Os erros de alguns dos donos das verdades - VII ( Sêneca).
por Osório Barbosa e outros.
"Sejamos justos: Sêneca jamais se apresentou como a encarnação do estoicismo e teve a honestidade de reconhecer que sua vida nem sempre esteve em conformidade com seus preceitos. No entanto, a acusação de hipocrisia persiste e sua existência nada tem de um modelo de virtude. Amante de cortesãs tanto quanto de princesas, dentre as quais Julia, filha de Germânico e provavelmente Agripina, a mãe de Nero, cujo assassinato ele justifica em seguida; cortesão subserviente, de uma indulgência excessiva com Nero; ávido por riquezas, acumulando milhões de sestércios e de propriedades, levando a vida em grande estilo, ele nada tem de um Diógenes ou de um Epicteto. Inclusive seu suicídio “estoico”, tão celebrado pelos artistas, é visto com reservas — como Sócrates, ele não tinha muita escolha: matou-se por ordem de Nero. Para Dion Cássio, é um hipócrita notório.
O que nos interessa, aqui, é que ele se preócupacom a questão da felicidade, à qual volta em numerosas cartas e à qual dedica tratados inteiros: Du respos du sage [Do repouso do sábio], Da tranquilidade da alma e, principalmente, Da vida feliz. Neste último, ele retoma do início a constatação de Sócrates:
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Na vida, é a felicidade que todos os homens querem; mais, quando se trata de ver com clareza em que consiste o que pode fazer a vida feliz, eles tem uma nuvem diante dos olhos.
Todos têm a pretensão de opinar sobre o assunto, mas na verdade cada um busca imitar os outros e apenas repete os lugares-comuns. Ora, na busca da felicidade, como em outros temas, “a multidão é a prova do que é pior”. Sêneca dá então sua própria definição: [Osório diz: bem internet!].
A vida feliz é aquela que se concilia com sua natureza. Só podemos obter essa vida se o espírito é são e sempre em posse de boa saúde; se, além disso, ele é enérgico e ardente; se é dotado das mais belas qualidades, paciente, adequado a todas as circunstâncias, cuidadoso com o corpo que ele habita e do que ali se proporciona, mas sem agitações minuciosas; se dá atenção às outras coisas da vida, sem se ofuscar por nenhuma; se sabe usar as dádivas da sorte, sem jamais delas ser escravo. Compreendeis, ainda que eu não o diga, que daí resulta uma tranquilidade perene, a liberdade, já que foi banido tudo o que a todo instante vem nos irritar, nos assustar.
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Sêneca tem a honestidade de reconhecer que a doutrina de Epicuro é próxima da sua, e muito rígida; seus discípulos é que o traíram, pretextando a apologia do prazer para estendê-lo à devassidão: [Osório diz: questão da relação discípulo e mestre, ou melhor, dos erros de uns e de outros].
Fonte: “A idade de ouro, História da busca da felicidade”, de Georges Minois, tradução de Christiane Fonseca Gradvohl Colas, UNESP, São Paulo, 2011, p. 66).
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(um bom fiador para uma causa ruim).
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Eu sei o que dirão: “Falas de uma maneira e vives de outra”. Vão censurar minha riqueza, minhas propriedades, meus escravos, as joias de minha mulher, minhas boas refeições, as lágrimas que derramo diante da morte de meus amigos, a cólera que sinto quando me caluniam; é esse o desapego do filósofo?
Eis o que eu responderia: não sou sábio, [...] exijo de mim não ser igual aos mais virtuosos, mas ser melhor do que os maus; [...] quando mostro minha indignação contra os vícios, é primeiro contra os meus. [Osório diz: Eu!] [Osório diz: Esta é uma citação de Sêneca].
... Falo de um ideal que não consegui atingir e poderíamos dizer o mesmo de todos os filósofos,
pois, se suas ações também estivessem no nível de seu discurso, quem seria mais feliz do que os filósofos? [,...] E de surpreender que eles não cheguem um alto, tendo começado a escalar encostas tão íngremes?
Confissão corajosa, mas catastrófica para nosso propósito: acreditamos ter encontrado um caminho para a felicidade, e isso não passa de ilusão? Então, nenhum dos filósofos que nos ensinam a vida feliz conseguiu alcançá-la? Mas eles não seriam mais sábios do que os homens comuns? A idade de ouro está realmente perdida.
