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História do ateísmo, de Georges Minois.

Capa História do ateísmo

Amigxs,

Li a obra abaixo e estou cada vez mais encantado com o autor (Geroges Minois), de quem já li também “História do riso e do escárnio” (ver mais em: https://www.youtube.com/watch?v=niC0yB3xi-4), “ A idade de ouro” e estão na fila “História do futuro”, “História do suicídio”, “História da solidão e dos solitários” (estes publicados no Brasil pela UNESP) e “As origens do mal” (publicado em Portugal).

Creio que você também vai gostar, então prove o aperitivo abaixo no qual fiz algumas anotações.

Inté,

Osório Barbosa

Eis:

História do ateísmo

Georges Minois

(Fonte: Georges Minois, História do ateísmo, tradução: Flávia Nascimento Falleiros, UNESP, 2014, p. )

INTRODUÇÃO

Uma história da descrença [incroyance] e do ateísmo, numa época em que se proclama por toda a parte a "volta da religião", a "revanche de Deus" e o "reencantamento do mundo", seria uma provocação, um ato de inconsciência, um arcaísmo ou um delírio? Nada disso, evidentemente. [Osório diz: o autor difere descrença de ateísmo. Ou seja, são coisas diversas!]

Diga-se antes de tudo que, pelo fato de todos esses pseudorretornos serem bastante suspeitos, se olharmos a realidade mais de perto, veremos que está longe de corresponder a uma renovação do fato religioso. E claro, as estantes das livrarias estão abarrotadas de volumes sobre a história da Igreja, as religiões, o protestantismo, o cristianismo, a fé, os crentes, a espiritualidade, e de guias, enciclopédias e dicionários do mundo religioso. A religião não atrai mais tanto assim as pessoas às igrejas, no entanto, vende muito bem [Osório diz: belo paradoxo!]. O padre Decloux, que em 1995 lamentava o fato de os autores se comprazerem "em retomar incessantemente a questão do ateísmo, multiplicando os livros sobre o assunto", sem dúvida não havia comparado com atenção as seções "ateísmo" e "religião" das bibliotecas [Osório diz: o padre citado, assim como muitos, não querem que as pessoas tenham acesso aos pensamentos que divergem dos seus!]. Eu mesmo escrevi diversas obras de história religiosa e participei de trabalhos coletivos sobre o assunto.[1] E foi precisamente esse dilúvio de livros sobre a fé que suscitou meu interesse pelo campo da descrença [Osório diz: engraçado! Aqui o autor fala apenas do campo da descrença e não nela e do ateísmo! Seria o ateísmo uma forma de descrença? Afinal, o livro trata do ateísmo], que continua sendo muito pouco estudado numa perspectiva histórica.

Desde o raríssimo livro de Spitzel, Scrutinium atheismi historico-aetiologicum [Investigação histórico-etiológica do ateísmo], publicado há quase três séculos e meio, em 1663, as histórias do ateísmo são extremamente escassas a mais completa, até o momento, é a de F. Mautner, Der Atheismus und seine [1] Geschichte im Abendlande [O ateísmo e sua história no Ocidente], publicada em quatro volumes entre 1920 e 1923.

O ateísmo foi objeto de inúmeros estudos filosóficos, sociológicos, psicológicos e psicanalíticos; diferentes momentos, bem como seu surgimento em certas regiões limitadas, também foram estudados, entretanto a únicas verdadeiras sínteses completas continuam sendo os trabalhos soviéticos, muitas vezes tendenciosos. [Osório diz: será que apenas os trabalhos dos soviéticos são tendenciosos? Aliás, existem vários revisionistas, de coisas de seus países, na França, na Alemanha, na Itália, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Apontar apenas os soviéticos, sem dizer, “neste tema” é muito tendencioso.].

Há, portanto, um relativo vazio historiográfico. Essa lacuna merece ser preenchida, pois o ateísmo [Osório diz: aqui já é ateísmo e não descrença!] tem sua história própria, que não é um simples negativo da história das crenças religiosas [Osório diz: ser ateu não significa negar a história das crenças!]. Se há poucas histórias sobre o assunto, é precisamente em razão da conotação negativa que se atribui à descrença. Todos os termos utilizados para designá-la são formados com um prefixo privativo ou negativo: a-teísmo, des-crença, a-gnosticismo, indiferença. Pode-se ler em L’État des religions [O estado das religiões]:

Isso é o testemunho de uma história, de uma luta para subtrair o ser humano ao universo divino, bem como de uma dificuldade se não em viver, pelo menos em exprimir de maneira positiva - sem nostalgia, sem referência a um universo do qual se deseja a libertação - uma existência livre, autônoma, responsável. Como se houvesse um mal-estar ou um resquício de provocação em existir sem deus nem diabo, simplesmente em meio aos homens.[2] [Osório diz: “O homem é a medida de todas as coisas”! A famosa e fundamental frase de Protágoras e o que diz o autor, demonstra que o homem tem medo de assumir por si suas responsabilidades no mundo! De construí-lo do melhor modo e ao seu jeito! Entretanto, quando ele entrega a um deus ausente tal missão, na verdade põe no colo de outros homens tudo que eles querem: mandar, serem obedecidos e escravizarem seus depositários de confiança!].

O termo "ateu" conserva uma vaga conotação pejorativa, e sempre causa certo medo: herança de muitos séculos de perseguição, de desprezo e ódio por todos aqueles que negavam a existência de Deus e se viam, assim, irremediavelmente amaldiçoados. Inconscientemente, a ideia da maldição ainda vigora: "Graças a Deus, Deus não existe. Mas, que Deus nos livre, e se Deus ainda assim, existisse de fato?", diz um provérbio russo. Nesse domínio, a certeza pode ser absoluta? A aposta não é por demais arriscada? Muitos descrentes convictos ainda hesitam em se proclamar ateus [Osório diz: aqui o autor iguala descrente e ateu? Seria nossa observação inicial um problema de tradução? Em vez do conectivo “e” não seria o alternativo “ou”?]. O termo não é neutro, e dele ainda exala um vago odor de fogueira. Quanto ao vocábulo "materialista", que frequentemente lhe é associado, ele também mantém uma nuance de desprezo: ligado a uma doutrina "grosseira", "baixa", "primária", foi por muito tempo utilizado como acusação ou injúria. [Osório diz: ateísmo e materialismo! O ateísmo, por ser materialista, se fixa na matéria, no que se pode conhecer, pois está aí, no mundo! Nada de transcendência, crença em algo que não se pode ver, contar, pesar, medir].

Há, portanto, uma pesada herança passional em torno do ateísmo, noção impregnada de agressividade, por parte tanto de seus partidários [2] quanto de seus adversários, pois se trata da negação por excelência: a negação de Deus. Como escrever a história de uma atitude negativa? Na maioria das vezes, é o campo adversário que se encarrega da história "dos que se opõem a...", tratando-a com todos os preconceitos costumeiros. A descrença aparece com mais frequência na história das religiões do que em obras que lhe sejam propriamente consagradas, [Osório diz: assim como aconteceu com os Sofistas, quem os preservou foram os seus adversários! Lá como cá, teriam feito “melhor”, para eles, se nada tivessem escrito! “O tiro saiu pela culatra”, uma vez que os adversários não conseguem derrotá-los!] e o perigo da história da descrença é justamente acabar sendo uma história da fé pelo avesso. [Osório diz: a fé não consegue demonstrar seu valor, sua presteza, sua necessidade em si, por isso tem se valido de ataque aos seus adversários. Não pode ignorá-los por não ter o que dizer de si!] Durante muito tempo, os únicos testemunhos relativos à descrença vinham das autoridades religiosas que a reprimiam, especialmente nos séculos XVI e XVII. Até mesmo no século XX, um espírito tão aberto quanto o de Gabriel Le Bras não hesitou em anexar, ainda que com um olhar cheio de simpatia, a história da irreligião à sociologia religiosa: "O ateísmo dos meios modernos nos obriga a investigar todos os quadros sociais e toda a vida do espírito, pois a sociologia da irreligião constitui um dos principais capítulos, o mais emocionante de toda a sociologia religiosa".[3] A dificuldade não é menor na época contemporânea: com exceção dos movimentos ateus militantes, muito minoritários, como escrever a história de uma atitude que não parece ter nenhum conteúdo positivo? [Osório diz: parece não ter, mas tem! O fundamental é se livrar do medo e daqueles que o distribuem] Alguém pensaria, por exemplo, em escrever a história daqueles que não acreditam em óvnis?

Outro problema: o do vocabulário, que exprime uma profusão de nuances. Do ateu materialista puro-sangue ao crente integrista, há lugar para o agnóstico, o cético, o indiferente, o panteísta, o deísta: aos olhos dos fiéis todos são mais ou menos ateus. Todavia, as diferenças entre eles são consideráveis. Aliás, é preciso dizer também que nem sequer os termos "ateu" e "descrente" são sinônimos perfeitos. [Osório diz: Hum rum! Aqui, neste ponto, nossa dúvida e nossa suspeita, aparentemente, chegam ao fim] Então, cabe perguntar: história do ateísmo ou história da descrença? São essas questões metodológicas que devemos abordar desde o início.

A atitude descrente é um componente fundamental, original, necessário e, portanto, inevitável em qualquer sociedade. [Osório diz: faz-se um favor à sociedade ao se ser descrente] Por isso tem obrigatoriamente um conteúdo positivo, e não se reduz unicamente à não crença. É uma afirmação: a afirmação da solidão do homem no universo, geradora de orgulho e angústia [Osório diz: o homem medida]; sozinho diante de seu enigma, o homem ateu nega a existência de um ser sobrenatural que intervenha em sua vida, mas seu comportamento não se apoia em tal negação; ele a assume, seja como um dado fundamental (ateísmo teórico), seja inconscientemente (ateísmo prático). [Osório diz: assume o enigma e parte para tentar solucioná-lo. Não espera que caia do “céu”, como a chuva, uma resposta!] [3]

Essa solidão, que faz a grandeza e a miséria do homem ateu, encontra-se na origem de condutas diversas: ela engendra uma moral e uma ética fundada sobre o único valor discernível no universo: o homem. [Osório diz: afinal, o homem é a medida de tudo! O ateu é um homem de ação! Não fica parado esperando] Não crer em Deus não é uma atitude negativa. É uma posição que acarreta escolhas práticas e especulativas autônomas, que tem portanto sua especificidade e sua história, diferente esta da história dos crentes. Tal como as religiões, o ateísmo é plural: ele evoluiu, assumiu formas diferentes, sucessivas e simultâneas, e por vezes antagônicas. [Osório diz: tudo isso está dito na frase de Protágoras, o sofista maior!]

É claro, a história do ateísmo foi moldada durante muito tempo por suas relações com as religiões, que o perseguiram, antes que ele mesmo se tornasse perseguidor em certas culturas não crentes do século XX. O ateísmo é tão antigo quanto as religiões. Pois nesse campo há sempre lugar para a dúvida especulativa, bem como para a conduta rebelde. [Osório diz: aqui podemos encontrar outro Sofista, Górgias, com suas três teses, em especial a inicial, o seu “Nada é”!] No que diz respeito ao cristianismo em particular, que gosta de se gabar de seus 2 mil anos de existência, o ateísmo goza de uma anterioridade que deveria lhe valer respeitabilidade [Osório diz: se idade/velhice, servisse para algo, o ateísmo dá um banho no cristianismo!]. Dois mil e quinhentos anos antes de Cristo, sábios indianos já haviam proclamado que o céu é vazio. Para nos restringir unicamente à civilização ocidental, é preciso dizer que, desde o século VI de nossa era, [Osório diz: creio que é antes da nossa era, basta ver os filósofos citados!] Parmênides [Osório diz: Parmênides, por exemplo, viveu por volta de 500 a.C.], Heráclito e Xenófanes de Cólofon já professavam a eternidade da matéria, e que, pouco tempo depois, Teodoro, o Ateu, anunciava a morte de Deus. Como lembra Georges Hourdin:

O ateísmo é historicamente muito mais antigo do que a civilização cristã. Ele tem autonomia. Alguns filósofos da Antiguidade, como Epicteto e Epicuro, eram ateus [Osório diz: alguns bem antes deles já o eram, como mostra o parágrafo anterior]. Por outro lado, o ateísmo é mais amplamente difundido em termos geográficos do que o conhecimento do Evangelho. O que se costuma chamar por exemplo, de religiões do Extremo Oriente – budismo, confucionismo – é muitas vezes e simplesmente sabedoria e racionalismo. Cristo, Filho de Deus encarnou portanto num momento em que já havia ateus. As Igrejas que lhe deram continuidade não deram cabo do ateísmo.[4] 4 [Osório diz: o ateísmo é fundado na sabedoria e na racionalidade, já as religiões, na fé, na crença, naquilo que acreditam estar além do homem, do mundo, da natureza, que na verdade são um só].

O ateísmo, independente das religiões, pode ser concebido como a grandiosa tentativa do homem de criar um sentido para si mesmo, de justificar para si mesmo sua presença no universo material, de nele construir um lugar inexpugnável.  [Osório diz: seguindo o dito protagórico] O mito religioso da Torre de Babel pode encontrar [4] aqui uma interpretação inesperada e bem diferente daquela que lhe dá a exegese religiosa.

Aliás, esse estranho episódio foi deformado por essa exegese, que o apresentou como uma manifestação do orgulho humano devidamente castigado por Deus: os homens, para evitar ser mais uma vez tragados por um dilúvio, decidiram construir uma torre gigantesca que os protegesse das águas, desafiando assim o poder divino; Deus, para puni-los, teria então introduzido a diversidade das línguas, tornando impossível a compreensão entre os homens, e semeando a desunião entre eles, o que levou ao fim da construção. O texto bíblico, na verdade, não diz nada disso. [Osório diz: mas, mesmo que o dissesse, o tal divino falhou, pois os homens aprendem as línguas uns dos outros! Fiquemos no exemplo dos embaixadores!] Eis o relato do Gênesis:

Todo o mundo se servia da mesma língua e das mesmas palavras. Como os homens emigrassem para o Oriente, encontraram um vale na terra de Senaar e aí se estabeleceram. Disseram um ao outro: "Vinde! Façamos tijolos cozamo-los ao fogo!". O tijolo lhes serviu de pedra e o betume de argamassa. Disseram: "Vinde! Construamos uma cidade e uma torre cujo ápice penetre os céus! Façamo-nos um nome e não sejamos dispersos sobre toda a terra"

Ora Iahweh  [Senhor] desceu para ver a cidade e a torre que os homens tinham construído. E Iahweh disse: "Eis que todos constituem um só povo e falam uma só língua. Isso é o começo de suas iniciativas! Agora, nenhum desígnio será irrealizável para eles. Vinde! Desçamos! Confundamos a sua linguagem para que não mais se entendam uns aos outros" [Osório diz: esse projeto do tal Iahweh não deu certo. Melhor para o homem. Ou, melhor, vitória do homem sobre o tal]. Iahweh os dispersou daí por toda a face da terra, e eles cessaram de construir a cidade. Deu-se-lhe por isso o nome de Babel, pios foi aí que Iahweh confundiu a linguagem de todos os habitantes da terra e foi aí que ele os dispersou por toda a face da terra.[5] 5

Traduzamos: sem Deus, os homens são unidos, solidários, e decidem construir uma humanidade forte, independente, que domine o mundo e Ihe dê um sentido: "Conquistemos para nós um nome!". Esses homens não pensam em Deus, constroem o próprio futuro com orgulho, na união; eles podem representar a humanidade ateia, organizando-se sozinha. Ora, Deus sente ciúme desse entendimento que os fortalece; ele confunde as línguas e introduz a divisão. Deus quer uma humanidade fraca, humilde, submissa; não pode suportar que os homens se organizem a sua revelia, que confraternizem sem levar em conta sua existência. Prefere que os homens [5] se desentendam, briguem, o que lhe dá de volta o papel de árbitro supremo. A fé, portanto as religiões, fator de divisão, é fator de solidariedade humana diante da descrença: não seria a Torre de Babel o símbolo de uma humanidade ateia em busca de se dar um sentido – o "nome" e cujos esforços são aniquilados pela intervenção do sagrado, do divino, do sobrenatural, do absoluto, que divide e assola toda e qualquer esperança de união natural? [Osório diz: bom! Deus estraga tudo! Divide, contrapõe para tentar poder governar!]

Essa interpretação, evidentemente, tem poucas chances de ser aceita. E, no entanto, a julgar estritamente pelo texto, parece uma leitura possível. O episódio, em todo caso, pode ilustrar a hostilidade fundamental das religiões para com a descrença. Até meados do século XX, crentes e descrentes constituíam no Ocidente dois mundoS antagônicos, dispostos a chegar às vias de fato. Apenas em época bastante recente, tal oposição parece finalmente superada. Por que esse ódio ou, no mínimo, essa suspeição? Que importância tem, para aqueles que creem, que outros não creiam e vice-versa? [Osório diz: isso parece com aquele “incômodo” que alguns sentem da homossexualidade alheia!] Essa intolerância nada tem a ver com o problema da verdade: ninguém persegue os que não creem no teorema de Pitágoras, ou os que negam que dois e dois são quatro; contentam-se em tratá-los de loucos. [Osório diz: é que ninguém quer a verdade, mas sim a verdade na qual acredita!] Se durante muito tempo a vontade de eliminar o ateísmo prevaleceu, é porque a ausência de fé era supostamente capaz de acarretar uma diferença de comportamento individual e social. O homem sem Deus, até a época de Bayle, e mesmo depois, é um homem sem moral, portanto um perigo para a sociedade. A história do ateísmo é também a dos que lutam por uma moral puramente humana. [Osório diz: o homem tem que construir sua moral assumindo que ela é dele, que é ele quem a cria, não sendo ele o ser passivo que a recebe sabe-se lá de quem! Sabe-se sim de que: do esperto que quer escravizar os demais!].

A história do ateísmo não é simplesmente a história de uma ideia, mas é também uma história do comportamento. Por isso recorrerei, na medida do possível, às pesquisas sociológicas, inclusive as religiosas. Trata-se de compreender por que e como uma fração da sociedade europeia, desde as suas origens, viveu sem referência a um deus qualquer. Isso permite lembrar para nossa época, em pleno desarranjo cultural, como os homens conseguiram viver outrora, inventando para sua existência um sentido totalmente independente da fé religiosa. [Osório diz: que é o que lhe cabe fazer].

De cada cinco homens, hoje, mais de um é ateu; e dos quatro quintos restantes, quantos são indiferentes, céticos, agnósticos? A história do ateísmo não é a história de um punhado de indivíduos. Ela diz respeito a centenas de milhões de pessoas que não conseguem acreditar em Deus. A fé não pode ser decretada, não pode ser demonstrada, nem pode ser imposta. [Osório diz: mas é o que tentam fazer os perseguidores religiosos e suas inquisições. Para que diabos os religiosos vão se meter no meio de povos que vivam como quaisquer outros seres humanos antes dessa maldita chegada?] O que, sem dúvida, deveria interpelar os que creem: como é possível que eles creiam e tantos outros não? [Osório diz: mas as religiões organizadas costumam protestar contra quando se tenta escorraçar seus religiosos, embora não tenham o menor pudor de fazer o mesmo quando alguém que não é do seu meio “invade” dita religião. Aliás, fazem pior, pois tentam impor, pela força, sem serem convidados, as religiões que professam] A história dos descrentes deveria alimentar a reflexão dos crentes. [Osório diz: mas eles são fanáticos demais para isso!] [6]

Quanto ao autor, normalmente os leitores gostam de saber sua opinião pessoal quando trata de assuntos como este, nem que seja apenas para espreitá-lo e pegá-lo em contradição, num ou noutro sentido. Limito-me a dizer que não há neste livro nenhuma intenção apologética a favor do ateísmo ou contra ele, a favor da fé ou contra ela. A principal motivação, aqui é uma busca de sentido, que não rejeita a priori nenhuma atitude. Embarcamos todos numa estranha aventura. Nascemos sem pedir, vivemos sem saber por quê, morremos sem receber desculpas, somos todos submetidos à mesma trajetória sem ter direito à menor explicação. Muitos nem sequer se preocupam com isso. [Osório diz: e quando tentamos, quase sempre somos tolhidos, inclusive pela violência] São, provavelmente, os mais felizes. [Osório diz: não acredito que os ignorantes são felizes, são enganados, tanto assim que costumam mudar quando se esclarecem] Outros têm respostas prontas, lisas, indiscutíveis, que herdaram ou elaboraram; acreditam nelas e sem dúvida têm razão de se fiar nelas – ao menos sabem qual conduta devem adotar. [Osório diz: estes são manadas a seguir seus líderes] Enfim, há os que não compreendem nada, os inquietos, os angustiados, todos aqueles que, desde as origens, considerando este mundo grotesco e grandioso, e não se satisfazendo com nenhuma resposta, perguntam-se: por quê? [Osório diz: bom!] O historiador tem o dever de explorar o passado dessas três atitudes, com compreensão e compaixão, sabendo que ele mesmo está imerso numa dessas três correntes mais fortes do que ele. Pertencendo ao terceiro grupo, invejo tanto os que nada se perguntam quanto os que apenas têm respostas; eu, que só tenho perguntas, sem respostas. [Osório diz: como todo sábio!]

Este livro fala da história dos descrentes, designando com esse vocábulo todos os que não reconhecem a existência de um deus pessoal que intervenha em sua vida: ateus, panteístas, céticos, agnósticos, mas também deístas, sendo infinitas as nuances entre tais categorias. [Osório diz: eis a resposta para minha dúvida inicial: o ateu é só mais um descrente entre muitos!] Todos eles, juntos, constituem sem dúvida a maioria da humanidade. Esta é, na verdade, a história dos homens que creem apenas na existência dos homens. [Osório diz: como deve ser, até para que assumamos nossas responsabilidades, não as transferindo para o imaginário].

[7]

[8, 9 e 10] em branco


- 1 -

NO INÍCIO: FÉ OU DESCRENÇA?

O homem primitivo era ateu ou religioso? O problema das origens é ao mesmo tempo capital e insolúvel. Capital porque permitiria determinar o caráter natural do ateísmo ou da atitude religiosa, o que daria a uma ou a outra dessas realidades uma justificação fundamental. Insolúvel porque a mentalidade primitiva dos povos pré-históricos está para sempre fora do alcance de um estudo científico. [Osório diz: embora concordemos com o autor, torcemos para que a ficção se torne realidade com a invenção da “máquina do tempo”, para que possamos perscrutar o nosso passado] Estamos, pois, reduzidos neste domínio a nos contentarmos com reles indícios cuja interpretação depende amplamente dos pressupostos dos pesquisadores. No entanto, há pelo menos um século e meio sociólogos, etnólogos, psicólogos e historiadores têm debatido exaustivamente essa questão.

O PROBLEMA DO ATEÍSMO PRIMITIVO

Posta no contexto dos conflitos entre fé e ciência que marcaram o século XIX, a questão, evidentemente, não é neutra. [Osório diz: neutralidade é um mito! Nunca existiu, mas sempre esteve aí] Os dois campos reivindicam uma anterioridade que faria do adversário um derivado artificial e [11] sem o valor de uma atitude original, natural, autêntica e sã. Até uma época recente, os pesquisadores, crentes ou ateus, trabalharam antes de tudo para defender uma causa, ideológica ou religiosa.

Em 1936, por exemplo, Henri de Lubac via na afirmação marxista de uma fase primitiva arreligiosa da humanidade a vontade partidarista de mostrar que a religião não é uma necessidade essencial do homem, e que corresponde unicamente a um estado transitório da sociedade.1 Ele criticava também os pressupostos sociológicos de Émile Durkheim e etnológicos de Lucien Lévy-Bruhl que, prolongando o esquema de Auguste Comte, fariam do estágio religioso uma fase provisória na história do espírito humano. O trabalho das ciências se insere hoje num espírito menos polêmico, mas nem por isso a interferência de nossos pressupostos contemporâneos estaria menos presente. [Osório diz: “nossos pressupostos” são os nossos “pré-conceitos” que tornam impossível a neutralidade] No entanto, é indispensável prestar conta dessas pesquisas.

O primeiro estudo sério consagrado ao assunto data de 1870: The Origin of Civilization and the Primitive Condition of Man [A origem da civilização e a condição primitiva do homem]. John Lubbock (1834-1913), que estudou povos primitivos da Austrália e da Terra do Fogo, afirma nessa obra que a humanidade, em suas origens, é ateia, isto é, não tem a mínima ideia de um mundo divino qualquer. Colocando-se numa perspectiva evolucionista, ele retraça as etapas da elaboração progressiva da religião, passando sucessivamente pelas fases fetichista, totemista, xamanista, idólatra antropomórfica. Declara ao mesmo tempo que existem povos completamente ateus: os cafres, os melanésios, os yagans da Terra do Fogo e os aruntas da Austrália.

