A Raitza bateu à porta avisando que o almoço já estava servido e que papai e mamãe nos esperavam. Enquanto almoçávamos conversamos o trivial, embora papai estive eufórico para saber notícias sobre a organização do evento. O Thadeu encarregou-se de contar-lhe os últimos acontecimentos. Não aceitei a sobremesa e voltei para o quarto. Fiz a digestão lendo alguns poemas de Augusto dos Anjos. Thadeu veio ao meu encontro já na hora de irmos para a escola.
- Vamos nessa?
- O que mais rolou na conversa de vocês?
- Nada que te diga respeito, melhor: nada a teu respeito.
- Melhor assim.
Subimos em direção à avenida Paulista pela rua Augusta. A altura do nº 1.415 – Cerqueira Cesar, fica a Livraria Ícone, da Editora do mesmo nome, cujo proprietário, senhor Luiz Carlos Fanelli, ou, simplesmente “seu Luiz”, como todos o chamam, um senhor de cabelos e barba longa e brancos, além de marxista ferrenho, é um excelente papo, acreditando que é possível a construção de um mundo melhor, mesmo depois de seus setenta anos. Vi, na vitrine, um livro cujos título é “FatoConsumado”; entrei e pedi ao vendedor. Quando começava a folheá-lo, seu Luiz desceu do mezanino, o que não permitiu que eu lesse nada além do nome do autor, Odim Brandão Ferreira. Iniciamos a nossa sempre prolongada conversa, mas fui alertado pelo Thadeu que estávamos atrasados. Pedi a ele que comprasse o livro que depois eu lhe repunha o valor. Enquanto ele se afastou para fazê-lo, relatei, por alto, ao seu Luiz, o nosso projeto. Ele se mostrou interessado, pois queria saber mais. Fomos interrompido pelo Thadeu, que disse já ter efetuado o pagamento.
- Fica para depois, seu Luiz.
- Me apareça aqui o mais breve possível, para me contar isso direitinho.
- Vou trazer o papai para tomar “umas geladas” com o senhor e, então, conversaremos.
- Até mais, garotos.
- Até depois, seu Luiz.
Ao partirmos comecei a folhear o livro novamente, o qual tinha por subtítulo “História e Crítica de Uma Orientação da Jurisprudência Federal”. Tô ferrado, pensei, eu é que não fui prudente! Tratava-se de um livro de Direito!
- Cara, isso é um livro de Direito!?
- Sei lá, foi você quem comprou. Eu só paguei.
- É claro, é um livro de Direito. Droga!
- Vai dizer que você não sabia? Por que comprou?
- Pelo título principal. Pensei que ia encontrar no “Fato Consumado” alguma inspiração para conversar com a Lélia.
Thadeu riu que se enrolava. Olhava para minha cara e ria de novo, e cada vez mais. Num dos raros intervalos naquele seu acesso de riso até a escola, disse:
- Dê de presente para o seu pai.
Foi a única coisa sensata que ouvi dele naquela tarde! O resto, era ele olhar para mim e cair na gargalhada.
Ao chegar a escola encontrei a Lélia, que sorrindo veio ao meu encontro e tentou me beijar na boca, tendo eu evitado com um leve movimento de cabeça à esquerda. Ela estava alegre e se mostrava muito confiante.
- E aí, tudo bem? Perguntei.
- Tudo muito bem.
- E o bebê?
- Também.
- Que bom.
- Vamos entrar?
- Vamos.
Senti que ela tentou segurar na minha mão, o que evitei segurando nas alças da mochila.
- Na hora do intervalo precisamos conversar.
- Sobre o quê? Perguntou-me.
- Sobre nós, é claro.
Senti que suas sobrancelhas franziram e aquele riso leve em seus lábios dissipou-se. Entramos na sala. Esperei que ela sentasse para que eu pudesse sentar longe dela. Não fosse o olhar tristonho da Lélia, de vez em quando, em minha direção, as matérias ministradas teriam sido totalmente compreendidas, pois consegui me concentrar bem melhor que no dia anterior. Na hora do intervalo a Lélia ficou sentada esperando que todos os demais saíssem. Depois que todos saíram, caminhamos juntos até a quadra.
- Quer comer ou beber algo?
- Pode ser, quero uma água tônica diet.
- Preferência por marca?
- Pode ser uma classic.
Fui até a lanchonete. Felizmente a fila estava pequena e logo fui atendido. Ao voltar e entregar o copo à Lélia e servi-lo, fui surpreendido por sua resoluta altivez ao dizer:
- Estou à tua disposição. Pode falar.
- Não sei como dizer o que quero, é ...
- Diga logo para que não percamos tempo, disse me interrompendo.
- Não quero te machucar.
- Você já está machucando.
- Não é minha intenção.
- Não precisa se preocupar comigo. Já sei o que você quer dizer.
- Sabe!?
- Sei.
- Então o que é?
- Foi você quem disse que queria falar comigo. Prefiro ouvir da sua boca.
Fiz longo silêncio.
- Que foi? Desistiu da má notícia?
- Como você sabe que é má?
- Para dar boa notícia a pessoa não fica enrolando por tanto tempo.
- É o seguinte ... eu queria lhe dizer que ...
- Prossiga.
- Não sei como continuar.
- Se você não sabe, eu vou lhe dizer: você quer me dizer que não quer mais ficar comigo. Não é isso?
- É, mas...
- Você não é homem para assumir suas decisões?
- Sou, mas, como eu disse, não queria magoar você.
- Você acha que tudo que você vem fazendo não vem me machucando há muito tempo? Você pode pensar que eu sou criança, mas não sou não. Sei que quando o Thadeu me procurou, ele estava fazendo algo que você tinha pedido. Eu, por não querer encarar a realidade, o interrompi antes que ele prosseguisse naquele assunto que eu já sabia do que se tratava. Meu pai já tinha conversado comigo antes da visita de vocês lá em casa. Ele estava muito nervoso, mas não me disse nada, queria antes saber que solução você encontraria para o caso. Depois de ouvir de seus pais que você não tinha intenção de ficar comigo, ele me chamou e conversamos longamente. Me fez relembrar os conselhos e orientações que ele e mamãe me deram sobre sexo, e que eu desobedeci. Ele não me cobrou nada, apenas me fez ver que eu tenho que arcar com o ônus da minha irresponsabilidade, apesar dele não ter falado em irresponsabilidade, apenas tem me feito ver que devo assumir a responsabilidade pelos meus atos. Disse que vai estar do meu lado e a única coisa que ele quer de mim é que eu continue estudando, a fim de que eu possa, no futuro, manter meu filho.
- Eu vou ajudar também.
