platão e Aríston pai deles?)

 

Fonte: todas as informações acima sobre Crítias foram retiradas de: SOFISTAS – testemunhos e fragmentos, tradução e notas: Ana Alexandre Alves de Sousa e Maria José Vaz Pinto, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2005, a qual, portanto, deve ser consultada.

 
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