O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador da República no final assinado, vem propor a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA
contra:
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a UNIÃO;
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o MINISTÉRIO DA SAÚDE;
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a RECEITA FEDERAL;
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a AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA – ANVISA;
a serem citados na pessoa de um dos Advogados da União, sito na Avenida Paulista, n.º 1.842, 20º andar, Cidade de São Paulo - SP, bem como contra as empresas:
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SOUZA CRUZ, Rua Candelária, n.º 66, Centro, Rio de Janeiro, CEP: 20092-900;
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PHILIP MORRIS DO BRASIL S/A, Avenida Francisco Carlos Merlos, n.º 2.162, Município de Araraquara, Estado de São Paulo, CEP: 14808-010, Tel.: (016) 0222-5777;
pelos fatos que a seguir passa a narrar, para, ao final, requerer:
DA LEGITIMIDADE ATIVA
O art. 129, III e V, da Carta Magna, aduz que:
“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
...............................................................................
III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.”
A Lei n.º 7.347/85, que disciplina a ação civil pública, no seu art. 1º, IV, por sua vez, traz que:
“Art. 1º. Regem-se pelas disposições desta lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:
...............................................................................
II – ao consumidor;
...............................................................................
IV – a qualquer outro interesse difuso ou coletivo”
O patrimônio público e a moralidade administrativa que se buscam defender através da presente são interesses difusos, conforme a definição dada pelo art. 81, § único, I da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), verbis:
“Art. 81. ...........................................................................
§ único - ...........................................................................
I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.”
Do cotejo de tais dispositivos legais exsurge a legitimidade ativa do Ministério Público Federal para propor a presente Ação Civil Pública.
DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL
Segundo o disposto no art. 109, I da Constituição, verbis:
“Art. 109 – Aos juízes federais compete processar e julgar:
I – As causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.”
Assim, a Justiça Federal é absolutamente competente para processar e julgar ação civil pública (Lei 7.347/85, arts. 2º e 21 c/c Lei 8.078/90, art. 93 e CF/88, art. 109, I), nas causas propostas pelo Ministério Público Federal – cujo interesse público da União se presume – ou por qualquer das entidades referidas no art. 109, I, da Constituição, bem assim, nas ações propostas, em face dessas pessoas, por quaisquer autores, qualquer que seja a sua natureza jurídica.
Ainda mais por serem rés um Ministério de Estado e uma Agência Reguladora de âmbito nacional (Lei n.º 9.782/99, art. 3º, in fine).
DOS FATOS
Como demonstram as provas em anexo (Docs. n.º 1 e 2), o Poder Público, via Ministério da Saúde, vem obrigando as empresas rés, produtoras de cigarros (que dentre vários insumos de produção, utiliza o tabaco, que, por sua vez, contem nicotina), a publicar em seus maços fotografias de pessoas portando doenças em decorrência do fumo.
É público e notório que o tabaco (nicotina) vicia, além de ser agente cancerígeno, como demonstram, também, as inscrições que o Ministério da Saúde obrigou as empresas rés a apor juntamente com as fotografias antes referidas. A incidência de câncer nos fumantes, por ser altíssima, leva a rede pública de saúde a uma sobrecarga, já que o tratamento das doenças causadas pelo fumo, especialmente o câncer, tem preço elevadíssimo para a sociedade.
O Brasil – que se destaca no cenário mundial pelo sistema de proteção do consumidor, ao exigir que nos produtos destinados ao consumo humano (e até animal) as embalagens contenham seus prazos de validade e que os vencidos, defeituosos e que causem males sejam retirados de circulação – não pode permitir a produção e comercialização de cigarros, pois estes causam males tão grandes e graves ao ser humano quanto o colírio que recentemente levou à cegueira dezenas de pessoas e foi retirado de circulação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, bem como a hemodiálise com água não apropriada e o contraste Selobar, responsável pela morte de outras dezenas de pessoas, sendo seu fabricante impedido de comercializar qualquer de seus produtos.