- É o mínimo que você pode fazer, afinal, ele não foi feito por mim sozinha. Depois da conversa com meus pais, chorei muito, acredito já ter chorado tudo que podia, pois compreendi que para os seus pais você não mentiria, como mentiu para mim, sobre os seus sentimentos ao meu respeito. Assim, se para eles você falou que não quer ficar comigo, eu, mesmo sofrendo muito, fui capaz de compreender que não adianta lutar por aquilo que um dia acreditei ser amor. Portanto, não se preocupe comigo. Siga seu caminho que eu vou procurar seguir o meu. Mamãe já providenciou minha transferência para o turno matutino aqui na escola, você não vai precisar mais me ver.
- Mas eu quero ver você.
- Melhor não, pelo menos por enquanto. Estou muito fragilizada, abatida, dolorida. Preciso me acostumar com a ideia, ou melhor, a realidade, de que entre nós não há mais nada. Hoje mesmo, quando você chegou, mesmo eu já sabendo o que me aguardava, tentei me enganar, quando nos encontramos, que nada do que estamos conversando iria acontecer.
- E o bebê?
- Não se preocupe com ele. Vou cuidar dele da melhor forma que poder. Meus pais já me disseram que ele, ou ela, será muito bem-vindo.
- Se precisar...
- Sim, se precisar de algo devo pedir aos seus pais.
- É isso.
- Eu deveria estar te odiando. Você fez tudo o que fez e agora está fazendo o que está fazendo, mas, felizmente, minha mãe conseguiu me mostrar que, além da irresponsabilidade também ser minha, esse sentimento mesquinho só iria prejudicar o bebê.
- Eu, sinceramente, não sei o que dizer.
- Você talvez nunca saiba o que dizer. Vive à sombra de seu pai.
Percebi que por detrás daquele discurso sereno de Lélia tinha um rancor contido pelos conselhos de seus pais.
- Está na hora de voltarmos, acabou o intervalo.
- Volte você. Vou ficar aqui um pouco, preciso de ar fresco.
Tentei me despedir com um beijo no seu rosto, mas ela virou a cabeça para o outro lado. Andei rápido, esperando chegar à sala antes do professor, o que de fato ocorreu, apanhei minha mochila e saí do colégio.
Já na rua, liguei para o celular do Thadeu. Estava na caixa postal. Queria avisá-lo da minha saída e convidá-lo para me acompanhar num chopp.
Meio desorientado, caminhei poucos passos e estava em frente ao Salmon & CO, um restaurante situado na Alameda Jaú, nº 1.199, onde já tinha almoçado um bom bacalhau com meu pai e descobri que o atendimento é de primeira. Entrei e fui atendido pelo próprio proprietário, que depois soube chamar-se Elio. Pedi um chopp e fui beber no andar superior, onde não queria ver ninguém, desejo que concretizei, pois os fregueses do almoço, como já era tarde, tinham ido embora.
Depois do terceiro chopp, sorvidos com rapidez incomum, veio até a mesa o Elio, que, como quem não quer nada, puxou conversa. Tentei cortá-lo, mas ele, educadamente, insistiu. Perguntou pelo meu pai, que era seu freguês assíduo, principalmente nos happy hours de sexta-feira, daí a razão de lembrar-se de mim, pois tinha ido ao seu restaurante uma única vez. Também me disse que sempre me via passar para comer um cachorro quente no “CÃOpeão”, uma mini-van Towner, da Kia, que fica estacionada em frente ao restaurante e onde a turma do Dante, certamente sem o consentimento de seus pais, junta-se a outros apressados da região e come sanduíches com “refri”. A notícia de que era observado pelo meu interlocutor me deu a sensação estranha de que era vigiado, mas ao mesmo tempo uma sensação boa, de que alguém conhecido de meu pai me protegia com o olhar, pois podia avisá-lo de algum imprevisto. Também me liguei que ele merecia confiança, já que nunca dissera para o velho que eu comia naquela lanchonete, que, a despeito de limpa, não era recomendada pela qualidade da comida que servia. Falamos de futebol, descobrimos que torcíamos para o mesmo time. Perguntou-me porque eu não fazia inglês na escola Alumini, que fica em frente ao seu estabelecimento; disse-lhe que já tinha estudado com professora particular, mas já estava esquecendo a língua por falta de exercício, e que era um caso a pensar estudar logo ali. Finalmente, perguntou:
- Você está com algum problema?
- Não, nenhum. Por que, dá prá ver?
- De certo modo sim, você está bebendo muito rápido.
- Isso é sinal de problema?
- Quase sempre. Não estou pedindo para você me falar, só quero saber se posso ajudar.
- Obrigado pela preocupação; realmente não tô legal, tô esperando meu primo para irmos para casa.
- É verdade, seu fiel companheiro não está com você. Vocês sempre passam juntos. Cadê ele?
- Tá na escola. Melhor, preciso ligar pra ele, dizer que tô aqui. Tá na hora da saída.
- Fique à vontade, com licença, disse e se retirou.
Liguei para o Thadeu, que atendeu no primeiro toque e já foi dizendo:
- Mano, onde você tá?
- Tô aqui no Salmon?
- Onde!?
- No Salmon, sabe onde é?
- Claro, só não sei o que você está fazendo aí. Não tínhamos marcado na saída?
- Tínhamos, vem para cá que eu te conto.
- Tô indo, disse e desligou.
Pedi mais um chopp. O Elio trouxe uma garrafa de cerveja Baden-Baden, me disse que era produzida em Campos do Jordão e que era muito boa. Disse-lhe que ficava para outra vez, mas pedi uma Bohemia de trigo e mais um copo. Ele pediu licença e retirou-se. Antes que a cerveja fosse servida o Thadeu subiu a escada de madeira correndo, fazendo um barulho infernal. Para nossa sorte éramos, naquele fim de tarde, ainda os únicos clientes. Esbaforido, perguntou-me:
- Então, irmão, o que houve?
Como o garçom chegava com o pedido, disse-lhe:
- Toma aí um copo e já te conto.
- Desembucha, logo, estou aflito.
Contei-lhe toda a minha conversa com a Lélia, nos mínimos detalhes, pois estava me remoendo com a afirmativa dela de que “vivia à sombra de meu pai”. Enquanto narrava o ocorrido, tomamos mais uma garrafa de cerveja.
- Melhor assim, mano. Afinal, não era isso que você queria?
- Era, mas era antes de eu saber do bebê.
- Isso muda?
- É claro que muda.
- Então fica com ela.
- E a Luíza B.?
- Então tá bom como está. Você gosta mesmo é da Luíza B.
- Eu sei.
- Assume, então.
- Tô assumindo.
- Vamos comemorar, você se livrou da Lélia!
- E o meu filho?
- Deixa ele nascer, depois pensamos nas farras que vamos fazer juntos.
- E se for menina?
- Deixa de ser chato, você já tá é bêbado.
