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Você conhece José J. Veiga? É um grande nocauteador brasileiro!

 

Dica de leitura.

 

Dia desses, estava eu em Manaus lendo uma xerocópia que estava meio apagada, fato que, somado ao desgaste da vista pela maldição da idade, além da iluminação não estar adequada, não me permitia ver convenientemente as letras, razão pela qual abandonei aquela leitura e fui em busca de outro livro na minha biblioteca que fica no meu quarto.

 

 

Deparei-me com a coleção “Literatura Comentada”. Escolhi o livro de José J. Veiga.

 

E por que José J. Veiga?

 

Um dia, assistindo, por acaso, uma novela, ouvi, dos ainda então lindos e encantadores lábios da Malu Mader, sua voz maravilhosamente rouca, falar sobre “J. J. Veiga”, que eu não sabia quem era!

 

Mas a voz da Malu... além do encantamento auditivo, me aproximou do J. J. Veiga, que prometi lê-lo assim que pudesse, e, muitos anos depois, chegou o dia, ou melhor, a noite.

 

Eu li um conto e o adorei!

 

Fui, então, ver a data de quando tinha comprado a coleção, mas, naquela época, eu ainda não escrevia nos meus livros a data e o local da compra, como faço hoje, para que, no futuro, eu saiba melhor da nossa história.

 

Não tinha a data da aquisição mais tinha a data da edição: 1982.

 

Sei que adquiri a coleção, a duras penas, por o dinheiro era muito pouco, publicada pela Editora Abril, nas bancas de jornais e revistas de Manaus, logo tive, então, data e local: Manaus, 1982.

 

Como estamos em 2014, passaram-se 32 anos para a minha primeira leitura de José J. Veiga, como está o nome do autor na obra, e não J. J. Veiga!

 

Todos estes anos envelheceram a goma arábica e, ao final da leitura, as páginas do livro estavam todas soltas!

 

Esta coleção é muito interessante, pena que esteja esgota há muitos anos, foi por ela que conheci Manuel Bandeira, Cecília Meireles e tantos outros, dentre os quais Caetano Veloso como escritor, pois,até então, somente o conhecia o cantor.

 

Uma curiosidade: o nome do autor é José Veiga, ao que ele acrescentou o J para ficar mais sonoro (isto consta do livro), e não sei de onde Malu tirou a abreviatura do José, ficando J. J. Veiga!

 

Pensava em um dia perguntar a ela sobre, mas pensei: será que o conhecimento da atriz pelo autor vem da pessoa ou da personagem? Melhor não arriscar!

 

Gostei de todos os quatro contos que li:

 

1 – Domingo de festa.

 

2 – Os noivos.

 

3 – A máquina extraviada.

 

4 – Onde andam os didangos?.

 

Todos eles constam do livro, cujo título provem de um dos contos, “A máquina extraviada”.

 

A minha leitura teve a seguinte ordem: “Onde andam os didangos?”, “Domingo de festa”, “Os noivos” e “A máquina extraviada”.

 

Como disse, e ora repito, gostei muito de todos os contos e, já prometi a mim mesmo, que vou adquirir o livro em sua completude.

 

O conto que transcrevo a seguir (os outros publicarei ao longo dos dias), me encantou por alguns motivos, dentre eles a preocupação paterna, mas que a necessidade faz romper, a ingenuidade do índio, o arbítrio, a injustiça e o desprezo pela vida humana, que vale mais que um simples objeto criado para matar!

 

Enfim, um retrato da condição humana!

 

É o conto um soco no estômago! Um soco que te nocauteia para o pensamento, para a reflexão da importância do outro, merecedor de atenção, valorização e respeito pela sua simples e fundamental condição de cidadão, a qual o próprio Estado, que deveria protegê-la, é o seu primeiro e principal violador.

 

Mas, escutemos a beleza e a graciosidade da pena de José J. Veiga e consternemo-nos com o destino do inocente e infeliz Aritakê.

 

 

Domingo de Festa1

 

Aritakê tinha uns quinze anos quando foi ao Posto pela primeira vez. O pai ainda hesitava em mandá-lo, os rapazes índios que iam ao Posto voltavam entusiasmados e sem cabeça para qualquer trabalho na aldeia, muitos fugiam e sumiam de vez, ou apareciam anos depois, tristes e calados; mas desta vez o velho Ipinauí não teve outro remédio, precisava de sal, machado, rapaduras, e ele mesmo não estava podendo andar [47] por causa daquela dor nas cadeiras, sinal de que a terra já começava a puxá-lo para ela.