Foi, e é proibida a propaganda de cigarros em rádio e televisão, exceto com os alertas do Ministério da Saúde para os maços de cigarros. A Formula 1, a partir de 2004, não poderá mais fazer tal propaganda em seus bólidos, que alguns afetados chamam de carros.
Naquela que dizem ter sido a última prova brasileira com veiculação de propaganda de cigarros, a atuação do Ministério Público Federal, por meio de Ação Civil Pública, se fez presente, buscando a garantia da observância de lei federal vedando a referida prática (Doc. n.º 3).
Também a União Européia mobiliza-se neste sentido, com a Bélgica na vanguarda, proibindo já há algum tempo a veiculação das referidas mensagens de marketing, sofrendo, em decorrência deste fato, “clássica chantagem” por parte das empresas de tabaco (Doc. n.º 4).
É proibida a venda de cigarros a menores de 18 (dezoito) anos. Porque de tal proibição? Ela é por demais óbvia para ensejar uma resposta. Apesar do aparente esforço das próprias empresas fabricantes de cigarros na prevenção do fumo entre os jovens, seu real empenho é no sentido de garantir o mercado consumidor do futuro.
Em matéria veiculada em 01 de outubro de 2002 no sitio eletrônico da Unimed Belém (Doc. n.º 5), destacam-se os dizeres de memorandos internacionais das empresas R. J. Reynolds e Philip Morris, revelados por ocasião de uma ação judicial movida por Estados norte-americanos contra estas e outras grandes empresas do tabaco, apresentando os jovens entre 14 e 24 anos como a “parte chave do volume total de cigarros, no mínimo pelos próximos 25 anos”.
Como, então, algo tão pernicioso à saúde da população vem sendo posto a venda no comércio nacional?
Não se trata, adiante-se, de “xiitismo” tolo ou de “ecochatismo”, mas é de fato um contra-senso lógico, moral e utilitário tal mercancia.
É ilógico por permitir aquilo que quer proibir.
É imoral por permitir a venda de algo que se sabe prejudicial ao bem maior do ser humano: a sua saúde – consequentemente a sua vida.
É não-utilitário porque o que o Poder Público arrecada a título de tributos é insuficiente para cobrir as despesas que efetua com o tratamento dos doentes que adquirem moléstias decorrentes do cigarro, que quase unanimemente procuram a rede pública de saúde.
Recentemente faleceu o cantor Mário de Souza Marques Filho, mais conhecido como “Noite Ilustrada”, fumante inveterado, de neoplasia pulmonar metastática (espécie de câncer pulmonar), a qual é decorrente do tabagismo (Doc. n.º 6).
No exterior, as empresas produtoras de cigarros vêm sendo condenadas a pagar vultosas quantias a doentes e/ou familiares de pessoas falecidas em decorrência do vicioso hábito, tudo numa clara demonstração do mal decorrente do uso do tabaco.
Nos Estados Unidos da América, já ao ano de 2000, diversas ações propostas contra a indústria do tabaco, noticiando-se condenações de até US$ 12,7 milhões (doze milhões e setecentos mil dólares), para fumantes que desenvolveram câncer em razão de seu vício. Também os Estados norte-americanos vêm sendo beneficiados com o pagamento de parcelas de uma condenação em US$ 246 bilhões (duzentos e quarenta e seis bilhões de dólares), cujo escopo é indenizar os gastos do sistema público de saúde com doenças relacionadas ao fumo (Doc. n.º 7).
O que deixará de ser arrecadado em tributos, com a procedência desta ação, em virtude da necessária e urgente proibição, em breve encontrará o equilíbrio financeiro no orçamento público dos serviços de saúde, uma vez que os doentes do fumo não mais sobrecarregarão a rede pública, com seus tratamentos de alto preço, os quais somados, por certo, são bem superiores aos valores advindos da tributação.