Já no ano seguinte, Edward Tylor (1832-1917) reage a essa proposição e mostra que a pretensa ausência de ideias sobre Deus nesses povos provém da inadequação dos conceitos que descrevem o sistema de crenças dos primitivos. Esses povos, explica ele, ignoram nossa concepção de Deus, mas isso não quer dizer que não tenham uma concepção de Deus. Já se esboçava assim uma ambiguidade fundamental que encontraremos com frequência: a tendência a utilizar o termo "ateu" para qualificar todos aqueles que têm uma concepção diferente da divindade. [Osório diz: “quem não concorda comigo é ateu”, dirá o crente] Assim, pagãos politeístas e cristãos monoteístas poderão se tratar mutuamente de ateus.

Segundo Taylor, o homem primitivo é levado a conceber uma realidade sobre-humana ou extra-humana a partir de sua experiência do sono, do sonho, das visões, do êxtase, do delírio, da morte. [Osório diz: ou seja, de causas naturais, materiais. Nada de sobrenatural] Daí teria saído a noção de alma, atribuída a todos os objetos, vivos ou inertes, depois reservada ao [12] homem e dotada de imortalidade; [Osório diz: penso que a alma tem a mesma duração da lembrança que os vivos têm de seus mortos, como dizem os mexicanos. “A pessoa só morre depois de totalmente esquecida pelo último sobrevivente que dela lembrava!] progressivamente, o homem chegaria ao monoteísmo. Quatro anos mais tarde, Herbert Spencer (1820-1903) situando-se também numa perspectiva evolucionista, afirma que a religião original repousa sobre o culto dos ancestrais.2 2 [Osório diz: exatamente o que dizem os mexicanos. E por que os ancestrais? Justamente por serem aqueles que se foram e os que mais nos lembramos pela questão da afetividade].

Outros pesquisadores do fim do século XIX acreditaram reconhecer nos povos primitivos não somente um sentimento religioso, mas um monoteísmo original. Como Howitt, que em 1884 se interessou pelas tribos do Sudeste australiano, e, pouco depois, Andrew Land, para quem o deus do céu é o ancestral primitivo da tribo.3 3 [Osório diz: qual a diferença com o que diz Spencer logo acima?] O principal defensor dessa tese extrema é o padre Wilhelm Schmidt (1868-1954): numa extensa obra sobre os pigmeus,4 4 ele mostra que o Ser supremo desse povo, todo-poderoso, mestre da vida e da morte, criador, justiceiro, é o típico deus único. [Osório diz: certamente que o fato de ser padre não o permitiria ter uma opinião diferente, pois, aí, não seria padre] Desde então, outros acreditaram descobrir os mesmos vestígios de monoteísmo primitivo no Tira-Wa do povo pawnee, no Nzambi dos bantus, no Vatauineuva (o "Velhíssimo") dos yagans, no Kalunga dos ovambos, acrescentando que muitas vezes esse deus supremo não é objeto de culto porque está fora de alcance e não se ocupa dos homens. [Osório diz: todos os deuses são assim: estão fora do alcance dos homens e não se ocupam deles, senão não seriam deuses].

Essas concepções, em geral concebidas com um pano de fundo apologético, [Osório diz: isso! Fazer apologia buscando arrebatar fiéis para suas crenças!] foram muito criticadas, especialmente por Raffaele Pettazzoni (1883-1959), para quem a noção de monoteísmo é empregada de modo abusivo por esses sociólogos e etnólogos. Outros autores sustentaram a tese contrária, ou seja, a da ausência de sentimentos religiosos nos povos estudados.5 5 Mas sua argumentação também é frágil, pois repousa sobre uma definição muito estreita e ocidental da religião.

Em 1912, Emile Durkheim retoma o debate em As formas elementares da vida religiosa, estudando o meio dos aborígenes australianos, considerados os mais próximos da condição primitiva da humanidade. Sua abordagem, exclusivamente sociológica, pode alimentar tanto os argumentos ateus quanto os religiosos. Se a religião depende do substrato econômico e social que lhe dá origem, ela supera este último, porque tem um valor objetivo que não é menor que a experiência científica; ela é mais que um epifenômeno assim como o pensamento é mais que o cérebro: [12]

Portanto, longe de ignorar a sociedade real e dela fazer abstração, a religião é a sua imagem; reflete todos os seus aspectos, mesmo os mais vulgares e os mais repugnantes. [Osório diz: não fosse assim não existiriam tantos deuses!] Mas se é verdade que, através das mitologias e das ideologias transparece claramente a realidade, também é certo que nelas a realidade se vê engrandecida, transformada, idealizada.6 6 [Osório diz: mas, aqui, temos a criação artística mais desenvolvida de alguns homens, capazes de criar universos inteiros. Talvez tenha existido um Dom Quixote, mas sem a pena de Cervantes ele sequer teria sido!].

Para Durkheim, as formas elementares da vida religiosa se ordenam em torno da noção de totem, que é ao mesmo tempo o nome e emblema do clã a partir do qual se elaboram as classificações religiosas, os ritos e os tabus. Todas as categorias fundamentais do pensamento, e portanto também a ciência, são de origem religiosa: "Se a religião engendrou tudo o que há de essencial na sociedade, é porque a ideia da sociedade é a alma da religião".7 [Osório diz: para aceitarmos tal afirmação, temos que admitir que “o homem sempre foi crente” e, como se disse anteriormente, o homem primitivo está fora do nosso alcance de estudo! O que se tem, aí, é uma suposição do sociólogo, tão descabida quanto qualquer outra, pois ele afirma isso a partir do que ele acha que foi].

A ideia fundamental de Durkheim, no que diz respeito a nossos propósitos neste trabalho, é que nos povos mais primitivos, e implicitamente, portanto, na origem da humanidade, [Osório diz: esse passo nem ele nem ninguém poderia dar] encontram-se todos os elementos constitutivos da atitude religiosa, mesmo a mais avançada, a saber:

distinção das coisas em sagradas e profanas, noções de alma, de espírito, de personalidade mítica, de divindade nacional e até mesmo internacional, culto negativo com as práticas ascéticas que são suas formas exacerbadas, ritos de oblação e comunhão, ritos imitativos, ritos expiatórios, nada de essencial lhes faltando.8 8 [Osório diz: até onde ele pode ver, só que sua visão é curta, como todas as demais].

Desde o início, [Osório diz: qual início?] o culto desempenha um papel fundamental na coesão social: "É que a sociedade só pode fazer que sua influência seja sentida se for um ato, e ela só é um ato se os indivíduos que a compõem forem assembleias e agirem em comum".9 9 [Osório diz: essa afirmativa cabe muito bem para uma sociedade de bestas, não para uma de homens racionais. Embora a racionalidade seja um bem escasso, a despeito de todos os homens, teoricamente, a possuírem] As forças religiosas, enraizadas na sociedade, são interiorizadas pelos indivíduos, que as associam a sua vida íntima. [Osório diz: com esse “inferno” que é a massividade da pregação, inclusive com a tentativa de inculcar pela violência, além de já se nascer e crescer sob uma determinada religião, como poderia ser diferente? “Reze ao dormir, reze ao acordar” é o que é ensinado às crianças desde a mais tenra idade. Como fugir desse inferno? Geralmente tomamos conhecimento das besteiras religiosas em uma fase já bem adulta da vida e, isso, muitas vezes, já é quase tarde, pois nosso pensamento, nosso vocabulário e atos estão impregnados por crenças que não nos foram ensinadas, mas impostas] Além do mais, sendo as sociedades mais ou menos engajadas nas relações com outras sociedades as ideias religiosas podem adquirir rapidamente um caráter universalista. [Osório diz: nem precisam ser engajadas, alguns, pela força, vão impor suas religiões a quem delas não precisa!] Durkheim não deixa, portanto, nenhuma possibilidade para um ateísmo original. Quanto a isso, ele está de acordo com a maioria dos etnólogos e sociólogos de sua época, que pensavam que não havia povos primitivos sem religião. [Osório diz: já partiam de uma certeza, não de uma hipótese de trabalho. Isso não é ciência, pois nesta deve imperar a dúvida!]

Nem por isso o problema está resolvido. Em primeiro lugar, porque afirmar que a universalidade do sentimento religioso nos povos primitivos [14] tende a provar uma revelação original é evidentemente um raciocínio abusivo – essa hipótese, aliás, é totalmente ausente em Durkheim. Em segundo lugar, porque a assimilação do pensamento dos povos primitivos do século XX ao da humanidade pré-histórica é outro salto contestável. E, por último, porque a noção de "religioso" está sempre cercada de incertezas e pode dar lugar a muitas contestações: o que é qualificado de "religioso" neste ou naquele povo primitivo não estaria mais próximo de um animismo naturalista do que de uma verdadeira crença religiosa? O limite entre teísmo e ateísmo não é claro nem mesmo em nossa época. Parece ainda mais vago, e até mesmo inexistente, na mentalidade primitiva.

[Osório diz: Teísmo é uma crença na existência de deuses, seja um ou mais de um, no caso de mais de um, pode existir um supremo. O teísmo não é religião, pois não se trata de um sistema de costumes, rituais e não possui sacerdotes ou uma instituição. Teísmo é apenas o nome para classificar a opinião segundo a qual existe ou existem deuses. Algumas religiões ou posturas filosóficas são teístas, outras são deístas, panteístas, etc.

E,

Deísmo é uma posição filosófica naturalista que acredita na criação do universo por uma inteligência superior (que pode ser Deus, ou não), através da razão, do livre pensamento e da experiência pessoal, em vez dos elementos comuns das religiões teístas como a revelação direta, ou tradição.

Fonte: Wikipedia.].

A MENTALIDADE PRIMITIVA: O MANA

Desde 1900, etnólogos e filósofos têm se orientado a uma noção mais apta a qualificar as relações entre o homem pré-histórico e seu ambiente natural: a noção de "mana", isto é, uma força imaterial e ativa, difusa em todos os objetos. Em 1891, Codrington já a tinha estudado entre os melanésios,10 10 mas foi em 1915 que o alemão Lehmann lhe consagrou um amplo estudo.11 11 Uma mesma realidade é então identificada, com nomes diferentes, entre os malgaxes (hasina), os hurons (orenda), os tlingits (yok) os omahas (wakenda), os barongas (tilo) etc.

É difícil conceber e, sobretudo, definir o mana. Codrington via nele um “poder ou uma influência sobrenatural que entra em cena para efetuar tudo o que está além do poder ordinário do homem, fora do processo comum da natureza". Essa definição, que parece introduzir uma diferença entre natureza e sobrenatureza, foi depois corrigida. Como precisará Georges Gusdorf, a mentalidade primitiva é monista: ela não distingue entre o natural e o sobrenatural, entre a física e a metafísica. O homem e seu ambiente formam algo uno, e a ontologia não é pensada, mas vivida. O primitivo não separa o profano do sagrado; ele está imerso no meio com o qual é uno. Vive no vivo, como parte integrante de um todo uno: [Osório diz: muito bom o que diz Gusdorf, entretanto ele recorre à “mentalidade primitiva”, que ninguém conhece! Penso que para salvar o que ele diz, não precisa retroceder aos primitivos, basta o homem olhar o mundo ao seu redor e perceber que na época quem eu ele escreveu e agora, século XXI, o homem permanece conectado ao mundo do qual ele faz parte e não pode ser diferente. Suas ações sobre o mundo sofrem reações. As mudanças climáticas, por exemplo, acelerada pela poluição causada pelo homem. O homem, na sua vaidade de “animal superior” tenta se desconectar dos outros vermes do qual ele é irmão! Sendo que ambos são importantes para o mundo do qual eles são meras partes. Podemos até imaginar que o mundo{natureza} sobreviva sem o homem, mas este não vive sem ela].

O primitivo tem uma visão única, e a palavra "mana" designa essa atitude unitária do homem diante do universo, ou melhor, no universo. [...] O mana é imanente à existência em sua espontaneidade, mas pode se encontrar tanto [15] junto do sujeito quanto junto do objeto. Mais exatamente, o mana corresponde a certo enfrentamento do homem e da realidade ambiente, dado inicialmente como um ser no mundo característico da vida primitiva. A intenção "mana" não designa especialmente uma situação propriamente "religiosa": ela indica certa polarização da existência em seu conjunto, fora de qualquer referência a "deuses", ou mesmo a "espíritos", por mais imprecisos que sejam.12 12 [Osório diz: com esse “mais preciosos que sejam” o autor tenta ser aceito no meio religioso! Creio que a atitude de Aristóteles, em tudo dividir e compartimentar contribuiu, e muito, para essa tentativa do homem de se desconectar dos outros elementos que formam o mundo!]

De fato, o mana não é uma realidade em si, mas antes uma estrutura da consciência que nos faz agir intuitivamente, como se os objetos que nos rodeiam estivessem carregados de intenções a nosso respeito. [Osório diz: aqui, e apenas para este fim, podemos objetar dizendo que não existe mundo sem homem, sem consciência, pois é o homem, na sua relação com os demais, que cria o mundo da cultura, que pode ser entendido como o dar o nome às coisas tirando-as do caos, tentando explicar seu funcionamento, suas relações, transformando a matéria “bruta”] Trata-se, portanto, de um dado bruto, imediato, que nada tem a ver com um sentimento do divino ou do sagrado. Mas esse modo de consciência preanimista pode engendrar dois tipos de atitude: a magia e a religião. Para Lehmann, a noção confusa de mana é uma espécie de objetivação do sentimento de temor para com o objeto: se o poder é atribuído ao próprio objeto, tende-se à magia; e se é atribuído a um espírito que dirige o objeto, tende-se ao teísmo e, portanto, à religião.

[Osório diz: Animismo "é a ideia de que todas as coisas, incluindo pessoas, animais, características geográficas, fenômenos naturais e objetos inanimados, possuem um espírito que os conecta uns aos outros." Fonte: www.significados.com.br].

[Osório diz: o que dissemos acima, sobre tudo está conectado com tudo no mundo exclui qualquer coisa relacionada com espírito! Tem a ver com o que disse Empédocles de Agrigento e que depois é repetido por Lavoisier na famosa frase: “na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”!]

Magia e religião têm portanto a mesma origem. Ora, essas duas atitudes caracterizam respectivamente as visões ateia e deísta do mundo. O que conduziria a excluir toda e qualquer anterioridade de uma em relação outra. A célebre obra de Henri Bergson sobre As duas fontes da moral e da religião parece reforçar essa hipótese. Publicada em 1932, ela se apoia em inúmeros estudos etnológicos da época e conclui pelo caráter simultâneo e indissociável da magia e da religião: "Não se pode pretender que a religião derive da magia: elas são contemporâneas". Em sua fase preanimista, escreve Bergson, "a humanidade teria imaginado uma força impessoal tal como o mana polinésio, difundida no todo, desigualmente distribuída entre as partes; só mais tarde ela teria chegado aos espíritos".1313 A magia é a prolongação da ação humana sobre o mundo; é portanto "inata ao homem, sendo apenas a exteriorização de um desejo do qual o coração está repleto". [Osório diz: a religião não o é, pois vai para “outro” mundo! Como se esse outro existisse].

Na origem, portanto, não haveria nenhuma concepção abstrata ou teórica de um sobrenatural qualquer: "Não é uma força impessoal, não são espíritos já individualizados que teriam sido concebidos a princípio; simplesmente teriam sido atribuídas intenções às coisas e aos acontecimentos como se em toda a parte a natureza tivesse olhos fitando os homens".14 14 [Osório diz: e tem, pois na relação homem-natureza tudo tem consequências] [16] Desse fundo comum teriam saído, para baixo, a magia, que utiliza as forças impessoais da natureza, e, para o alto, a religião, que personaliza tais forças. [Osório diz: o uso do para baixo e para o alto pode parecer pejorativo para a magia, melhor seria: para o mundo material e para a metafísica, para a suposição] A religião popular conservou esses dois aspectos, e as grandes religiões tradicionais terão a maior dificuldade para separá-los.

[Osório diz: a luta do homem tem sido buscar dominar as forças da natureza para que estas “trabalhem a seu favor”, melhor, de seus interesses. Penso que isso não deixa de ser uma magia em alto grau].

No entanto, Bergson amplia abusivamente o termo "religião" à situação comum anterior a essa distinção quando escreve: "A verdade é que a religião, sendo coextensiva à nossa espécie, deve resultar de nossa estrutura". [Osório diz: abusa quando afirma ser coextensiva à nossa espécie, pois não tem dados para tal afirmação, como já se viu acima] Se nos basearmos em seu raciocínio precedente, o que é extensivo à nossa espécie é o estágio do mana, que é ao mesmo tempo pré-religioso e pré-mágico, isto é, pré-ateu. Aliás, o próprio filósofo confirma o caráter derivado da religião quando nega todo elo fundamental entre esta última e a moral, a qual é apenas expressão de necessidades sociais:

Quando dizemos que uma das funções da religião, tal como desejada pela natureza, [Osório diz: natureza não deseja por si! Creio que isso somente ocorre com alguns dos elementos que integram seu conjunto] é manter a vida social, não pretendemos dizer com isso que haja solidariedade entre a religião e a moral. [Osório diz: Protágoras, como se viu, não vê necessidade de religião. É o homem que deve tomar as rédeas do seu destino]  A história dá testemunhos do contrário. Pecar sempre foi ofender a divindade, mas nem sempre a divindade se sentiu ofendida pela imoralidade ou pelo crime: aconteceu até mesmo de ela os prescrever.15 15 [Osório diz: sim, há divindades que mandam matar! Na bíblia, por exemplo].

O caráter simultâneo e indissociável da magia e da religião também é afirmado, de outra forma, por Claude Lévi-Strauss, que escreve em O pensamento selvagem:

O antropomorfismo da natureza (em que consiste a religião) e o fisiomorfismo do homem (pelo que definimos a magia) formam dois componentes sempre dados, e dos quais apenas a dosagem varia.[...] Não há religião sem magia, do mesmo modo que não há magia que não contenha pelo menos uma pitada de religião. A noção de uma sobrenatureza só existe para uma humanidade que atribui a si mesma poderes sobrenaturais e que, por outro lado, atribui à natureza os poderes de sua sobre-humanidade.16 16

O etnólogo mostra como a religião corresponde a uma humanização das leis naturais, por atribuição a um Ser superior das forças da natureza e como a magia corresponde a uma naturalização das ações humanas, por atribuição à natureza de intenções e poderes de tipo humano. [Osório diz: mas os poderes humanos são poderes da natureza! O homem é a natureza agindo, podemos dizer. Já o tal ser superior...] Se subsiste [17] certa mistura entre as duas atitudes, a natureza de ambas é fundamentalmente diferente, embora ambas provenham de um fundo comum. [Osório diz: sim, o que muda é o modo de ver a natureza e de enfrentá-la. Uns buscam em si as forças para o embate, outros esperam...]

Ora, insistamos, a atitude mágica é fundamentalmente ateia e conduzirá, pela evolução natural, ao ateísmo prático. Quando tropeço numa cadeira, caso eu viva no estágio do mana, dou-lhe um pontapé; caso seja um pouco mais evoluído, [Osório diz: como assim, mais evoluído? Vejo nisso um atraso, embora sem o pontapé!] atribuo o tropeção à vontade divina e sou um espírito religioso; ou então acuso a cadeira de má intenção para comigo, e dou mostra de um estado de espírito mágico, que não faz referência a um ser sobrenatural - e mais cedo ou mais tarde hei de chegar à indiferença para com a cadeira, e então considerarei que sou o único responsável por minha falta de cuidado. [Osório diz: contudo, o autor caminha para a racionalidade: mana – religião – razão].

NA ORIGEM, NEM FÉ NEM DESCRENÇA: A CONSCIÊNCIA MÍTICA

Na origem, [Osório diz: esse “na origem”, não é bem na origem, como vimos acima, mas apenas a partir do que temos registrado em pedra, osso, barro queimado, pergaminho. Mesmo que o autor se refira à origem do mito] o mito é um modo de ser no mundo, a maneira do homem de viver sua inserção em dado meio ambiente, que age sobre ele e sobre o qual ele age. [Osório diz: sendo o homem uma parte do todo, ele exerce função e sobre ele funções são exercidas pelos demais elementos do todo] Para satisfazer suas necessidades fundamentais, ele estabelece com o mundo um tecido de relações afetivas vitais, baseadas no par atração-repulsão. [Osório diz: “atração-repulsão” é o que dá/gera o movimento, e a vida é movimento] Atribuindo [Osório diz: ele atribui ou ele vê/constata? Constata, por exemplo, que as árvores precisam do sol para a fotossíntese!] às coisas intenções que ele explora para sua própria satisfação, ele vive no mito, do qual não se dissocia pelo pensamento. [Osório diz: e quando ele se dissocia, também começa a se perder, ao tentar se desligar do que lhe dá vida] Nesse estágio, o mito não é nem uma teoria, nem uma lenda, nem uma alegoria nem um símbolo; é um gênero de vida, um modo de ser, no qual o acesso ao sentido é imediato, sem dissociação. [Osório diz: Aqui está Parmênides! Aqui “o ser é, o não-ser não é”! Depois essa constatação será teorizada, para pior, pois dará a criação de mundo(s) paralelo(s)]

O homem primitivo está imerso na realidade mítica. [Osório diz: era o caso de Parmênides!] Como escreve Georges Gusdorf. "É por isso que ele não conhece a instabilidade do homem moderno, que perdeu seu lugar ontológico e está sempre em busca dele. [Osório diz: ontologia (ontos = ser; logoi = ciência) é a “ciência que estuda o ser”. Só que, com a metafísica (aquilo que estuda o que está além da física, do que é físico, concreto) o homem se perde em um mundo de suposições. Justamente por não encontrar respostas para suas inquietações no mundo concreto, palpável, ele cria um mundo com seu pensamento onde julga poder encontrar respostas para essas suas inquietações. É justo que o faça – a busca pelo conhecimento é sempre válida – o que não pode é se perder nisso tomando essa sua invencionice como suporte para aquilo que chamamos, grosseiramente, de “verdade”. Mas tem algo pior, que é querer convencer quem desse mundo de fantasia discorda até pela violência. Se o pensador não se transformar ou for transformado em pregador fanático, tudo bem]  Ele se sente em seu lugar, no centro da realidade, não suficientemente consciente de si mesmo para se desejar outro em relação ao que ele é".1717 [Osório diz: essa consciência de si mesmo é importante, mas funciona como um remédio, que dependendo da dose pode se transformar em veneno! E é isso a que a metafísica pode levar] Seria inútil qualificar esse estado inicial de religioso ou ateu. Ele é um e outro a um só tempo, e portanto, ao mesmo tempo, a negação mútua disso. No estado mítico, o ser é unitário; não há distinção entre divino e profano natural e sobrenatural. [Osório diz: tal distinção é obra da invenção do homem, aparentemente nessa sua tentativa de se  desinserir do seu meio] O primitivo vive no sagrado, mas um sagrado vivido, não conceptualizado. [Osório diz: é na teorização do sagrada que o homem vai buscar se dissociar do que é] O mito é a realidade última, que compreende tudo e seu contrário, perigoso e amistoso, atraente e repugnante. Mircea Elia sublinhou essa ambivalência do sagrado original, que não passa, de fato, [18] de uma reação diante de um mundo cheio de boas e más intenções, capaz de produzir o bom e o mau, o agradável e o doloroso: [Osório diz: a criação do divino parece uma tentativa do homem de querer apenas o bom, o agradável. Entretanto, nesse mesmo divino ele, o homem, impõe uma contrapartida para quem desagradar aquele que ele, homem, imagina que pode dar, proporcionar o bom, o agradável, e que, justamente, as “chicotadas” com o mau, o doloroso. Ou seja, o homem não é livre das “boas e más intenções”, ele apenas tenta organizar, sob a responsabilidade de outro, não dele próprio, a forma de atuar das bondades e maldades].

A atitude ambivalente do homem diante de um sagrado ao mesmo tempo atraente e repugnante, benéfico e perigoso, encontra sua explicação não somente na estrutura ambivalente do próprio sagrado, mas também nas reações naturais que o homem manifesta diante dessa realidade transcendente que o atrai e o amedronta com igual violência. [Osório diz: se é transcendente não é realidade! Ou é apenas “realidade virtual”!]  A resistência se afirma com mais nitidez quando o homem se vê diante de uma solicitação total do sagrado, quando é chamado a tomar a decisão suprema: aderir, completamente e sem voltar atrás, aos valores sagrados, ou então manter-se, quanto a eles, numa atitude equívoca.18 18 [Osório diz: que ele acha, ou sente que é chamado! Tem gente que “vê” visagem!]

A partir desse estágio, o homem pode reagir negativamente ao sagrado pela repulsa, pela rejeição, pelo ódio, pelo sarcasmo ou pela indiferença. Essas atitudes serão verificadas em relação às religiões constituídas. Mas no estágio mítico o homem não é nem religioso nem ateu. Para ser crente ou ateu, é preciso se distanciar, pelo pensamento, do mundo divino, que é aceito ou rejeitado. [Osório diz: eu só tiraria do parágrafo o “mundo divino”, pois, nesse estágio, o pensamento ainda não forjou a divindade].

