Artigos

Você está aqui: Home | Artigos

Há sim, lide em sede de ADIn

In Artigos

osordenamentos jurídicos, com Constituição (escrita ou não, e este é um outro equívoco), é plenamente aceita a supremacia desta sobre os demais instrumentos normativos (leis e demais atos normativos) que venham a ser produzidos sob sua égide, pois é a Constituição quem determina a forma com as leis serão editadas (via processo legislativo), bem como, em alguns casos, regra também o conteúdo das mesmas positivamente, já que, passivamente dita todo o conteúdo legal, pois lei alguma lhe pode ser contrária, embora isso ocorra até com certa frequencia e a lei, mesmo inconstitucional, continua fazendo parte do ordenamento jurídico, ou iniciando uma nova "série normativa de subordinação", como ensina Tercio Sampaio Ferraz Jr.
 
Pois bem, quando o poder Legislativo (vamos trabalhar com a regra) edita uma lei, o faz com a colaboração do poder Executivo, que é quem a sanciona e a publica, tornando o que era, até então, projeto, em lei, efetivamente

.
 
Se Legislativo e Executivo, conjuntamente produziram a lei, o fizeram para atender alguma necessidade pública, ninguém faz lei por mero diletantismo e para expô-la numa vitrina para mero deleite visual seus e de outrem, o faz acossado pela premência de alguma causa concreta que o leva a tal produção. Tanto isso é verdade que, dentre os métodos de interpretação jurídica consta a interpretação histórica.
 
Imaginemos uma lei criando um novo tributo destinando a arrecadação de impostos para fazer frente ao caos imperante na saúde pública. Esses recursos, mesmo arrecadas pela União, serão repassados, também a Estados e Municípios. A lei é publicada, entra em vigor e a arrecadação e o repasse começam a ser efetuados. Todos os entes federados começam seus programas, com a construção de hospitais e postos de saúde, por exemplo.
 
Eis que a lei tem sua constitucionalidade questionada, por ação declaratória de inconstitucionalidade – ADIn, nos moldes do art. 102, I, a da Constituição Federal. Neste caso, o legitimado ativo (art. 103) é a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB.
 
A OAB tem por preocupação apenas a higidez/defesa da Constituição, sem nenhuma preocupação com os programas voltados para a saúde que vêm sendo executados. Faz uma leitura apenas jurídica do caso: interpretação da Constituição e da lei e a identifica a incompatibilidade entre elas.
 
A OAB não a preocupação, mas União, Estados, Municípios e os beneficiários dos programas a têm. Milhões de reais podem vir a faltar para a conclusão das obras e prosseguimento na distribuição de remédios, se a lei vier a ser declarada inconstitucional.

O que fazer?
 
Mesmo com todo esse drama por traz, chegou-se ao absurdo de afirmar que, em sede de ADIn não há lide!
 
Carlos Luiz Neto, em seu artigo "Obrigatoriedade do Advogado-Geral da União atuar na Defesa do ato ou texto impugnado por ação direta de inconstitucionalidade", bem resumiu o posicionamento da jurisprudência e doutrina sobre o tema. Diz o advogado da União:
 
"O Ministro Moreira Alves, ainda à égide da Carta Política anterior, na qualidade de relator da representação nº 1016-34, com absoluta maestria, esclarece em seu voto que ‘a representação de inconstitucionalidade, por sua própria natureza, se destina tão-somente à defesa da Constituição vigente quando da sua propositura. Trata-se, em verdade, de ação de caráter excepcional, com acentuada
feição política pelo fato de visar ao julgamento, não de uma relação jurídica, mas da validade da lei em tese, razão por que o titular dela – o árbitro da conveniência de sua propositura – é um órgão político (o Procurador-Geral da República), e a competência exclusiva para processá-la e julgá-la cabe ao Supremo Tribunal Federal, como cúpula de um dos Poderes da União’ [Representação nº 1016-3-SP, Rel. Ministro Moreira Alves, j. 20.09.1979, DJ 26.10.1979.].
Há que se ter presente, desde logo, que a ação direta de inconstitucionalidade não é proposta em face de uma

pessoa física ou jurídica, portanto, qualquer que seja a origem da norma impugnada a União não é parte. Aliás, não se pode olvidar que nas ações de controle concentrado não há partes. Não há lide, posto que não existe interesse a conciliar. O objetivo que se busca na ação direta de inconstitucionalidade, como bem disse o ilustre Ministro Moreira Alves, é a defesa da Constituição. Tanto é assim que, na petição inicial, o pedido é formulado à Corte Constitucional para que julgue determinada lei ou ato normativo inconstitucional e determine que a norma impugnada seja excluída do ordenamento jurídico positivo, não havendo, portanto, direito subjetivo a ser preservado.

