Vendo a imagem acima, lembrei da historinha abaixo que contei a uma amiga: Ei-la:
“Meu pai me contou que o pouco que ganhavam era sempre administrado por meu avô, que os provia com o mínimo necessário, apenas o suficiente para garanti-lhes a existência. Prova maior disso era o grande sonho de meu pai: comprar uma lata de leite condensado e poder bebê-la integralmente sozinho. Realizou este sonho aos dezesseis anos! Comprou a tão sonhada lata e foi para o mato esconder-se dos demais, uma vez que não queria dividi-la com ninguém. Chegando ao local que entendeu apropriado, sentou-se e furou a lata em dois locais oposto de sua tampa. Deleitou-se integralmente. Sorveu todo o conteúdo. Depois abriu totalmente a lata com a ponta da faca e limpou-a com os dedos, que eram lambidos a medida que se embebiam de leite, e assim deixou a lata totalmente “limpa”.
Ry sorriu.
- Resultado: pouco tempo depois atacou-lhe uma “caganeira” (diarreia) que quase o leva ao arrependimento pela realização do sonho!
- Exagerado igual ao filho, comentou a amiga.
- É. Talvez. O estômago não estava acostumado.
- Diz o ditado: quem nunca comeu mel...”.
“Entender poesia
Fazer um esforço sincero para assimilar imagens fragmentadas, incompreensíveis e inventadas nos ajuda a pensar fora do lugar-comum
Vi na internet uma notícia mais ou menos assim: “Cientistas comprovam que ler poesia surrealista deixa as pessoas mais inteligentes”. Pode até ser. Fui apresentado ao Surrealismo na adolescência, quando via filmes de Luis Buñuel e ficava desconcertado diante das imagens bizarras, absurdas, incompreensíveis, que a toda hora apareciam em histórias de amor e crônicas de família meio melodramáticas, como O Anjo Exterminador e A Bela da Tarde. Isso continuou até seus filmes da velhice, como O Discreto Charme da Burguesia, ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Nos livros surrealistas, eu encontrava poemas de Benjamin Péret:
“Meu avião em chamas meu castelo inundado de vinho do Reno/ meu gueto de íris negras minha orelha de cristal/ meu rochedo despencando-se pela falésia para esmagar o guarda-florestal/ meu caracol de opala meu mosquito de ar...”
Aquilo parecia consistir de palavras sem nada a ver umas com as outras, ou imagens impossíveis. Um castelo inundado de vinho? Uma orelha de cristal? Eu, hein.
Muitos leitores param por aí e dizem algo como: “Isso não é poesia, é um conto do vigário para iludir pessoas ingênuas que, querendo passar por intelectuais, dizem que entendem isso”. Essa atitude revela um saudável ceticismo, cheio de desconfiômetro, por um lado; mas, se é a única atitude de que o leitor dispõe, pode servir para negar qualquer coisa. Música de -Bach? “É um conto do vigário também! O cara está tocando ao acaso nas teclas, e chamando aquilo de fuga!”
Só se dispõe a entender quem aceita o jogo proposto pelo artista. Senão, é melhor ir fazer outra coisa. Quando o leitor faz um esforço sincero para assimilar essas imagens, força seus neurônios a criar novos caminhos, diferentes dos caminhos habi-tuais da poesia que tem lógica, como a de João Cabral ou a de Vinicius de Moraes. (Aliás, olhando a obra desses, vemos essas imagens nonsense típicas do Surrealismo, no seu período formativo; basta ler o livro Pedra do Sono de Cabral ou poemas de Vinicius como Sombra e Luz.)
Essas imagens fragmentadas, incompreensíveis, inventadas, nos inquietam e nos desafiam. São um enigma que exige uma resposta também inventada – por nós. Assimilar uma linguagem tão surpreendente nos ajuda a pensar de maneira fora do comum, fora do lugar comum. Sem amor à poe-sia ninguém consegue pensar assim. Sem ser capaz de pensar assim, o leitor pode até gostar de poesia, mas vai sempre precisar de uma poesia que vá até onde ele está, porque (como disse a quase surrealista Hilda Hilst) “tu não te moves de ti”.
Autor: Braulio Tavares. Carta Capital, edição 55, de janeiro de 2014.
Abraços,
Osório
Poememos:
A canoa e a quilha
O caboclo disse à cabocla:
"Caboca" eu queria ser uma canoa!
Prá quê? Perguntou ela.
Prá tu cê minha quilha!
Qui coisa mais lesa! Cê tua quilha prá quê?
Prá tu guiar meus rumos pela vida, igual como a quilha guia a canoa!
Ela sorriu faceira e disse:
Já me sinto pregada in tu!
E os dois saíram pelo mundo a navegar pelo rio da vida.
SP, 02.04.14.
e,
“Eu sou poeta para os pobres, porque amei quando era pobre; como não pudesse dar presentes, dava palavras.”
autor: Ovídio em A arte de amar.
e,
“Ela falava de sonhos,
eu sonhava
Ela falava de lugares
eu viajava
Ela falava de fé
eu acreditava (abraçava)
Ela sabia tudo de anjos
eu acendia velas pro meu e pro dela
Ela gostava de flores
eu cuidava do jardim
Ela tinha ideias
eu corria atrás.
Ela era atriz e representava muito bem
Ela era bailarina
eu dancei.”
Autor: Mauricio Carvalho Marques (www.poetamauriciomarques.com)