O problema deve colocar-se portanto em termos ontológicos: o que existe, o que é real e o que não existe - e não em termos de pessoal-impessoal, corporal-incorporal, conceitos que não têm, na consciência dos primitivos, a precisão que adquiriram nas culturas históricas. [Osório diz: que é o que disse Parmênides, depois deturpado, pois ele era um homem que vivia no misticismo] O que é provido de mana existe no plano ontológico e, por conseguinte, é eficaz, fecundo, fértil. Portanto, não seria possível afirmar a "impersonalidade" do mana, já que essa noção não tem sentido algum no horizonte mental arcaico. Aliás, não se encontra em nenhum lugar o mana hipostasiado, destacado dos objetos, dos acontecimentos cósmicos, dos seres e dos homens.19 19 [Osório diz: tudo é um!]

Assim, no ponto de partida, haveria uma humanidade cuja consciência imersa em seu meio ambiente, viveria no mito. Depois dessa fase arreligiosa, o momento decisivo é aquele em que emergem a razão e a consciência de si, aquele em que intervém a inteligência. Pois a inteligência distingue, separa, dissocia, classifica o que até então era uno. Assim começam a se opor o eu e o mundo, o profano e o sagrado, o mito pensado e o mito vivido. Aí é que se situa a verdadeira passagem entre a pré-história e a história. O pensamento mítico dá lugar a duas atitudes opostas, mas complementares [19] e ainda frequentemente entrelaçadas: a atitude religiosa e a atitude mágico-supersticiosa, ambas potencialmente cheias de crença e ateísmo. [Osório diz: perfeito este parágrafo. O que o homem tem que entender é que o mundo que ele cria com sua inteligência não é real, mas ficção! Daí não poder impor consequências até violentas para quem dele discorda. Aliás, mesmo as invenções da tecnologia, para existirem, depois de pensadas têm que ser concretizadas. Os celulares – vistos há muito tempo como “caixinhas” que falavam, só se tornaram reais quando concretizados fisicamente. É o caso da “máquina do tempo”, que só existirá se for posta no mundo de forma material].

A atitude religiosa corresponde à conceitualização do mito, que não é mais vivido, mas representado, atuado e pensado. Ele se torna uma realidade autônoma, estruturada pelo espírito e no qual se crê. [Osório diz: se “crê” é diferente do “se conhece”! E é por não conhecer que o homem crê. Eu cria que a terra era o centro do universo, mas apareceu um “maluco” que me mostrou que não!] E a partir daí um objeto simbólico, objeto de um discurso, organizado numa literatura sagrada. [Osório diz: é a força da palavra] É claro que o mito, que a partir daí faz referência a uma realidade exterior, perdeu sua força: [Osório diz: se é exterior não é realidade] "A retomada do mito pela inteligência, sua transcrição refletida deixa escapar o essencial, na medida em que ela destaca o mito da situação, conferindo-lhe assim uma autonomia em pensamento que o desnatura".20 20 [Osório diz: perfeito!] Mesmo assim ele continua indispensável. Pois a desagregação do estado mítico é, para o homem, uma fonte irremediável de inquietude e angústia existencial. [Osório diz: foi criada para “satanizar” o bom de viver! Para dar preocupação! Para tirar a paz!] Na interioridade de sua consciência, ele se coloca em relação ao mundo e, tendo perdido a harmonia inicial, encontra-se em perpétua defasagem em relação ao meio em que vive. Nessa situação, tudo o que quer é reencontrar a segurança e a unidade perdidas, pela religião, pela filosofia, pela magia, pela técnica, pela política. [Osório diz: não sei se por esses caminhos, pois eles são os principais incentivadores da angústia existencial, especialmente a religião com seus infernos].

Assim nasce a atitude religiosa: nela, o sagrado primitivo mítico é organizado pela inteligência num logos, um discurso coerente que tende a explicar o mundo por um relato que isole o sagrado do profano e ao mesmo tempo os una por elos eficazes: sacramentos, símbolos, ritos. O mundo divino se torna autônomo e adquire transcendência. Georges Gusdorf retraçou o surgimento da religião: [Osório diz: o discurso religioso pode ser tudo, menos coerente!]

A consciência refletida, ao elaborar a experiência primitiva do sagrado, faz nascer a religião. O que parece se produzir de início é uma espécie de organização da matéria plástica e difusa do sagrado. [Osório diz: mas o tal “sagrado” já é matéria, criação da consciência refletida] [...] Ao estágio ritual das observações imanentes sucede assim um estágio teológico em que o sagrado, ao invés de ser objeto de uma apreensão direta, é posto em perspectiva de acordo com a exigência de um discurso coerente. [Osório diz: é o discurso que qualifica, adjetiva o mundo, ou partes dele, de sagrado. O mundo todo é sagrado ou nada nele é sagrado! Quando a mente fatia e diz que apenas pedaços do mundo são sagrados, ela exclui, ela partidariza, ela cria facções, classes e isso é ruim, pois tenta colocar quem está fora da classificação como o mau!]

A primeira etapa é sem dúvida aquela que permite opor nitidamente o sagrado e o profano, separando o lugar dos deuses do lugar dos homens. [...] O homem se afirma doravante diante de seu Deus, e essa relação de exterioridade corresponde aqui à afirmação de uma transcendência do divino. O sobrenatural se desenlaça da natureza, que adquire assim uma certa autonomia.21 21[Osório diz: o que é um absurdo do pensamento. Aliás, o pensamento cria um ser para tornar-se seu escravo!]. [20]

Essa distinção entre profano e sagrado, que é o fundamento por excelência da atitude religiosa, opera-se segundo uma linha que Roger Caillois define da seguinte maneira:

O domínio do profano se apresenta como o do uso comum, o dos gestos que não necessitam de nenhuma precaução e que se mantêm nas margens, geralmente estreitas, deixadas ao homem para que ele exerça sem impedimentos sua atividade. O mundo do sagrado, ao contrário, aparece como o do perigoso ou proibido: o indivíduo não pode se aproximar dele sem desencadear forças sobre as quais ele não tem o domínio e diante das quais sua fraqueza se sente desarmada.22 22 [Osório diz: o que não existe na materialidade da vida! Aliás, nela existe apenas o que o autor chama de profano].

DO MITO VIVIDO AO MITO CONCEITUALIZADO: A RELIGIÃO E SEUS DERIVADOS

Com a atitude religiosa, o mito é conceitualizado na linguagem teológica, pela razão. [Osório diz: por UMA das muitas razões! Inclusive, a razão pode criar “des-razões”! É o caso!] A partir daí, a evolução sociocultural trabalha irreversivelmente o dado mítico revelado. A partir do momento em que intervém a inteligência, a contestação é possível: o que a razão organiza, ela pode também criticar. [Osório diz: exatamente. E como tudo é contestável, vivemos em um mundo a incerteza e de insegurança, as quais são, contudo, o combustível para que se prossiga tentando, vai que...] Desde que o mito não é mais vivido, mas sim pensado, ele se torna objeto de fé e pode igualmente ser rejeitado: de agora em diante a descrença pode se opor à crença. [Osório diz: todo veneno traz seu antídoto]

O discurso teológico, para organizar o dado mítico, recorrerá à razão, e esta tenderá inelutavelmente, sob a pressão da evolução natural, a reduzir o lugar do revelado, a absorvê-lo do interior. [Osório diz: a razão “se vinga” dela mesma! Ela é também o seu contrário! “Para tudo tem um duplo discurso”!] Essa racionalização progressiva da fé pela razão conquistadora, [Osório diz: não razão convencedora!] que digere o mito explicando-o, pode levar ao ateísmo, quando a razão [Osório diz: quando a outra razão. Aquela que trabalha o contrário, o outro discurso] substitui o revelado como única norma da verdade. O movimento é conhecido. É aquele que, do Iluminismo ao cientificismo, procederá à desmitificação da fé, dissolvendo os mitos ao explicá-los, do mesmo modo que Édipo fez desaparecer a Esfinge ao resolver seu enigma.

Pouco importa aqui o valor dos argumentos da desmitificação. O fato de Fontenelle, Bayle ou Voltaire terem cometido excessos na apreciação dos mitos religiosos não prejudica em nada a aparente marcha triunfal da razão – que Léon Brunschvicg desejava ver levada ao extremo.23 23 O último ponto da teologia racional seria então a divinização da razão: [21]

A teologia racional aparece no fim das contas como uma promoção teológica da razão. [Osório diz: “o feitiço virou contra o feiticeiro”. “Apagou fogo com gasolina”, são sabedorias populares que podem ser aplicadas] O Deus que não podia ter nome próprio recebe um pela transformação da inicial da palavra "razão" em letra maiúscula. Essa majoração eleva a razão a uma potência superior.24 24

O sagrado mítico organizado pelas religiões também é ameaçado pela interiorização e personificação da fé. Esse movimento, que também parece inelutável, conduz ao esfacelamento do sagrado, que se torna assim puro sentimento interior, até o momento em que, como escreve Roger Caillois,

alguns subordinam tudo à conservação de sua vida e de seus bens, e parecem assim considerar tudo profano, tomando com relação a tudo, na medida de seu alcance, uma grande liberdade. Naturalmente, o interesse os governa, quando não o prazer efêmero. Apenas para eles está claro que o sagrado não existe em forma alguma.25 25 [Osório diz: chegamos ao capitalismo?]

O egoísmo sagrado é, portanto, o resultado lógico da interiorização de sagrado, e da espiritualização crescente da religião, que elimina o sagrado dos objetos exteriores. [Osório diz: o legal, o bom, o salutar era que essa interiorização não se exteriorizasse! Cada qual ficasse com o seu deus em seu coração, que não saíssem pelas ruas aos berros querendo vender seu deus a quem não o quer comprar. Nem receber de presente, pois já tem no que acreditar. Ou já tem a sua indiferença ou a sua não crença. Se é tão bom, tenha a diretriz do capitalista, fique só para você, não queira dividir com os demais]. 

A lógica da racionalização parece conduzir à dissolução do Deus das grandes religiões. Ora, ele resiste até hoje, e até mais do que previsto. Ele perdeu muito terreno no decorrer do século XX, mas conta ainda com centenas de milhões de fiéis, muito mais do que previram em 1900 os profetas de sua morte. Isso se dá porque as grandes religiões continuam a satisfazer parcialmente a necessidade de uma apreensão mítica do real. Permitindo que o real conserve uma parte de mistério, de certo modo elas mantêm uma parte do mito primitivo e, portanto, permitem que o indivíduo crente reencontre em parte a unidade original perdida. [Osório diz: o que é uma contradição, pois ela fatiou o mito]. Nisso reside a força real das religiões, e é o que explica o fato de se manterem, bem ou mal, no centro de um mundo desencantado e racionalizado. Pela religião, o homem tenta curar a inquietude existencial, recuperando a segurança do mito vivido. [Osório diz: outra contradição, pois a religião é o motor da inquietude existencial].

Lucien Lévy-Bruhl mostrou muito bem que a mentalidade mítica recalcada [Osório diz: "Recalque, também conhecido como recalcamento, é o ato ou efeito de recalcar, de dominar, de concentrar, de reprimir aspirações, desejos, instintos." Fonte: www.significados.com.br.] no homem moderno, tende incessantemente a ressurgir, porque é uma estrutura inalienável [Osório diz: em Direito o inalienável é o que não se pode vender, mas aqui, creio, que está usado como inseparável] do espírito humano:[22]

Nela encontra-se a razão profunda do encanto que atrai para os contos folclóricos e a sedução de sua linguagem [Osório diz: uso da razão, portanto]. Basta que os escutemos para essa vigilância ser suspensa, essa violência dar trégua. Num instante, num único impulso, as tendências recalcadas recuperam o terreno perdido. Quando escutamos um conto, abandonamos com volúpia a atitude racional, e não nos submetemos mais a suas exigências.26 26 [Osório diz: um filme! O que leva a Górgias quando pergunta o que é mais fácil, enganar um sábio ou um bruto?].

Numa carta a Jacques Maritain, ele afirma que "a mentalidade primitiva é um estado da mentalidade humana", corresponde à situação original apaziguante de harmonia, ou antes, de fusão com o meio natural. A quebra dessa unidade entre o homem e o mundo está na origem da angústia existencial. [Osório diz: e quem a quebra? A metafísica. Aliás, ela está presente antes de ser denominada. Algo como Édipo com complexo de Édipo, como diz o escritor Freud. Que, aliás, é um escritor genial, mas que nada deixou de bom no campo da medicina (psicanálise), vejo] A religião é uma tentativa de preencher o fosso cavado, de recuperar – graças ao sagrado – a idade de ouro, o paraíso terreno. [Osório diz: tudo criação humana, uma vez que tal idade jamais existiu, como o próprio Monin expõe em outra obra, “A idade de ouro”, mas tudo isso virou um círculo a escravizar o homem, uma espécie de tentativa do cachorro em morder o próprio rabo] Pelo mito religioso e teológico, estabelece-se um elo com o sagrado: [Osório diz: se tem fé que se estabelece. Nada comprova que a parte contrária responda a isso] um modelo exemplar é fornecido a todas as ações humanas significativas, permitindo que se conformem ao divino.2727 [Osório diz: onde está o divino com o qual se conforma?] O mito oferece um arquétipo cuja repetição pelo ritual religioso anula o tempo e a quebra original: "A repetição", escreve Mircea Eliade, "acarreta a abolição do tempo profano e a projeção do homem num tempo mágico-religioso que nada tem a ver com a duração propriamente dita, mas constitui esse eterno presente do tempo mítico."28 28 [Osório diz: mas a religião não quer, justamente, se afastar do mito?]

A importância dessa função religiosa levou certos autores a concluir abusivamente que a dimensão religiosa era uma estrutura fundamental do espírito humano. Ora, a religião, mito conceitualizado, é apenas um meio entre outros – meio longamente privilegiado, é verdade – a para satisfazer o desejo utópico de volta à consciência mítica vivida. Esta última, sim, é uma necessidade fundamental, e não a religião. A necessidade religiosa só apareceu depois. [Osório diz: ou seja, o homem a criou. Difere da fome, que não é o homem que a cria]. Convém reafirmar, com Georges Gusdorf:

É preciso, pois, renunciar a toda e qualquer ambiguidade, reconhecendo na consciência mítica uma estrutura inalienável do ser humano. Ela traz em si o sentido primeiro da existência e suas orientações originais. A função lógica do pensamento se desenvolve somente depois. [...] O descrédito em que caiu a consciência mítica, e depois sua total evicção [Osório diz: evicção = perda], representa sem dúvida o pecado original do intelectualismo.29 29 [Osório diz: caberia aqui o “eu era feliz na minha ignorância”? Mas nada que o intelecto não possa consertar]. [23]

O estágio religioso evolui sob o efeito das condições socioculturais. Segundo um grau mais ou menos elevado de racionalização, ele pode levar a quatro tipos de atitudes, da fé religiosa tradicional à descrença racionalista. Quando o dado revelado ou mitológico vence o aspecto racional, entramos no domínio das grandes religiões tradicionais, que são codificadas, ordenadas em torno de um certo número de dogmas, dirigidas por um clero, e afirmam a existência de um ou vários deuses que intervêm nos negócios humanos e impõem uma moral. Se, ao contrário, o elemento revelado é negado em proveito da simples afirmação de uma divindade transcendente, mas sem providência, estamos diante do deísmo. Se, por sua vez, a transcendência é negada em proveito de um Grande Todo, de um princípio organizador não pessoal, entramos na esfera do panteísmo, que pode ser naturalista ou espiritualista. Enfim, se toda noção de divindade, finalidade, transcendência, alma imortal é negada, caímos no ateísmo teórico ou dogmático, que pode ele próprio assumir diversas formas.

DO MITO VIVIDO À MAGIA, A ATITUDE SUPERSTICIOSA E SEUS DERIVADOS

Há, no entanto, outra série de atitudes possíveis. Com efeito, o pensamento mítico original dá lugar a duas posições míticas derivadas: a primeira é a religião, isto é, o mito conceitualizado; a segunda é a superstição de tipo mágico, isto é, o mito em ação. A atitude supersticiosa, realizando por sua vez a separação entre profano e sagrado, divino e humano, vê manifestações do sagrado em todo o profano e tenta utilizar ou manipular essas forças sobrenaturais para restabelecer o estado original supostamente harmonioso entre o homem e o mundo. Nesse caso, o que predomina é o aspecto prático e não o aspecto especulativo, como na religião. [Osório diz: e foi por especular que a religião entrou em um beco sem saída, felizmente. Seu único recurso, quando o argumento racional não lhe socorre é remeter a causa para o além, para Deus, que ninguém, até sabem, provou que existe. E quem tem que provar que ele existe são aqueles que nele creem, pois, no discurso, o ônus da prova cabe a quem defende a afirmação] O sagrado encarna numa enorme variedade de objetos e, ao encarnar, individualiza-se, limita-se e fragmenta-se ao infinito. Os objetos assim habitados pelo sagrado – pedras, árvores, fontes, montanhas etc. – exercem um poder; contudo, uma vez identificado, esse poder pode ser magicamente circundado, desviado, utilizado pelo espírito humano, que se tornou consciente e, portanto, agora é mestre das forças que agem no mundo. [Osório diz: como tudo é energia e tudo contém tudo e tudo está integrado, eu acredito, por exemplo, nas energias que vêm das pedras. O complicado, que vejo, é reconhecer essa energia e aplicá-la a um fim ao qual ela seja adequada].

É claro que religião, superstição e magia não são categorias hermeticamente fechadas umas às outras. Toda religião comporta uma parte de superstição e magia, e toda superstição possui uma dimensão religiosa. [Osório diz: o incoerente das religiões é que elas negam isso, tornando-se hipócritas] Daí inúmeras ambiguidades quando a Igreja Católica, a partir da reforma [24] iniciou a caça às superstições: se o divino encarnou num homem, se materializa no pão e no vinho, conferindo-lhes poderes miraculosos, por que não poderia se manifestar em outros seres? Será difícil fazer os fiéis compreenderem isso. [Osório diz: dirão, no entanto, que só existiu um! Argumentinho menor, raso! Imagem e semelhança de...]

Apesar de tudo, é possível distinguir a atitude religiosa da supersticiosa: a primeira representa o mito conceitualizado, e a segunda, o mito vivo e atuante em sua forma mágica. Versão especulativa no primeiro caso e ativa no segundo. [Osório diz: uma é ação (a magia) a outra contemplação (religião). Contemplação conceitualizadora é filosofia] Conforme o grau de importância que a ação adquire no decorrer da evolução sociocultural, a atitude mágico-supersticiosa pode desembocar em quatro situações diferentes.

Em primeiro lugar, a luta das autoridades religiosas contra as superstições e a magia – combate de fôlego [Osório diz: e de fogo!], que se estenderá por muitos séculos de cristianismo – pode contribuir para a integração, no interior das grandes religiões tradicionais, de um certo número de espíritos supersticiosos satisfeitos com a dose de magia contida em todos os grandes cultos. [Osório diz: lembrei que quero beber o vinho da missa não por ser “sangue”, mas pelo efeito do álcool! Rs.] Assim, nos séculos XVII e XIX, o cristianismo aceitará a incorporação de certos elementos populares, estabelecendo um compromisso com as práticas supersticiosas. [Osório diz: que depois condena na parte que não aceitou!].

Um segundo grupo, que se recusa a aceitar os dogmas fundamentais das grandes religiões, mas para o qual a fé é um dado revelado por um profeta ou um homem inspirado, evolui no sentido de uma mentalidade de seita. O movimento sectário, que é também alimentado por dissidências das religiões tradicionais, apoia-se numa fé eficaz e salvadora, assegurando a salvação eterna a um pequeno número de eleitos. [Osório diz: eu sou o bom, os outros são os maus].

Um terceiro grupo derivado da mentalidade supersticiosa e mágica cai no esoterismo e no ocultismo. A crença, nesse caso, é orientada para a ação terrena, por meio de uma captação das forças invisíveis, naturais e sobrenaturais. O aspecto prático da existência torna-se mais importante que o aspecto especulativo. [Osório diz: como tudo é energia e tudo contém tudo e tudo está integrado, eu acredito, por exemplo, nas energias que vêm das pedras. O complicado, que vejo, é reconhecer essa energia e aplicá-la a um fim ao qual ela seja adequada. Aqui tem muito espaço para o charlatão!].

Enfim, quando o aspecto prático exerce um domínio exclusivo, depois de perder qualquer referência ao sobrenatural, a atitude supersticiosa, totalmente secularizada, laicizada e materializada, leva a um ateísmo prático. [Osório diz: que é o que faz o médico, por exemplo?] Esse é um modo de existência que consiste, para homens imersos nas ações cotidianas, em viver sem se interrogar sobre uma eventual divindade, no postulado de um materialismo implícito. Atitude especialmente importante no mundo contemporâneo.

Chegamos assim a sete atitudes fundamentais que se desenvolvem entre os dois polos que são a primazia dada à racionalização e a primazia dada à ação, isto é, o ateísmo teórico e o ateísmo prático; as posições [25] intermediárias são o panteísmo, o deísmo, o pertencimento a uma grande religião tradicional, o fenômeno sectário, o esoterismo e o ocultismo (ver o esquema da p. 26).

[27 – em branco ou quase]

DO ATEÍSMO TEÓRICO AO ATEÍSMO PRÁTICO: UMA HIPÓTESE DE TRABALHO

Essa visão das coisas é certamente esquemática e, portanto, redutora mas parece constituir uma hipótese de trabalho fecunda, que nos servirá de base ao longo deste trabalho. Ela exige algumas observações prévias. [Osório diz: as teorias sempre são passíveis de críticas porque são redutoras do mundo, mesmo do aspecto que querem abarcar. O objeto é sempre mais complexo do que aquele discurso que se faz sobre ele. Uso, constantemente, o exemplo dos médicos. Faz algum tempo o clínico geral atendia o homem em sua integralidade. Vieram as especializações e hoje cada órgão do corpo humano tem o seu especialista. Órgãos que são duplos, como os olhos, chegará o dia em que terá o especialista em olho esquerdo e outro especialista para o olho direito! Isso é bom? Talvez sim, especialmente para quem pode pagar por isso, o que não é o caso do povo em geral, mas isso fica para depois, como sempre!]. 

Em primeiro lugar, lembramos que as separações assim estabelecidas não são de modo algum estanques. Na mentalidade, assim como na experiência vivida dos homens, os limites entre as diferentes atitudes são sempre vagos. [Osório diz:  fiquei espantado quando descobri que o Iluminismo começou na Idade Média! Depois descobri que uma geração não sucede a outra de imediato, elas se misturam antes (nova e antiga, até que a nova fique antiga para a geração que chega] Entre o puro ateu teórico e o puro panteísta, por exemplo, quantas possibilidades de fusão, acordo, ambiguidade e passagem não há! Do mesmo modo, onde se situa a fronteira exata entre o ateísmo prático e a atitude esotérica, entre o deísmo e o panteísmo? [Osório diz: a fronteira exata é uma linha imaginária!]

Em segundo lugar, convém evitar uma leitura histórica excessivamente estrita do esquema. Discernimos três etapas, mas os elos entre elas são tanto lógicos como cronológicos. Apenas o pensamento mítico pode ser considerado anterior. Quanto ao resto, se é verdade que o tempo tem seu papel – em grande parte é sob o efeito do progresso da razão teórica, das ciências exatas e, por fim, das ciências humanas que as diferentes atitudes se distinguem a partir dos mitos degradados, em conceitos e superstições –, não é apenas progresso temporal que deve ser considerado, pois (e insistimos nisso) essas diferentes atitudes são encontradas em todas as civilizações. São simultâneas, portanto. Desde a Antiguidade, como veremos, há espíritos religiosos, deístas, panteístas, sectários, esotéricos, ateus práticos e teóricos.