De fato, conforme consta de matéria extraída do sítio eletrônico “Tabagismo uma doença” (Doc. n.º 8), o Banco Mundial estimou a perda mundial, em virtude do consumo do tabaco, em 200 bilhões de dólares por ano. Tais cifras compreendem (além da sobrecarga no sistema de saúde já relatado) mortes precoces de pessoas em idade produtiva, maior índice de aposentadoria precoce, aumento de 33% a 45% no índice de faltas ao trabalho, menor rendimento no trabalho, mais gastos com seguros, limpeza, manutenção de equipamentos, reposição de mobiliários e perdas com incêndios, sem mencionar a redução da qualidade de vida do fumante e de sua família.
Certamente os réus argumentarão, para contestar a pretensão ora deduzida, que o acolhimento da ação implicará em malferimento da livre iniciativa (art. 1º, IV, da Constituição Federal) e da ordem econômica (art. 170, caput, também da CF). É óbvio que qualquer argumento neste sentido é cretino e hipócrita, no presente caso, pelas razões já expostas acima e que serão reforçadas abaixo, não podendo ser olvidado, nesta oportunidade, que o capitalismo – não de todo condenável – “tem o dom de iludir”, no caso vertente com palavras que escamoteiam a verdade e tentam dar licitude ao ilícito e com propagandas que, concebidas com os recursos vultosos que disponibilizam, produzem uma perfeita “lavagem cerebral” em suas vítimas, além de oprimir, pela força do dinheiro, estas miseráveis pessoas.
Certamente que os contestantes, se ousarem, não lerão os demais incisos do art. 170 da Constituição Federal, que impõem função social à propriedade (inc. III), defesa do consumidor (inc. V) e defesa do meio ambiente (inc. VI), bem como olvidarão o art. 196, que tem a seguinte dicção:
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
A defesa do consumidor está implícita quando se dá efetividade ao dispositivo acima.
Quanto ao meio ambiente, como demonstra a reportagem publicada na revista Época, n.º 271, de 28 de julho de 2003 (Doc. n.º 9), deve se considerar que uma “bituca” de cigarros, para se decompor, na água ou em terra, leva dois anos; além de outros poluentes que são expelidos no meio ambiente, é de se observar a obrigação indigna que se impõe aos fumantes passivos em suportar conseqüências que não desejam.
Poder-se-á também argumentar que o fumante tem livre arbítrio, assumindo conscientemente os riscos a que se expõe.
Em primeiro lugar, fique desde logo esclarecido que inexistem direitos absolutos, sendo que o próprio direito a vida pode ser suprimido no direito pátrio (art. 5º, XLVII, a, da Constituição Federal).
Em segundo lugar, o fumante não tem livre arbítrio, pois é um viciado, e como tal não é capaz de controlar sua conduta, seu próprio atuar, necessitando, portanto, de tratamento médico e psiquiátrico para seus males. Como se diria no Direito Penal, não é capaz de determinar sua conduta de acordo com seu próprio querer (ou seja, é incapaz de entender o caráter maléfico de seu agir, e quando o entende não é capaz de determinar-se de acordo com esse entendimento – art.. 26 do Código Penal).
Nos maços de cigarro (Docs. n.º 1 e 2), vêm exemplifica-das diversas doenças e outros males que podem ser causadas pelo cigarro:
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“Fumar causa câncer do pulmão”;
-
“Crianças começam a fumar ao verem os adultos fumando”;
-
“Fumar causa mau hálito, perda dos dentes e câncer de boca”;
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“Fumar causa infarto do coração”;
-
“Quem fuma não tem fôlego para nada”;
-
“Nicotina é droga e causa dependência”;
-
“Fumar causa impotência sexual”;
-
“Em gestantes, o cigarro provoca partos prematuros, o nascimento de crianças com peso abaixo do normal e facilidade de contrair asma”;
tudo como advertência do Ministério da Saúde, para espanto de todos!