- Você também acha que eu vivo à sombra do papai?
- Claro que acho. Por acaso você não vive mesmo?
Senti meu corpo esquentar, certamente que as maçãs do meu rosto ficaram vermelhas. Thadeu prosseguiu:
- E que mal há nisso? Será que você vai encontrar um melhor amigo do que o seu pai? Melhor viver à sombra do próprio pai que a de um canalha qualquer? Felizes daqueles que podem contar com os seus pais. Onde você vai encontrar o apoio, a compreensão e a lealdade que você encontra com o seu pai? “Velho”, essa “mina” tá louca, morrendo de inveja do pai que você tem.
Compreendi que o Thadeu estava certo, que meu pai, além de ser meu melhor amigo, era a pessoa que eu sempre ia poder confiar. É certo que tinha uns assuntos meio difíceis de conversar com ele, e eu sentia que ele também tinha uma certa dificuldade de tratá-los comigo, mas, mesmo um pouco acanhado, ele nunca deixou de falar sobre drogas, sexo, estudo e esportes, por exemplo.
- Só acho que tá na hora de irmos. “Tá buscando fuga na bebida”? Questionou Thadeu.
Aquele “tá buscando fuga na bebida”, me soou familiar. Lembrei da nossa conversa sobre drogas, e o álcool também é uma. Meio envergonhado e sentido que realmente já estava bêbado, levantei-me para ir ao banheiro e vi que já não dominava tão bem as minhas pernas, pedindo:
- “Mudinho”, pede a conta e a saidera, por favor.
- Você ainda aguenta?
- É claro.
- Não esqueça que “de bêbado não tem dono”.
- Só se for o do teu velho.
Chequei no banheiro mas custei a acertar a direção do jato da urina. Preciso ir, pensei. Ao voltar, tinha um tira-gosto, filé com cebola e pão ao alho e óleo, que foi devorado imediatamente. Pedimos outro, este comido já com parcimônia. Ao final, pagamos a conta e nos dirigimos para a saída. Tive que descer a escada me segurando no corrimão e o Thadeu na minha frente, buscando me proteger num possível tombo. Reconheci que não tinha condições de ir para casa andando. Thadeu chamou um táxi. Aproveitei para comprar uma latinha de skol para ir bebendo durante o percurso. Thadeu quase a secou no primeiro gole. Reclamei, mas ele disse que estava com sede. Sede nada, queria mesmo é que eu não bebesse mais.
Não lembro a hora que cheguei em casa. Segundo o Thadeu, felizmente, meus pais tinham saído e, assim, não puderam ver meu estado lastimável, apesar de terem sentido o cheiro de álcool em meu corpo quando foram me dar um beijo de boa-noite, já que não tinham me visto. Thadeu tentou justificar a eles que eu estava com muita dor de cabeça e tinha ido dormir. Dor de cabeça decorrente da conversa mantida com a Lélia, que não foi omitida.
Acordei quando o dia ainda nem bem amanhecia. Como tinha ido dormir cedo, acordei cedo, com uma dor de cabeça monumental, e a cama toda suja de vômito.
Lembrei de até a hora que entramos no táxi, a partir daí passei a fazer suposição de como cheguei naquele estado. O travesseiro estava cheio de pedaços de cebola e carne. Era o bendito tira-gosto!
Levantei. O cérebro pareceu que estava solto dentro da caixa craniana. Tive forças, entretanto, para tirar o edredom, o lençol e a fronha do travesseiro e jogar no cesto de roupas sujas do banheiro.
Tomei um banho frio, na esperança que a água conseguisse aliviar o mal estar e a dor. Ledo engano.
Apanhei novo edredom e me deitei novamente, esperando que o Thadeu, ou a Luíza B., aparecesse para pedir-lhe que fosse comprar um remédio, pois meu estoque tinha acabado. Alguém bateu à porta. Imaginei que fosse papai ou mamãe. Era o Thadeu.
- Você nunca se faz anunciar, o que houve? Ai, ai, ai.
- Teu “ai ai ai” não diz nada? Pensei que ainda tivesse dormindo.
- Tô morrendo de dor de cabeça, sede, enjôo...
- Tenho aspirina efervescente na minha mochila. Vou apanhá-la.
- Vá rápido, estou para gritar de dor, ai, ai, ai.
Thadeu já voltou com o remédio efervescendo em pouca água, mas trazia, também, minha mãe em sua companhia, e já entrou se justificando.
- A tia chegou na cozinha quando eu estava rasgando o envelope e me perguntou quem estava doente. Não pude dizer que era eu...
Voei sobre o copo e tomei seu conteúdo de um só gole.
- O que que você está sentido, meu filho? Disse naquele desespero característico das mães.
- Nada que amanhã ele já não esteja disposto a sentir de novo, tia.
- É isso mãe, é a maldita ressaca, o lado ruim do chopp.
- És o retrato do teu pai! O mesmo dengo nessa situação. Vou te curar com o mesmo que costumo curá-lo.
- Dengo nada, a senhora diz isso porque nunca sentiu essa dor dilacerante e esse enjôo sem fim, mas, por favor mãe, nada de comida sólida, preciso apenas de líquido.
- Eu sei, eu sei: nada de sólido. Quanto a enjôos, já esqueceu quem te pariu? Sofri durante minha gestação enjôos quase que contínuos. Já volto.
Disse e saiu.
- Meu, que pileque! Lembra de algo?
- Só de até quando entramos no táxi.
- Ainda bem que tu não és teimoso, como costumam ser os bêbados da tua laia.
- Olha o respeito, mano. Laia coisa nenhuma, esse foi meu primeiro porre.
- Espero que não seja o último, pois quero te acompanhar em outros tantos.
- Tudo bem, mais agora vou ficar quietinho esperando esta borrasca que está no meu cérebro passar.
- Posso trabalhar no computador?
- Melhor, irmão, vai para o do escritório, por favor. Quando a Luíza B. chegar, diz pra ela que estou malzão, que tomei remédio e agora preciso dormir um pouco. Me acordem por volta das dez horas, creio que aí já estarei curado.
- Deixa comigo. Bons sonhos.
Acordei poucos minutos antes do horário que tinha previsto. A dor de cabeça tinha acalmado, embora tivesse permanecido o mal estar característico da ressaca. Fui até o escritório e já encontrei o Thadeu conversando com a Luíza B. Dirige-me até ela e beijei-a.
- Já, mano? Faltam cinco minutos pras dez horas, brincou o Thadeu.
- Já estou quase recuperado. Já posso trabalhar. Vamos conversar sobre suas aventuras, Luíza B.?
- Vamos sim, meu relatório já está pronto.
- Vamos lá pro meu quarto, lá posso acompanhar a leitura deitado.
- Podem ir, vou desligar o computador e já vou, disse Thadeu.