Um dos objetivos deste trabalho será demonstrar isso. Rejeitamos de antemão a ideia clássica de uma evolução em sentido único, que parte de um estado religioso e chega, ao término de um crescente processo de laicização, a uma racionalização integral da visão do universo, de tipo materialista. [Osório diz: se tivesse partido de um estado religioso não teria necessidade de chegar nele mesmo, embora com outro discurso] É evidente que o mundo atual é mais ateu do que era há cinco mil anos, [Osório diz: o autor fala de cinco mil anos, e os outros milhares de anos que ficaram para trás. A agricultura, dizem, tem dez mil anos! Ou seja, o dobro da idade citada por Minois] mas também é inegável que os elementos religiosos e irracionais [Osório diz: por não serem passíveis de uma explicação pela razão] são ainda bem mais importantes do que se imaginava há um século ou dois. Na verdade, mais do que se suceder, as diferentes atitudes, do ateísmo à crença, são simultâneas: cada cultura, cada civilização tem seus ateus e seus crentes, até mesmo a Europa "cristã" da Idade Média. A importância das [27] diferentes atitudes depende da organização dos valores socioculturais, econômicos e políticos de cada civilização. A atitude com relação ao sagrado sua aceitação ou rejeição integral, é apenas um dos elementos do conjunto cultural, cujo equilíbrio geral favorece ora tal tipo de crença, ora tal tipo de ateísmo. Uma das debilidades da historiografia das religiões, que no mais das vezes é obra de crentes, é privilegiar em excesso a dimensão religiosa do homem, quando esta não passa de um elemento entre muitos outros. Não é raro que a história religiosa conserve, mesmo em nossos dias, um fim apologético inconsciente, partindo de um a priori segundo o qual a religião em questão é "verdadeira" e, por conseguinte, indestrutível.

Em terceiro lugar, o esquema que acabamos de elaborar não passa de uma hipótese de trabalho, que nos parece mais fecunda que a visão linear tradicional. Como toda hipótese, tem de ser submetida à prova, pode sofrer adaptações ou até ser questionada mais profundamente, caso encontremos elementos contraditórios determinantes. [Osório diz: esse alerta é que Yuval Noah Harari, não faz em seu "Sapiens - Uma Breve História da Humanidade", e que me fez abandonar a sua leitura na primeira página. Veja o que digo em: https://www.youtube.com/watch?v=bQeKuv1YyZk&t=6s] Ora, no domínio da mentalidade mais do que em qualquer outro, a interpretação dos testemunhos pesa tanto quanto os próprios fatos, sobretudo quando estamos no terreno movediço das crenças e da descrença. A história do ateísmo não é somente a do epicurismo, do ceticismo libertino, do materialismo iluminista, do marxismo do niilismo e de algumas outras teorias intelectuais. É também a história de milhões de seres humildes, imersos em suas tarefas cotidianas, preocupados demais com a simples necessidade de sobreviver, a ponto de nem sequer poder questionar os deuses. [Osório diz: os religiosos, que tinham tempo para perder com isso, pois tinham quem os sustentasse, ficavam anos e anos nos mosteiros estudando e compondo suas teorias] O ateísmo prático, em geral negligenciado, é a fachada existencial da descrença, tão fundamental quanto sua fachada nobre, teórica. Os dois polos do ateísmo são os dois extremos da atitude para com o divino; como todos os extremos, opõem-se, completam-se e ligam-se; eles balizam as diferentes nuances do sentimento religioso, absorvendo por cima e por baixo os refratários ao divino, os inimigos dos deuses, os militantes do pensamento livre, assim como os decepcionados e os indiferentes às religiões. Essas duas franjas extremas sempre existiram, ocupando um espaço maior ou menor, conforme as circunstâncias, os valores dominantes e a atitude das próprias religiões.

Mas o ateísmo não é somente uma atitude de recusa, rejeição ou indiferença, que só poderia ser definido em relação às religiões. Ele é também uma atitude positiva, construtiva e autônoma. Como de costume, contrariamente aos pressupostos da historiografia religiosa, o ateu não é aquele que não crê.  O ateu crê também – não em Deus, mas no homem, na matéria, na razão. [Osório diz: em que crê o ateu? Essa resposta é a proposta de Protágoras para o homem: crê em ti!] Em cada civilização, o ateísmo contribui com algo. [28]

ATEÍSMO ENTRE OS POVOS PRIMITIVOS E ANTIGOS

Os vestígios do ateísmo são tão antigos quanto os da religião. No entanto, apenas estes últimos se prestam a um estudo específico, o que levou à postulação do caráter exclusivo da atitude religiosa nas sociedades antigas. Templos, baixos-relevos, pinturas, textos cultuais constituem o essencial dos materiais legados pelas civilizações antigas. Mas será que isso significaria que, para todos os camponeses, artesãos, homens de guerra, o mundo divino era evidente? [Osório diz: Se fosse evidente, não precisavam das religiões de seus sacerdotes para tentar inculcar isso!]

Já há algum tempo, historiadores anglo-saxões começaram a chamar a atenção para o fenômeno do ceticismo nas sociedades antigas. Desde 1966, C. Geertz tem lembrado que "se o estudo antropológico [Osório diz: Antropologia: "do grego, anthropos, "homem"; logos, "estudo") é a ciência que tem como objeto o estudo sobre o ser humano e a humanidade de maneira totalizante, ou seja, abrangendo todas as suas dimensões.". Fonte: Wikipedia, levemente mudada] das implicações religiosas continua insuficientemente desenvolvido, o estudo antropológico da indiferença religiosa é inexistente".30 30 [Osório diz: estudar a indiferença seria como estudar o silêncio?] E em sua grande obra clássica, Religião e o declínio da magia, Keith Thomas afirma que as sociedades antigas também conheceram o questionamento das crenças religiosas:

Ninguém ainda levou em conta a importância da apatia, da heterodoxia e do agnosticismo que existiam antes do início da industrialização. Até as sociedades mais primitivas têm seus céticos em matéria de religião. É possível que as mudanças sociais tenham aumentado a importância do ceticismo na Inglaterra dos séculos XVI e XVII. Mas é evidente que o domínio da religião organizada sobre o povo nunca foi tão completo a ponto de sufocar outros sistemas de crença.31 31 [Osório diz: e de não crença, claro].

Criticando a concepção durkheimiana, que faz do ritual religioso o fator da unidade coletiva, através da imagem de uma Idade Média idealizada, Keith Thomas mostra que tal unanimidade jamais existiu.

De modo inverso, a existência de povos inteiros refratários à religião totalmente ateus, é coisa igualmente lendária. Essa ideia, muito polêmica foi desenvolvida a partir do século XVIII por certos filósofos a propósito dos chineses. Depois de combatê-la, os apologistas cristãos do século XIX se apropriaram dela, dentro de um espírito racista e antibudista. "Os povos budistas podem ser vistos, sem nenhuma injustiça, como povos ateus" escreve, por exemplo, Barthélemy de Saint-Hilaire. Isso não quer dizer que os chineses professem o ateísmo e se vangloriem de tal descrença com essa [29] jactância da qual poderíamos citar mais de um exemplo entre nós; quer dizer somente que esses povos não conseguiram se erguer, em suas mais elevadas meditações, até a noção de Deus.32 32 [Osório diz: Que baita contradição! Ao mesmo tempo que defende, ataca! Ou defende atacando. Que segurança mentirosa ao dizer que as “mais elevadas meditações” levam “até uma noção de deus”!] Tais afirmações, hoje descartadas,3333 nos lembram de imediato quão carregado de polêmicas multisseculares é o termo "ateu".

Nem por isso é menos verdade que as velhas civilizações tiveram sua parte de ateísmo. O próprio Dictionnaire de théologie catholique [Dicionário de teologia católica] confessa que "é pela Índia que deve começar a história do ateísmo"; já o norueguês Finngeir Hiorth escreve: "Há documentos que demonstram a existência de ateus na Índia cerca de 2.000 anos antes que na Grécia", isto é, pelo menos 2.500 anos antes de Jesus Cristo.3434 Sem recuar a tempos tão longínquos, uma tradição ateia se estabeleceu firmemente desde de pelo menos o século IV antes da nossa era, nas filosofias hindus Vaisheshika-Nyaya e Sankhya.35 35 Esta última, que dá grande importância aos números, perpetuou-se; encontram-se vestígios dela num punhado de intelectuais indianos que reivindicam abertamente o ateísmo.36 36

A China oferece um primeiro exemplo da diversidade de atitudes que ilustram nosso esquema inicial. Enquanto o taoismo tardio e o misticismo de Lao-Tsé representam tendências esotéricas e sectárias, e o budismo constitui a religião tradicional central, as nuances do confucionismo, mais ou menos tingidas de ateísmo, constituem os aspectos deísta, panteísta e ateu teórico do pensamento chinês. Aliás, Mo-Tsé criticava os "sem-deus" de sua época. O próprio ateísmo prático está presente na obra de Yang-Xu, e o materialismo cético, na de Wang Chaung.3737 Sozinho, o confucionismo é um verdadeiro caleidoscópio ateu-religioso, e representa, por suas diferentes facetas, uma espécie de religião sem deus, de tipo panteísta:

Essa religião [Osório diz: isto é, o panteísmo] é extremamente naturalista, racionalista e humanista. Não deixa lugar a nenhum mito nem a nenhuma divindade sobrenatural ou milagre irracional. Como sua consequência última é a unidade do homem com o céu [30] e ela tem isso em comum com o confucionismo, o taoismo e o budismo, ela é uma verdadeira religião sincrética.38 38

Uma forma de ateísmo também está presente na Pérsia Antiga, com o zervanismo, uma especulação sobre o "tempo infinito", o Zervan, princípio supremo impessoal. Essa corrente, considerada ímpia pelo zoroastrismo, será por ele perseguida. [Osório diz: que depois será perseguido pelo islamismo?] O Egito e a Babilônia não deixaram vestígios de ateísmo teórico, o que não exclui a existência nessas civilizações de um ateísmo prático, tal como o que encontramos, numa época mais tardia, nas sociedades germânicas e escandinavas, com as confissões dos vikings.39 39 Evidentemente, a expressão explícita do ateísmo é rara fora das grandes correntes filosóficas. Sem culto, sem ritos, sem templos, sem textos litúrgicos ou dogmáticos, que vestígios o ateu comum poderia deixar de sua ausência de fé religiosa? Com frequência, sua existência é atestada apenas por seus adversários, os crentes, que o amaldiçoam. [Osório diz: e, felizmente, com isso, os preservaram!].

O mesmo acontece entre os hebreus. No entanto, que tenham existido ateus no povo da Bíblia parece algo tão escandaloso aos crentes que os exegetas tendem a deformar, relativizar, enfraquecer o sentido dos testemunhos mais claros. Diversas vezes os Salmos criticam os ímpios que negam a existência de Deus: "O ímpio é soberbo, jamais investiga: - 'Deus não existe' - é tudo o que pensa" (10,4); "Diz o insensato em seu coração: "Deus não existe!" (14,1). Jeremias, por sua vez, declara: "Eles renegaram Iahwelh e disseram: 'Ele não existe! Nenhum mal nos atingirá" (5,12). O Sirácida, o Livro de Jó, o Coélet [Osório diz:  "É uma adaptação para o grego da palavra hebraica Qohélet (ou Cohelet), passando a significar “Pregador” ou também se pode dizer “Presidente da assembleia”. No hebraico possui a terminação feminina que designa um ofício exercido no templo de Jerusalém. Este ofício exercido pelo Qohélet era de convocar as assembleias para se reunirem. Devido a este tipo de trabalho, passou a ter o significado de “Pregador”, “Anunciador”, ou mesmo sendo chamado de mestre. O Qohélet é considerado o que escreveu, o livro pertencente à literatura sapiencial do Antigo Testamento o “Eclesiastes”. O livro leva o nome da função de seu autor, e ele mesmo na abertura do livro se auto apresenta, como sendo o protagonista, conselheiro, mestre e rei (conforme Ecl 1,2.12;7,27; 12,8-10).

Exemplo de uma citação: Ecl 1,2:

“Vaidade das vaidades, diz Coélet - ; vaidade das vaidades, tudo é vaidade.” (Eclesiastes 1,2) Bíblia de Jerusalém.

Consulta:

DOUGLAS, J. D., O Novo Dicionário da Bíblia, vol. I, edições vida nova, 1986, São Paulo, págs. 449-451". Fonte: https://www.abiblia.org/ver.php?id=7317.] contêm passagens cujo tom é extremamente cético e nas quais a imortalidade da alma é igualmente questionada. O padre Meslier as retoma para elaborar sua demonstração do ateísmo no século XVIII: "Nossos adoradores de Cristo não têm por que invectivar nem se insurgir contra esse sentimento, já que é expressamente o sentimento mesmo de um de seus sábios, as palavras com que sonharam como palavras divinas".40 40 [Osório diz: e no fim tudo é um sonho!].

Interpretação errônea, afirma a maioria dos exegetas: na Bíblia, "Deus não existe" não quer dizer que não haja Deus, mas simplesmente que Deus é indiferente ou impotente para castigar os culpados. [Osório diz: isso é que dizem os Sofistas. Ou sou seja, ele é um zero à esquerda, pois serve para quê?] Por isso o Dictionnaire du judaïsme [Dicionário do judaísmo] afirma que o ateísmo é um "conceito desconhecido da língua hebraica, pois a antiga Israel pertencia a um mundo em que ninguém duvidava da existência das forças sobrenaturais". [Osório diz: como “toda unanimidade é burra”, podemos pressupor, até pela acumulação de cultura entre os judeus, que dentre eles já havia os que usavam a razão, caso contrário não teriam dominado o mundo da cultura] Do [31] mesmo modo, os textos dos rabinos sobre "aquele que nega o princípio fundamental" fazem referência aos que negam a justiça de Deus. É apenas no século II que o erudito Eliseu ben Avouyah (70-140), negando categoricamente a providência divina, a ideia de recompensa e castigo, aproxima-se de uma atitude ateia. [Osório diz: jogavam os ateus para debaixo do tapete].

No entanto, a presença atestada, em Israel, de elementos que declaram não temer Deus e até ignorá-lo, é bastante perturbadora e tenderia a revelar a existência de um certo ateísmo prático. Devemos acrescentar que os saduceus, [Osório diz: “Os saduceus (em hebraico: "zadoquitas" ou "sadoquitas"; em grego: Saddoukaios) eram uma seita ou um grupo de judeus presente na Judeia durante o período do Segundo Templo, desde o século II a.C. até a destruição do Templo em 70 d.C. A seita foi identificada por Flávio Josefo com o alto escalão social e econômico da sociedade na Judeia. O grupo cumpria variadas funções políticas, sociais e religiosas, dentre as quais se pode mencionar a função de manutenção do Templo.” Fonte:Wikipedia] que negam a ressurreição dos corpos, a imortalidade pessoal, as recompensas na vida futura, a existência dos anjos e dos demônios, parecem muito próximos das posições deístas.

Ernst Bloch, em Atheismus im Christentum [O ateísmo no cristianismo] pôs em evidência os elementos de revolta que os escritos bíblicos contém contra as injustiças sociais. Ele vê nessa atitude uma profunda similitude com a revolta que anima o comunismo, e não hesita em escrever: "Apenas um verdadeiro cristão pode ser um bom ateu, apenas um verdadeiro ateu pode ser um bom cristão".4141 Por trás desse aparente paradoxo, ele descobre na raiz da contestação bíblica e comunista, o mesmo sentimento de revolta potencialmente ateu, puramente humano, que leva o indivíduo a questionar uma ordem socioeconômica injusta, em nome de uma solidariedade puramente terrena. [Osório diz: Que bacana! Desconhecia esse autor! Não tem tradução no Brasil dessa obra]

Seja como for, a sociedade hebraica pré-cristã é marcada por uma grande diversidade de atitudes com relação ao mundo divino. As fontes, apesar de exclusivamente religiosas, mencionam uma forte corrente cética nas obras de sabedoria que formam os últimos livros da Bíblia, sob influência da filosofia grega. [Osório diz: como a Bíblia foi montada] O tom desiludido do Coélet se aproxima de um vago deísmo: um Deus distante que não intervém na vida dos homens, que deixa prosperar a injustiça; uma igualdade perfeita na morte, que parece definitiva e não é acompanhada de nenhum julgamento; um apelo para que aproveitemos nossa curta existência terrena: [Osório diz: o sofista grego Trasímaco já disse isto: “Os deuses não veem os assuntos humanos; do contrário, não esqueceriam o maior dos bens humanos, a justiça; vemos, certamente, que os homens não a praticam”. Fonte: Os grandes sofistas da Atenas de Péricles, Jacqueline de Romilly, tradução de Osório Barbosa, Octavo, São Paulo: 2017, p. 175].

Vai, come teu pão com alegria e bebe teu vinho com satisfação [...] Desfruta a vida com a mulher amada em todos os dias da vida de vaidade que Deus te concebe debaixo do sol [...] tudo o que te vem à mão para fazer, faze-o conforme tua capacidade, pois, no Xeol [reino dos mortos] para onde vais, não existe obra, nem reflexão, nem conhecimento e nem sabedoria.4242 [32]

Epicuro não dirá coisa diferente! A existência de Deus pode não ser negada, mas parece bem formal, e esse apelo para aproveitar a vida se assemelha e quase se confunde com uma forma de ateísmo prático.

Entre os judeus da diáspora, como os da Palestina sob a ocupação helenística, o epicurismo e o estoicismo – que se difundem sorrateiramente – exercem uma sedução inegável, e os exegetas tentam minimizá-la para salvaguardar o aspecto apriorístico de uma originalidade radical do povo de Israel. Por que esse povo diminuto, ocupado, deportado, dispersado, escapou das leis comuns das influências culturais? Essa atitude dos comentadores, rabinos e clérigos cristãos, que perdura até hoje, encontra-se na origem desse mito judeu, tão nocivo para todos, inclusive para os próprios judeus: o mito de um povo à parte, fora da humanidade comum, povo eleito para uns, maléfico para outros. Desses preconceitos irracionais nasceram tanto os pogroms [Osório diz: “O termo pogrom (em iídiche, פּאָגראָם, do russo погром) tem múltiplos significados, mais frequentemente atribuída à perseguição deliberada de um grupo étnico ou religioso, aprovado ou tolerado pelas autoridades locais, sendo um ataque violento massivo, com a destruição simultânea do seu ambiente (casas, negócios, centros religiosos). Historicamente, o termo tem sido usado para denominar atos em massa de violência, espontânea ou premeditada, contra judeus, protestantes, eslavos e outras minorias étnicas da Europa, porém é aplicável a outros casos, a envolver países e povos do mundo inteiro.” Fonte: Wikipedia] quanto a arrogância dos extremistas religiosos de Israel. O povo judeu não escapa das questões ordinárias da humanidade. [Osório diz:  curiosa e merecedora de atenção essa explicação] Os últimos livros do Antigo Testamento deixam ao menos que se entreveja uma tentação deísta ou panteísta que parece estar de acordo com as correntes filosóficas céticas que naquele momento agitavam o mundo helenístico, [Osório diz: quando a Bíblia foi composta] no qual o povo de Israel se encontrava profundamente imerso. Embora a literatura religiosa bíblica, resultado de uma seleção efetuada pelo clero, [Osório diz: como a Bíblia foi montada] não seja a mais adequada para esclarecer esses aspectos, o estudo do ateísmo antigo se baseia em fontes infinitamente mais explícitas com os escritos profanos greco-romanos. [33]

[34 – em branco]


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OS ATEÍSMOS GRECO-ROMANOS

O mundo grego ilustra, em toda a sua diversidade, o fenômeno do ateísmo. Fontes abundantes, bem como uma relativa liberdade de expressão, permitem estudar sua gênese, suas manifestações e suas implicações no âmbito de uma civilização impregnada de religião. Mas a complexidade e as múltiplas nuances entre correntes filosóficas e religiosas mostram quão vagos são os limites que separam a crença da descrença. Uma extrema prudência se impõe no que diz respeito à utilização dos termos, a começar pelo vocábulo atheos, que designa o adversário dos deuses tradicionais, mas pode muito bem referir-se a um fiel de outra religião, ou simplesmente a um espírito supersticioso.

[Osório diz: A (partícula negativa), Theos (deuses). Sem deus! Etimologia da palavra]

ATÉ O SECULO V: ACEITAÇÃO DE UM PANTEÍSMO MATERIALISTA

Num longo período, da época arcaica até o período pré-socrático, [Osório diz: justamente a época em que viveu Parmênides! O que reforça o que dissemos mais acima, e que tem a ver com o refinamento que a modernidade quer dar e dá à sua teoria. E é justo que dê, só não é justo que tenhamos que a ela nos curvar, pois ela não fecha a questão.] é difícil estabelecer a distinção entre ateísmo e crença religiosa em virtude do caráter particular da religião e das correntes filosóficas. Todas são [35] manifestamente hostis à ideia de transcendência. [Osório diz: pois cabe ao homem medida construir o seu destino, não esperando que alguém faça isso por ele] A realidade última é a natureza, incriada e eterna, da qual o homem faz parte. [Osório diz: e da qual, o próprio homem, em sua vaidade de “animal superior”, quer se separar dos outros elementos aos quais ele se soma para formar a dita natureza] Os próprios deuses se encontram no mundo; eternos, possuidores de forma corporal, eles intervêm continuamente nos assuntos humanos, fixam destinos, revelam suas vontades por meios dos oráculos e seus desejos podem ser alterados por meio de práticas mágicas. A religião grega tradicional movimentou-se fortemente na direção de um panteísmo fundado nos mitos,1 1 que não são mais evidentemente vividos, e sim conceitualizados, formatados e, amiúde rebaixados a lendas pelos poetas. No nível popular, essa religião é saturada de superstições incontáveis e práticas mágicas ocultas. Tanto no nível superior quanto no inferior, trata-se portanto de uma religião cindida, que se avizinha, de um lado, do ateísmo teórico por uma tendência à explicação simbólica dos mitos e, por outro, de um ateísmo prático em razão da assimilação dos mitos na vida cotidiana. O aspecto frequentemente trivial da mitologia grega levou os historiadores a se perguntar se os fiéis acreditavam de fato naquelas histórias. Como demonstrou Paul Veyne, a questão não se coloca nesses termos.2 2 A verdade é um fenômeno cultural, [Osório diz: excelente definição de verdade! A verdade é verdade enquanto a sociedade diz que ele o é! Quando uma verdade faz água, vira mentira, outra verdade é burilada para tomar o lugar da destronada. Algo assim como a montagem de um quebra-cabeça: as vezes parece que uma peça se encaixa, mas, em seguida, vemos que tem outra que se encaixa melhor naquele local, mas o quebra-cabeça ainda não está terminado, pois, nesse quesito, parece que ele não tem fim] e os mitos gregos são elementos de uma cultura que não pode ser avaliada em termo de verdadeiro ou falso. [Osório diz: estaria mais para um: funciona ou não funciona?]

As correntes filosóficas pré-socráticas, que abordam a realidade de um ponto de vista racional, misturam tanto a natureza quanto a divindade privilegiando a tal ponto o primeiro termo que seu panteísmo intrínseco se aproxima muito do ateísmo. Não é necessário muito para que a doutrina dessas correntes se transforme em materialismo naturalista. [Osório diz: Parmênides, não esqueçamos, está dentre eles].

A ideia essencial dessas correntes é que existe uma realidade substancial, sem começo nem fim, uma "matéria" (hylé), da qual todos os seres são mera modificação: a água para Tales, o ar para Anaxímenes, o fogo para Heráclito, a terra para outros. Essa matéria-prima de tudo é ao mesmo tempo divina; é animada por um sopro, uma espécie de espírito organizador, que faz dela uma matéria viva. Essa concepção hilozoísta (de hylé, "matéria” e zoé, "vida") é considerada em geral a origem do materialismo – tal ideia já era sustentada por Karl Marx em sua tese de 18413 3 [Osório diz: até nisso esse barbudo genial estava metido?! Sim!] e logo depois será retomada por Lange: "O materialismo é tão antigo quanto a filosofia, porém não mais antigo do que ela".4 4

Um breve exame das doutrinas pré-socráticas confirma a propensão muito nítida destas ao ateísmo. Assim, Teofrasto conta que o antiquíssimo filósofo Anaximandro de Mileto (ca. 610 a.C.- ca. 547 a.C.) dizia:

a causa material e o elemento primeiro de todas as coisas era o apeiron (o indeterminado, o caos original), e ele foi o primeiro a dar esse nome à causa material. Ele declara que não se trata nem da água, nem de qualquer outro dos elementos, mas de uma substância diferente destes, que é indeterminada, e da qual procedem todos os céus e os mundos que estes contêm.5 5 [Osório diz: indeterminada até quando?]

O apeiron, substância incriada, produz por si mesmo todos os seres que existem. No século VI antes de nossa era, Xenófanes de Cólofon afirma que o ser absoluto e eterno é o mundo. Sem dúvida, esse mundo é deus, mas um deus imanente, que em nada se distingue da matéria. [Osório diz: é nesse contexto que se deve entender a proposição de Parmênides] Xenófanes sente apenas desprezo pelo antropomorfismo da religião popular e condena todas as especulações sobre os deuses: "Nenhum homem sabe nem jamais saberá nada de certo a respeito dos deuses". [Osório diz: isso será atualizado por Protágoras ao dar as razões para tanto, especialmente a brevidade da vida humana].