Paradoxal vem sendo a atitude do Poder Público diante da seguinte situação fático-jurídica:
“Art. 2º Ficam proibidos em todo o território brasileiro o plantio, a cultura, a colheita e a exploração, por particulares, de todas as plantas das quais possa ser extraída substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica.” (Lei n.º 6.368, de 21 de outubro de 1976).
Ora, como reconhece o próprio Ministério da Saúde, a nicotina é droga e causa dependência (Doc. n.º 2). Como então permitir a venda de tal substância, sem infringir a referida lei?
A médica Silvia Maria Cury Ismael (Doc. 10) corrobora o acima exposto, afirmando que a Organização Mundial da Saúde, desde 1996, considera o tabagismo uma doença, pois a nicotina causa dependência física e psíquica.
No último exemplo (o fumo durante a gestação), ocorre ação ainda mais ignominiosa, pois além da presente, fica também comprometida a saúde das futuras gerações.
Ao mesmo tempo em que o consumidor é estimulado a fumar cada vez mais, outras empresas dedicam-se à venda de produtos que prometem que ele irá parar de fumar (Docs. n.º 11 e 12), em mais um paradoxo da iniciativa privada.
Outras descrições perniciosas sobre os efeitos do tabaco (nicotina) constam dos documentos n.º 13 e 14.
DO DIREITO
O direito violado já foi apontado quando se discorreu acerca dos fatos, mas há que se observar, em especial, o art. 196 da Constituição Federal, além da violação ao art. 225 e seus desdobramentos, da mesma Carta Política.
DA MEDIDA LIMINAR
Emérito Julgador, trata-se de caso de saúde pública, em que milhares de pessoas são atingidas diariamente, com conseqüências gravíssimas (doenças), reconhecidas pelo próprio Poder Público (Ministério da Saúde), como acima demonstrado, o que torna presente o perigo na demora.
Quanto à fumaça do bom direito, decorre da legislação, especialmente daquela de fundo constitucional, citada ao longo da exposição até aqui traçada.
Portanto, necessária e urgente se faz a concessão de medida liminar, nos termos formulados quando dos requerimentos abaixo.
DAS PROVAS
Muito embora os fatos estejam absolutamente provados mediante os documentos anexos, protesta o Ministério Público Federal pela produção de prova testemunhal e outras que julgar necessárias, especialmente que sejam requisitados ao Ministério da Saúde os estudos que ensejaram a obrigação da veiculação de fotos e dizeres nos maços de cigarros, bem como sobre a incidência de câncer e outras doenças decorrentes do uso do tabaco.
DO PEDIDO
Isto posto, requer o MPF:
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Sejam citados todos os indicados no polo passivo para contestarem a presente, se para tanto tiverem argumentos;
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Que o Ministério da Saúde suspenda a licença para a produção de cigarros e outros derivados do tabaco no país;
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Que a Receita Federal cancele os CNPJs de todas as empresas que se dediquem exclusivamente à produção de cigarros e outros derivados do tabaco, bem como que não proceda à liberação de mais nenhuma guia de importação de cigarros e outros derivados do tabaco, a partir da citação; para cumprir esta determinação, deve a Receita Federal ser intimada na Avenida Prestes Maia, 733, Cidade de São Paulo, CEP: 01071-900;
-
Que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, após a concessão da medida liminar, proceda à retirada dos estabelecimentos comerciais de qualquer produto que contenha tabaco;
-
Que seja estipulada multa para as empresas rés que continuarem a produzir cigarros e/ou qualquer produto contendo tabaco, após a concessão da liminar requerida. Deve a multa ser fixada em R$ 1.000.000,00 (hum milhão de reais) por dia, para o caso de descumprimento.
Dá-se a presente o valor de R$ 1.000,00 (mil reais)
Pede e espera deferimento.