O modo desajeitado de Sêneca defender suas riquezas apenas reforça essa constatação de fracasso: é claro, sou rico, mas não sou apegado ao meu dinheiro; ficaria indiferente se o perdesse; um filósofo rico não é a mesma coisa que um não filósofo rico: “Para mim, as riquezas têm importância; para vocês, são o mais importante”. Além disso, é mais difícil ser sábio sendo rico do que sendo pobre: tenho de provar “temperança, liberalidade, exatidão, economia, magnificência”; felizes os pobres, que não têm todas essas preocupações. “Então, parem de proibir o dinheiro aos filósofos; nunca a sabedoria foi condenada à pobreza”. Aliás, Catão era ainda mais rico do que eu. “Não me acho nem um pouco mais feliz porque tenho uma capa macia e porque estendo a púrpura sobre ricos tapetes em meus festins." Dinheiro não traz felicidade, sabemos todos. Mas, é verdade, prefiro filosofar no conforto, e até no luxo, “vestindo a toga ou o manto, a estar com os ombros nus ou mal cobertos”. [Osório diz: Arrasou!] [Osório diz: Serve para quem costuma acusar os comunistas de gostarem do que é bom].
Infeliz Sêneca! Que crédito daremos então a suas declarações sobre a felicidadedo do sábio que se desapega de todos os bens? Pois ele insiste fortemente nisso em suas cartas. Uma delas até se intitula “Sobre as vantagens da pobreza”. Como são felizes, os pobres! [Osório diz: É que ele sabia ser rico]
Comparem o rosto dos pobres e o dos ricos. O pobre ri muito mais e com franqueza; se lhe advém alguma preocupação, ela passa como uma nuvem. Mas entre aqueles a quem chamamos felizes a alegria é simulação; a tristeza, um mal terrível que os devora.
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É preciso acreditar que, afinal de contas, não é a felicidade que Sôneca procura; do contrário ele abandonaria seus milhões. Em outra carta, ele conta como, durante uma viagem, até experimentou a ventura da frugalidade: durante dois dias ficou com a mesma roupa, dormiu em um colchão no chão, tendo um casaco por cobertor; comeu figos secos e circulou em um veículo comum; e nem se queixou!
Minha viagem me ensinou quantas coisas supérfluas possuímos e quão facilmente poderíamos dispensar todas elas, já que não nos fazem falta quando a necessidade delas nos priva.
Não podemos alcançar a felicidade pela riqueza e pelos prazeres, como escreve a um amigo:
Você aspira a felicidade, mas se engana se espera alcança-lapela riqueza, se for às honrarias e aos negócios que a pede. Todos esses bens que você busca, como se devessemlhe dar prazer e contentamento, são fontes de tristeza. Corremos atrás da verdadeira alegria; mas ignoramos inteiramente o que a torna real e durável: este a procura nos festins e na devassidão, aquele na ambição e em um vasto cortejo de vassalos; outro, nos braços de uma amante; aquele outro, em uma inútil demonstração de conhecimento literário, e em estudos que não curam a alma. Todos esses homens deixam-se seduzir por diversões enganosas e passageiras; assim, a embriaguez nos faz pagar uma hora de alegria insana por um longo aborrecimento; assim, os aplausos e as aclamaçõesda aprovação popular se compram e se expiam por meio de cruéis angústias.
Não seria sua própria situação o que ele descreve aqui?
Ao longo de seus escritos, Sêneca retoma o problema da felicidade, tenta cercá-la, abordáa-la, explorar caminhos para alcançá-la. “A vida é um bem menor do que a felicidade”, diz. A felicidade, portanto, é o bem supremo. “Ela consiste na perfeição da razão.” Mas
o que é a vida feliz? E a segurança; é uma calma inalterável. Quem nos dará essa vantagem? A grandeza de alma e a perseverança em executar as decisões de um julgamento sadio. Como chegamos lá? Ao abarcar em um só olhar a [68] verdade inteira; ao conservar nas ações a ordem, a ponderação, a conveniência, uma disposição inofensiva e generosa, em conformidadecom a razão que dela jamais se separa, e que é digna tanto de amor como de admiração.