Para Heráclito, "o mundo não foi feito nem pelos deuses, nem por algum homem; ele sempre foi, é e será; é o fogo sempre vivaz, que se inflama e se apaga regularmente". Concepção cíclica de um universo autônomo, que pela eternidade se inflama e se apaga. Por volta da mesma época, Parmênides de Eleia também identifica o ser absoluto ao mundo, eterno e incriado, "o Todo, o Único, o Imóvel, o Indestrutível, o Universal uno e contínuo". Parmênides é o pai do materialismo e dos materialistas, pois professa que o mundo físico é o ser absoluto",6 6 observa Claude Tresmontant. Que esse mundo seja chamado de divino ou não, pouco importa: ele permanece a única realidade. [Osório diz: tenho insistido em Parmênides pois, no meu modo de ver, ele será deturpado por Platão, que é o pai do novo “caos” que é interessante para ser mantido pelas religiões. Platão transformará Parmênides (seu pensar) de “materialista” em metafísico, em crença, em superstição!]

No século V antes de Cristo, o siciliano Empédocles de Agrigento reafirma a eternidade do mundo incriado, no qual nada se perde, nada se cria e tudo se transforma:

Quero dizer-te outra coisa: não existe criação nem gênese para nada do que é perecível, tampouco desaparição na funesta morte; há somente uma mistura e uma modificação daquilo que foi misturado; mas criação, gênese a respeito disso, não passa de uma apelação forjada pelos homens. [...] Loucos – pois não têm um pensamento profundo – daqueles que imaginam que o que não era [37] antes possa vir a existir, ou que alguma coisa possa perecer e ser inteiramente destruída. Pois não é possível que algo possa nascer daquilo que não existe de modo algum, exatamente como é impossível e inusitado que aquilo que é deva perecer, pois o que é para sempre será, seja lá o lugar em que for colocado.7 7

[Osório diz: até esta leitura, agosto de 2019, pensava eu que Lavoisier era o pai da ideia!]

Para Empédocles, Zeus, Hera, Nestis [Osório diz: “En el texto del periodo clásico adscrito a Empédocles, c. 490-430 a.C., describiendo una correspondencia entre cuatro deidades y los elementos clásicos, el nombre Nestis para el agua se refiere aparentemente a Perséfone: "Ahora escucha las raíces cuádruples de todo: avivadora Hera, Hades, brillante Zeus. Y Nestis, humedeciendo manantiales mortales con lágrimas".

De las cuatro deidades de los elementos de Empédocles, el nombre de Perséfone es el único que es tabú - Nestis es un título de culto eufemístico para la terrible reina de los muertos, cuyo nombre no era seguro pronunciar, que era eufenísticamente llamada simplemente como Kore o "la dama", un vestigio de su función arcaica como deidad gobernante del inframundo.” Fonte: https://mitologia.fandom.com] e Edoneu [Osório diz: Hades] não passam de personificações míticas dos quatro elementos: fogo, terra, água e ar. Já Anaxímenes crê num elemento original, o ar, e Anaxágoras situa a origem de todas as coisas no caos incriado. [Osório diz: o poeta Hesíodo usará a ideia de caos como a fonte da qual tudo se originou. Mas, segundo o filósofo, todas as coisas são tiradas do caos a partir do momento em que recebem um nome. É o discurso, portanto, que põe fim ao caos. Ou seja: os homens se comunicando].

Leucipo, que nasceu por volta do ano 500 a.C., e seu discípulo Demócrito, nascido por volta de 460 a.C., propõem uma doutrina nitidamente mais elaborada, mas ainda mais claramente materialista. Para eles, a realidade última é o átomo, partícula ínfima, material, plena, indivisível, animada desde sempre de movimento. Esses átomos, de tamanhos e formas diversos combinam-se ao sabor de seus movimentos para originar todas as formas do universo, inertes e vivas, e isso sem finalidade alguma, sem nenhum princípio de organização preestabelecido. O acaso e a necessidade dos encontros são as únicas coisas que governam o desfile de seres que se criam e se desmancham desde a eternidade. Nada escapa a esse processo, nem mesmo o homem, cujo corpo é apenas o fruto de uma organização mais complexa, cuja alma é composta de átomos esféricos sutis que têm o temperamento do fogo e cujos pensamentos e sentimentos são resultado das impressões causadas no corpo e na alma pelas emanações atômicas externas. Afora os átomos não há nada, isto é, o vazio.

Os próprios deuses são atômicos, sem papel particular. Os fenômenos que a religião lhes atribui não passam de simulacros, de impressões produzidas no espírito humano pelos fenômenos naturais. Daí provém a crença na intervenção divina. Demócrito vai, pois, muito mais longe do que os outros filósofos no sentido do materialismo mecanicista, porque ensaia uma explicação psicológica para o fenômeno da crença religiosa e, por isso mesmo, nega qualquer valor a esta última. Explicar é desmitificar. [Osório diz: [Heidegger dirá que o óbvio só é óbvio quando desvelado].

O materialismo de Demócrito encontra uma acolhida favorável entre os intelectuais gregos e é transmitido por uma corrente de pensamento que chega no século III a Epicuro. Mas, nesse ínterim, mudanças culturais e políticas mudam as atitudes religiosas e as relações entre crentes e descrentes. Até por volta do fim do século V antes de nossa era, parece reinar uma relativa liberdade de concepções religiosas na Grécia. [Osório diz: o chamado “Século de Péricles”] As relações parecem muito [38] tranquilas entre a mitologia popular com nuances de magia, o culto oficial comandado pelo clero dos templos e a filosofia fortemente panteísta – para não dizer ateia – que dilui os deuses na matéria. Ninguém era incomodado por suas opiniões religiosas ou por sua descrença, nem mesmo Demócrito. Tales, para quem "o mundo é cheio de deuses", dedica-se com tranquilidade ao estudo científico deste mundo, dando explicações naturais tanto para os terremotos quanto para os movimentos dos astros. [Osório diz: nada desses movimentos naturais serem vistos como castigos de um deus! Como regredimos ou não apendemos!] Ao contrário de uma ideia preconcebida, o estudo científico da natureza não teve de esperar que o cristianismo dessacralizasse o mundo material. [Osório diz: o cristianismo, na verdade, foi um retrocesso nisso! E talvez ainda seja!].

Até o século V, portanto, as atitudes dos gregos no domínio das crenças parece nitidamente mais orientado para a parte superior de nosso esquema (ver p. 26). Parece existir uma espécie de consenso entre os filósofos com relação ao panteísmo, do qual certos aspectos poderiam até ser qualificados de ateus, tanto os deuses haviam se tornado insignificantes.

432 A.C.: O DECRETO DE DIOPITES, INÍCIO DOS PROCESSOS POR ATEÍSMO E IMPIEDADE

Ora, bruscamente, as oposições endureceram. O ateísmo latente é percebido de súbito como um perigo, uma ameaça que deve ser eliminada. Em Atenas, as expressões do ateísmo ou do simples ceticismo não são mais toleradas.

O caso de Protágoras simboliza o novo estado de espírito. O sofista que ensina a arte do raciocínio, é conhecido por suas posições de extremo relativismo. "Ele foi o primeiro a declarar que sobre qualquer coisa era possível fazer dois discursos exatamente contrários, e usou esse método", escreveu Diógenes Laércio.8 8 Por volta do ano 415 a.С., ele compôs um tratado Sobre os deuses do qual apenas a primeira frase chegou até nós: “A propósito dos deuses, não posso saber se existem ou não, nem qual forma têm; os elementos que me impedem de sabê-lo são numerosos, como o caráter obscuro da questão e a brevidade da vida humana". Essa afirmação de ceticismo religioso, que não teria perturbado ninguém alguns anos antes, deu origem ao primeiro auto de fé de que se tem notícia na história ocidental. "Foi por causa do início desse discurso", relata Diógenes Laércio, "que [39] ele foi expulso de Atenas e seus livros foram queimados em praça pública, depois que o arauto os confiscou de todos que os tinham comprado".9 [Osório diz: na verdade, como o autor disse mais abaixo, aqui temos a imbricação, o amalgama, a mistura, entre religião e política. Protágoras era conselheiro e homem de confiança de Péricles. Quando o processo contra Protágoras teve início Péricles já estava morto e as forças reacionárias chegavam ao poder pela mão dos aristocratas, dentre os quais a família e o próprio Platão].

Protágoras, professor de ceticismo, não tinha reputação de ímpio [Osório diz: aquele que não tem fé, que despreza a religião] até então. Além disso, a obra acusada, que ele lia publicamente, não passava de uma constatação de agnosticismo: o espírito humano, limitado, não pode chegar ao conhecimento dos deuses, o que difere de uma negação da sua existência. Mas os tempos não eram mais propícios a tais distinções: "Ele dizia não saber se os deuses existem, o que é o mesmo que dizer que eles não existem", declara Diógenes de Oinoanda. [Osório diz: deturpando, obviamente. Pois ele diz não saber, mas é possível que outros saibam. E, também, “não saber” nunca foi o mesmo que “não existem”. Eu não sei como funciona a fricção nuclear, mas alguém sabe e os japoneses mais ainda que ela funciona] Epifânio é ainda mais categórico: "Protágoras dizia que os deuses, nem mesmo um único deus sequer, existiam". [Osório diz: de onde ele tirou isso ninguém sabe e nem se dá ao trabalho de saber. O bom, para as religiões é espalhar essa “fake news” milenar] É por ateísmo, portanto, que ele é condenado, e a severidade da pena é exemplar: exílio, segundo Diógenes Laércio, condenação à morte, segundo outros.

Por que tamanho endurecimento contra o ateísmo e a impiedade? O caso aconteceu em 416-415 a.C., em plena Guerra do Peloponeso, e o acusador é um rico aristocrata, Pitodoro, ao passo que Protágoras é democrata. É exatamente no elo entre religião e política que devemos buscar as causas da série de processos por impiedade que começa então e cuja história é relatada por Eudore Derenne.10 10 [Osório diz: o elo entre religião e política] Mas por trás dessa acusação há outras motivações mais prosaicas.

A origem dessa caça às bruxas é o decreto adotado em 432 a.C. [Osório diz: checar esta data, especialmente com a citação de Péricles no parágrafo quarto da página seguinte] a pedido de Diopites, que prevê a execução de perseguições contra todos os que não creem nos deuses reconhecidos pelo Estado. Diopites é adivinho e se preocupa com a importância que as especulações filosóficas haviam adquirido em Atenas. Sua manobra é antes de tudo um ato de defesa a favor de uma corporação ameaçada. Dando explicações naturais a fenômenos atribuídos até então à ação das divindades, os intelectuais desacreditam as práticas divinatórias. [Osório diz: o que se chama atualmente de “legislação em causa própria”!] A primeira vítima do decreto, Anaxágoras de Clazomena, morador de Atenas desde 462 a.C., mestre de Péricles, havia se consagrado ao estudo dos fenômenos meteorológicos, geológicos e astronômicos. [Osório diz: na verdade, era uma perseguição aos democratas e aos conselheiros de Péricles, já que, dos que se sabe, eram todos intelectuais, racionalistas, portanto] Diógenes Laércio faz uma longa enumeração dos fenômenos naturais para os quais Anaxágoras havia dado uma "explicação":

Ele disse que o Sol era uma massa incandescente maior que o Peloponeso, que na Lua havia moradas, colinas e vales, [...] que os cometas eram a reunião de astros errantes que emitiam chamas, e que as estrelas cadentes eram projetadas [40] pelo vento como faíscas; que os ventos nasciam de uma rarefação do ar pelo Sol, que o trovão vinha do choque das nuvens, e os relâmpagos da fricção entre elas, que o terremoto resultava do vento que se embrenha na terra... 1111

Essas "explicações", ainda limitadas a um círculo bastante restrito, minavam a credibilidade dos adivinhos, que atribuíam os fenômenos aos deuses. Comenta Plutarco:

Anaxágoras não era um autor antigo; suas teorias, longe de ser vulgarizadas, ainda eram mantidas em segredo, e eram difundidas apenas entre poucas pessoas, que só falavam delas com precaução e desconfiança. [...] Elas arruinavam a divindade, reduzindo-a a causas sem inteligência, a potências cegas a fenômenos necessários.12 12

Anaxágoras é acusado de impiedade por ter tentado compreender os mistérios divinos. A condenação é pronunciada, mas sua natureza exata não é conhecida: a morte ou o ostracismo, segundo Olimpiodoro, a prisão, segundo outros. Péricles teria intervindo a favor do condenado. Entre os próximos do célebre estratego, há outras personagens suspeitas de impiedade: sua mulher, Aspásia, e o escultor Fídias.

A acusação de impiedade contra os "físicos" se torna comum. A tradição religiosa grega, que ignora a transcendência e afirma a unidade da natureza e do divino, poderia evoluir para um quase ateísmo, no caso do materialismo mecanicista dos filósofos, ou, como vimos, para um conjunto mágico-supersticioso. O cientista que trabalha num espírito positivista é acusado de querer desvendar o segredo dos deuses, dissecar o sagrado, por uma espécie de "deossecção". E exatamente este, como testemunha Plutarco, o sentido do decreto de Diopites, "em virtude do qual serão perseguidos por crime contra a cidade-Estado todos aqueles que não creem nos deuses e ensinam doutrinas relativas aos fenômenos celestes". O que se reprova em Anaxágoras é o fato de ele ensinar "a expulsar de si mesmo e a esmagar qualquer temor supersticioso dos sinais celestes, e impressões que se formam no ar e produzem grande terror em todos os que ignoram suas causas e em todos que temem os deuses com um pavor desvairado, porque não têm um conhecimento seguro, que a verdadeira filosofia natural dá".13 13 [41]

Explicação mágica contra explicação científica: o confronto se transforma rapidamente num clássico. Já nessa época ele deriva para uma acusação de ateísmo contra os filósofos físicos. Mas por que o ateísmo já começa a ser considerado um delito? Por que tal batalha em torno de uma simples crença? Por que não acreditar nos deuses é mais grave do que não acreditar na forma redonda da Terra, por exemplo? Por que aqueles que são acusados de ateísmo contestam tal acusação? A conotação pejorativa que o termo "ateu" adquire, e que dura praticamente até hoje, pode parecer enigmática, sobretudo quando se pensa na atitude aparentemente mais liberal que prevalecia na época grega arcaica. Apenas a reação corporativista dos adivinhos não explica um julgamento de valor que privilegia a crença em detrimento da descrença: outros elementos devem ser levados em conta, como revela o processo de Sócrates.

DE SÓCRATES, O AGNÓSTICO, A DIÁGORAS E TEODORO, O ATEU

Foi também uma acusação de impiedade e ateísmo que condenou à morte esse ilustre personagem, considerado um dos pais do pensamento europeu. O texto da acusação, apresentado em 399 a.C. por Lícon, Anito e Meleto, é conhecido:

Eis a queixa que redigiu e confirmou por juramento contraditório Meleto filho de Meletos de Pitos, contra Sócrates, filho de Sofronisco de Alopeke: Sócrates é culpado de não acreditar nos deuses reconhecidos pelo Estado e introduzir novas divindades; além disso, é culpado de corromper os jovens. Pena: a morte.14 14

As "novas divindades" seriam uma alusão às palavras de Sócrates sobre seu "demônio".

As ideias de Sócrates a respeito dos deuses continuam tão controvertidas quanto em sua época.15 15 Para Aristófanes, ele é um ateu completo, e coloca-o em cena em As nuvens, fazendo-o dizer: "Os deuses? Por eles é que jurarás? Em primeiro lugar, os deuses são uma moeda que não tem mais valor entre nós"; "Quem? Zeus? Isso não passa de asneira; Zeus nem [42] sequer existe"; "Então queres reconhecer apenas os nossos deuses? Saiba então que eles são o Vazio que aqui está, e as Nuvens, e a Língua, apenas esses três".1616 Na mesma peça, Sócrates dá uma verdadeira aula de ateísmo a Estrepsíades para lhe provar que os deuses não existem. [Osório diz: engraçado o que a dupla religião-política faz com os textos. O valor ou desprezo que lhes dão, conforme a conveniência. O caso de Aristófanes é muito claro quanto a isso. Os políticos/religiosos negam que o que diz o comediante seja “verdade” quanto a Sócrates. Entretanto, esses mesmos deturpadores dizem que tudo que Platão diz  sobre o mesmo Sócrates é a mais “cristalina verdade”! Um fato que não costuma ser observado, pelos vassalos das religiões, é que a peça foi encenada cerca de vinte e cinco (25, 423-399) anos antes da morte de Sócrates! Um quarto de século de acusação atual! Um quarto de século não foi suficiente para que “o homem mais sábio que existia” fosse capaz de desfazer esse “bem” entendido!].

A imagem que Xenofonte oferece é totalmente diferente: um Sócrates religioso, que demonstra a existência dos deuses pela finalidade do universo (deuses que tudo veem e enviam sinais aos homens), um Sócrates pio e inclinado à oração. Platão, mais cauteloso, vê em Sócrates um místico e, sobretudo, um cético, segundo seus diálogos. O lado agnóstico é nitidamente privilegiado. Na Apologia, ele diz ignorar o que é o inferno e o que há após a morte. No Crátilo, afirma nada saber dos deuses e recomenda que sejam seguidos os costumes e a religião oficial. No Eutifron, rejeita os mitos e no Fedro, declara que, não tendo tempo nem capacidade suficientes para conhecer sequer a si mesmo, seria ridículo que se pronunciasse sobre os mitos e os deuses: [Osório diz: o que ele diz no Crátilo e no Fedro é uma repetição de Protágoras, em outras palavras para o plágio não ficar evidente].

Se, tendo dúvidas a seu respeito, reduzimos cada um desses seres ao que há neles de verossímil, recorrendo a sabe-se lá que grosseiro bom senso, necessitaremos de muito tempo livre! Ora, quanto a mim, não tenho tempo para ocupações dessa espécie, e eis, meu caro, a razão: ainda não sou capaz, como pede a inscrição délfica, de conhecer a mim mesmo! Assim, enquanto me faltar tal conhecimento, vejo quão ridículo é tentar sondar coisas que me são estranhas. Por conseguinte, renuncio a tais histórias e, a respeito delas fio-me na tradição; não são elas, como eu dizia há pouco, que busco sondar, mas a mim mesmo.17 17

Encontramos mais uma vez essa bela confissão de agnosticismo nos libertinos franceses do século XVII: sendo nosso espírito incapaz de compreender tais questões metafísicas, basta que nos conformemos às práticas em vigor, sem aderir interiormente a elas: "Honra aos deuses, segundo os costumes do teu país". Posição relativista e indiferentista, que choca a opinião pública, ainda mais que surgia então a necessidade de se identificar com um culto cívico. Os elos entre o Estado e a religião são reforçados na época da Guerra do Peloponeso, que foi um choque cultural de primeira grandeza. O Estado, em conflito permanente durante cerca de trinta anos e depois vencido, humilhado e ameaçado, apega-se a tudo o que possa [43] encarnar sua identidade e sua unidade. Os deuses e o culto local não são mais simplesmente crenças, mas símbolos de comunhão cívica. A religião dos filósofos, excessivamente espiritual, intelectual, individualista e universal, com seu princípio divino único, é inapta a desempenhar o papel de cimento social e patriótico. Pôr em dúvida os deuses da cidade é ser ímpio e traidor, é pôr em perigo o civismo dos jovens. A religião é parte integrante do patrimônio da cidade-Estado, no âmbito de um contrato implícito entre os deuses e o Estado, cujos magistrados são ao mesmo tempo sacerdotes. É nesse elo entre religião e política que reside, em parte, a causa da repressão ao ateísmo. Mas isso não é tudo. [Osório diz: o elo entre religião e política!].

Sócrates foi discípulo de Arquelau, e acusam-no de utilizar as ciências naturais para sondar os segredos da natureza. Seus defensores, de maneira reveladora, negam que ele "especule sobre os fenômenos celestes", que "busque o que se passa sob a terra";18 18 é falso, afirmam eles, dizer que Sócrates "discutia, como os outros, sobre a natureza do universo; ele não investigava como nasceu o que os filósofos chamam de mundo, nem por que leis necessárias se produz cada um dos fenômenos celestes".19 19 [Osório diz: defensores e acusadores que buscam argumentos apoiadores ou contraditores apenas para satisfazer suas posições não me servem. O ideal é uma análise, na medida do “impossível”, isenta, mostrando as razões pelas quais se apoia ou não, mas com fundamentos que sejam capazes de sustentar a posição assumida pelo texto que se interpreta. Só gostar, admirar, desgostar ou detestar não basta].

Os processos por impiedade revelam também outras causas de ateísmo e outros motivos de acusação. O exemplo de Diágoras, condenado no mesmo ano que Protágoras, em 415 a.C., [Osório diz: já que Sócrates foi morto em 399, 15 (quinze) anos depois das condenações de Diágoras e Protágoras, poderia ele, pois teve tempo para isso, ter mostrado a todos o que apenas Xenofonte viu, por exemplo] é interessante por mais de uma razão. Antes de tudo, porque é o primeiro personagem conhecido a seguir uma trajetória intelectual que vai da fé à descrença. Nascido em Melos por volta do ano 475 a.C., esse poeta lírico escreveu obras profundamente religiosas e depois se tornou ateu. Os autores antigos não estão de acordo sobre as razões por que ele teria perdido a fé, mas as explicações que dão têm um caráter espantosamente moderno. Explicação de ordem intelectual, por um lado: segundo Suidas [Osório diz: dicionarista grego do século X], Diágoras teria sido discípulo de Demócrito, convencido por sua teoria da origem das crenças religiosas como consequência do pavor humano diante dos fenômenos naturais. Explicação moral por outro lado: segundo uma obra anônima atribuída a Diágoras, ele teria perdido a fé depois de constatar que um discípulo que lhe havia roubado um peã, e que em seguida havia negado o fato com um falso juramento, viveu uma vida feliz; a seu ver, isso era prova de que não existia justiça divina, nem providência, nem deuses. Razão científica e problema do mal: tais serão, durante séculos, os dois obstáculos contra os quais se estilhaçarão as crenças religiosas de muitos fiéis. Que isso corresponda historicamente [44] ou não ao caso de Diágoras, pouco importa; que tais histórias tenham sido contadas desde o século V mostra que a questão já se colocava.

Uma anedota contada por Cícero confirma o debate sobre o problema do mal entre aqueles que se baseiam no bem para provar a existência de Deus e aqueles para os quais a existência do mal é um sinal evidente da ausência de providência. Em Samotrácia, enquanto Diágoras observava os ex-votos oferecidos pelos marinheiros que haviam escapado de naufrágios um amigo lhe perguntou:

- Tu, que pensas que os deuses não se ocupam dos assuntos humanos não vês, graças a todas essas pinturas, como são numerosos aqueles que aças a seus pedidos, conseguiram escapar da ira da tempestade, chegando depois ao porto sãos e salvos?

- Não respondeu ele –, pois em nenhum lugar foram pintados todos aqueles que naufragaram ou pereceram no mar.

Diágoras ficou com fama de ateu pleno desde a época grega. É violentamente criticado por certos conservadores, como Aristófanes, e outros autores declaram que ele os horroriza tanto que preferem calar-se a seu respeito. No século IX, Aristóxenes de Tarento escreve que atribuem a Diágoras um livro em prosa que ridiculariza os deuses; e Filodemo, em seu Tratado sobre a piedade, toma-o como a principal referência em matéria de ateísmo. Contam que ele teria divulgado os segredos de Elêusis e tentado dissuadir aqueles que desejavam ser iniciados. Também teria ridicularizado publicamente Dioniso. Essas provocações teriam lhe valido uma condenação à morte, e sua cabeça teria sido posta a prêmio; depois de fugir, teria terminado seus dias em Acaia. [Osório diz: pequena biografia de Diágoras. Ele é sempre citado de modo muito breve].

