“A Morte me informa sobre o que realmente importa. Me daria ao luxo de escolher as pessoas com quem conversar. E poderia ficar em silêncio, se o desejasse. Perante a morte tudo é desculpável… Creio que não mais leria prosa. Com algumas exceções: Nietzsche, Camus, Guimarães Rosa. Todos eles foram aprendizes da mesma mestra. E certo que não perderia um segundo com filosofia. E me dedicaria à poesia com uma volúpia que até hoje não me permiti. Porque a poesia pertence ao clima de verdade e encanto que a Morte instaura. E ouviria mais Bach e Beethoven. Além de usar meu tempo no prazer de cuidar do meu jardim…”.
Com este espírito, acabo de ler a obra citada do assunto, de autoria de Luiz Alberto Mendes.
Antes, um parêntese: um amigo enviou-me este poema:
O Albatroz
Às vezes no alto mar, distrai-se a marinhagem
Na caça do albatroz, ave enorme e voraz,
Que segue pelo azul a embarcação em viagem,
Num vôo triunfal, numa carreira audaz.
Mas quando o albatroz se vê preso, estendido
Nas tábuas do convés, — pobre rei destronado!
Que pena que ele faz, humilde e constrangido,
As asas imperiais caídas para o lado!
Dominador do espaço, eis perdido o seu nimbo!
Era grande e gentil, ei-lo o grotesco verme!...
Chega-lhe um ao bico o fogo do cachimbo,
Mutila um outro a pata ao voador inerme.
O Poeta é semelhante a essa águia marinha
Que desdenha da seta, e afronta os vendavais;
Exilado na terra, entre a plebe escarninha,
Não o deixam andar as asas colossais!
Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal" (Tradução de Delfim Guimarães, Obtido em Wikisource).
Antes, o amigo remetente, Gustavo Torres Soares, já tinha composto o seguinte:
Hermético
Mas o rapaz não quer se explicar!...
Se a gente não o entender,
Para ele é indiferente.
Se o interpretarmos mal,
O problema é nosso.
Se ficarmos ofendidos,
Ele vai até rir.
Maldito!
Disse ele, e envaideceu minha alma, que a composição acima foi a mim dirigida!
Só mesmo vindo de um amigo! A quem agradeço emocionado e lisonjeado e feliz!
Fecho o parêntese.
Poema não se explica, sente-se!
Imagine-se, então, explicar o poeta!
Não há necessidade, nem se deve, acredito.
E digo isso por ter o Luiz Alberto, ou o prefaciador de sua obra, apresentado-se e apresentado-o!
Não há ser humano sem preconceito, infelizmente!
Todos somos preconceituosos: preto tem preconceito contra preto; pobre contra pobre; mulher contra mulher; homossexual contra homossexual e todos contra todos!
Eu, ser humano por natureza (!), aprendiz de “tentador” de ser poeta, sou, também, “promotor de Justiça”!
Portanto, tem três requisitos para “ter tido” preconceito conta o autor de Desconforto, que, mesmo confessando, causa-me desconforto!
É que o poeta-autor é apresentado e se diz “egresso” do sistema carcerário, cometeu alguns crimes pelos quais esteve preso.
Sua condição e a minha levou-me a vê-lo preconceituosamente: ele é ser humano igual a mim; ele é poeta, eu quero ser; ele é um “ex-condenado”, eu luto para condenar!
O mesmo preconceito passei a nutrir contra Pablo Neruda e Kalil Gibran!
Neruda depois que li o livro de Jurema Finamour “Pablo e Dom Pablo”, em que o poeta é pintado com cores nada dignificantes para um ser humano.
Gibran, li em matéria jornalística que se perdeu na montanha de jornais velhos, mas não de minha mente, “era um unha de fome”, sovina, avarento.
Salvador Dalí, dizem, era “dedo duro”, tendo entregado vários comunistas.
Entretanto, quando soube dessas condições humanas dos três acima citados, já gostava de suas obras e, aí, não teve mais jeito.
Ou seja, os li sem fazer, inconscientemente, qualquer juízo sobre as pessoas dos autores (Dali, o vi).
Já em relação a Luiz, embora eu não quisesse, como diz o Nietzsche (“não pensamos, é o pensamento que nos pensa”), a sua condição me vinha à mente sempre e em muitas situações, todas elas eu “querendo” ver tal condição de ex-presidiário.
Se eu nada soubesse sobre Luiz, o teria lido como li Neruda e Gibran e vi Dalí!
Mas, o importante, o li e gostei e por isso ora escrevo.
É claro que não gostei de tudo, obviamente, pois tirando o primeiro cd do “Só pra contrariar”, em que todas as músicas são legais, é muito raro um livro em que todos, absolutamente todos os poemas nos encante. O próprio “Só pra contrariar” não foi capaz de repetir-se!