São Paulo, 03 de setembro de 2003.
Osório Barbosa
PROCURADOR DA REPÚBLICA
Anexos:
1 e 2 |
- embalagens de cigarro, exibindo os alertas do Ministério da Saúde; |
3 |
- Petição inicial da Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal, requerendo a proibição de propaganda de produtos fumígeros na Formula 1; |
4 |
- reportagem veiculada no sítio eletrônico www.redeh.org.br, dispondo sobre propaganda de cigarros na Formula 1; |
5 |
- reportagem veiculada no sítio eletrônico da Unimed Belém; |
6 |
- cópia da Certidão de Óbito de Mário de Souza Marques Filho (Noite Ilustrada); |
7 |
- reportagem veiculada no sítio eletrônico www.antifumobr.hpg.ig.com.br; |
8 |
- reportagem veiculada no sítio eletrônico www.tabagismoumadoenca. hpg.ig.com.br; |
9 |
- reportagem veiculada na revista Época n.º 271, de 28 de julho de 2003; |
10 |
- reportagem veiculada no sítio eletrônico www.nutricaoempauta.com.br; |
11 e 12 |
- propaganda de produto para parar de fumar (Phasis); |
13 |
- destaque da revista Época de 25 de agosto de 2003; |
14 |
- reportagem da revista Época de 1º de setembro de 2003. |
Algumas matérias correlatas:
Taxa de fumantes cai pela metade em São Paulo em 27 anos
MARIANA VERSOLATO
FOLHA DE SÃO PAULO, 04/05/2013
A fatia de moradores de São Paulo que fuma caiu pela metade em 27 anos, segundo aponta pesquisa Datafolha com 1.120 pessoas.
Hoje, 21% da população em São Paulo fuma, contra 24% em 2008 e 40% em 1986.
"Comecei a ter vergonha de ser fumante", diz tradutor
Já os ex-fumantes agora são 24%, contra 21% em 2008, superando o número de fumantes. Mas a cidade ainda tem uma proporção de tabagistas maior do que a taxa nacional, que é de 14,8% de acordo com a pesquisa Vigitel (inquérito telefônico anual do Ministério da Saúde).
As causas para a queda são as medidas de controle nas últimas décadas, segundo a cardiologista Jaqueline Issa, responsável pelo programa de tratamento de tabagismo do InCor (Instituto do Coração da USP).
Ela cita a Lei Antifumo adotada no Estado de São Paulo em 2009, a proibição da publicidade de cigarros, a contrapropaganda nos maços, alertando para os malefícios do fumo, e a maior divulgação desses efeitos nocivos.
"A população foi se educando. Os próprios fumantes sabem que faz mal e muitos passam a pensar em largar o cigarro por pressão social."
Para Paula Johns, diretora-executiva da ONG ACT (Aliança de Controle do Tabagismo), porém, é preciso continuar avançando, principalmente em âmbito federal.
"Se não forem adotadas novas politicas, as antigas começam a ficar estagnadas. A lei nacional que proíbe o fumo em locais fechados foi aprovada em 2011, mas não foi regulamentada."
Um dos fatores que aumentam a chance de as pessoas fumarem é o nível socioeconômico mais baixo.
E, segundo Issa, a pesquisa confirma essa informação ao mostrar que a população da zona leste, a menos desenvolvida de São Paulo, é a que mais fuma. Na região, 25% fumam, contra 18% da zona oeste e 20% da zona sul.
Os paulistanos mais ricos (mais de 10 salários mínimos) são os que menos fumam (15%, contra cerca de 22% nas outras camadas) e os que mais pararam de fumar --30%, enquanto que, entre as demais faixas de renda, os ex-fumantes são 22%.
A proporção de jovens de 16 a 24 anos que fumam caiu de 20% em 2008 para 14% em 2013. Ainda assim, de acordo com a cardiologista, é preocupante a taxa de iniciação do tabagismo, principalmente entre as meninas.