Quando todos já estávamos no quarto, a Luíza B. leu o relatório das visitas que fizera, o qual já tinha trazido pronto de sua casa. Todas as respostas que esperávamos foram positivas. Embora algumas ficassem aquém do que desejávamos, outras foram além, o que compensou as que não foram correspondidas.
- Deixei com os nossos parceiros que vão contribuir com dinheiro, o número da conta bancária no Banespa-Santander. Para os outros, que vão ajudar com material, indiquei o endereço do sobrado.
- Como você sabia o número da minha conta?
- Sou precavida, como sabia que iriam pedir, anotei de um desses extratos que você deixa sobre a mesa.
- Você merece, além de um milhão de beijos, uma placa de ouro e uma menção honrosa, disse-lhe ao beijá-la.
- Tô com um probleminha. O pessoal dos stickers quer saber o que devem escrever nos adesivos.
- Envie-lhe as mesmas mensagens (convites e propostas de parcerias) que mandamos. Com elas, eles, que são muito inteligentes, saberão o que dizer. Diga-lhes que estão livres, dentro do tema, para usar a criatividade, respondi.
- O pessoal das placas já respondeu. O orçamento mais barato é o único que não financia, o pagamento deve ser à vista.
- Melhor assim, ainda temos grana e é melhor não assumirmos dívidas futuras.
- E onde é que os nossos convidados vão fazer as refeições? Perguntou Luíza B.
- Bem lembrado. Onde?
- Já que a Luíza B. está com experiência em contato com empresários, melhor falar com proprietários, gerentes e administradores de restaurantes, hotéis, pizzaria etc., ponderou Thadeu.
- Topas, amor?
- Alguém vai ter que fazer, não vai? Então, eu faço.
- Sabíamos que poderíamos contar com você, não é, Juarez?
- Obviamente.
Como ficamos em silêncio, perguntei:
- Mais alguma coisa?
- Não da minha parte, disse Luíza B.
- Nem da minha, acompanhou Thadeu.
- Primão, preciso conversar, em particular, com a Luíza B. Você nos dá licença?
- Claro. Luíza B. vou, novamente, para o escritório e lá vou fazer uma relação de contatos para a tua futura missão, quer?
- Você é um anjo, claro que quero.
- Que eu sou um anjo ninguém duvida. Olha meus cachinhos, disse puxando os cabelos. Fui!
Quando Thadeu saiu, Luíza B. iniciou a conversa:
- O que houve? Qual a razão do seu porre?
- Uma coisa de cada vez.
- Então comece, estou te ouvindo.
- “Siguinte”: sem querer eu vou ser pai.
O rosto de Luíza B. foi do rubro ao pálido em milésimos de segundo. Seus lábios ficaram com a cor plumbosa e retraídos.
- O que que você tá me dizendo!?
- Eu posso explicar.
- E isso tem explicação?
- Vou dizer como aconteceu?
- Por favor, poupe-me dos detalhes, eu sei muito bem como as crianças são feitas.
- Não, não é como são feitas que eu quero explicar. É como isso foi acontecer.
- Não sei se quero ouvir, quero mesmo é ir embora.
- Uma das coisas que sempre me atraiu em você é a sua capacidade de ouvir e compreender, além de encontrar solução para tudo.
- É, mas agora o problema me envolve, além de ser um problema que me diminui enquanto mulher. Não sei se consigo ser juíza do meu caso.
- Ouça, pelo menos, em nome do nosso amor. Do meu pelo menos, que é muito grande.
- Eu estou vendo...
- Não seja irônica. Se eu não te amasse não estaria querendo te explicar.
- Não sei se meu amor é capaz de resistir a traição.
- Não foi traição...
- Então o que foi?
- É isso que estou tentando te explicar.
- Será que isso se explica?
- Se você não me ouvir vai ser difícil saber.
- Desembucha.
- A primeira coisa que eu quero que você saiba é que eu te amo muito. Luíza B. sorriu ironicamente. Prossegui: - a segunda é que não existe nada entre mim e a mãe do bebê.
- Quer dizer que o bebê foi feito por telepatia? Não, por inseminação artificial, que está em moda?
- Não. Estou dizendo que agora, não existe mais. O bebê foi feito pelo método tradicional. Essa última frase fez com que Luíza B. tremesse, prenunciando um possível gesto agressivo, típico das mulheres. Desculpe, mas é que você não está colaborando com o que eu quero dizer...
- E eu tenho que colaborar!?
- Ou melhor, queria que você só me ouvisse. Depois que eu terminar você diz o que quiser.
- Vou tentar.
- Pois bem, não sei como isso aconteceu, pois eu gosto mesmo é de você. Não sinto falta de nada quando estou contigo. Foi um ato impensado. Se eu pudesse voltar atrás, voltava. Talvez seja essa ansiedade de me afirmar como homem. Você sabe como, na minha idade, anda elevado o nível de testosterona. Estou arrependido. Não pelo bebê, mas porque você não é a mãe.
Senti que minhas palavras surtiram algum efeito, pois o estado de nervosismo dela se abrandou. Aproveitei e contei-lhe a solução que entendemos mais razoável, bem como a minha conversa com a Lélia no dia anterior no colégio, sem, contudo, citar seu nome. Encerrei com:
- É isso, por enquanto, quero que você me perdoe.
- Queria te fazer uma pergunta: e se fosse o contrário, eu é que estivesse grávida de outro, você me perdoaria?
Podia mentir para ela, dizendo que sim, que a perdoaria, mas eu não queria mentir. Então, respondi.
- É diferente.
- O que que é diferente? Ao que eu saiba, traição é traição.
- Você é mulher.
- Há, eu não sabia que traição tinha sexo.
- E não tem, o que eu estou dizendo é que, sendo você mulher, você vai carregar para sempre “a marca da traição” (eu já tinha ouvido essa frase, embora não lembrasse onde).
- Machista!
- Já leste o romance D.Casmurro, do Machado de Assis?
- É claro.
- Então sabes da tortura espiritual do personagem Bentinho?
- Ele mereceu.
- Como mereceu? Prezar a amizade é merecer ser traído?
- Quem disse que ele foi traído? Ninguém até hoje conseguiu responder sobre o motivo da angústia dele.
- Por aí você vê, se com a dúvida ele já ficou no estado que ficou, imagine se ele tivesse certeza.
- Pois é, eu tenho certeza.
- Sim, mas não sei se a criança vai morar conosco quando nos casarmos.
- Casarmos!? Quem disse que eu quero casar com você?
- Você.
- Eu!? Quando?
- Sim, você, naquela noite em que estávamos jantado e você chamou papai de sogro.
- Foi força de expressão.
- Mas todos nós acreditamos. Depois que você saiu, perguntei ao meus pais se eles aceitavam e eles disseram que sim. Menti.