E acrescenta: ”Quanto ao prazer, é a felicidade do bruto”.
Às vezes, ele é mais concreto: saibamos aproveitar o presente, pois ”a esperança do futuro nos faz ingratos à felicidade presente";
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No tratado Da tranquidade da alma, ele opta claramente pelo repouso, com uma entonação que Epicuro não renegaria. Seu amigo Serenus está melancólico e hesita entre a carreira pública e a aposentadoria. Retira-te dos negócios, aconselha Sêneca, mas aos poucos, e procura a paz de espírito, que te garantirá a felicidade. Consagra-te ao estudo, passeia, frequenta amigos, bebe um bom vinho,
às vezes até podemos chegar à embriaguez, não para nela afundar, mas para encontrar um estimulante; ela dissipa as mágoas e desperta a faculdade da alma, e, entre outras doenças, cura a tristeza.
[Osório diz: Bela contradição com o que ele diz sobre a embriaguez mais acima!]
Não faça nada sem objetivo, sem razão; permaneça senhor de si, de suas emoções; que sua razão controle sempre sua conduta. Então, talvez você seja feliz.
Talvez... mas nada é menos certo. De fato, mais ainda do que para Horácio, podemos dizer que a obsessão da felicidade que percorre toda a obra de Sêneca é um sinal infalível de sua derrota. Sêneca, tão pródigo em conselhos sobre a vida feliz, não é feliz. Médico, cura-te a ti mesmo, poderíamos dizer. Ele o admite em uma carta a Lucílio:
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Não, Lucilio, estando eu mesmo doente, não tenho a pretensão de curar os outros; mas acamado, por assim dizer, na mesma enfermaria, converso com você sobre nossos sofrimentos mútuos; eu lhe comunico minhas receitas. Escute minhas palavras como se fossem dirigidas a mim mesmo. Apresento-o ao fundo de minha alma, e lá, sem sua presença, censuro-me, dizendo: “Conta teus anos, e enrubescerás de teres ainda os caprichos e os projetos de tua infância; prevê o dia de tua morte; mata teus vícios antes de ti; rompe com esses prazeres tempestuosos que custam tão caro, funestos tanto depois como antes da satisfação, [...] aspira de preferência a uma felicidade constante: ora, ela não será da alma se não for tirada dela mesma. [...] Quando serás chamado a fruir dessa felicidade? Longe de interromper a busca, tu te apressas a alcançá-la. Quantas obras te restam a fazer! Quantas vigílias e quantos trabalhos para atingir esse objetivo! E ninguém pode fazê-lo por ti".
Em outra carta, fica evidente que Sêneca tenta se convencer levantando objeções:
É verdade, me dirá alguém, que o sábio é feliz, mas não consegue chegar à felicidade perfeita. [...] Assim, o homem virtuoso não poderia ser miserável, mas não é perfeitamente feliz se estiver desprovido de vantagens físicas como a saúde e o uso dos membros. [...] Ouço alguém me dizer: o sábio, com um corpo fraco, não é feliz nem infeliz.
As respostas de Sêneca não são lá muito convincentes: se um sábio doente não é feliz nem infeliz, então ele é feliz, pois se não é infeliz, quer dizer que há nele uma virtude tal que nada pode perturbar sua felicidade! E, se ele é feliz, então é perfeitamente feliz, pois,
se a virtude pode impedir um homem de ser miserável, ela vai achar mais fácil ainda torná-lo perfeitamente feliz, pois o intervalo entre a felicidade e a perfeita felicidade é menor do que entre a felicidade e a infelicidade.
E claro, diz Sêneca, “essas máximas nos parecem paradoxais,exageradas, acima da humanidade”.
De fato, o próprio Sêneca não está convencido. O caminho estoico para a felicidade é irreal. É outro beco sem saída. Será que esse caminho já tornou [70] feliz algum homem? Isso é improvável. Esse endurecimento pode tornar os homens corajosos, sem dúvida. Felizes, certamente não.
Fonte: A idade de ouro, História da busca da felicidade, de Georges Minois, tradução de Christiane Fonseca Gradvohl Colas, UNESP, São Paulo, 2011, p. 64-71.