Apesar de os homens fumarem mais que as mulheres (23% contra 19%), eles tendem a abandonar mais o fumo. "Para as mulheres, o cigarro está ligado à estética da magreza, há o medo de engordar ao parar", diz Issa.
Ela afirma que o grau de dependência e o uso do cigarro como válvula de escape em circunstâncias adversas e estressantes também são maiores entre as mulheres.
A maioria das pessoas para de fumar sozinha, mas tem aumentado a quantidade das que procuram tratamento medicamentoso, que inibe os sintomas da abstinência, de acordo com Issa. "Mas nenhum deles funciona se a pessoa não deseja parar de fumar, independentemente do motivo."
Os fumantes também podem procurar apoio em terapia individual ou em grupo e nas palestras motivacionais.
"Comecei a sentir vergonha de ser fumante", diz tradutor
Faz dois meses que o tradutor Claudio Rondeico, 31, de São Paulo, abandonou o hábito de fumar que o acompanhava desde os 15 anos.
Ele já tinha tentado dar um basta uma vez no vício, há oito anos, mas sem sucesso.
*Taxa de fumantes cai pela metade em São Paulo em 27 anos
"Acho que não estava tão decidido. E, na época, não tinha a vergonha que comecei a sentir nos últimos tempos."
"Antes a gente podia fumar livremente com outras pessoas por perto, mas, quando comecei a ter que me afastar para fumar e vi que a minha fumaça não era bem-vinda, passei a refletir sobre isso e vi que tinha um porquê. E, se fazia mal para os outros, fazia para mim também."
A preocupação com a namorada e o sobrinho recém-nascido pesou. "Não queria que sentissem o cheiro de cigarro em mim."
Claudio definiu uma data para largar o cigarro de vez: 28 de fevereiro. Entregou seu último maço de cigarros para a namorada e disse que tinha parado. Não usou medicamentos nem repositores de nicotina, como adesivos.
"No primeiro dia, cheguei a chorar, foi terrível", conta. Ele também teve dificuldades para se concentrar.
"Agora já me sinto fisicamente mais disposto, a qualidade do meu sono melhorou. Mas acho que não fiz mais do que a minha obrigação. Não nasci fumando, eu é que fui atrás do cigarro. Embora eu sinta vontade às vezes, é uma decisão sem volta. Dei um 'check' no item 'parar de fumar' da minha lista."
COM APOIO
Já a contadora Lilian Barbarelli, 42, parou de fumar em agosto de 2012 depois de assistir a uma palestra motivacional na empresa onde trabalha.
"O estresse estava me fazendo fumar mais e, às vezes, fumava tanto que até passava mal. Tinha consciência de que precisava parar, mas não tinha forças. Achava que era mais fácil morrer do que largar o cigarro", conta.
Lilian diz que assistiu à primeira palestra com muita resistência. Na segunda apresentação, diz, foi com o "espírito mais aberto".
"Você pensa que não consegue, que vai morrer se parar, mas é possível. Aprendi que não dependia do cigarro, que era mais forte do que aquela coisinha. Essa é a mágica. Quando você tem apoio, é mais fácil ir adiante."
Hoje, ela diz ter a sensação de que nunca fumou. "E tenho certeza de que vou viver muito mais."
E,
Indiferença inexplicável
Drauzio Varella
Para quem está habituado a genocídios, que diferença faz um crime a mais?
Em 2010, a Anvisa realizou uma série de consultas públicas sobre a conveniência de proibir a adição de aromatizantes e edulcorantes ao fumo. Na época, escrevi nesta coluna que a medida conseguia a proeza circense de ser a um só tempo corajosa e covarde.
Corajosa porque finalmente o governo federal tomava a iniciativa de enfrentar a ganância criminosa dos que adicionam ao cigarro uma parafernália de substâncias químicas, para tornar a fumaça menos aversiva ao paladar infantojuvenil.
