Vejam quanta poesia num “simples” PRELÚDIO:
“Ao longo de toda a história registrada, os seres humanos tornaram suportável a vida tomando bebidas alcoólicas. Embora as sociedades difiram quanto a quais bebidas devem ser incentivadas, quais podem ser toleradas e quais precisam ser proibidas, houve convergência de opinião em torno de uma regra crucial: o resultado não deve ameaçar a ordem pública. O cachimbo da paz do índio americano, como o narguilé do Oriente Médio, ilustra um ideal de inebriação no qual o ato de fumar em comum gera a boa educação, as afeições simples e os pensamentos serenos. Algumas pessoas veem a maconha de modo semelhante, embora pesquisas sobre o efeito neurológico dessa planta lancem outra luz, mais perturbadora, sobre o significado social do seu cigarro.
O caso em questão, no entanto, não é a maconha, e sim o álcool, que tem efeito imediato sobre a coordenação física, a conduta social, as emoções e a compreensão. Um visitante de outro planeta que observasse os russos sob a influência da vodca, os tchecos bêbados de tanto slivovitz ou os caipiras americanos cambaleando depois de um excesso de destilado seria seguramente a favor da lei seca. Como sabemos, contudo, a lei seca não é eficaz. Pois se eventualmente a sociedade é ameaçada pelos agentes tóxicos, ela também é ameaçada por sua falta. Sem a ajuda da bebida vemos uns aos outros tais como somos, e nenhuma sociedade humana pode ser construída sobre uma base tão frágil. O mundo é acossado por ilusões destrutivas, e a história recente tornou-nos cautelosos em relação a elas a ponto de nos esquecermos que uma ilusão pode ser benéfica. Onde estaríamos sem a crença de que os seres humanos podem superar uma catástrofe e jurar amor eterno? Mas essa crença persiste apenas se renovada na imaginação. Como é possível que isso ocorra se não temos uma rota de fuga dos fatos? Assim, a necessidade de agentes tóxicos está profundamente entranhada em nós, e todas as tentativas de proibir nossos hábitos são fadadas ao fracasso. A verdadeira questão, creio eu, não é usar ou não usar os agentes tóxicos, e sim qual deles usar. E - embora todos eles disfarcem as coisas - alguns (sobretudo o vinho) também nos ajudam a enfrentá-las, apresentando-as de forma reimaginada e idealizada.
Os antigos tinham uma solução para o problema do álcool: envolver a bebida em rituais religiosos, tratá-la como a encarnação de um deus e marginalizar o comportamento destrutivo como obra do deus, e não do adorador. Uma boa artimanha, pois é bem mais fácil reformar um deus do que um ser humano. Aos poucos, sob a disciplina do ritual, da prece e da Teologia, as origens orgiásticas do vinho foram domadas e ele se tornou primeiro uma libação solene dirigida aos olimpianos e posteriormente à Eucaristia cristã - o breve encontro com o sagrado que visa a reconciliação.
A solução religiosa não foi a única registrada nos tempos antigos. Há também o banquete secular. Em vez de excluir da sociedade a bebida, os gregos construíram um novo tipo de sociedade em torno dela. Não, obviamente, as bebidas fortes como o uísque e a vodca, mas a que é forte apenas o suficiente para permitir o relaxamento gradual dos membros e das inibições - a bebida que nos leva a sorrir para o mundo e faz o mundo sorrir para nós. Os gregos eram humanos e, como mostra o episódio da tripulação do navio de Ulisses no palácio de Circe, abusavam do álcool. Também eles tiveram seu período de lei seca. A tragédia As bacantes, de Eurípedes, registra isso ao narrar a terrível história da punição de Penteu, que foi esquartejado por expulsar o deus do vinho. Mas nos banquetes eles descobriram o costume que revela o melhor do vinho e o melhor de quem o bebe: através dele a segurança se manifesta mesmo nos tímidos. Essa segurança, ou Selbstbestimmung, na expressão dos filósofos românticos, é o tema deste livro.