Com efeito, segundo entendimento de Clèmerson Merlin Clève, "a finalidade da ação direta de inconstitucionalidade não é a defesa de um direito subjetivo, ou seja, de um interesse juridicamente protegido, lesado ou na iminência de sê-lo. Ao contrário, a ação direta de inconstitucionalidade presta-se para a defesa da Constituição. A coerência da ordem constitucional e não a defesa de situações subjetivas consubstancia a finalidade da apontada ação. Por isso consiste em instrumento da fiscalização abstrata de normas, inaugurando ‘processo objetivo’ de defesa da Constituição. Cuidando-se de processo objetivo, na ação direta de inconstitucionalidade não há lide, nem partes (salvo no sentido formal), posto inexistirem interesses concretos em jogo. Por isso, as garantias processuais previstas pela Constituição, não se aplicam, em princípio, à ação direta de inconstitucionalidade". [CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995.].

Assim, como visto acima, não há que falar em conflito de interesse entre a União e Estado em sede ação direta de inconstitucionalidade. De tal sorte, o fato de a norma impugnada ser estadual ou federal não tem nenhuma relevância na aplicação do comando inserto no §3º do artigo 103 da Constituição Federal. Enfim, não é o fato da norma acoimada de inconstitucionalidade ser estadual que impede a atuação do Advogado-Geral da União na defesa do ato ou da norma impugnada. Na verdade, não há nenhuma incompatibilidade no fato do Advogado-Geral da União defender uma lei estadual, afinal o que ele defende, na hipótese, é a constitucionalidade da norma legal e não a pessoa jurídica do Estado-membro, da mesma forma que defende a lei federal, e não a União."

Lide caracteriza-se por um conflito de interesse qualificado por uma pretensão resistida.

Vejam-ses essas duas afirmativas: "...

não existe interesse a conciliar", e "... não é a defesa de um direito subjetivo, ou seja, de um interesse juridicamente protegido, lesado ou na iminência de sê-lo".

 A despeito da ponderável posição, ela, aparentemente, não é absoluta e incontestável. Carl Schmitt, por exemplo, na sua obra "O guardião da Constituição" (Editora DelRey, Belo Horizonte, 2007), sem ter por finalidade, contudo, tratar especificamente do tema, nele mirando apenas de soslaio, já que a obra trata da defesa da constituição, afirma:
"Um tribunal lotado com juristas de carreira e que permanece consciente de sua posição como tribunal, provavelmente não vai em absoluto desejar abandonar a esfera da justiça real. Mas depois ele se defrontará com o dilema simples, ao qual sempre se faz alusão nas presentes exposições, uma vez que resulta, com referência à Constituição, para toda consideração exata dos limites da justiça, ou se trata claramente de infrações indubitáveis contra a Constituição, ou seja, uma justiça  atuante post eventum, ou, porém, de casos de dúvida e, então, o âmbito da justiça se restringe a um nada, primeiramente porque uma suposição geral denota a validade dos atos do legislador e do governo e, segundo, porque, mesmo em casos de atos estatais imperfeitos, a nulidade, a invalidada ou o caráter não-notório de tais atos, como Walter Jellinek mostrou em sua teoria dos atos estatais imperfeitos,' apenas em casos relativamente raros é a conseqüência da imperfeição, i.e., da infração contra uma norma qualquer. Mas se considerarmos a tarefa de um tribunal constitucional como sendo justamente o de dissipar as dúvidas sobre o conteúdo de uma determinação constitucional, o que ele faz, como exposto acima, não é mais justiça, mas uma relação obscura entre legislação e parecer jurídico.", (p. 73/74).

 "Muito mais tem razão R. Thoma quando diz que "o teor do artigo denota, antes, a negação da questão" se um
litígio sobre a Constituição do Reich também pode ser visto ou não como divergência constitucional dentro de um estado.", (p. 83).

 "A partir disso, a restrição "dentro de um estado" tornar-se ou uma limitação meramente territorial ou dependente do fato de que ambas as partes, ou pelo menos a parte acusada, sejam instâncias ou organizações estaduais. (...) quando o conceito de divergência for concebido de forma tão ampla que, por fim, toda divergência de opinião entre o Reich e um estado nele recaia.", (p. 84/85/86).
 
Se não tem lide (onde vai ocorrer a "dissipação das dúvidas") a decisão não seria mero parecer?
 
Vejam que o autor fala, claramente, em "litígio", em "partes", "parte acusada", e no controle há, sim, "divergência".

Por fim, arremata, o mestre:
 
"A resolução processual de divergências sempre conduz facilmente a uma coordenação das partes, especialmente quando prepondera a noção de um processo civil e as analogias a ele são aplicadas ao processo constitucional. (...)
 
Somente no caso da punição de violações constitucionais evidentes é que a analogia ao processo penal tem efeito. Mas, caso contrário, aparecerão inopinavelmente pontos de vista e argumentos do processo civil. Assim consta na decisão de 3 de dezembro de 1927 do tribunal do Estado: "No exame da questão, se o litígio em particular se apresenta como divergência jurídica, deve-se partir, no entanto, dos argumentos apresentados pelo requerente, nada é diferente do fato de que, no processo civil, quando do exame da admissibilidade da via judicial, as alegações do autor são tomadas como base.", (p. 97).
 Estamos, assim, na esteira deste último ensinamento, entendendo que, no controle abstrato de norma existe sim, lide.
 