Foram conservados vestígios de inúmeros outros processos por impiedade e ateísmo.2020 Diógenes de Apolônio, contemporâneo de Anaxágoras e discípulo de Anaxímenes, físico renomado, escapa por pouco. Ele dava uma explicação puramente física do universo, em que "nada nasce do nada e nada a ele retorna". Para ele, religiões e mitos são pura alegoria [Osório diz: linguagem figurada], e sua reputação de ateu lhe vale inimizades ferrenhas. O filósofo Estilpo, nascido em Mégare, discípulo de Diógenes e amigo de Teodoro, o Ateu, também conseguiu evitar as perseguições abordando a questão relativa aos deuses apenas em ambientes privados, como conta Diógenes Laércio: "Crates Ihe perguntara se os deuses se regozijavam com as genuflexões e as orações ao que ele respondeu: 'Não me pergunta isso em plena via pública, animal! [44] Espera que estejamos sós!". Essa foi também a resposta de Bion a alguém que lhe perguntava se os deuses existiam: "Afasta-te primeiro da multidão velho infeliz!".2121 Estilpo zomba do antropomorfismo dos deuses tradicionais com grande desenvoltura.2222

Seu amigo Teodoro, nascido em Cirena, torna-se no século IV o típico descrente, a ponto de receber o apelido de o Ateu. Esse aristocrata, expulso de sua cidade natal por motivos políticos, instala-se em Atenas, sua liberdade de espírito e costumes causa escândalo. Julgando que o sábio está acima da moral comum e não tem necessidade nem de amigos, nem de pátria, nem de deuses, estima que pode se permitir tudo. "Ele arruinava com opiniões variadas as opiniões que os gregos tinham dos deuses", e parece que, não se contentando em negar os deuses tradicionais, bem mereceu o apelido. É o que pensa Cícero, e é o que se pode deduzir do seguinte trecho de Plutarco:

Talvez se possam encontrar nações bárbaras ou selvagens que não conhecem a noção de divindade; mas jamais existiu homem que, conhecendo tal noção conceba-a como perecível, e não eterna. Assim, aqueles que foram denominados ateus, os Teodoros... não ousaram dizer que a divindade era algo perecível mas não acreditavam que existisse algo imperecível. Atacavam a existência do imperecível, mas conservavam a noção comum de divindade.23 23

A fama de Teodoro, o Ateu, alcançará em seguida os cristãos, que, paradoxalmente, louvam sua descrença. Clemente de Alexandria estima que o pagão crente é duplamente ateu: porque não conhece o verdadeiro Deus e porque adora falsos deuses. Antes a atitude de Teodoro, que pelo menos rejeita os falsos deuses. Essa não é, evidentemente, a opinião dos atenienses. Sob Demétrio de Falero (317 а.С.-307 a.C.), Teodoro, o Ateu foi julgado pelo Areópago e, provavelmente, banido.

Na época da conquista macedônica, Dêmades foi multado por ter defendido a divinização de Alexandre, prova de impiedade, porque subentende que os deuses são criações humanas – posição que é retomada na mesma época por Evêmero. Quanto a Teofrasto, o processo movido contra ele a pedido do democrata Hagnónides tem motivação puramente política: ele é acusado de ter sido favorável aos macedônios. Que a razão política tenha [46] com frequência levado a melhor sobre a motivação religiosa no desenrolar desses processos é confirmado pelo fato de os ateus notórios jamais terem sido importunados: como Hipon de Régio, filósofo do fim do século V que ensinava que nada existe fora da matéria, e Aristodemo, o Pequeno, admirador de Sócrates, que zombava dos crentes. [Osório diz: a religião usa a política, que também, criou, para combater seus adversários].

PLATÃO, PAI DA INTOLERÂNCIA E DA REPRESSÃO AO ATEÍSMO

[Osório diz: Platão é o casamento mais que perfeito entre religião e política].

Já na primeira metade do século IV antes de nossa era, o número de ateus na Grécia é considerável, em todas as categorias sociais, o que é motivo de preocupação. O testemunho de Platão quanto a isso é essencial. No Livro X das Leis, o filósofo faz pela primeira vez na história um apanhado do problema. [Osório diz: para quem quer conhecer melhor a obra de Platão, é sempre bom observar que ele é um homem do século IV e não do século V antes da era atual. Isso é interessante, pois torna impossível ele ter sido o “gravador” que ouviu e transcreveu as discussões de Protágoras, por exemplo!] Atestando a presença maciça de ateus, busca as causas de tanta descrença, a seus olhos perigosa, e preconiza medidas severas contra os ateus. Em muitos sentidos, pode-se considerar que Platão está na origem da opinião pejorativa que pesará sobre o ateísmo durante dois mil anos; estabelecendo um elo entre descrença e imoralidade, ele dá um passo decisivo para atingir os ateus, maculando-os de modo indelével. [Osório diz: ele faz o mesmo que Aristófanes fez quando escreveu sobre “o discurso forte e o discurso frágil”, chamando o discurso forte de “injusto”, como se fossem sinônimos. Mais uma inspiração para Platão] A partir de então, o ateísmo, amplamente associado a adjetivos como "vulgar", "grosseiro", vai opor-se à atitude nobre dos idealistas, que se reportam ao mundo puro das ideias, do espírito. O ateísmo começava a ser malvisto porque contrariava as atividades dos adivinhos e do clero, e porque era considerado uma atitude anticívica. Nos processos, os motivos políticos subjacentes eram, como já dissemos, essenciais. O delito de descrença estava ligado, portanto, a uma conjuntura passageira. Platão vai enraizá-lo numa concepção metafísica e ética fundamental que o transformará em verdadeiro crime. [Osório diz: são as belas “descontribuições” de Platão para a humanidade! Misógino, aristocrata, antidemocrata, escravagista, ciumento, traidor e outras coisitas mais!].

O filósofo começa por uma constatação: o ateísmo está por toda a parte difundido; tais doutrinas foram, "por assim dizer, semeadas entre todos os homens". [Osório diz: foram semeadas por aqueles que pregavam o seu contrário, a religião, pois tal pregação traz em si sua negação] Os descrentes se distinguem em três categorias: os que não creem absolutamente na existência dos deuses [Osório diz: deuses não existem!]; os que julgam que os deuses são totalmente indiferentes aos assuntos humanos; [Osório diz: deuses existem, mas não servem para nada, logo, é como se não existissem!] e os que acreditam que eles podem ser seduzidos e mudar de ideia por meio de orações e sacrifícios. [Osório diz: deuses, caso existam, podem ser corrompidos!] [Osório diz: isso tudo se assemelha muito às três teses de Górgias] Platão atribui a esses ateus o seguinte discurso:

Estrangeiro ateniense, cidadãos de Lacedemônia e Cnossos, dizeis a verdade! Entre nós, há de fato alguns que não admitem que os deuses existem, e outros que os caracterizam exatamente como acabais de dizer. Assim reivindicamos exatamente o que exigistes quanto a vossas leis: que não sejamos [47] duramente ameaçados antes que tenhais tentado nos convencer da existência dos deuses e nos tenhais ensinado, alegando provas suficientes, que a natureza deles é por demais excelente para que possam se deixar, contrariamente ao que é justo, desviar e seduzir.24 24

Ou seja, em vez de nos perseguir, deem-nos provas da existência dos deuses. Tarefa urgente, avalia Platão, pois o ateísmo é fonte de imoralidade e incivismo: [Osório diz: religião e política] "Jamais se viu alguém que atribui aos deuses uma existência em conformidade com o que decretam as leis cometer voluntariamente atos ímpios, nem dar livre curso a uma linguagem que esteja em oposição à lei". Por que os ateus não creem nos deuses? "Vou dizer-te mais claramente ainda", responde o ateniense, que exprime nas Leis a posição de Platão:

Fogo, água, terra, ar, tudo isso, dizem eles, existe em virtude da Natureza e do Acaso, e nada disso em virtude da Arte. Quanto a este corpo que, desta vez, e posteriormente às precedentes, se relaciona à Terra, ao Sol, à Lua ou aos astros, sua existência se deve a esses outros corpos, os quais são absolutamente desprovidos de alma. Mas, arrastados ao acaso, cada qual isoladamente, pela ação que constitui a propriedade de cada um separadamente; ajustando-se, conforme o encontro entre eles, de maneira apropriada, o que é quente com o que é frio, o que é seco contra o que é úmido, o que é mole contra o que é duro, em suma tudo o que pôde, em consequência de uma necessidade qualquer, combinar-se à aventura numa combinação de contrários, é dessa maneira, e segundo tais procedimentos, que isso engendrou assim o céu inteiro, com tudo o que há no céu, bem como, por sua vez, todo o conjunto dos animais e das plantas, posto que dessas causas resultaram todas as estações do ano; contudo não, afirmam eles, graças a uma inteligência, tampouco a uma divindade, muito menos a uma arte, mas, como dizemos, pelo duplo efeito da Natureza e do Acaso.25 25

Reconhecemos nesse discurso as teorias dos físicos e, em especial, o atomismo de Demócrito. O ateísmo tem portanto causas intelectuais: as teorias científicas de tipo materialista. Mas tem também causas morais: os ateus rejeitam os deuses em virtude de "sua incapacidade de dominar o gozo e as paixões". Querendo dar livre curso a seus apetites grosseiros, [Osório diz: é humano e é grosseiro? Acho que contra isso se baterá Nietzsche?] ensinam que tudo é permitido quando se obedece à natureza, e que esta vai no sentido da dominação dos mais fortes. [Osório diz: o sofistas Antifonte e o pseudio-sofista Cálicles de a República! De forma diferenciada entre eles, dizem isso] Platão já agita o espectro da seleção natural [48] e antecipa a célebre fórmula: "Se Deus não existe, tudo é permitido". A lei moral só pode ser forte se tiver raízes na lei divina transcendente, intocável, absoluta. [Osório diz: onde ela está? Como ter acesso a ela?] O ateísmo é o fermento da dissolução da sociedade, e os intelectuais ateus são os corruptores da juventude.26 26 [Osório diz: “intelectuais ateus são os corruptores da juventude”! Desde que li o livro “Sócrates, um filósofo bastardo”, de Fernando Cabral Pinto, comecei a desconfiar que Platão está mais para inimigo que apaixonado por Sócrates. Esta é uma das acusações de Meleto e os outros contra Sócrates].

Opor-se a essa doutrina que se baseia numa falsa ciência e numa imoralidade intrínseca é um dever, diz Platão. Primeiro, é necessário dedicar-se à tarefa pela persuasão, depois pela repressão. [Osório diz: Platão, diversamente dos Sofistas, que pregam o convencimento pela persuasão, criminosamente, vai além, pois propõe a violência! É uma contradição sem tamanho, pois a violência é talvez o maior desagregador social, mas é por seu intermédio que ele quer unir a sociedade] O filósofo a empreende com a repugnância mais extrema, tamanha sua indignação por ter de provar a e evidência: [Osório diz: Platão foge do ônus da prova, tentando ficar no “argumento de autoridade”, que, na época, ele nem tinha, pois seus fanáticos vieram depois].

Como falaríamos, sem ira, para provar a existência dos deuses? Forçosamente é com grande dificuldade que suportamos e odiamos toda essa gente que nos obrigou, que nos obriga ainda a falar disso, por falta de acrescentarem fé aos discursos que, desde sua mais tenra idade, quando ainda estavam pendurados às tetas, ouviram da boca de suas amas e de suas mães.27 27 [Osório diz: enrola, enrola e nada prova! As palavras das amas e as mães são a prova? E se elas fossem ateias?].

Temos a impressão de ouvir os sermões dos pregadores do século XIX! Os ateus não têm "uma única razão válida", o menor "traço de inteligência". Ter de lhes provar a existência dos deuses é algo indigno. "Mas é preciso fazê-lo! Não, de fato não devemos deixar que alguns de nossos semelhantes caiam na demência por voracidade de gozo, enquanto outros talvez fizessem o mesmo por ira contra esse tipo de gente."28 28 [Osório diz: E as provas? Eu quero as provas! Onde estão as provas?]

Eis Platão em luta contra essa terrível serpente contra a qual vão combater também os melhores espíritos da cultura ocidental até os nossos dias e, sem dúvida, ainda por algum tempo: provar a existência de Deus. Na falta de conclusões indiscutíveis depois de dois mil anos de esforços, essa interminável busca mostra ao menos que a existência de Deus não é uma evidência. [Osório diz: dois mil anos de blá, blá, blá. Mas não vamos usar a violência contra eles charlatões, deixemos que eles continuem em suas buscas por provas, só pedimos que pelo amor de não-deus, nos deixem em paz!, diria um afiado ateu].

Os melhores intelectuais crentes da história das religiões se dedicaram em vão a provar racionalmente a existência de Deus. [Osório diz: em vão!] Desde Pitágoras, ninguém nega seu teorema. Desde Platão, o ateísmo persiste. [Osório diz: bela comparação: matemática(geometria) versus teologia. Não esqueçamos, contudo, que ambas são criações humanas! Embora a matemática seja menos questionável que a teologia] Bernard Sève, que fez recentemente um balanço da questão filosófica da existência de Deus, pergunta-se: [48]

A questão da existência de Deus atinge o cerne da razão humana, ou será que, ao contrário, trai exatamente o que pode restar de irracionalidade na própria razão? Pretender estabelecer racionalmente a existência de Deus, refletir racionalmente sobre as implicações de tal existência, seria avançar até as possibilidades mais extremas da razão ou, ao contrário, regredir a formas de irracionalidade que a razão jamais consegue vencer de todo?29 29 [Osório diz: quem responde primeiro?].

A pergunta se aplica em primeiro lugar a Platão, segundo o qual basta usar contra os físicos o argumento da finalidade e da universalidade da crença, como acredita ingenuamente Clínias:

E fácil alegar primeiro a Terra, o Sol, assim como todo o conjunto dos astros; depois o arranjo tão maravilhosamente ordenado das estações, dividido pelo ano e pelo mês; enfim, o fato de todos os povos, tanto os gregos quanto os bárbaros, crerem na existência dos deuses.30 30

As maravilhas da natureza e o caráter universal da fé: esses argumentos serão inúmeras vezes repetidos. Platão já assinala sua insuficiência diante de cientistas que retorquirão que os astros "são somente terra e pedras, e são incapazes de se preocupar com os assuntos humanos”. [Osório diz: Platão pergunta e ele mesmo responde!]

A demonstração de Platão baseia-se numa concepção radicalmente dualista da realidade. Rompendo com as filosofias de tipo monista até então predominantes, ele postula a existência, fora do mundo material, de um mundo imutável das ideias, dos arquétipos, do divino, das almas. Partindo da noção de alma individual, anterior ao corpo, ele chega à alma do mundo que é o mundo divino; os deuses, bons e perfeitos, intervêm nos assuntos humanos e não podem ser influenciados. Pouco importa aqui o valor da demonstração. O essencial é a constatação de ruptura do ser, entre um mundo espiritual e divino e um mundo material e humano. [Osório diz: resumo muito bom do que é o platonismo, bem como da besteira que o é! Essa bobagem pode levar a criação de camadas de mundo! Toda vez que uma alma errar, é porque ela está em desconformidade com o mundo do qual ela é uma imagem e assim “ao infinito e além”!].

Essa concepção platônica agrava consideravelmente o caso dos ateus que desde então são acusados de negar a metade mais nobre da realidade para apegar-se ao mundo ilusório, efêmero, flutuante, das sombras da caverna. [Osório diz: quando ocorre o contrário! A realidade é a da natureza!] Espíritos "grosseiros" e "vulgares", que não se elevam na contemplação das ideias. [Osório diz: espíritos vis e baixos, que se elevam a ver o que não existe!] Até então, ser ateu podia, a rigor, passar por um erro ou uma prova de incivismo; agora não somente é uma marca de cegueira, mas também de má-fé e baixeza moral, um perigo para a vida social e política, [50] pois não permite o reconhecimento dos valores absolutos nas condutas pública e privada. [Osório diz: sempre tão pautadas por tudo que não presta! Roubo, traição etc.] As fontes da moral encontravam-se até então no mundo humano, que não era fundamentalmente diferente do divino. [Osório diz: o homem medida] Separando os dois e colocando os valores imutáveis do lado dos deuses, Platão transforma os ateus em seres imorais, sem normas absolutas de conduta, incapazes de obedecer a outra coisa senão a suas próprias paixões. Começa então a repressão ao ateísmo em nome da moral e da verdade. O dualismo do ser traz o maniqueísmo da ação: o bem e o verdadeiro contra o mal e o erro. [Osório diz: mas, convenhamos, embora Minois não diga, o tal Platão, nas mesmas Leis, confessa, desiludido: “A divindade poderia ser muito boa para nós, mais que tudo, medida de todas as coisas”. (716 c )].

Nessa ótica, Platão propõe que se ponha em prática uma legislação repressiva muito dura contra o ateísmo e a impiedade. [Osório diz: já que não se prova e conquista pela razão, pelo discurso, vamos pela violência!] Todos os ímpios deverão ser denunciados, e aquele que se calar será igualmente considerado ímpio. As sanções serão proporcionais à gravidade da impiedade; o caso mais grave é a "doença do ateísmo", na qual se distinguem dois graus: o ateu cuja conduta é correta, perigoso apenas por suas ideias, e o ateu depravado, que além do mais, é um mau exemplo:

[Osório diz: eis as razões pelas quais acho que Platão matou Sócrates e vem contribuindo, há muito tempo, para a morte de muitos outros].

Tal tipo pode encontrar-se de fato num estado de total incredulidade com relação à existência dos deuses e juntar a sua incredulidade um caráter naturalmente justo; ele toma ódio dos maus; a impaciência que sente com relação à injustiça faz que não se comprometa a agir de maneira semelhante, que fuja daqueles seus semelhantes que não são justos. Em tal outro, ao contrário, caso venha se juntar à convicção de que tudo é vazio de deuses a incontinência em relação aos prazeres e às penas; caso tenha a sua disposição uma memória vigorosa e uma viva aptidão para instruir-se, então sem dúvida a doença do ateísmo é comum às duas espécies, mas, enquanto em detrimento do resto dos homens a doença de um produzirá efeitos menores, a do outro produzirá outros bem mais consideráveis.31 31[Osório diz: o que tem a ver justiça com crença em deuses? De onde ele tira a noção do que é o justo, se em seus diálogos ninguém consegue explicar, definir? Ou justo é aquilo que aquele que pode usar a violência diz que é o justo?].

Para a primeira categoria, a dos ateus simples, Platão prevê inicialmente a prisão com isolamento total por pelo menos cinco anos na "Casa de Penitência". Durante esse período, fará cursos de reeducação: "Nenhum cidadão poderá se relacionar com eles, com exceção dos membros do Conselho Noturno, cujas relações terão como objetivo admoestá-los e, ao mesmo tempo, prover à salvação de suas almas". Ao fim desse período de lavagem cerebral, caso o detento pareça ter recuperado os bons sentimentos, será autorizado "a viver na sociedade das pessoas de bom senso", isto é, os [51] crentes. "Caso contrário, e caso seja condenado mais uma vez por acusação semelhante, a pena deverá ser a morte."32 32

Quanto à segunda categoria, a dos ateus depravados, eles serão trancafiados por toda a vida numa penitenciária situada num "lugar deserto, e o mais selvagem possível, cujo nome evoque a ideia de que se trata de um lugar castigo". Ali, no mais completo isolamento, "recebendo dos carcereiros apenas o alimento prescrito pelos Guardiões das Leis", o ateu viverá como um verdadeiro desgraçado. "Depois, quando morrer, seu cadáver deverá jogado, sem sepultura, fora das fronteiras. No caso de algum homem livre se interpor, querendo dar-lhe sepultura, que ele seja, da parte da autoridade competente, passível de perseguição por crime de impiedade."33 33 [Osório diz: o canalha do Platão plagia Sófocles na Antígona!]

O "divino" Platão, que inventa ao mesmo tempo a intolerância religiosa a inquisição e os campos de concentração, não limita a repressão aos ateus stricto sensu. [Osório diz: Platão, o pai da intolerância religiosa e dos campos de concentração. Que safado!] Os mágicos e os feiticeiros, os praticantes de sortilégios, que tentam manipular as forças ocultas e divinas, terão a mesma sorte. [Osório diz: E Diopites (p. 40) entra na roda de fogo de Platão! O feitiço consume o feiticeiro!] Haverá uma religião oficial de Estado, obrigatória: todo e qualquer culto privado, toda e qualquer prática supersticiosa, bem como a indiferença, serão punidos severamente, até a morte:

Enfim, é preciso estabelecer uma lei que se aplique a todos esses ímpios em geral, lei cujo efeito seja reduzir o número de faltas cometidas contra a divindade pela maioria deles, tanto por atos como por palavras, e, evidentemente, deter o avanço dessa aberração, não dando direito a ligar-se a nenhum culto, salvo àquele que esteja em conformidade com a lei. [Osório diz: creio que o cristianismo aumentou a lista do pecar até por pensamentos! Aqui lasca tudo, pois “o homem não pensa, é o pensamento quem pensa o homem”, demonstrará Nietzsche!]

[Osório diz: o forte faz a lei (e esta é outra apropriação e inversão por parte de Platão), ele começa dizendo que os “ateus” é que pregam que o forte é quem manda, quando se sabe que, o forte realmente é quem faz a lei, lei essa que ele diz que deve ser obedecida!].

[Osório diz: Platão não é um poço de contradição, ele é um poço de safadeza para sua classe e suas posições políticas, obviamente].

AS DESMITIFICAÇÕES: EVEMERO E O PANTEÍSMO ESTOICO

O tom está dado. Os projetos platônicos estão à altura dos temores do filósofo e à extensão do ateísmo na época. E a crise da religião vai se acentuar ainda mais na segunda metade do século IV. As agitações políticas, o fim da independência das cidades-Estado, com a constituição dos impérios helenístico e, depois, romano, arruínam a religião cívica em proveito da religião individual, do ceticismo, do ateísmo e do ocultismo. Sob o impacto das mudanças políticas, econômicas e sociais, os valores tradicionais [52] desaparecem. A religião clássica é a principal vítima dessas transformações, em benefício da descrença racional e da descrença irracional. [Osório diz: a pregação de Platão, para sua época, não serviu para nada, assim como suas idas para Siracusa para ajudar os tiranos de lá. Aliás, serviu sim: ele foi vendido como escravo!]

A evolução da cultura helenística nos séculos IV e III corresponde bem ao esquema que adotamos como hipótese de trabalho: o enfraquecimento do centro de gravidade religioso se traduz por um esfacelamento das atitudes tanto no sentido racional, com o progresso de um estoicismo panteísta e de um ateísmo teórico, quanto no sentido irracional, com a proliferação das seitas, dos cultos de mistérios, das práticas mágicas, da bruxaria, mas também do ateísmo prático. Pôde-se até mesmo estabelecer um paralelo com nossa época no estimulante livro de Maria Daraki Une Religiosité sans Dieu [Uma religiosidade sem Deus].

O recuo da religião clássica é inevitável. No século III, Calímaco, num epigrama funerário, rejeita as crenças tradicionais sobre o além. As inscrições com promessa de imortalidade desaparecem das lápides.34 34 Os deuses antropomorfos do Olimpo desaparecem do culto doméstico. Por toda a parte a dúvida e a indiferença avançam. Até mesmo as pessoas mais humildes se desinteressam do culto. Os deuses invisíveis são substituídos pelos soberanos divinizados, sinal revelador do ceticismo reinante. No ano 290 a.C., quando Demétrio e Lanassa, sua esposa, entram em Atenas como deuses epífanos [Osório diz: relativo a epifania, “festa litúrgica dos cristãos que comemora a apresentação de Jesus Cristo à humanidade.” Fonte: http://michaelis.uol.com.br] (Demétrio-Deméter), um concurso de peãs é organizado em sua honra, e Hermocles, que venceu o concurso, proclama:

Quanto a ele [Demétrio], ele aparece com um rosto cheio de benevolência como convém a um deus, e é belo e muito alegre. [...] Os outros deuses estão longe, ou não têm ouvidos, ou não existem, ou não nos dão a menor atenção mas tu, vemo-te diante de nós, e não talhado em pedra ou madeira, mas real e verdadeiro.35 35 [Osório diz: o tal Hermoceles é de um servilismo atroz, mas ganhou. Seu texto, no entanto, mostra as razões pelas quais se repulsa os deuses].

Toda evolução cultural tende a minar as bases da religião. [Osório diz: toda racionalidade...] Desde o século V, os poetas tomam liberdades com os mitos. Eurípedes deixa transparecer seu ceticismo por torneios como: "os deuses, sejam quais forem os deuses", ou: "Zeus, seja quem for Zeus". Aristófanes, tratando os deuses com insolência, contribui para que sejam desconsiderados.36 36 Os historiadores dão mostras de relativismo, como deve ser: embora seja difícil conhecer a opinião pessoal de Tucídides sobre a religião, todo o seu discurso exprime [53] um bom senso racional; Hecateu é o primeiro a dar uma interpretação racionalista dos mitos; Cinésias é um ateu confesso.

Os sofistas, evidentemente, não contribuem para reforçar a fé: para eles, o homem é a medida de todas as coisas. A maioria é cética ou agnóstica. Trasímaco nega a providência. Alguns tentam explicar como a ideia dos deuses conseguiu germinar no espírito humano, o que é a forma mais radical de aniquilar a crença. É o caso de Pródico de Ceos. Crítias põe na boca de Sísifo que os deuses foram inventados por um "homem extremamente hábil", a fim de garantir a virtude dos indivíduos pelo temor do castigo. Para muitos estoicos, os deuses são simplesmente homens célebres divinizados os primeiros benfeitores da humanidade: é a opinião de Perseu, discípulo de Zenão; já Crisipo declara que "transformaram homens em deuses". Perseu sugere também que os homens teriam adorado as coisas que lhes eram úteis, como o pão e o vinho, invocados sob os nomes de Deméter e Dioniso. Cícero põe na boca de Balbo que outrora era costume colocar no céu todos aqueles que haviam prestado serviços à sociedade, como Hércules, Castor Pólux, Esculápio, Baco.