Essa mentira foi como um balde de água gelada sobre um ferro em brasa. Ela se desarmou completamente. Senti que a Luíza B. tinha aceitado a situação. Me aproximei e abracei-a; ela tentou, falsamente, se desvencilhar dos meus braços. A apertei fortemente contra meu peito, e disse-lhe:
- Meu amor, me perdoa, isso nunca mais vai acontecer.
- Espero, se acontecer de novo, eu te mato.
A paz estava selada.
- Preciso ir, tenho que pagar umas contas lá de casa.
- Fica para almoçar.
- Melhor não, não quero encarar seus pais, pelo menos agora não. Pergunta ao Thadeu se ele terminou de fazer a lista de futuros visitados.
Fui até o Thadeu e já voltei com a lista impressa. Entreguei-a para Luíza B. e ela disse:
- Não precisa me levar até o elevador. Depois te ligo.
Tentei beijá-la na boca, mas tudo que consegui foi o gosto de sal de suas lágrimas. Ela saiu e eu caí na cama, sorrindo de felicidade interiormente.
Poucos minutos depois da partida da Luíza B., papai entrou no quarto.
- O que houve ontem, filho?
- Tudo já foi resolvido, pai.
- Resolvido para quem?
- Para todos.
- Todos não, ontem soube que você tomou um porre. Vim até seu quarto e senti o álcool puro que exalavas.
- Desculpe pai, foi mal, mas é que eu estava muito ruim.
- E foi buscar fuga no álcool? Já esqueceste daquela nossa conversa a respeito do Thadeu?
- Não senhor, não foi fuga, só fiz exagerar, literalmente, na dose. Tanto não era fuga que não quero mais saber de álcool por um longo tempo.
- Longo tempo, geralmente, é a duração da ressaca.
- Não é o meu caso. Não tô a fim mesmo.
- Melhor assim. Posso ajudar em algo?
- Só em me levar para almoçar.
- Não seja por isso, vamos, sua mãe hoje caprichou.
Fui chamar o Thadeu e fomos almoçar.
Depois, já no colégio, pude constatar a ausência da Lélia, que, certamente, tinha ido para o turno matutino, como dissera. Encontrei, na hora da merenda, com a professora Luciana. Conversamos longamente, em especial sobre filmes. Ele me disse que já tinha visitado nossa página na net, da qual gostara bastante, pois era objetiva e auto-explicativa. Disse também que achara fabuloso que na janela “fale conosco”, tinha a indicação do número de telefone, pois ela entende, no que concordo, que a opção única do e-mail, quando se tem muita pressa, chega a ser frustrante, embora as páginas insistam nesse distanciamento para com seu visitante. Para isso, o telefone, ainda, é insuperável. Combinamos de ir ao cinema, sem, contudo, marcarmos data. Quando ela saiu de perto, percebi que começava, novamente, a arranjar problemas para com a Luíza B.
A noite, incentivado pelos elogios da Professora Luciana, fui rever o nosso sítio. No ícone “convidados”, abri as pastas referente a cada um deles, a fim de conferir os seus dados novamente. Afinal, eram alguns desses dados que seriam impressos nos “crachás” de cada um dos filósofos, a serem entregues já no aeroporto quando de suas chegadas. Serviriam, ainda, para serem usados por nossos parceiros, em especial, pela imprensa, e, finalmente, de lá sairiam os mini-currículos com os quais os palestrantes seriam apresentados no início de cada apresentação.
Passaram-se dias, todos com muito trabalho. A data para a abertura do evento já seria na próxima semana. Tudo estava pronto. Tínhamos conseguido fechar todas as pendências envolvendo nosso projeto.
A Luíza B. conseguiu, mais uma vez, obter apoio de restaurantes paulistanos para todos os dias do evento; também, não era de admirar, já que a cidade conta com centenas de milhares desses estabelecimentos. Podíamos assim contar com café, almoço e jantar. Ou seja, com fome nossos convidados não ficariam.
Houve um certo corre-corre para solucionar a questão das passagens áreas para nossos filósofos. A Varig e a TAM comprometeram-se a levá-los de volta. Com a AirFrance e a Transportes Aéreos Portugueses – TAP, conseguimos com que cada uma trouxesse a metade do grupo.
Estávamos em uma reunião, já fazendo os últimos retoques, quando o Thadeu disse:
- Luíza B. e Juarez, nós estamos esquecendo de um filósofo brasileiro que, a despeito de polêmico, é muito bom.
- Brasileiro bom? Além de mim não sei se existe, brinquei.
- Engraçadinho, disse a risonha Luíza B. Diz logo, Thadeu, quem é?
- O Olavo de Carvalho.
- Olavo de Carvalho, o cara é muito briguento, será que ele não vai aprontar?
- O cara é polêmico, mas é educado. Tem cursos de filosofia, inclusive em vídeo. Gosta de Aristóteles, ponderou Thadeu.
- Será que ele tem agenda?
- Se não perguntarmos, não vamos saber.
- Vai fundo, então, convide-o, mas, saiba, você é responsável por ele.
- Me junto a você, Thadeu, nessa responsabilidade, complementou Luíza B.
Como quase todos os demais convidados, Olavo de Carvalho também aceitou o convite.
Decidimos que o discurso de abertura do evento caberia ao papai. O de encerramento a nós três.
Convidamos para mestre-de-cerimônias o professor da PUC-SP, Juarez F., que aceitou a incumbência.
À medida que os dias se passavam, nós continuávamos na nossa rotina cada vez mais frenética de trabalho. Não aconteceram, contudo, fatos que mereçam narração particularizada.
Nesse ínterim, entretanto, acompanhei, meio a contragosto por parte dela, a Lélia em algumas visitas ao médico, especialmente quando ia fazer ultra-sonografia. Adorava olhar os movimentos indefinidos, a princípio, do bebê. Era como se um pedaço de mim estivesse em movimento longe do meu corpo, e sobre o qual eu queria ter controle a distância, como quem usa um controle remoto. No terceiro mês da gravidez ficamos sabendo que nosso filho era um menino, para minha completa alegria. Fato é que, embora de bom coração aceitasse que o bebê pudesse ser uma menina – o importante era nascer com saúde – meu coração batia mais forte mesmo era por um rapaz, pois já o via jogando pelada comigo e me acompanhando em outras aventuras.