O deus do vinho, Dioniso, era convidado para o recinto cerimonial dos banquetes. Os participantes, com guirlandas de flores, reclinavam-se dois a dois num divã, com um dos braços apoiado no braço do móvel, e serviam-se de comidas que ficavam em mesinhas a sua frente. Escravos polidos despejavam em suas taças o conteúdo tirado de uma grande vasilha que continha vinho diluído com água; a diluição prolongava ao máximo o momento de inebriação. A conduta social, os gestos e palavras eram rigidamente controlados, como na cerimônia japonesa do chá, e os convidados concediam uns aos outros o devido tempo para falar, recitar ou cantar, de forma que a conversa sempre permanecia geral. Um desses eventos, registrado e embelezado por Platão, é conhecido por todos os amantes da literatura como a cena do encontro entre Sócrates e Alcebíades. A obra de Platão, O banquete, é entendida como um tributo a Eros. É na verdade um tributo a Dioniso (ou Baco, como os romanos o chamavam) e ilustra o poder do vinho - quando consumido adequadamente - de colocar o amor e o desejo a uma distância que os torna passíveis de ser discutidos.
O banquete dos gregos era restrito e altamente privilegiado - somente os homens de uma determinada classe podiam participar. Mas o princípio tem uma aplicação mais ampla. O vinho melhora o convívio humano, desde que usado para animar a conversa e que ela se mantenha civilizada e genérica. A embriaguez nas ruas da cidade deixa-nos horrorizados, e muitos de nós somos tentados a culpar o álcool pelas arruaças, já que uma de suas causas é a bebida. Mas a embriaguez nos bares, exagerada, como a que levou à lei seca, acontecia porque as pessoas consumiam a bebida errada e de modo errado. Não era o vinho e sim sua ausência que causava a embriaguez por excesso de gim na Londres do século XVIII. Jefferson certamente tinha razão ao afirmar que no contexto americano "o vinho é o único antídoto para o uísque".
O consumo social do vinho durante ou depois de uma refeição, com plena percepção do seu paladar delicado e de sua aura evocativa, raramente leva à embriaguez e mais raramente ainda ao comportamento grosseiro. O problema que presenciamos em relação à bebida nas cidades inglesas deriva da nossa incapacidade de dar a Baco o que lhe é devido. Graças ao empobrecimento cultural, os jovens não têm mais um repertório de músicas, poemas, discussões ou ideias com o qual possam entreter uns aos outros em suas taças. Eles bebem para preencher o vazio moral gerado por sua cultura, e embora tenhamos conhecimento dos efeitos adversos da bebida num estômago vazio, estamos agora assistindo aos efeitos bem mais devastadores que a bebida gera numa mente vazia.
No entanto, os bêbados não desagradam apenas por suas brigas. Na maioria dos jantares festivos, os convidados gritam egocentricamente para quem está a seu lado, dez conversas acontecem ao mesmo tempo - sendo que nenhuma leva a lugar algum. Se no início da festa o reabastecimento de bebida era feito com elegância, no final agarra-se avidamente o copo que em seguida é esvaziado às goladas. Um bom vinho sempre deve ser acompanhado de um bom tema de conversa, tema que deve perdurar juntamente com o vinho. Como reconheciam os gregos, esse é o melhor modo de considerar questões realmente sérias, tais como se o desejo sexual visa o individual ou o universal, se o acorde de Tristão é de sétima meio diminuto ou se poderia haver uma prova da conjetura de Goldbach.
Conhecemos a opinião médica de que a saúde se beneficia com uma ou duas taças diárias de vinho, e também a opinião rival de que com mais de uma ou duas taças caminhamos para a ruína (1). Esses conselhos são importantes, embora menos importantes do que parecem. Qualquer que seja o efeito do vinho sobre a saúde física, ele tem efeitos muito mais significativos sobre a saúde mental - negativos, quando separados da cultura do banquete, e positivos quando ligados a ela. Nos Estados Unidos (onde em muitos lugares a idade para o consumo de álcool é cinco anos superior à maioridade para o sexo), as garrafas de vinho trazem uma advertência sobre a saúde. Se o objetivo é educar o público, então está tudo muito bem, desde que a advertência seja verdadeira (o que não acontece). Mas o mesmo objetivo educacional deve levar-nos a colocar também nas garrafas de água as advertências sobre saúde, para que nos lembremos dos estados mentais melancólicos que resultam da sua ingestão, da necessidade de deixar de lado a hipocondria a fim de dar comida e bebida à alma, e da loucura ecológica de transportar em garrafas, pelo mundo afora, aquilo que chove sobre nós e corre sob nossos pés.
Em seu ensaio sobre poesia persa, Emerson elogia com as seguintes palavras o grande poeta Hafiz, um viciado em vinho:
Hafiz louva o vinho, as rosas, as donzelas, os meninos, os pássaros, as manhãs e a música, para dar expansão ao seu imenso júbilo e simpatia por todas as formas de beleza e alegria; e enfatiza tudo isso para mostrar seu desprezo pela falsa santidade e prudência covarde.