 

Quando Aritakê chegou ao Posto estava lá um homem branco não exatamente branco mas vermelho, como se tivesse passado tinta de tucum2 na cara, no pescoço, nas mãos. O homem manejava uma caixa preta aberta no meio, punha uma chapa redonda numa banda da caixa, mexia lá numas coisas e a caixa começava a soltar música. O brinquedo era tão bom que não só os índios mas os brancos também se juntaram para ver e escutar, os índios um pouco mais atrás, por desconfiança.

 

Aritakê ficou no Posto até que o homem branco fechou a caixa e pegou na alça para levar. Aí Aritakê se lembrou das encomendas do pai, mas o empregado do armazém disse que não podia mais atender ninguém, estava na hora de fechar, agora só amanhã. Aritakê rodou pela vila, um espalhado de casas na beira do rio, encantou-se com o viver dos brancos, que aparentemente se resumia em beber cachaça, tocar viola ou sanfona e dar tiros a esmo ou em galinhas que ciscavam nos barrancos;3 aprendeu mais algumas palavras da língua dos brancos, deviam ser palavras engraçadas, todos riam de se quebrar quando ele as repetia; aceitou cachaça de uns e de outros, embriagou-se, caiu largado num capinzal, onde foi encontrado por outro índio mais experiente que o levou para o rancho do Posto. No dia seguinte ele voltou para a aldeia com o machado, o sal e meia rapadura, a outra meia ele comeu aos poucos pelo caminho. Ipinauí achou que ele tinha se saído muito bem para uma primeira missão e não o repreendeu nem pela demora nem pela falta da meia rapadura. Aritakê voltou outras vezes ao Posto e acabou fazendo amizade com o homem da caixa de música, que freqüentemente aparecia lá comprando e vendendo.

 

Um dia esse branco, Seu Santonis, perguntou a Aritakê se ele não queria ir para a cidade freqüentar escola, aprender ofício e viver como branco. Aritakê queria, muito, ia agora mesmo, sabia que Seu Santonis, já estava de viagem armada para o dia seguinte. Seu Santonis explicou que não podia ser assim de repente, primeiro era preciso falar com o pai de Aritakê. Aritakê ficou desapontado mas se conformou.

 

Ipinauí ouviu o pedido do cilho sem dizer nada, parece que já estava esperando unia coisa assim; desde que instalaram o Posto ali perto, os índios novos estavam perdendo o gosto pela vida na aldeia; muito triste, muito ruim; mas como é que se ia evitar? Ipinauí levantou-se ainda calado, preparou fumo, encheu o cachimbo e não deu resposta, não falou com Aritakê o resto do dia. No dia seguinte cedo ele chamou o filho e disse que fosse. Queria ir, fosse. Ipinauí ia ficar triste, mas não fazia mal. Queria ir, fosse. Aritakê foi.4

 

Seu Santonis ficou feliz de ter um índio em casa, chamava Aritakê para mostrar aos amigos, queria que eles vissem que índio não é nada do que o povo pensa - gente porca, estouvada, sem preceitos; era gente sadia e limpa, capaz de aprender tudo o que os brancos aprendem.

 

Seu Santonis mandou fazer roupas para Aritakê iguais às dos rapazes da cidade, e contratou um mestre particular para ele. A mulher de Seu Santonis fechava a cara e dizia que ele estava perdendo tempo e facilitando muito, índio não pode ser tratado como filho de família.

 

- Veja você - dizia ela às amigas - depois de tantos anos de casada arranjei um filho que não sabe comer com garfo nem dormir em cama. E nem sei se ele é batizado.

 

Quando ouviu isso do batismo pela primeira vez Seu Santonis explicou que Aritakê tinha sido batizado pelo bispo no Posto e recebera o nome de Ari para aproveitar o nome antigo. Isso deixou a mulher engasgada porque para ela batismo de bispo devia ser mais forte do que batismo de padre.

 

Mas Seu Santonis viajava muito, e a mulher aproveitava as ausências dele para cortar as asas do índio, como ela dizia. Numa dessas viagens Seu Santonis ficou, comido de piranhas rio afundamento de uma canoa carregada de peles. Quando a mulher de Seu Santonis deu a noticia a Aritakê ele não chorou, o que para a prova que índio é mesmo gente sem sentimento.