No caso do Desconforto, mesmo que a obra não tivesse me prendido a atenção, sua apresentação já teria valido a pena a leitura e a aquisição. Vejam que coisa linda escreveu Fernando Bonassi na orelha da capa:
“Poesia é música, miscelânea de sons, alternância de ritmos; poesia é métrica, precisão na escolha das palavras e consciência matemática das letras; poesia é pintura, é cinema: descrição da imaginação, construção de imagens, de cenas, de personagens... Pois é, poesia é tudo isso, mas se engana quem pensa que poesia se resume a esculpir frases, substituir significantes como itens de um cardápio, ou burilar a linguagem como um ourives descompromissado. Poesia é um tanto mais: ela nasce justamente do espanto com este mundo que nos cerca; da tentativa, na maioria das vezes vã, de explicarmos isso que fizemos de nós mesmos; da indignação com este bom e velho estado de coisas, conveniente para tão poucos entre tantos...”
Do livro do Luiz gostei, particularmente, dos poemas das páginas: 25, 39, 51, 55, 59, 61, 71, 75, 87, 99, 107, 121, 123, 125, 133, 137, 147, 149, 151, 155 e 159, ou seja, de quase todos, pois a impressão dos poemas é apenas na face da página. Deles divido com vocês os seguintes:
Eu
Sempre quis antes
Que os outros.
Andei, falei antes do tempo
E me machuquei muito mais.
Aprendi a cair antes
De aprender a correr
E quando pude correr
Não parei jamais.
Separei antes de amar
Quis sorrir antes de sofrer
E fui embora sempre
Que deveria ter ficado.
Já estava deslumbrado
Antes de me embriagar.
Conhecia todos
Muito antes de me conhecer
E me arrependi
Por não haver me arrependido.
Gritei quando devia calar,
Dividi quando devia somar
E jamais pude multiplicar.
Fui convencido
Antes de entender,
E condenado antes
Que pudesse errar.
E fato é que quis ser antes
E a verdade
Só veio muito depois.
e,
Claro e Escuro
Um dia passado
É um tempo vivido
Um amor acabado
Um mal entendido
Disse um dia um poeta
Em sua poesia
Em rima repleta
De dor e agonia
Um beijo de amor
É um bem que agrilhoa
Um doce insabor
Um gozo que escoa
Um corpo desnudo
É um grito silente
Um diálogo mudo
Num hálito quente
Disse-me um dia um poeta
Com certo pesar
Tem ponta que espeta
Veneno sem par.
e,
Bons Tempos
Acordei com um desses pensamentos suaves
Que nos ajudam a viver.
Era como se tivesse entrado no mundo
Pela primeira vez.
Em meu coração não havia
Um só compartimento que não estivesse
Inundado da mais comovente ternura
Algo assim redondo e macio.
Pontas frágeis de estrelas
E o brilho inseguro dos astros
Estavam comigo nessa hora clara
Em que rompo a noite nessa breve manhã
Longe do tempo da dor.
e,
Raios e trovões
Se pudesse arrancaria
Os trovões de minha boca
E os raios de minhas mãos.
Acabaria com toda essa mania
Suja de limpeza;
Viveria de realidades
E executaria todas ideologias.
Em provocação aberta
Ia passando, sem me olhar
Perdido de mim
Sem por mim me dar.
Seria menos justo, exigente
E cobraria menos
De mim.
e,
Culpado
Cometo a besteira
De me iludir
Que jamais me quebrarão
Novamente.
De ser inocente quando me sinto
Tão culpado.
e,
Confusão
...e uma saudade vinda sei lá de onde:
De amar sem inventar,
De beber sem entristecer
E como ainda não enlouqueci
De tanta consciência do que faço.
Medo nunca foi freio
Antes motor, desafio constante
Mas cansei.
Cansei dessa gente que se engana;
Que cai do passado
Simulando presente
Como acordasse de um pesadelo.
Será que liberdade é estar
Onde sonho e não existe,
Ou na desumana necessidade
De morrer?
e,
Lugar
Nunca fui um bom lugar
Nem para mim mesmo
Meu lugar sempre foi onde nunca estive
Possuía a inquietude do rio
Que não sabe se à frente
Vai encontrar margens para correr
Ou vai se desmanchar
Em enchente.
Fonte: LUIZ ALBERTO MENDES, Desconforto, São Paulo: Editora Reformatório, 2013.
A obra foi adquirida na madrugada de 20.07.14 e sua leitura terminada em 23.07.14, com leituras paralelas e interrupções por conta de outros afazeres.
De um poema, a frase: “Preciso espelho para reconhecer meu lado fora”, chamou minha atenção, pois ela mostra bem como estamos tão perto de nós mesmos e nos conhecemos tão pouco. Tão pouco que, até para nos conhecemos pelo nosso lado de fora precisamos de ajuda!
Sem preconceito, eu a recomendo, tanto assim que a adquiriria novamente se a perdesse!
Abraços,