É contra a falsa santidade e a prudência covarde que se dirige grande parte da minha discussão, não a fim de incentivar o vício, mas para mostrar que o vinho é compatível com a Virtude. O modo certo de viver é desfrutando as nossas faculdades, lutando para gostar dos nossos próximos e se possível amá-los, e aceitar que a morte é necessária em si mesma e também um alívio abençoado para aqueles a quem de outra forma iríamos sobrecarregar. Em minha opinião, os fanáticos por saúde, que têm envenenado todos os nossos prazeres naturais, devem ser reunidos e trancafiados juntos num lugar onde se possam entediar mutuamente, empanturrando-se com suas inúteis panaceias para a vida eterna. Quanto a nós, devemos viver nossos dias numa sucessão de banquetes que tenham como catalisador o vinho, como meio a conversa e como objetivo uma aceitação serena do destino e uma determinação de não nos demorarmos além do tempo que nosso anfitrião considera desejável.
Neste livro discuto o vinho como acompanhamento para a Filosofia e a Filosofia como um subproduto do vinho. Minha opinião é que o vinho é um excelente acompanhamento para a comida; mas é um acompanhamento ainda melhor para a reflexão. Ao pensarmos com o vinho, podemos aprender a beber com pensamentos e a pensar com goles. Ao engolirmos a premissa, o argumento e a conclusão numa única e plena corrente que nos satisfaz, não apenas apreendemos uma ideia; ela é encaixada na vida que está em nós. Avaliamos não somente sua verdade e coerência, mas também seu valor. O vinho é algo com que se vive de acordo; também se vive de acordo com uma ideia. E no que diz respeito à vida, o vinho é o teste da ideia - a amostra preliminar que prenuncia o efeito mental a longo prazo. O vinho, bebido na ocasião certa, no lugar certo e na companhia certa, é o caminho para a meditação e o arauto da paz.”
Nota (1): Quem se interessar pelos benefícios e riscos à saúde deve ler PAOLA, Frederick Adolf. "In Vino Sanitas". In: ALLHOFF, Fritz (Org.). Wine and Philosophy: A Symposium on Thinking and Drinking [Vinho e filosofia: um simpósio sobre o pensar e o beber). Oxford, 2008.
FONTE: Roger Scruton, Bebo, logo existo. Guia de um filósofo para o vinho. Tradução de Cristina Cupertino. São Paulo: Octavo, 2011, pp. 13/19 (está à venda no: www.livrariacultura.com.br).
Além de apaixonante, é embriagante! Quer coisa melhor?
Boa leitura!
Boa sexta e findi!
Abraços,
Osório
P.S.1: Escrevi mais uma carta para a Fernanda! Lá também se fala do “penso, logo existo”, sob outro ângulo (está em: http://www.osoriobarbosa.com.br/node/219).
P.S.2: A Doralice Justina Silva, a Dorita, sobre as frases da semana passada, nos brindou com:
“Prezado Osório,
Uma língua afiada é a única ferramenta que se afia ainda mais pelo uso constante. Washington Irving
"Fala" aí mestre!!!!!!!
Pois...
A literatura pode ser uma boa terapia pessoal, uma espécie de psicanálise pela qual não se paga ao psicanalista. Max Frisch
Bom fim de semana..
Dorita”
P.S.3: A frase atribuída a Tati Bernardi, parece que, na verdade, é de Charles Bukowski (quem sabe a fonte? Livro onde consta?).
P.S.4: Sobre a frase do Professor Adriano Barbosa, encontrei esta passagem do Márcio Souza:
“A seringueira, ao contrário do filão de ouro, mostrava-se inesgotável. Uma árvore regenera-se, multiplica-se aos milhões. Já o filão de ouro, metal ardiloso e cruel, desaparece tão inesperadamente como surge. Enriquecidos pelo leite de uma árvore dadivosa, o vegetal que como todos os vegetais, numa mitologia comum aos homens é um símbolo da vida, da bondade e da paz, essa riqueza parecia trazer marcas benéficas diferente do dinheiro maldito do ouro, produto de um metal frio, ardiloso, simbolo do poder super-humano, até infernal.”, em “Amazônia”, Editora Valer, Manaus, p. 254.
P.S.5: Vai uma minha:
“Não pragueje o vento que jogou areia nos seus olhos, pois ele é o mesmo vento que insufla sua vela para levá-lo ao seu destino”.