Fizemos a última reunião de trabalho sobre o evento três dias antes de sua abertura. Estava tudo pronto. Pedimos aos nossos parceiros de divulgação que a iniciassem. Deixamos para a última hora porque, como já dissemos, não tínhamos espaço para acomodar todos os possíveis futuros interessados. Fomos ao sobrado fazer a última inspeção antes da chegada dos nossos convidados; estava tudo em ordem. Testamos o sistema de gravação audiovisual. Nem uma falha detectamos. A empresa de conservação, limpeza e segurança que contratamos já tinha escalado as pessoas que manteriam o ambiente habitável. Lembro-me dos seguintes funcionários: José Aroldo dos Santos, Erivaldo da Silva Nunes, Sergilvanio Alves de Souza; Armando dos Santos e João Luiz de Souza. Chefiava o grupo uma senhora chamada de Dona Lôla. Todos, como ao final constatamos, muito dedicados aos seus serviços.
No dia seguinte ao nosso pedido, a cidade amanheceu grafitada e com os stickers nos locais que nos foram indicados previamente como livres para essas artes. Podemos constatar, e Thadeu especialmente, que ficou mais intenso o debate entre os grupos de internautas que nos acompanhavam. Nossa página ficou cheia de sugestões, registros, críticas e pedidos. Nossos visitantes superaram as mais otimistas expectativas. Na imprensa escrita vimos pequenas notas em pés de páginas, o que nos pareceu, de início, falta de apoio, mas, depois compreendemos que, como o projeto era arrojado, ninguém queria colocar o pescoço na forca por ele, além de nós mesmos, é claro. Conversei com um jornalista da Folha de São Paulo, para cuja redação ousei ligar para saber a razão do aparente desinteresse, o André Mugiatti, que me explicou que, ao contrário do que eu pensava, houve interesse sim, prova maior era que mesmo em pequenas notas, todos tinham divulgado, fato raro para eventos como o nosso. Além do mais, ele acreditava que a estratégia de todos os meios de comunicação era a seguinte: entrevistar os nossos convidados, quando, aí sim, o evento teria a repercussão que esperávamos. Agora, perguntou-me ele francamente: entrevistar quem? E se os seus convidados não vierem? Argumentei que todos já tinham confirmado presença, mas André, pragmaticamente, disse algo que, percebi, encerrava nossa conversa: “imprevistos acontecem”. Agradeci a atenção e desliguei. Ele tinha razão.
Na televisão e no rádio também não vimos ou ouvimos nada. Porém, depois do “imprevistos acontecem” do André, não questionei o comportamento omissivo. Até porque, me perguntava: “entrevistar quem?”. Se para jornal isso já era complicado, imagine para os outros meios de comunicação.
Na noite anterior ao dia da véspera daquele da abertura do encontro já quase não conseguíamos mais dormir. A Luíza B. já estava, praticamente, morando lá em casa, com dedicação exclusiva, como, há muito, já estava o Thadeu.
Soube, posteriormente, que os pais do Thadeu ligavam diariamente para a mamãe para saber dele, a qual passava o relatório, de modos que ele restringia-se a poucas palavras com seus genitores, para os quais a mamãe sempre recomendava que não se preocupassem, pois, no final daquela nossa aventura, receberiam um filho “já homem feito”, como dizia. Afinal, seu roteiro era: casa-escola-casa.
Luíza B. e eu acabamos, naquele corre-corre, sem muito tempo para conversarmos, fato que, de certo modo, era até bom, uma vez que eu andava ainda muito envergonhado para com ela.
Os filósofos começaram a chegar no dia anterior ao da abertura do encontro. O primeiro vôo, o da TAP, trazendo-os, pousou no aeroporto internacional de Cumbica, em Guarulhos, por volta das sete horas da manhã. Já os esperávamos na saída no saguão, ainda pouco movimentado naquele horário. A passagem pela Polícia Federal para que os passaportes recebessem o visto de entrada levou um tempo excessivo, para nossa ansiedade.
Embora achássemos que não iríamos precisar, pois julgamos que identificaríamos a todos fisicamente, levamos uma placa, como fazem aqueles que esperam desconhecidos, com os dizeres: “PITAGORIANDO EM SAMPA, sejam bem-vindos”.
O primeiro que apareceu quando a porta automática se abriu foi Protágoras. Um homem de aproximadamente dois metros de altura, corpo atlético, cabelos bem aparados, nariz levemente afilado e proporcional à sua face. “É muito bonito!”, disse a Luíza B. ao meu ouvido, e completou: “um verdadeiro deus grego”. Se era para me provocar ciúmes, ela conseguiu. Fomos ao seu encontro e ele ao nosso, trazendo um largo sorrido que mostrada que tinha, aparentemente, mais de trinta e dois dentes.
Pedi ao Thadeu que o recebesse, o qual declinou em favor da Luíza B. Eu, enciumado e não desejando dar moleza ao inimigo, me adiantei e assumi o encargo.
- Seja bem-vindo a São Paulo e ao Brasil, mestre Protágoras. Eu sou o Juarez, este é o Thadeu, e esta é a Luíza B., seus cicerones nesta aventura. Prazer em tê-lo conosco e em conhecê-lo pessoalmente, disse-lhe estendendo a mão.
- A honra e o prazer de estar aqui são meus, e, acredito, de todos os outros que ora chegamos, respondeu apertando minha mão fortemente com sua mão de gigante.
Em seguida cumprimentou o Thadeu e depois a Luíza B. A esta cumprimentou-a beijando-a na face. Ficou, contudo, à espera do segundo beijo, que não veio. Notei seu embaraço e disse:
- Aqui em São Paulo, mestre Protágoras, como a vida é muito corrida, as pessoas costumam beijar somente um lado da face umas das outras.
- Entendi, obrigado, mas se corre o risco de ficar “penso” ou torto, por gastar mais um lado do rosto, enquanto o outro fica intocado.
Rimos da espirituosidade do nosso convidado.
Como os outros filósofos começavam a sair, Protágoras, educadamente, sugeriu:
- Não percam tempo comigo, já estou em casa, recebam os demais.
Seguimos a sugestão e, então, os três, passamos a dar as boas-vindas e fazer as devidas apresentações, oportunidade em que entregávamos os respectivos crachás, os quais, depois, facilitaram, sobremaneira, a comunicação, sem confusões, trocas de nomes.
Nesse vôo chegaram, além de Protágoras, Antifonte, Antístenes, Crates, Epicuro, Pirro, Arcesilau, Carnéades, Fílon de Larissa, Antíoco de Áscalon, Tales de Mileto, Anaximandro de Mileto, Anaxímenes de Mileto, Heráclito de Éfeso, Xenófanes, Parmênides, Hesíodo, Trasímaco, Crítias, Euclides de Mégara, Hipócrates, Zenon de Cítio, Filolau de Crotona. Ou seja, eram os primeiros vinte e três dos nossos convidados.
Quando o último a desembarcar, Filolau, se juntou ao grupo, pedi a todos que nos dirigíssemos para o ônibus que estava nos aguardando. Já encontramos o motorista com o maleiro aberto a espera dos equipamentos de viagem daqueles que transportaria. Para sua surpresa, nem um tinha volume tão grande que não pudesse levar como bagagem de mão. Esse fato também nos espantou.