 

Com a morte de Seu Santonis a vida de Aritakê mudou muito. Para começar, a viúva achou que era muito desaforo pagar uma pessoa para carregar água do chafariz, quando tinha ali um índio sacudido, que podia fazer o serviço em paga da casa e da comida. E por que não emprestá-lo também a outras famílias índio parado em casa fica reinando maldade.

 

Quando o par de botinas dada por Seu Santonis se gastou, Aritakê teve de andar descalço; e quando as roupas foram se acabando a viúva lhe dava roupas velhas do marido, elas ficavam engraçadas em Aritakê porque o morto era mais alto e muito mais gordo; e quando essas também se estragaram Aritakê só vestia molambos, que a viúva só remendava quando o rasgão era em lugar inconveniente. Um dia, vendo-o entrar na cozinha para encher uma vasilha d'água com a roupa muito rasgada, ela achou que não ficava bem ter uni índio seminu trançando pela casa, e mandou fazer um cubículo de tábuas de caixotes para ele morar e dormir no quintal. A única parte da casa onde ele entrava agora era na cozinha, assim mesmo só para despejar água.

 

De noite, sentado num caixote na porta do cubículo, Aritakê enchia o cachimbo com o fumo que as famílias lhe davam em gratificação pelo carreto de água e ficava como dormindo, daquele jeito que os índios gostam de ficar. Que ele não estava dormindo via-se pela atenção que dava ao cachimbo para conservá-lo aceso. Quando, cachimbo afinal chiava e parava de dar fumaça Aritakê batia-o no caixote para despejar a cinza e recolhia-se ao cubículo. É possível que no colchão de capim, furado e cheio de percevejos, com o pescoço duro do peso das latas e potes, Aritakê sonhasse corna aldeia; não havia meio de saber porque ele não tinha com quem conversar, as crianças fugiam dele, ouviam dizer que índio [49] come gente, e os homens não tinham tempo para perder com um índio maltrapilho e morrinhento.5

 

Quantos anos ele passou nessa vida seria difícil dizer. As pessoas que o viram chegar foram morrendo ou se mudando, os meninos cresceram e sumiram, a viúva Santorais morreu, outra família foi morar na casa, Aritakê continuou lá porque era necessário. Até o dia que ele fez aquela bobagem com o paletó de pijama.

 

Era um paletó de listras vivas, estendido com outras roupas numa corda. Aritakê passou, viu o paletó, achou bonito. Olhou a camisa do corpo, rasgada, sem cor: decidiu-se. Ninguém viu Aritakê apanhar o paletó, mas muitos o viram andar pelas ruas com ele, parando de vez em quando para levantar uma aba até a altura dos olhos (não podia baixar a cabeça por causa da vasilha de água).

 

O dono do paletó, homem correto e respeitador das leis, fez o que achou que devia fazer: levou o caso ao delegado; mas fez questão de explicar que não era pelo valor da peça, era pelo princípio; o paletó ele nem queria mais, não ia vestir roupa que andou em corpo de índio.

 

Achando que o assunto era de importância secundária o delegado entregou-o ao cabo do destacamento e partiu num caminhão cheio de cachorros para uma caçada que ia durar dias. O cabo gostou, havia muito tempo que não funcionava como autoridade.

 

Aritakê enchia um pote no chafariz quando o cabo chegou com dois soldados armados de sabre, chegou e deu ordem para agarrar e algemar. Aritakê deve ter pensado que eles o estavam presenteando com alguma coisa, ficou olhando as duas pulseiras niqueladas e sorrindo.6 Mas quando os soldados o puseram para diante a empurrões, aí ele não entendeu e apontou o pote com as duas mãos. O cabo, homem experiente, não ia se atrapalhar; resolveu o problema quebrando o pote com uma botinada, a água se espalhando entre os cacos pela laje do chafariz

 

De empurrão em empurrão, o cabo atrás com os polegares no cinto explicando aos curiosos o motivo da prisão, Aritakê foi jogado no calabouço, lugar reservado a presos perigosos. A porta foi fechada com a chave enorme, Aritakê ficou no escuro.

 

Afora os empurrões, que ele não entendeu, parece que Aritakê não se importou com a prisão. Sentado no parapeito da janela, atrás dos barrotes de quase um palmo de largura reforçados com chapas de ferro, ele passava o tempo entretido em olhar as listras do paletó, prova do pouco caso que fazia da justiça.