É o sofista e mítógrafo Evêmero (340 a.C.-260 a.С.) [Osório diz: Minois é o primeiro autor que vejo dizer que Evêmero era sofista! Entretanto, mesmo que o fosse, não está entre os grandes primeiros sofistas] que, no Relato sagrado, leva mais longe a teoria, que hoje tem o seu nome, que diz que os deuses são antigos homens célebres, divinizados após a morte. Dessacralizando o Olimpo, acredita que Zeus era um soberano sábio e benfazejo que, depois de ter viajado pelo mundo inteiro, foi morrer em Creta; altares teriam então sido erguidos em sua honra, como se fazia nas monarquias helenísticas da época. Afrodite teria sido a primeira cortesã, e o rei de Chipre, enlouquecido por sua beleza, teria feito dela uma deusa; já Atena teria sido uma rainha belicosa e conquistadora. Diodoro resume assim a teoria: "Os deuses viveram na terra, e é por causa dos serviços que prestaram aos homens que as honras da imortalidade lhes foram dadas; Hércules, Dioniso, Aristeu são alguns exemplos".

Sexto Empírico dá uma versão ligeiramente diferente do evemerismo:

Evêmero, apelidado de o Ateu, diz o seguinte: quando os homens não eram ainda civilizados, aqueles que venciam os outros em força e inteligência para obrigar todos os outros a fazer o que ordenavam, desejando gozar de mais admiração e mais respeito, atribuíram-se falsamente um poder sobre-humano e divino, o que os fez serem considerados deuses pelas multidões.37 37 [Osório diz: Evêmero, citado por Sexto, pode levar a acreditar que ele era sofistas, mas, aqui, a citação é em uma outra obra que não daquela dedicada aos sofistas. Ver, contudo, esta da citação.][54]

A explicação de tipo evemerista será retomada com frequência por Nicanor de Chipre, Mnaseas de Patras, Dionísio Skytobrachion e Apolodoro, ao passo que Políbio afirmará que autores de invenções úteis foram divinizados. Os gregos não esperaram os cristãos para dessacralizar seus mitos e seus próprios deuses.

A crise dos séculos IV e III antes da nossa deu origem também à grande renovação do panteísmo materialista que é o estoicismo. Essa corrente se inscreve na tradição do monismo grego, em oposição total ao dualismo platônico. Como em todas as formas de panteísmo, é difícil determina se trata de um ateísmo ou de uma corrente religiosa. Maria Daraki o qualifica de "religiosidade sem deus"; poderíamos muito bem dizer também que é um "ateísmo religioso". A "divindade" é a natureza, sábia e boa, o Todo, o universo, inteiramente material, fora do qual nada existe. Esse universo é composto pelos quatro elementos, dos quais o principal é o fogo, que o penetra por todas as partes, lhe dá unidade e coesão, e o incendeia periodicamente. O universo é cíclico: é consumido pelo fogo divino antes de renascer pelo resfriamento, e isso por toda a eternidade. O homem, parte integrante desse todo universal, desse grande ser divino, é dotado – como todo animal – de uma alma, um sopro", que é igualmente material. [Osório diz: bom!]

A posição dos estoicos com relação aos deuses individuais é bastante vaga. Se nos referirmos às obras de Arato, discípulo de Zenão no século II, e às do aristotélico Dicearco, os deuses são alegorias, sinais do divino impessoal. Ao racionalizar os mitos hesiódicos, dando-lhes um conteúdo histórico", esses autores remontam à queda original, a partir da qual distinguem duas raças de homens: os sophoi, ou sábios, que vivem em concordância com a natureza, e os phauloi, a humanidade decaída e desnaturada, composta de ateus – "eles são ímpios para com os deuses", "eles ignoram os deuses", "eles se opõem aos deuses por seu modo de viver", "eles são inimigos deles", "eles são ateus, no sentido que opõem ateu a divino", "a alma dos phauloi sobrevive algum tempo após a morte, ou então se dissolve com o corpo",38 38 ao passo que a dos sábios reencarna até a conflagração universal. É a não conformidade do phaulos com a natureza que faz dele um ateu, pois há conformidade entre as leis da natureza e as leis divinas. [Osório diz: é bem interessante isso! Aquele que é excluído, mais adiante vai excluir também. Algo assim: o escravo, ao deixar de ser escravo busca ser senhor!] A natureza é sagrada, sem ser uma deusa. Ela é o Grande Todo cósmico que tende ao bem, mas só se torna consciência pessoal no sábio.[55]

Como mostra Maria Daraki, com o estoicismo passa-se do religioso mítico ao sagrado psicológico: enquanto o primeiro, na religião tradicional, objetiva o divino em personagens sobrenaturais, o segundo faz do homem a fonte e o centro do sagrado. O sábio estoico, tomando como sua a vontade da natureza, torna-se verdadeiramente divino. E isso que quer dizer Cleante em seu Hino a Zeus, quando escreve: "Que tua vontade seja feita". E é também o sentido da proclamação de Empédocles: "Sou deus".

Aqui, não há nenhuma transcendência, mas divinização do homem que vive em conformidade com a natureza. [Osório diz: sou divino por viver em conformidade com a natureza!] Esse sophos, esse sábio, é um homem divino; na verdade, esse é o super-homem, do qual ele tem a força e o orgulho. Essa concepção está certamente mais próxima daquilo que chamamos de ateísmo do que de uma forma religiosa qualquer. O sábio é ao mesmo tempo o deus e o crente. Uma tal divinização da humanidade está no extremo oposto da concepção religiosa tradicional, porque apaga a distinção entre o divino e o profano, entre o deus e o fiel. O cristianismo verá nela até mesmo uma forma perniciosa de ateísmo: o sábio cristão, isto é, o santo, não deve viver em conformidade com a natureza, mas dominá-la, domá-la.

Esse tipo de retorno a uma natureza primitiva divinizada é característico dos períodos de crise cultural profunda. Por isso Maria Daraki pôde estabelecer um paralelo com a situação atual do Ocidente, em que a confusão das certezas, a falência das ideologias, dos valores e das religiões, o protesto individualista e a rejeição de uma ciência determinista se combinam, como na época do estoicismo, para favorecer uma espécie de religiosidade difusa sem deus, que se fundamenta numa natureza ressacralizada pela ecologia e não distingue mais sagrado e profano – em suma, um retorno ao monismo original.39 39 [Osório diz: voltamos ao local de partida!]

O EPICURISMO: UM ATEÍSMO MORAL

Outro produto da crise cultural dos séculos IV e III: o epicurismo, muito mais nitidamente ateu que o estoicismo. Deformado por seus adversários será durante séculos o pesadelo do cristianismo, que o transformará numa doutrina quase diabólica, aliando ateísmo, materialismo integral e imoralidade. Todos os descrentes serão tratados como "os porcos de Epicuro", e o epicurismo constituirá uma lixeira cômoda na qual se pode jogar, sem [56] escrúpulo algum, todos os céticos e libertinos, enfarpelados do injurioso adjetivo de "epicurista”.

Que o epicurismo esteja no extremo oposto das religiões tradicionais é perfeitamente admissível. De fato, juntando um estilo de vida a uma especulação filosófica, ele é ao mesmo tempo um ateísmo teórico e um ateísmo prático. No entanto, Epicuro (341 a.С.-270 а.С.) afirma a existência dos deuses: "Os deuses existem, o conhecimento que temos deles é uma clara evidência". Eles são materiais, feitos de átomos sutis; são belos e felizes.40 40 A felicidade dos deuses deve servir de modelo à nossa: eles gozam da paz completa, da ataraxia, [Osório diz: “Ataraxia traduz-se por ‘ausência de inquietude/preocupação’, ‘tranquilidade de ânimo’”. Fonte: Wikipedia] porque não se ocupam de nada, nem mesmo dos assuntos humanos. Não adianta implorar aos deuses ou temê-los: eles são indiferentes à nossa sorte. [Osório diz: isto é, é como se eles não existissem, já que para nada servem aos homens] Esses deuses, que não criaram o mundo que quase nunca intervêm nele, que não prometem nem recompensa nem punição aos homens cuja vida é terrena e termina com a morte, sem a sobrevivência da alma, esses deuses têm apenas uma existência formal. Segundo Epicuro, celebrá-los já é participar um pouco de sua felicidade. A partir disso, muitos epicuristas podem prescindir deles, sem que os fundamentos da doutrina sejam alterados.

De fato, como mostrou J.-A. Festugière, parece que a origem do epicurismo é uma reação ao medo dos deuses, que envenena a vida humana. [Osório diz: o medo dos deuses envenena a vida humana] Esse é um aspecto pouco conhecido das religiões antigas, que também contribui para seu questionamento numa crise que, decididamente, apresenta várias similitudes com a que ocorreu no fim do século XIX. Habituados a associar a noção de temor religioso ao cristianismo, com diabo e inferno, ameaças de castigo eterno exploradas durante muito tempo pelo clero, temos tendência a esquecer que o medo estava presente nas religiões pagãs, e que ele contribuiu significativamente para o desenvolvimento do ceticismo e do ateísmo. O pagão tem medo de seus deuses, cujas reações são imprevisíveis. Deuses que moldam seu destino, de maneira arbitrária, como ilustra a história dos Átridas; [Osório diz: filhos de Atreu, Agamemnon e Menelau, comandantes gregos na guerra de Troia] deuses que provocam sem motivo cataclismos naturais ou conduzem o homem à morte, reservando-lhe um além incerto, sobre o qual circulam os mais sinistros rumores. A partir do momento em que o crente postula a existência de uma providência, de uma intervenção divina nos assuntos humanos, ele passa a ter tudo a temer desses seres sobrenaturais todo-poderosos, rancorosos, sempre prontos a se vingar. "Assim, o temor aos deuses, a sua ira contra os vivos, a sua vingança sobre os mortos, [57] desempenhou um papel importante na religião dos gregos. Talvez o próprio Epicuro o tenha sentido."41 41

Essa opinião pode ser corroborada pelo testemunho de Plutarco, espírito religioso tradicional que declara, em sua Deisidaimonia [Superstição] que de certo modo o ateísmo epicurista é preferível ao temor excessivo que muitos fiéis sentem pelos deuses, aterrorizados porque atribuem seus males a eles: chafurdam na lama confessando seus pecados e tremem diante da perspectiva de uma eternidade de suplícios. O ateu, ao contrário, escreve Plutarco, em caso de dificuldade busca em si mesmo a consolação; sereno sem temor, atribui suas infelicidades ao acaso ou à Fortuna, a Týkhe. [Osório diz: muito bom este parágrafo, o qual corrobora que é o homem quem deve guiar o seu destino por seu agir positivo, não quedar-se quieto esperando que alguém remova a pedra que está em seu caminho].

A rejeição dos deuses seria uma reação de revolta, a revolta do homem que quer assumir as rédeas de seu destino, que recusa os mitos divinos que o mantêm na escravidão e no medo. [Osório diz: seguindo o “homem medida”!] Essa reação é manifesta no mais célebre continuador de Epicuro, o romano Lucrécio (100 a.С.-50 a.С.). Em seu longo poema De natura rerum [Sobre a natureza das coisas], ele mostra, por meio de inúmeros exemplos mitológicos, que os deuses são criações humanas inspiradas pelo temor das forças naturais. Do mesmo modo, a religião torna o homem infeliz, fazendo-o acreditar que as catástrofes são deliberadamente provocadas pelos deuses. E se estes são capazes de lhe enviar tais cataclismos nesta vida, o que não lhe reservarão na próxima? A imaginação inventou todos esses suplícios, que mantêm o medo. [Osório diz: a imaginação inventou tudo de ruim que vai além do mundo material!] O homem deve rejeitar essas fábulas:

É preciso expulsar e derrotar esse temor do Aqueronte, [Osório diz: Aqueronte, na mitologia é “o rio do infortúnio”, nele devem ser deixados “todos os seus sonhos, desejos e deveres que não foram realizados em vida.” Fonte: Wikipedia] que, penetrando até as profundezas do homem, perturba sua vida, colore-a inteiramente com a negritude da morte.[..] Não há, como diz a fábula, um infeliz Tântalo, temeroso de um enorme rochedo suspenso sobre sua cabeça e paralisado por um terror sem objeto; é antes o vão temor dos deuses que atormenta a vida dos mortais e o medo dos golpes do destino que ameaçam cada um de nós. Tampouco existe um Tício jazendo no Aqueronte, dilacerado pelos pássaros; estes, aliás, não teriam em seu vasto peito de que se alimentar por toda a eternidade.42 42

Para Lucrécio, Epicuro salvou o homem da religião. E, vencendo-a, devolveu-lhe a dignidade: [58]

Enquanto, aos olhos de todos, a humanidade levava na terra uma vida abjeta esmagada pelo peso de uma religião cujo rosto, mostrando-se do alto das regiões celestes, ameaçava os mortais com seu aspecto horrível, um homem da Grécia, o primeiro, ousou erguer seus olhos mortais contra ela, e contra ela voltou-se. Longe de detê-lo, as fábulas divinas, o relâmpago, os estrondos ameaçadores do céu só fizeram excitar ainda mais o ardor de sua coragem e seu desejo de ser o primeiro a forçar as portas estritamente fechadas da natureza. [...] E assim a religião foi vencida e pisoteada, e nós, a vitória nos ergue aos céus.

Assim, segundo Lucrécio, o epicurismo é realmente um ateísmo. Negligenciando os deuses impassíveis e felizes que seu mestre ainda preservava, ele se atém a um puro materialismo mecanicista. "A matéria se compõe de átomos absolutamente plenos que se movem, indestrutíveis, pela eternidade. [...] O universo total, portanto, não tem limite algum"; infinito formado pelo vazio e pela matéria, em que tudo se faz e se desfaz sem nenhum plano de conjunto. Diferença com relação à concepção de Demócrito: os átomos têm uma trajetória ligeiramente oblíqua, e esse clinamen, essa inclinação, que torna possíveis as diversas combinações, permite também salvaguardar certa contingência e certo grau de liberdade humana, abrindo espaço para a moral.

O epicurismo é de fato a primeira grande tentativa de estabelecer uma moral ateia, uma moral que repousa sobre o único valor autêntico possível num mundo humano sem deus: a busca da felicidade individual terrena. Essa felicidade reside na ausência de sofrimento físico e perturbação moral nesse estado de sabedoria pleno de equilíbrio chamado ataraxia. Apenas a busca do prazer deve motivar o sábio, o que exclui uma vida de facilidades e devassidão, fonte de males, mais do que de prazeres. Na verdade, o prazer tal como Epicuro o compreende, assemelha-se mais ao ascetismo que ao divertimento. É resultado de uma sábia e delicada dosagem que, praticada por todos, levaria a uma sociedade perfeita, justa, equilibrada:

Posto que o prazer é o primeiro dos bens naturais, disso decorre que não aceitamos o primeiro prazer à mão; em certos casos, quando têm como consequência algum desgosto maior, chegamos até a desprezar certos prazeres. Por outro lado, há inúmeros sofrimentos que consideramos preferíveis aos prazeres, quando acarretam um grande prazer.

[...]

As iguarias mais simples proporcionam tanto prazer quanto a mesa mais ricamente servida, quando se encontra ausente o sofrimento que causa a [59] necessidade, e o pão e a água propiciam o mais vivo prazer quando ingeridos após uma longa privação. O hábito de uma vida simples e modesta é portanto um bom modo de cuidar da saúde, e torna o homem, ainda por cima, corajoso para suportar as tarefas que tem necessariamente de realizar em vida. Uma vida simples lhe permite ainda apreciar melhor uma vida opulenta, quando tem ocasião, e o previne contra as reviravoltas da fortuna. Por conseguinte, quando dizemos que o prazer é o bem soberano, não estamos falando dos prazeres dos devassos nem dos gozos sensuais, como pretendem certos ignorantes que nos combatem e deturpam nosso pensamento. Falamos da ausência de sofrimento físico e da ausência de perturbação moral.43 43 [Osório diz: este parágrafo deve ser lido com bastante atenção! Creio que ele diz que a felicidade não está em ter (“prazeres dos devassos nem dos gozos sensuais”), mas em não ter (“sofrimento físico e perturbação moral”)!].

Caluniada pelos estoicos desde o início, a doutrina epicurista servirá, paradoxalmente, de contraponto aos olhos dos crentes, e de prova de incompatibilidade entre ateísmo e moral. Esse mal-entendido é ainda mais surpreendente quando se pensa que estoicos e epicuristas pregavam, ambos, a indispensável conformidade com a natureza; mas, enquanto os primeiros viam a sabedoria numa assimilação voluntária do homem e do natural, os segundos recomendavam uma dosagem inteligente dos elementos naturais a fim de assegurar a maior paz possível à alma. Assim, os epicuristas salvam a dignidade e a especificidade humanas, ao passo que os estoicos a dissolvem na natureza, supostamente divina.

Outro paradoxo: os cristãos, que rejeitarão essas duas doutrinas por considerá-las ateias, admirarão a moral estoica, porque prega a aceitação voluntária do acaso, e desprezarão a moral epicurista, porque faz do indivíduo o único mestre de sua conduta. Ora, o autêntico sábio epicurista, dominando a natureza, está muito mais próximo do asceta cristão do que o sábio estoico, que obedece à natureza. Mas, aos olhos dos cristãos, o primeiro erra por reivindicar a busca do prazer como valor supremo, já que o cristianismo exalta o sofrimento e a dor, deliberadamente buscada como intuito de purificação.

O cristianismo também não poderá perdoar o epicurismo pela negação formal da mortalidade da alma. Para Epicuro, a morte do indivíduo é total e definitiva: ela não deve ser temida, portanto. "O nada será igual para aquele cuja vida cessou hoje ou para aquele que morreu há meses ou anos", escreve Lucrécio. Os átomos que compõem o indivíduo se recomporão para dar origem a outras formas. [60]

Acrescentamos que o epicurismo, em sua busca de prazeres equilibrados, não é de modo algum uma garantia de vida feliz, como ilustra Lucrécio, pai do mal-estar existencial: "Cada qual tenta evadir-se de si mesmo, sem no entanto poder fazê-lo, ficando assim atado a si mesmo e acabando por se odiar". Mesmo o amor é um suplício, uma loucura, um desejo exacerbado que jamais pode ser satisfeito. Para Lucrécio, o inferno é o eu e todos os seus temores, é a angústia existencial. Podemos nos libertar de alguns desses temores, por exemplo, do temor de deus e da morte, mas a infernal angústia fundamental, a de existir, só desaparece com o próprio homem.

O CETICISMO DO MUNDO GRECO-ROMANO NOS SÉCULOS II E I ANTES DE NOSSA ERA

Assim, apesar das advertências de Platão, a religião tradicional continua a perder terreno para as correntes heterodoxas, do ocultismo ao panteísmo, do ateísmo prático ao ateísmo teórico. [Osório diz: que bom, pois ele era um fanático!] Os séculos IV e III são um período de confusão de crenças e descrenças, em que os limites tradicionais entre elas se tornam vagos. É difícil saber, por exemplo, qual é a opinião dos cínicos sobre os deuses. Enquanto Antístenes sustenta a unidade da divindade, Diógenes tem fama de ateu, talvez injustificada, por sua falta de respeito para com os deuses antropomorfos:

Ele tinha raciocínios como: "Tudo pertence aos deuses, ora os sábios são amigos dos deuses e, entre amigos, tudo é partilhado, logo tudo pertence aos sábios". Certa vez, ao ver uma mulher prosternada diante dos deuses e que, por isso, deixava à mostra o traseiro, quis livrá-la da superstição. Aproximou-se dela e disse: "Ó, mulher, não temes que por acaso o deus esteja atrás de ti (já que tudo está repleto de sua presença) e que lhe mostres assim um espetáculo indecente?". Postou um gladiador perto do Asclepeion [Osório diz: tempo do deus Asclépio] com a missão todos aqueles que se prosternassem de boca no chão.44 44

A atitude provocadora de Diógenes, que zomba dos deuses, dos mistérios, da providência e das superstições, aproxima-o sem dúvida das concepções panteístas tradicionais. Nesse sentido é que Maria Daraki interpreta a anedota relatada por Diógenes Laércio: "Tendo Platão definido [61] o homem como um animal de dois pés sem plumas, e tendo o auditório aprovado a definição, Diógenes levou a sua escola um galo depenado e declarou: 'Eis o homem, segundo Platão".4545 Isso simbolizaria a oposição entre o platonismo, que, tendo separado o sagrado do profano, pode tomar o homem, dessacralizado, como objeto de estudo, e o panteísmo cínico considera um sacrilégio o estudo da natureza e, em especial, do homem que é a imagem dos deuses.

O desaparecimento dos processos por impiedade e ateísmo no fim do século IV, longe de significar o desaparecimento dessas atitudes, é uma prova de sua generalização. Tornam-se tão comuns que não chocam mais e, em Atenas, os filósofos pregam livremente o ateísmo: é o caso de Bion de Boristeno, discípulo de Teodoro, o Ateu, na primeira metade do século III, enquanto Carnéades demonstra a impossibilidade de provar a existência de Deus. Aristarco de Samos é interpelado, durante algum tempo, por causa de suas teorias astronômicas, mas ninguém ousa processá-lo por impiedade. A lei de Sófocles, filho de Anficleides, [Osório diz: não o tragediógrafo] que proibia aos filósofos de ensinar em Atenas, é revogada. No século I antes de nossa era, um tratado anônimo Sobre a política, atribuído a Hipodamos, ainda pede, inutilmente, a proibição de ensino dado por filósofos ateus.

Entre os novos pensamentoS em voga, o aristotelismo, ao mesmo tempo que afirmava a necessidade de um deus como motor primeiro do universo tem um forte tom materialista: um universo eterno, incriado, almas mortais, nenhuma vida no além. [Osório diz: essa história de “um deus como motor primeiro” ele inventou por não ter uma explicação materialista, para tapar buraco, para o movimento. É fácil jogar nas costas dos outros, mesmo que de “deus”, as responsabilidades que não são deles! Se existisse um deus ele teria dito: “Te vira, Aristóteles, não me mete nos teus becos sem saída!”].

É nesse clima de dispersão intelectual que os cultos aos deuses estrangeiros, teoricamente proibidos, estabelecem-se em grande número, vindo do Oriente e aproveitando a tolerância das autoridades romanas, que então governam Atenas. A mistura de elementos gregos, etrusco-romanos e orientais leva a uma deliquescência religiosa no decorrer dos séculos II e I antes de Cristo.

No momento em que Roma conquista a parte oriental do Mediterrâneo, há o recuo da religião tradicional, a alteração e o desprestígio dos 30 mil deuses latinos repertoriados por Varron. Mas, como observa Albert Grenier, "na verdade, não foram essas especulações novas que mataram as antigas crenças; estas morreram por si mesmas, porque não correspondiam mais ao estado intelectual e social do povo. Como não havia nada que substituir os romanos adotaram, quase por acaso, seja noções filosóficas, seja mitos e [62] cultos estrangeiros".4646 Como no mundo grego, o declínio do culto privado e público no decorrer dos séculos II e l é acompanhado de uma explosão de crenças, desde o sucesso dos cultos de mistérios até o ateísmo, diante das questões que foram deixadas sem resposta pela religião oficial.

Em 186 a.C., mais de 7 mil pessoas são envolvidas no enorme escândalo das bacanais – ao qual se seguiu um processo lento, de cinco anos, com inúmeras acusações de ateísmo.47 47 Com a conquista da Grécia vêm o estoicismo, o epicurismo e o ceticismo eclético, favorecendo o ateísmo nos círculos aristocráticos, como o de Cipião Emiliano, frequentado por Políbio, Terêncio e Lucílio, que não são nenhum modelo de fervor religioso. O homem e sua psicologia estão no centro das preocupações, e os deuses são esquecidos. O vazio é preenchido, entre os intelectuais, pelo ateísmo e, no povo, pelas superstições.

Em meados do século I antes de nossa era, Lucrécio, Bruto, Cássio e Cícero são ótimas testemunhas e protagonistas do ceticismo reinante. Já falamos do primeiro. "Nem Cássio nem outro contemporâneo dele está muito convencido da existência dos deuses, ou pelo menos essa convicção é vacilante demais para influenciar a ação", como observa Albert Grenier.48 48 Às vésperas da Batalha de Filipos, segundo relata Plutarco, Cássio exprime seu ceticismo a Bruto:

Mas, de resto, dizer que existam espíritos ou anjos, e ainda que tenham existido, que tenham forma de homens, ou voz, ou poder algum que chegue até nós, não parece coisa verossímil. Quanto a mim, gostaria que existissem, para que tivéssemos confiança, não somente em tão grande número de armas navios e naus, mas também no socorro dos deuses, posto que somos autores e defensores de belíssimos, santíssimos e virtuosíssimos atos.49 49

No que diz respeito a Cícero, o grande tratado que consagra à questão religiosa, Da natureza dos deuses, é um reflexo da grande quantidade de opiniões sobre o assunto e do ceticismo que resulta dele. "Quando se vir quanto os homens mais doutos se dividiram sobre essa questão, haverá, a menos que me engane, com que fazer duvidar até mesmo aqueles que creem ter [63] encontrado algo de certo".50 50 No tratado, escrito em forma de conversação, Cota assume o ponto de vista dos descrentes: "Tenho dificuldade de impedir certos pensamentos que de tempos em tempos me perturbam e me fazem quase incrédulo a esse respeito".51 51 [Osório diz: tal qual Édipo antecipou Freud no “complexo de Édipo”, Cota, personagem de Cícero, antecipa Nietzsche quanto “o homem não pensa, o pensamento é quem pensa o homem”!]  Epicuro, continua ele, teria dito que é difícil negar a existência dos deuses: "Sim, em público; mas em particular, como fazemos aqui, nada é mais fácil". [Osório diz: o medo faz confirmar a existência! Tortura dói!].