Depois que todos adentraram, pedi a Luíza B. e ao Thadeu que avisassem à imprensa da chegada dos primeiros convidados. Os jornalistas queriam saber para onde iríamos; dissemos que, possivelmente, para uma padaria tomar café, mas que ainda não sabíamos, pois tínhamos que consultar os filósofos. “Era melhor que já tivessem feito isso, antes de ligarmos”, ponderou, com razão, o Marcelo O., um jornalista que estava de free-lance na revista Bravo, e que contratamos para nos assessorar naqueles assuntos, mas que, com a pressa, tínhamos esquecido de consultar, mas que agora, porém, assumiu, definitivamente, suas funções, pois a fase do improviso tinha chegado ao fim.
Com todos devidamente sentados, pelo sistema de som do ônibus, falei:
- Senhores, renovamos as boas-vindas a todos, estamos agora sob a responsabilidade do motorista Sérgio Pimentel, um experto no assunto, como são todos os brasileiros, ou pelo menos como todos se acham, apesar de não fazermos feio na Formula 1, como os senhores sabem e conhecem os nossos campeões mundiais nessa modalidade esportiva. Gostaria, no entanto, de saber dos mestres o seguinte: se preferem descansar, pois sabemos que a viagem foi longa, ou irmos tomar o café da manhã?
Podemos apurar que todos, unanimemente, preferiram ir descansar, pois, segundo disseram, tinham tomado o café da manhã servido na aeronave.
- Então, Sérgio, leve-nos para a Vila Madalena, por favor. Como os senhores demonstram o natural cansaço, falaremos sobre a cidade de São Paulo no city-tour que programamos para um dos próximos dias. Temos água e café aqui no ônibus; quem aceitar quaisquer dessas bebidas, é só solicitar: a Noêmia, irá atendê-los com muito prazer. Noêmia era uma das nossas contratadas para trabalhar no evento.
Durante o percurso muitos cochilavam; outros, mesmo sonolentos, insistiam em apreciar o visual paulistano.
Ao chegarmos ao nosso destino, convidei os filósofos a desembarcarem e se sentirem em casa, que todos nós, e os contratados para os serviços de apoio, estávamos à disposição. A medida que cada um ia saltando, já entregávamos um cartão magnético que destravava a fechadura das portas dos quartos, e nos quais, obviamente, já constava o respectivo número do quarto de cada um deles.
A disposição dos dormitórios, por hóspedes, ficou assim:
O quarto de número um foi destinado para: Tales de Mileto, Anaximandro de Mileto, Anaxímenes de Mileto e Heráclito de Éfeso. Ou seja, para integrantes da Escola Jônica.
No quarto de número dois ficaram: Protágoras, Antifonte, Trasímaco e Crítias, da Escola Sofística; Filolau de Crotona, da Escola Pitagórica, Xenófanes e Parmênides, os dois últimos da Escola Eleata.
O quarto de número três foi reservado para: Euclides de Mégara, da Escola Socrática.
Já no quarto de número quatro hospedaram-se: Hipócrates e Epicuro, das Escolas Hipocrática e Epicurista, respectivamente.
Por sua vez, o quarto de número cinco destinou-se a: Antístenes e Crates, da Escola Cínica.
O quarto número de seis acolheu: Zenon de Cítio, da Escola Estóica.
Alojamos no quarto de número sete: Pirro, Arcesilau e Carnéades, da Escola Cética.
O quarto de número oito, distante d`Os Sofistas, iria receber: Sócrates, Platão e Aristóteles, da Escola Socrática, recebeu, inicialmente, Fílon de Larissa e Antíoco de Áscalon, ambos da Escola Eclética.
Por fim, o quarto de número nove, aquele do piso inferior do imóvel, recebeu, inicialmente, o poeta Hesíodo.
Depois que todos estavam acomodados, meia hora após a chegada, tivemos que voltar ao aeroporto, pois o horário de chegada do próximo vôo com o segundo grupo de convidados já se aproximava. Rumamos, novamente, para o Município de Guarulhos, onde fica o aeroporto de Cumbica. No percurso, depois da anuência de Marcelo, juntamente com ele, passamos a disparar telefonemas para nossos parceiros da imprensa, informando-os da chegada do outro grupo, sendo que agora, ninguém mais pensou no “imprevistos acontecem”, até porque um imprevisto agora não seria somente um imprevisto, mas uma tragédia, e, embora tragédia seja uma das muitas especialidades gregas, não desejávamos assistir uma delas nessa altura do campeonato.
Quando descemos do ônibus no aeroporto, já encontramos inúmeros fotógrafos, cinegrafistas e jornalistas. Marcelo passou a falar com eles e dar as coordenadas.
Luíza B. e eu fomos à prática paulistana do cafezinho, enquanto esperávamos pelo Marcelo. Thadeu tinha ficado no sobrado para gerenciar as atividades e atender possível emergência. Marcelo se aproximou e perguntou-nos:
- Por que que vocês não colocaram esse povo em um ou mais hotéis? Não seria mais prático e econômico?
- Seria Marcelão, mais quem, a não ser um louco como papai, para acreditar nisso quando a ideia surgiu? Hoje não temos dúvidas que todos os hotéis e aparts teriam a honra de hospedar quaisquer de nossos convidados, mas, no início, quem acreditaria que eles viriam? O meu velho acreditou porque gosta de filosofia e uniu o útil ao agradável, afinal, ele teria que, de qualquer modo, reformar o imóvel, portanto, nada melhor que reformar, fazer o encontro e, após, poder, se for o caso, vender o imóvel reformado.
- Não é nada tola a criança!
- Puxou para o filho, disse eu querendo fazer graça.
Marcelo foi olhar no monitor próximo ao saguão e, quando voltou, disse-nos:
- O avião já está no solo. Vamos nos posicionar?
Dessa vez o posicionamento já foi mais complicado, pois além de pessoas que aguardavam outros passageiros, tivemos a companhia da imprensa, mesmo assim conseguimos levantar nossa placa com o “PITAGORIANDO EM SAMPA...”
O primeiro, desta vez, a parecer no saguão, foi Aristóteles, em tudo muito semelhante a Protágoras, não fosse o nariz mais protuberante e a calvície no centro da cabeça, à semelhança das imagens de Santo Antônio. Repetimos as boas-vindas dispensadas ao grupo que havia chegado anteriormente, e esperamos que a imprensa fizesse o seu trabalho, pedindo, contudo, brevidade, pois nossos convidados, todos haviam de convir, estavam cansados, mas que receberiam a todos nos dias que se seguiriam.