União, Estados, Municípios e, especialmente, pacientes não têm interesse subjetivo, especialmente estes em receberem os medicamentos?

Não esqueçamos dois aspectos importantes: o voto do ministro citado acima ocorreu em pleno estado de exceção, do qual ele próprio era oriundo, e se transformou num dogma jamais questionado, petrificando a discussão e, assim, o conhecimento. Embora, em princípio, uma coisa, aparentemente, nada tenha a ver com a outra, sabe-se, perfeitamente, que isso tem grande importância na hora de esposar uma determinada interpretação.
 
Na verdade, a posição de Moreira Alves veio para salvar as aparências. É que, regra geral, os ministros do STF eram oriundos das hostes do poder Executivo (ex-procuradores-gerais da República, ex-consultores jurídicos da República e ex-ministros da Justiça etc.), o principal feitor de atos cuja constitucionalidade costuma ser quesitonada, daí ele ter arranjado a saída que esposou.

Relembrem que, hoje, se sabe claramente que John Marshall não poderia ter julgado o famoso caso Madison x Marbury, em 1803, já que antes de ser ministro da Suprema Corte Americana era ministro do Governo anterior que produziu o ato questionado
.
Ademais, que diferença ontológica existe entre o caso por nós hipoteticamente construído e a causa em que João e Pedro litigam por uma botija de gás? Nesta também o poder Judiciário não irá apenas analisar os fatos e aplicar a norma jurídica incidente sobre ele?
 
Substitua João e Pedro por OAB, de um lado, e União, Estados e Municípios de outro. Estes últimos não têm legítimo interesse em defender a constitucionalidade da lei que os beneficia e a população?
 
O fato do controle ser abstrato, apreciação mental da compatibilidade entre a Constituição e a lei, não é suficiente para demonstrar a falta de interesse de terceiros na lide, pois a capacidade intelectiva do julgador não interfere no interesse que estes tenham na causa. São coisas perfeitamente distintas. O mesmo não ocorre com o possível interesse que o próprio julgados tenha na lide (por exemplo, por ter ele colaborado na confecção do ato acoimando de inconstitucional).

 Mais, a retirada de uma lei do ordenamento jurídico pelo vício da inconstitucionalidade é um dos atos mais violentos praticado por um poder, no caso o Judiciário, contra os dois outros, o Legislativo e o Executivo (no caso de lei, repita-se), pondo em perigoso conflito, muitas vezes, a própria federação, quando uma lei estadual é questionada perante o Supremo Tribunal Federal, sabidamente um corte federal.
 
O conflito entre poderes é tão intenso (igual ou superior àquele entre João e Pedro), que Lúcio Bittencourt nos conta que:
 
"Pela terceira vez, foi Taney, como Chief Justice, quem sentiu e suportou a repulsa do Executivo, a cuja frente se encontrava a figura ímpar de Lincoln, o grande democrata, que sempre se manifestou encarniçado inimigo da supremacia do Judiciário. Referindo-se à decisão da Corte Suprema que, julgando inconstitucional o chamado "Missouri Compromise", negou a emancipação do escravo Dred Scott, Lincoln, pondo de parte a serenidade que o caraterizou em sua vida pública, afirmou que recusava obediência a essa decisão, como regra política: "all that I am doing is refusing to obey it as a political rule". E, mais tarde, ao prestar ao Chief Justice Taney o juramento relativo ao segundo período de governo, atacou de frente o assunto, negando à Corte Suprema os poderes que a esta se atribuíam: "O cândido cidadão deve confessar que, se a política do Governo, em questões vitais que afetam o povo inteiro, puder ficar na dependência de decisões irrevogáveis da Corte Suprema, convertendo-se tais questões em litígios ordinários entre partes, o povo terá deixado de ser o seu próprio senhor, abdicando praticamente do exercício do governo em favor daquele eminente tribunal...".

Portanto, diante de todo o exposto, somos levado a concluir que: existe sim lide em sede ADIn, razão pela qual deve o STF rever seu vetusto e xxxx, entendimento, especialmente diante do art. Xx, da Constituição que prescreve para o Brasil um sociedade justa e democrática, e não se faz justiça onde pessoas não podem defender seus interesses, nem democrática onde elas não são ouvidas, nem onde quem tem interesse na causa pode julga-la sem nenhum pudor.
 
Por derradeiro, minúcias sobre o que é e onde ocorre lide, é algo típico dos processualistas que, por amor incestuoso à forma, acabam sacrificando o conteúdo, sendo mais importante para eles o não decidir (por infringência de forma), que a pacificação social que não virá por continuar a causa latente no seio social.
 
Cabe, por fim, a pergunta:
Tóffolli julgará o caso Cesare Batiste?

por Osório Barbosa e Juarez Barbosa de Lima Neto

Você está aqui: Home | Artigos