 

Lá um dia o queixoso procurou o delegado para saber em que pé andava o processo, o delegado disse que não andava em pé nenhum, processo de índio é complicado, segue legislação especial, ele não ia mexer em casa de marimbondo por um assunto tão trivial: bastava o criminoso gramar uns tempos na cadeia para deixar o vício; depois, as famílias todas [50] estavam pedindo a liberdade de Aritakê, precisavam muito dele para baldeação de água.

 

Os dias passavam iguais e sem sentido mesmo para um índio, a comida chegando com atraso porque os meninos escalados para levá-la não tinham pressa, o soldado que a recebia também não ia interromper a história que estivesse contando ou ouvindo, e Aritakê curtindo fome calado. De tempos em tempos um soldado chegava com uma lata d'água e despejava no pote por cima do lodo antigo. Aos domingos os soldados levavam os presos para despejarem o barril dos detritos e tomarem banho se quisessem. O povo ficava olhando de longe, quem estivesse na janela se retirava por causa do mau cheiro, ninguém aproveitava a ocasião para dar aos presos um pedaço de fumo, uma peça de roupa, dinheiro; achavam que preso tem de tudo na cadeia.

 

Uma tarde de festa - procissão, foguetes, banda de música - os soldados se descuidaram na vigilância, Aritakê notou a porta do calabouço mal fechada, subiu os degraus de pedra como quem não quer nada, empurrou a porta e foi saindo. Os soldados estavam discutindo sobre armas de fogo em uma sala, do corredor se ouvia a conversa.

 

Aritakê não levou nada, não tinha o que levar, nem sabia para onde ia. Desceu o largo, parou um pouco na porta da igreja, não se interessou pela barulheira, continuou andando, passou a ponte e foi acompanhando o rio. Já na estrada, passada a máquina de arroz e a cerca do matadouro, ouviu tropel e gritos atrás.

 

- Pega o preso! Vai fugindo!

 

Aritakê olhou para trás, viu os soldados, entendeu que era com ele. O jeito agora era correr.

 

- Pega! É preso fugido! Pega!

 

Sentado na porta de sua casinhola com uma criança nos braços um homem ouviu o apelo. Depressa ele entregou a criança a alguém lá dentro e tentou cercar o fugitivo. Aritakê quebrou cangalha fácil e passou.

 

- Pega! Não deixa fugir!

 

Tranqüilamente o homem levou a mão à cintura, puxou uma arma, atirou. No baque do tiro Aritakê perdeu o passo, focinhou de lado e caiu de ombro na beira da estrada, uma perna adiante da outra ainda na posição de correr.

 

Os soldados já vinham chegando, elogiaram a pontaria.

 

- Vai atirar bem assim na praia - disse um.

 

O homem e os soldados foram ver o efeito da bala, o homem ainda com a arma na mão - a queda podia ser truque de índio treteiro.7

 

Um soldado virou o cadáver com o pé. A bala tinha entrado nas costas e saído no peito.

 

- Conheceu, tapuio safado! - disse o soldado.

 

O outro estava interessado era na arma.

 

É ximite, não é? Dá licença? - examinou e completou, entendido: - Logo vi. Bicho que não faz vergonha. Quer negociar?

 

 

Fonte: “Literatura comentada” José J. Veiga, Editora Abril, São Paulo: 1982, p. 47/51.

1 Numa abordagem poucas vezes feita em literatura brasileira, esse conto enfoca o índio fora de seu habitat natural. Note, ao longo do relato, como Aritakê vai perdendo sua identidade, inclusive pela abreviação de seu nome, que passa a ser Ari.

2 Óleo extraído de sementes do fruto do tucunzeiro, uma palmeira.

3 Fica evidente, nesse trecho, a ironia na descrição do modus vivendi dos brancos.

4 Vale ressaltar a premonição do pai em relação ao filho. Repare, também, no uso do discurso indireto livre, recurso narrativo que consiste em reproduzir uma fala sem se utilizar dos verbos característicos do diálogo, de travessões e dois pontos. [48]

5 Note a força do preconceito, arraigado culturalmente.

6 É extremamente patética, nesse trecho, a reação ingênua de Aritakê.

7 A ironia da suposição é evidente, já que a esperteza não era o ponto forte do personagem. [51]

 

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