Covarde porque não tem cabimento uma agência governamental legalmente encarregada de proteger a saúde dos brasileiros ser obrigada a consultar o público para coibir uma prática adotada com a finalidade exclusiva de induzir crianças e adolescentes à mais escravizadora das dependências de droga.
Apesar desses pesares, em março de 2012, a Anvisa publicou a resolução RDC nº 14, segundo a qual continuavam permitidos os aditivos essenciais ao processo de fabricação de cigarros, mas seriam vetados aqueles introduzidos para deixá-lo mais palatável.
Para a adaptação às novas regras foram fixados prazos generosos: 18 meses para os fabricantes e 24 meses para os comerciantes.
Essa questão é da maior relevância. Até a década de 1970 o emprego de aditivos era muito restrito; hoje são acrescentados mais de 600 deles. Perto de 10% do peso de um cigarro é composto por aditivos de efeitos mal estudados e imprevisíveis para o organismo.
Pertencem a essa categoria produtos que conferem gosto de maçã, chocolate, cravo, morango, canela, baunilha ou menta. Outros, provocam broncodilatação para que a fumaça penetre mais fundo nos pulmões. Há, ainda, os que aumentam a afinidade dos neurônios à nicotina, para viciar com mais eficiência.
O mentol, especificamente, adicionado para anestesiar as vias aéreas e diminuir a irritação causada pela fumaça, além de aumentar a permeabilidade da mucosa oral às nitrosaminas cancerígenas liberadas na combustão, é o preferido por mais de 50% das meninas e meninos que começam a fumar.
A resolução da Anvisa foi contestada pelo deputado Luiz Carlos Heinz, por meio do PDC 3034/2010, que está para ser votado em Brasília. Em síntese, o nobre representante do povo contesta a autoridade da Anvisa para legislar sobre o tema. A alegação é a ladainha de sempre: como o fumo gera riquezas para o país, qualquer tentativa de reduzir seu consumo levaria à miséria milhares de famílias empregadas no plantio.
A Advocacia Geral da União já se pronunciou a favor da legalidade constitucional do papel da Anvisa nessa questão.
Em relação ao famigerado argumento das riquezas geradas pelo fumo, vamos lembrar que o Brasil gasta mais de R$ 20 bilhões por ano apenas com o tratamento das doenças causadas por ele, enquanto arrecada em impostos menos de um terço desse valor.
Já em relação ao desemprego dos pobres lavradores --bandeira que a bancada do fumo no Congresso desfraldou até para justificar sua posição contrária à proibição de fumar em ambientes fechados--, quero dizer que, se todos os brasileiros deixassem de fumar, seriam eles os menos prejudicados, uma vez que somos o segundo maior exportador mundial.
Mais desemprego haveria entre cancerologistas, cardiologistas, pneumologistas, cirurgiões, enfermeiras, atendentes, acompanhantes de inválidos, fabricantes de respiradores, balões de oxigênio, cadeiras de rodas, motoristas de ambulâncias, coveiros e demais envolvidos nas tragédias provocadas pelo cigarro.
Reconheço que consigo entender o papel desprezível dos parlamentares que se prestam a defender os interesses da indústria. Eles o fazem por questões práticas, como os financiamentos de campanhas eleitorais ou seja lá que outro nome tenham. O que é inadmissível é a inércia do poder Executivo.
Por que o Ministério da Saúde e a própria Anvisa sequer acompanham as sessões da Câmara em que o assunto está para ser votado? Por que razão a Casa Civil se abstém de convocar a maioria que detém no Legislativo, para impedir essa afronta à saúde dos brasileiros? Além das barganhas por ministérios, qual a serventia da base aliada?
Fonte: Folha de São Paulo, 06/04/2013.