No entanto, a questão é ainda muita obscura, provavelmente além de nossa compreensão:

Se me perguntarem o que é Deus, farei com vocês como fez Simônides com o tirano Hieron, que lhe fez a mesma pergunta. Primeiro ele pediu um dia para pensar; no dia seguinte, mais dois dias; e como toda vez esquecia quantos dias tinha pedido, Hieron quis saber a causa. "Porque", respondeu ele, "quanto mais reflito, mais a coisa me parece obscura".52 52 [Osório diz: paradoxo da razão. Ela o criou, mas depois não sabe explicar sua criação, pois as explicações propostas fazem água, são refutáveis, são contraditórias].

Veleio, que defende o ponto de vista da fé, desenvolve outro argumento  clássico: todos os povos têm uma ideia de deus impressa em sua alma; "ora, todo julgamento da natureza, quando é universal, é necessariamente verdadeiro. E preciso reconhecer portanto que há deuses". Cota contesta esse universalismo: "Estou persuadido de que há muitos povos suficientemente brutos para não ter a mínima ideia dos deuses".53 53 Diágoras, Teodoro, o Ateu, os ímpios: não são todos prova de que a ideia de deus não é universal? E diante do grande número e da diversidade das crenças, como não seríamos céticos? "Muitos se espantam que um arúspice [Osório diz: “Arúspice era um antigo sacerdote romano que adivinhava o futuro mediante o exame das entranhas das vítimas.” Fonte: Wikipedia.] olhe para outro sem rir, mas o que mais me espanta é que vocês [os crentes] consigam conter o riso quando vários de sua seita se reúnem."54 54

O ATEÍSMO ANTIGO E SEUS LIMITES

É nesse clima de ceticismo generalizado que aparece o cristianismo percebido durante muito tempo como uma forma de ateísmo. Há dois mil anos, o limite entre crença e descrença era tão vago e impreciso quanto em [64] nossos dias. Entre o total ateísmo teórico de certos filósofos e a proliferação das superstições populares, centenas de seitas, religiões, escolas de pensamento espiritualistas e materialistas dividem entre si o mercado da crença. Mithra, ísis, Osíris, Serápis, Cibele, Júpiter e dezenas de outros convivem com as crenças astrológicas e mágicas, com o monoteísmo judeu, as doutrinas epicurista, estoica, platônica, neoplatônica, cínica e cética. Nessa cacofonia, a religião greco-romana oficial não passa de um quadro formal e cívico, cujos templos e cerimônias ainda marcam a paisagem, porém mais à maneira de um cenário do que propriamente como uma verdade reconhecida. Sacerdotes, áugures e vestais têm seu papel, mas ele é amplamente laicizado. Quanto à massa do povo, ela escuta os adivinhos e vive ao ritmo de suas incontáveis superstições, numa situação muito semelhante ao ateísmo prático, de tanto que o sentimento do divino havia se degradado.

O mundo mediterrânico parece ter chegado ao relativismo religioso e a uma total liberdade de crença. A religião oficial tradicional não tem mais condições de assegurar um mínimo de controle sobre a fé. A tolerância com as opiniões religiosas reina nessa Torre de Babel, em que nenhum valor universal é unanimemente reconhecido. Essa situação é muito semelhante à que vivemos hoje: explosão das crenças, relativismo, perda dos valores e dos referenciais nacionais e culturais, religião à la carte, [Osório diz: faça seu pedido olhando o nosso cardápio. Tem muitas opções. Fique à vontade] predominância da ação e da busca das satisfações individuais imediatas, religião tradicional (a do panteão greco-romano dois mil anos atrás, o cristianismo hoje) relegada a um estado de tradição formal, ou até mesmo de folclore, angariando ainda muitos fiéis, porém incapaz de orientar a cultura e influir nas escolhas da sociedade.

Como é que esse caos ético-religioso, fonte de ceticismo desencantado, não acarretou um naufrágio generalizado da religião, da crença em deus(es), e uma generalização do ateísmo? Por que a descrença não se impôs quando todas as condições culturais eram excepcionalmente favoráveis? Havia explicações ateias do mundo à disposição; Lucrécio havia acabado de expor uma visão racional – para a época – do universo. Por que, no fim das contas, seguir são Paulo e postergar dois mil anos a questão, à qual, hoje mais uma vez nos confrontamos? Deixemos de lado as explicações de tipo sobrenatural e providencialista, que só têm valor no sistema das crenças. Por que, da variedade de crenças propostas, os homens seguem na direção a solução aparentemente mais absurda, a de um deus todo-poderoso que se faz homem para morrer numa cruz e ressuscitar?

A acolhida reservada a São Paulo em Atenas, por volta do ano 50, quando ele vai para lá para pregar sua doutrina, é reveladora. O apóstolo desperta [65] curiosidade a princípio, sobretudo entre os filósofos estoicos e epicuristas, sempre abertos às novidades, mas um tanto entediados diante do afluxo de novas seitas orientais. Dão atenção a suas explicações até o momento em que saem daquilo que é racionalmente aceitável: a ressurreição dos mortos. O trecho dos Atos dos Apóstolos que relata o episódio é instrutivo. Paulo se dirige à multidão, na ágora:

Havia até filósofos epicuristas e estoicos que conversavam com ele. Alguns diziam: "O que quer dizer essa tagarelice?". E outros: "Deve ser um pregador de divindades estrangeiras". Com efeito, Paulo anunciava Jesus e a ressurreição. Eles o pegaram consigo e o conduziram até o Areópago. "Podemos saber" perguntaram eles, "que nova doutrina é essa que expões? Tu nos enches os ouvidos com palavras estranhas, e gostaríamos muito de saber o que querem dizer." É preciso que se diga que todos os habitantes de Atenas e todos os estrangeiros residindo na cidade passavam a maior parte do tempo contando ou escutando as últimas novidades. De pé, no meio do Areópago, Paulo tomou a palavra.55 55

Ele expõe as grandes linhas de sua doutrina e chega ao ponto crucial:

E eis que Deus, sem levar em conta esses tempos de ignorância, anuncia agora aos homens que todos, em todos os lugares, devem se converter. Com efeito, ele fixou um dia em que deve julgar o mundo com justiça, pelo homem que ele designou, como deu garantia a todos, ressuscitando-o dentre os mortos. Quando ouviram as palavras "ressurreição dos mortos", uns começaram a zombar, outros declararam: "Nós te ouviremos sobre isso em outra ocasião" Foi assim que Paulo os deixou.56 56

O paulinismo é rejeitado por causa da imagem indigna que oferece da divindade e também da contradição que existe entre esse deus e a razão humana. Esses filósofos aceitam a ideia de um deus, mas um deus que se rebaixa ao nível dos homens é indigno do absoluto divino e se, ainda por cima, contradiz as leis da natureza, torna-se inverossímil. Eis por que durante muito tempo, os cristãos foram considerados ateus no mundo pagão, sobretudo entre os intelectuais. O termo é empregado com frequência na época das perseguições, num amálgama que pode parecer surpreendente: [66] segundo Luciano, cristãos e epicuristas, confundidos sob o rótulo de ateus são vítimas de revoltas populares provocadas pelos oráculos, que os denunciam como responsáveis pela ira dos deuses. "Antes do édito de Décio", lembra Robin Lane Fox, "as cidades tomaram iniciativa de promulgar seus próprios decretos e acusações contra os cristãos: temiam, ou lhes era sugerido que temessem, aqueles 'ateus' que não participavam dos cultos que desviavam a ira dos deuses".57 57

O termo "ateu" é suscetível de interpretações diversas, correspondendo em particular às duas grandes categorias que distinguimos anteriormente. O ateísmo prático, no nível do comportamento, pode referir-se a todos aqueles cuja moral não é conforme às normas dominantes. Essa acepção predomina no povo. Porfirio foi seu porta-voz: "Toda vida leviana é cheia de servidão e irreligiosidade: ela é ateia, portanto, e desprovida de justiça, porque nela o espírito é impregnado de irreligiosidade e, por conseguinte, de injustiça".58 58

Para os filósofos, ao contrário, como ilustra o episódio de São Paulo em Atenas, é ateia toda doutrina que oferece uma concepção degradante da divindade. O deus dos filósofos tem exigências racionais que não correspondem ao deus da revelação. [Osório diz: razão e revelação não andam juntas! São incompatíveis] Para epicuristas e estoicos, os cristãos, com seu deus feito homem, são ateus. Cornelio Fabro escreveu:

Se, antes de mais nada, ateísmo significa negação direta de Deus, então ele consiste em primeiro lugar, e sobretudo, no fato de admitir uma noção de Deus que o anule enquanto Deus e o rebaixe diante de sua majestade. [Osório diz: esta aí um bom argumento para o “ser” e “não-ser” ao mesmo tempo! Entretanto, o cara tenta salvar o que não tem salvação! A pessoa não diz que existe para negar (“admite uma noção de Deus”) simplesmente diz que aquele discurso que diz que existe deus não é racional, logo, não existe, não pode ser admitido enquanto discurso. Sequer se entra na existência de deus! Na verdade o tal Corno quer “colar o nome à coisa”!] É exatamente esse o julgamento que os maiores filósofos gregos fazem das divindades da mitologia popular e do Estado; é exatamente essa também, pela lei dos contrários, a condenação que fazem do cristianismo.59 59

Além do mais, como expõe o cético grego Sexto Empírico em suas Hypotyposes pyrrhoniennes [Hipóteses pirronistas], acreditar na providência é uma verdadeira impiedade, em razão da existência do mal, pois é supor ou que esse deus permite voluntariamente que se faça o mal, e nesse caso ele é mau, ou que é incapaz de impedi-lo, e nesse caso não é deus. Daí o paradoxo segundo o qual os que afirmam a existência de deus são ímpios para não dizer ateus: [67] [Osório diz: a ideia de um deus na forma que é posta pelos cristãos, por exemplo, é contraditória!].

Aqueles que afirmam com segurança que deus existe caem necessariamente na impiedade. De fato, dizendo que deus é a providência de todas as coisas, são forçados a declarar que deus é a causa dos males; por outro lado, se dissessem que ele não é providência de coisa alguma, conviriam necessariamente que deus não é nem mau nem impotente, ao passo que o contrário disso constituiria uma impiedade evidente.60 60

Para voltar à nossa questão central – por que é que o ateísmo não saiu vencedor da confusão religiosa que se instalou no mundo romano durante o século I? –, devem os levar em conta justamente essa confusão, em que os termos "ateu" e "crente" perdem seu sentido estrito. O cristianismo, que vai se impor lentamente, é percebido na época como uma variante do ateísmo: ateísmo moral por causa da conduta estranha de seus fiéis, ateísmo teórico por sua concepção degradante de deus aos olhos dos filósofos.

É verdade que existiam então muitas outras formas de ateísmo, ainda que os historiadores das ideias variem em suas classificações. Segundo Cornelio Fabro:

Devemos considerar no mundo grego ao menos três formas de ateísmo. Em primeiro lugar, o ateísmo supersticioso e político, isto é, os deuses como forças do mundo e da história; em segundo lugar, o ateísmo do qual foram acusados os filósofos, ou mais exatamente aqueles poucos dentre os grandes filósofos que rejeitaram a religião como indigna em razão das forças da natureza ou dos interesses da política; ora, é evidente que estes não eram ateus por si mesmos, mas podiam ser deístas autênticos, como, por exemplo, Platão, Aristóteles e outros mais. Enfim, parece que ateus declarados radicais, segundo as listas que chegaram até nós, não faltaram.61 61

Anton Anwander, por sua vez, distingue sete formas de ateísmo antigo:

A descrença prática das pessoas incultas; [Osório diz: se for culta não é ateu? O inculto não pode crer?] a autoglorificação do Estado, que exigindo sacrifícios ao imperador, coloca o homem no lugar de Deus; a substituição da fé em Deus pela fé no destino com traços ora heroico-fatalistas, ora astrológico-mágicos; a destruição da fé em Deus pela razão, mas que prefere uma reinterpretação dos velhos mitos a uma negação radical de Deus; a dúvida e o desespero diante da necessidade da consciência num mundo em má situação; [68] a recusa tinhosa de toda e qualquer atitude independente com relação aos problemas mais elevados, estigmatizada como ateísmo e impiedade.62 62

Assim a Antiguidade conheceu, se não todas, pelo menos um grande número de formas possíveis de ateísmo; e, durante os séculos cristãos, foi para elas que se voltaram todos os contestadores antirreligiosos, todos os defensores do materialismo e do ateísmo. Portanto, se perguntarmos não por que o cristianismo venceu questão examinada inúmeras vezes pelos historiadores da religião –, mas sim por que o ateísmo, em uma de suas formas, não se impôs quando as condições pareciam tão favoráveis, parece que temos de levar em conta o caráter híbrido de todas essas formas de descrença. [Osório diz: o ateu não sai pelo mundo pregando sua descrença! Não saqueia, pede, aceita o roubo para promover sua descrença. Não faz inquisição para punir os crentes. Não cria escolas e hospitais para, disfarçadamente, pregar o seu “(des)credo”].

O verdadeiro ateísmo teórico puro é extremamente raro na época. A enumeração mostra bem: a cada forma de ateísmo está ligada certa forma de crença religiosa ou irracional, e bem poucos desses ateísmos se pensam como ateísmo. Ao contrário, estão prontos a acusar os outros de impiedade e de ateísmo. Longe de reivindicar o título, apresentam-se cada qual como a forma mais autêntica da piedade. Como vimos, até mesmo Sexto Empírico considera, por exemplo, que o ceticismo é a única forma aceitável da piedade, pois não restringe os deuses aos limites das definições e dos dogmas. Os deuses existem, diz ele em substância, mas não sabemos o que a palavra "deus" significa, e não podemos demonstrar a existência deles:

Posto que os dogmáticos dizem ora que deus é corpóreo, ora que é incorpóreo, que uns dizem que ele é feito à imagem do homem e outros não, que uns o situam no espaço e outros não, e que, entre os que o situam no espaço, alguns o situam dentro e outros fora do mundo, como é que podemos formar a ideia de deus, já que não há concordância nem quanto a sua essência, nem quanto a sua forma, nem quanto ao espaço que ele habita? Que os dogmáticos comecem entrando em acordo e tendo todos a mesma opinião sobre a essência de deus. [...] A existência de deus não é óbvia. Se ele fosse apreensível por nossos sentidos, os dogmáticos concordariam em dizer o que ele é, qual ele é e onde habita.63 63 [69] [Osório diz: camisa de força nos dogmáticos].

Falta conteúdo ao ateísmo antigo. Mesmo quando conserva certa noção de deus, como no caso do epicurismo, ele é sentido externamente como uma forma de impiedade entre outras; jogando ao mesmo tempo com a crença e a racionalidade, ele não é percebido como radicalmente diferente. O ateísmo integral, tal como o concebemos hoje, tem necessidade de um aparato científico e conceitual que a cultura da época não podia oferecer.

Como a religião, o ateísmo varia de acordo com o tipo de civilização do qual é uma das facetas. Do mesmo modo que não há religião universal e imutável, não existe ateísmo universal e imutável. O ateísmo antigo compartilha as concepções cosmológicas e filosóficas da Antiguidade, que ainda não lhe permitem apresentar uma explicação global crível de um universo sem deus. Ele só pode relegar os deuses a um papel totalmente passivo, ou transformá-los em alma do mundo, impessoal e material. Situando-se num terreno religioso, continua a ser sentido como uma contrarreligião. Até que rompa com essa lógica, o ateísmo conservará uma imagem   pejorativa ligada à impiedade.

Além do mais, a evolução do poder político romano, com a divinização do imperador, a criação do culto de Roma e de Augusto e a restauração da religião tradicional por este último, não caminha de modo algum para uma secularização da sociedade. O Império precisa de uma religião e da submissão ao poder. Ele encontrará isso no cristianismo, religião que, sublimando a submissão política na submissão a Deus, segundo a análise de Maria Daraki é perfeitamente adaptada às necessidades sociopolíticas do Baixo Império. [70]



[1] Decloux, Les athéismes et la théologie trinitaire. À propos d'un livre récent, Nouvelle Revue Théologique, v.117, n.1, jan./fev. 1995, p. 112.

[2] 2 Clévenot (org.), L'État religieux du monde, p. 495.

[3] 3 Le Bras, Lumen Vitae, p. 20.

[4] 4 Hourdin, Conversions du christianisme à l'athéisme. In: Girardi; Six (orgs.), ĽAthéisme dans la vie et la culture contemporaines, t.I, p.392.

[5] 5 Gênesis 11,1-9. [Trad. Bíblia de Jerusalém. 6.ed. são Paulo: Paulus, 2010. N. E.]

1 1 Lubac, Lorigine de la religion. In: Kologrivof (org.), Essai d'une somme catholique contre les sans-Dieu

2 2 Spencer, Principles of Sociology.

3 3 Lang, The Making of Religion

4 4 Schmidt, Ursprung der Gottesidee. Eine historisch-kritische und positive Studie

5 5. Spencer; Gillen, The Northern Tribes of Central Australia; Nieuwenhuis, De Mensch in de werkelijkheid; Volz, Im Dammer des Rimba; Tessmann, Preussische Jahrbücher.

6 6 Durkheim, Les Formes élémentaires de la vie religieuse, p.601

7 7 Ibid., p.599

8 8 Ibid., p.593

9 9 Ibid., p.598.

10 10 Codrington, The Melanesians.

11 11 Lehmann, Mana: eine begriffsgeschichtliche Untersuchung auf ethnologischer Grundlage.

12 12 Gusdorf, Mythe et métaphysique, p.89.

13 13 Bergson, Les Deux sources de la morale et de la religion, p.185.

14 14 Ibid.

15 15 Ibid., p.217

16 16 Cf. Lévi-Strauss, La Pensée sauvage, p. 265.

17 17 Gusdorf, op. cit., p.144.

18 18 Eliade, Traité d'histoire des religions, p.386.

19 19 Ibid., p.32-3.

20 20 Gusdorf, op. cit., p. 67.

21 21 Ibid., p. 222.

22 22 Caillois, L'Homme et le sacré, p.30.

23 23 Brunschvicg, Religion et philosophie, Revue de Métaphysique et de Morale, 1935

24 24 Gusdorf, op. cit., p.233.

25 25 Caillois, op. cit., p.177

26 26 Lévy-Bruhl, La Mythologie primitive, p.317,

27 27 Eliade, op. cit., p. 345.

28 28 Ibid., p. 360.

29 29 Gusdorf, op. cit., p.253

30 30 Geerts, em Banton (ed.), Anthropological Approaches in the Study of Religion, p. 43.

31 31 Thomas, Religion and the Decline of Magic, p. 206. E o que mostra também Radin, Primitive Man as Philosopher.

32 32 Apud Vacant; Mangenot, Athéisme et erreurs annexes. In: Vacant et al., Dictionnaire dethéologie catholique.

33 33 Peyrefitte, Les Chinois sont-ils a-religieux? In: Delumeau et al., Homo religiosus, autour de Jean Delumeau, p.695-703

34 34 Hiorth, Réflexions sur l'athéisme contemporain, Les Cahiers Rationalistes, n.504, p.21

35 35 Garbe, Die Samkhyaphilosophie, p.253 e ss

36 36 Gonda, Die Religionen Indiens.

37 37 Rosthorn, Die Urreligion der Chineses, em Die Religionen der Erde in Einzeldarstellungen.

38 38 Wingteit-Chan, Religiöses Leben im heutige China, p. 222.

39 39 Beetke, Die Religion der Germanen in Quellenzeugnissen.

40 40 Meslier, Ouvres de Jean Meslier, t.ll p. 300.

41 41 Bloch, Atheismus im Christentum.

42 42 Eclesiastes 9,7-10.

1 1 Lenoble, Histoire de l'idée de nature.

2 2 Veyne, Les Grecs ont-ils cru à leurs mythes?

3 3 Marx, Différence de la philosophie de la nature chez Démocrite et chez Epicure.

4 4 Lange, Histoire du matérialisme et critique de son importance à notre époque.

5 5 Eusébio de Cesareia, Praep. Evang., I, VIII, 1.

6 6 Tresmontant, Le Problème de l'athéisme, p. 23.

7 7 Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker, I, p.312 e 313

8 8 Diógenes Laércio, Vies, doctrines et sentences des philosophes illustres, II, p.185.

9 9 Ibid.

10 10 Derenne, Les Procès d'impiété intentés aux philosophes à Athènes aux Ve et IVe siècles avant J.-C.

11 11 Diógenes Laércio, op. cit., I, p.105

12 12 Plutarco, Nicias. In: ________, Vies parallèles, 23.

13 13 ld., Périclès. In: ______, Vies parallèles, II e IX

14 14 Diógenes Laércio, op. cit., I, p.116.

15 15 Derenne apresentou as interpretações dos historiadores alemães sobre ele em Derenne op. cit., p. 94, nota 1.

16 16 Aristófanes, Les Nuées, versos 246, 365 e 425.

17 17 Platão, Phèdre, 229, e.

18 18 Id., Apologie, 18, b

19 19 Xenofonte, Mémorables, I, 11-4

20 20 Cf. Derenne, op. cit.; Decharme, La Critique des traditions religieuses chez les grecs; Drachmanrn Atheism in Pagan Antiquity; Jacoby, Diagoras.

21 21 Diógenes Laércio, op. cit., I, p.146

22 22 Ibid

23 23 Plutarco, Decom. nat., XXXI, 3, 1075, a.

24 24 Platão, Les lois, X, 885.

25 25 Ibid., X, 889.

26 26 Ibid., X, 890.

27 27 Ibid., X, 887.

28 28 Ibid., X, 888.

29 29 Sève, La Question philosophique de l'existence de Dieu, p. 275.

30 30 Platão, op. cit., X, 886.

31 31 Ibid., X, 908.

32 32 Ibid., X, 909.

33 33 Ibid.

34 34 Festugière, Epicure et ses dieux.

35 35 Ibid., p.72.

36 36 Hild, Aristophanes impietatis reus.

37 37 Sexto Empírico, Contre l'enseignement des sciences, IX, 17.

38 38 Von Armin (ed.), Stoicorum veterum fragmenta, III 660, 604, 661, 606 e 809.

39 39 Daraki, Une Religiosité sans Dieu. Essai sur les stociens d'Athènes et saint Augustin, p. 215.

40 40 Festugière, op. cit.

41 41 lbid., p.82.

42 42 Lucrécio, De natura rerum, III, 978-1024.

43 43 Epicuro, Letre à Ménécée, apud Diógenes Laércio, op. cit, II, p.261-2.

44 44 Diógenes Laércio, op. cit., II, p. 20.

45 45 Ibid., p. 21.

46 46 Grenier, Le Génie romain dans la religion, la pensée et l'art, p. 186-7

47 47 Tito Lívio, 39, 8 e ss.

48 48 Grenier, op. cit., p.438.

49 49 Plutarco, Brutus. In: ______, Vies parallèles, II, p.1079

50 50 Cícero, De natura deorum, I, 6.

51 51 Ibid., I, 22.

52 52 Ibid.

53 53 lbid., I, 23.

54 54 Ibid., I, 25.

55 55 Atos dos Apóstolos 17,18-21

56 56 Atos dos Apóstolos 17,30-33.

57 57 Fox, Pagans and Christians, p. 551

58 58 Harnack, Der Vorwurf des Atheismus in den drei ersten Jahrhunderten, p. 50.

59 59 Fabro, Genèse historique de l'athéisme philosophique contemporain. In: Girardi; Six (orgs.), LAthéisme dans la philosophie contemporaine, p. 34.

60 60 Sexto Empírico, Hypotyposes pyrrhoniennes, III, 11-2.

61 61 Fabro, op. cit, p. 32.

62 62 Anwander, Le problème des peuples athées. In: Girard; Six (orgs.), L’Athéisme dans la vie et culture contemporaines, t.I, v.2, p.66-7.

63 63 Sexto Empírico, op. cit., III, 3, 6.

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