Nesse vôo da AirFrance, chegaram: Pitágoras, Zenon de Eléia, Melisso de Samos, Empédocles, Anaxágoras de Clazômenas, Leucipo, Demócrito, Diógenes de Apolônia, Górgias, Pródico, Hípias, Sócrates, Diógenes de Sinope, Aristipo, Platão e Aristóteles, Homero, Péricles, Orfeu, Alcidamas, Euclides, Lícofron e Arquimedes. Um total de vinte e três pessoas.
Depois de todos embarcados no ônibus, repetimos o mesmo já narrado quando do traslado do primeiro grupo. Aqui, também, todos preferiram ir descansar.
Na chegada, tudo igual novamente.
Papai se encarregou de apanhar três de nossos convidados que chagaram em hora e vôos diferentes. Eram eles: W. K. C. Guthrie, que veio de Londres, Miguel Spinelli, que veio de Porto Alegre, e Mário José dos Santos, que veio de Juiz de Fora.
Todos foram para os seus quartos, enquanto nós contatávamos o restaurante onde seria servido o almoço.
Acordamos que três horas de descanso, para o pessoal que chegou no segundo grupo, seria, se não o suficiente, pelo menos o necessário para irem ao almoço, após o qual poderiam descansar novamente, pois aquele dia seria livre, exceto para o jantar.
Assim fizemos.
Por volta das treze horas, colocamos para tocar pelo sistema de som, que ia até os quartos, uma música suave, a fim de despertar nossos convidados. Foram dez minutos de boa música. Após a sequência, Luíza B. iniciou:
- Pedimos desculpas por importuná-los, mas gostaríamos de convidá-los para o almoço. Aqueles que nos derem a honra da companhia, deverão estar na sala principal desta casa em quarenta minutos. Muito obrigada.
Voltamos a elevar o volume da música.
Aos poucos os filósofos foram acorrendo ao local marcado para onde devíamos nos reunir para a saída. Na hora marcada todos já estavam reunidos. Nos dirigimos para o ônibus que nos levou para o Terraço Itália, um restaurante famoso e tradicional de São Paulo, onde, em 1968, esteve a Rainha Elizabeth II, da Inglaterra, fica na Praça da República, mais especificamente na avenida Ipiranga, 344, esquina com a avenida São Luiz, no topo do Edifício Circolo Italiano, um dos edifícios mais altos de São Paulo, com quarenta e um andares.
Foram servidos aos nossos convidados, além das entradas, quatro pratos (File de Truta com Amêndoas, Spaguetti com Salmão Defumado, Vodca e Caviar, Camarão com Manga Grelhada e Risoto da mesma Fruta e Costelinha de Pacu com Abacaxi Grelhado). Bebeu-se cerveja Skol, vinho Casa Valduga, sucos variados e água mineral bioleve, obviamente, opção de muitos. A sobremesa ficou por conta da escolha de cada qual, podendo, quem a desejasse, servir-se à vontade na mesa repleta de iguarias.
Informamos aos filósofos que, após o almoço, eles poderiam, da sacada do prédio, ter uma visão panorâmica da cidade de São Paulo. Todos eles, com exceção de Górgias, foram apreciar a imensidão da cidade, a qual tem por tamanho o alcance da vista de seu observador. Um dos filósofos, cujo nome ora não recordo, comentou que a cidade de São Paulo fugia à sua idealização de cidade perfeita, pois esta, em seu entender, devia ter por tamanho onde a visão de um observador colocado em seu centro atingisse. Não era o caso de São Paulo, obviamente.
Quando começaram a voltar para o interior do restaurante, vimos que era hora de voltarmos à base, razão pela qual os convidamos para o retorno, alegando, ainda, o cansaço da longa viagem. Quando tocamos neste assunto, Platão comentou:
- Nós, os gregos, gostamos muito de viajar, eu especialmente; portanto, o cansaço não nos maltrata tanto, o que está a nos maltratar, nesse momento, é o excesso de comida. Precisamos mesmo de uma boa sesta.
Depois da risada geral, nos despedimos agradecendo penhoradamente a acolhida e nos dirigimos ao elevador.
Antes da chegada ao sobrado, convidamos a todos para o jantar, que seria às vinte horas.
- Melhor nos acordar com música, como agora à tarde, pois acredito que o sono será profundo, disse Zenon de Eléia.
A tarde foi dedicada ao descanso de todos nós, pois ninguém é de ferro. Ficou de plantão, para uma possível emergência, o Thadeu.
Às sete e trinta ligamos o som. Faltando quinze minutos para as vinte horas, a Luíza B. avisou nossos convidados. O ônibus movimentou-se uns cinco minutos antes do horário marcado para a partida, já que todos tinham embarcado. Nos dirigimos ao restaurante Famiglia Mancini, na rua Avanhandava, nº 81 – Bela Vista, que é uma cantina italiana tradicionalíssima, toda enfeitada com motivos e cores italiana. Cada filósofo ficou à vontade para escolher o prato de sua preferência, sendo informado a eles que, comumente, uma massa serve a três pessoas, além da rica mesa de antepastos. Bebeu-se bastante vinho Almaden, sucos e água mineral Aquarela.
Ao término do jantar, os proprietários da casa tiraram muitas fotografias, como é costume fotografar os famosos que frequentam o local, para depois afixar nas paredes. Fomos informados, ainda, que algumas cadeiras, a partir de então, também receberiam pequenas placas de metal com os nomes de alguns dos visitantes ilustres, no formato das já existentes e que registram a passagem de outros convidados ou fregueses.
O compromisso inaugural da manhã seguinte nos levou mais cedo de volta para o sobrado. No percurso já nos despedimos de todos, informando que a abertura do evento seria às nove horas, que para qualquer emergência iria ficar um dos nossos contratados, o Erivaldo, à disposição, mais exatamente, ele poderia nos localizar a qualquer hora.
Como entendemos que pela brevidade do evento não compensaria a instalação de uma central telefônica para atender a todos simultaneamente, optamos por disponibilizar telefones celulares para nossos convidados, por intermédio dos quais eles poderiam comunicar-se com o mundo, em especial, com seus familiares. Conseguimos junto à empresa TIM a cessão dos telefones móveis, e o que é melhor, com tarifa liberada.
Sócrates, quando recebeu seu aparelho, um Siemens, comentou:
- Vou ligar agora mesmo para Xantipa, minha esposa fica deveras preocupada quando das minhas saídas e viagens. Teme por minha língua.
Após todos se recolherem, fomos para casa. Um misto de alegria, euforia e ansiedade tirou o sono de todos nós. Dormimos já pela madrugada, entregando a responsabilidade para nos acordar ao despertador, embora estivéssemos confiantes em papai e mamãe, pois ambos também iriam à abertura do evento, cabendo ao primeiro, inclusive, o discurso inaugural.