E,
O que está por trás da inércia
PAULA JOHNS
Parece que o poder da indústria do tabaco é maior que os R$ 21 bilhões gastos anualmente para tratar as doenças causadas pelo fumo
A preocupação da indústria do tabaco em garantir um mercado capaz de repor os fumantes que interrompem o vício ou morrem aumenta conforme as medidas de controle do tabagismo avançam pelo mundo. Afinal, como garantir novos consumidores se a prevenção à iniciação for efetiva?
Nós, que acompanhamos o dia a dia do controle do tabagismo, infelizmente, deparamo-nos com a falta de vontade política de autoridades brasileiras de alto escalão em saúde. A questão do momento é a adição de sabores. Menta, cacau, baunilha e morango são usados para camuflar o gosto ruim e tornar o ato de fumar mais agradável, especialmente para quem experimenta o cigarro pela primeira vez.
Pesquisas mostram que a idade média de iniciação é de 15 anos e que 90% dos tabagistas começam a fumar antes dos 19.
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) trabalhou durante todo o ano de 2011 para discutir o uso dessas substâncias. Em março de 2012, depois de ouvir os envolvidos e ceder em alguns pontos, editou medida proibitiva aos aditivos, a entrar em vigor em 2013.
Claro que a indústria do tabaco apela como pode para reverter a situação, com ações judiciais país afora. Deputados da bancada do fumo chegam a questionar o poder da agência de regular esses produtos.
Está em trâmite na Câmara o projeto de decreto legislativo nº 3.034/2010, cujo objetivo declarado é suspender a resolução da Anvisa (RDC 14/2012). Um dos pareceres pela aprovação do projeto se vale de omissões e inverdades. Omite, por exemplo, que à agência compete, além de controlar e fiscalizar, regulamentar produtos nocivos à saúde. E é isso que confere a ela poder e legitimidade para editar a resolução.
A omissão até parece proposital, para levar a erro outros deputados. A RDC é medida cujo mérito não se questiona, já que não há quem discorde da necessidade de se inibir a iniciação ao tabagismo.
Em abril, a Advocacia-Geral da União (AGU) apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF) sua manifestação pela constitucionalidade do poder de regulamentação da Anvisa. Esperamos que a posição da AGU seja forte o suficiente para convencer o Parlamento. No entanto, vemos que o governo não se coloca à frente da questão como deveria.
O governo australiano, por exemplo, comprou briga com a indústria ao proibir que os maços tenham marcas, cores e logotipos, evitando propaganda na embalagem. Na Inglaterra, os cigarros passarão a ser vendidos sem exposição dos maços, embaixo do balcão, como remédios controlados. A Escócia também proibiu a exibição de maços nos pontos de venda. O Uruguai e o Chile proibiram os fumódromos.
Há, ainda, falsa alegação circulando no Congresso de que a proibição dos aditivos inviabilizaria a produção de 99% dos cigarros fabricados no país e de que a medida prejudicaria os fumicultores.
Ora, a resolução da Anvisa permite os aditivos essenciais à fabricação e a adição de açúcares perdidos no processo de cura. O que está em jogo, de fato, é o poder da indústria de captar novos consumidores. Não podemos esquecer que 75% da população aprova a proibição de sabores e que o Congresso deveria representar a vontade do povo e não interesses comerciais.
No Brasil, parece que as autoridades têm medo de tomar decisões que contrariam a indústria do tabaco. Há mais de 15 meses, a presidente da República sancionou lei para tornar o país livre de fumo em ambientes fechados, mas até agora não houve qualquer regulamentação, apesar de Estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná terem experiência excelente na aplicação e fiscalização das leis locais antifumo.
Parece que o poder da indústria é maior que os R$ 21 bilhões gastos anualmente para tratar as inúmeras doenças causadas pelo consumo do tabaco. O que será que está por trás de tanta leniência?
PAULA JOHNS, socióloga, é diretora-executiva da Aliança de Controle do Tabagismo (ACT).
Fonte: Folha de São Paulo, 26.05.13.