Escritos de Amigos

Você está aqui: Home | Artigos | escritos de amigos

Don Quixote, por Olavo Bilac!

Don Quixote

Olavo Bilac1

 

É em Argamasilla, humilde burgo da Mancha, não longe da água escassa do Guadiana.

 

Felipe II, “o Demônio do Sul”, acaba de morrer, no Escorial, catorze vezes sacramentado, abraçado à imagem do Deus do Amor, que a sua ferocidade transformou num Moloch devorador de vidas.

 

A Inquisição triunfa. A Espanha definha. A Invencível Armada com seus cinquenta mil homens de terra e mar, e os seus três mil canhões, em cento e cinquenta navios formidáveis, partida de Lisboa, entre repiques de sinos, para assombrar e assolar o norte da Europa, e naufragada nas costas de Inglaterra, engolida pelas ondas, no mais horrendo desastre naval que a História registra arrastou consigo para o fundo do oceano a fortuna de Espanha, a ambição do Rei Inquisidor, e o império universal sonhado por Carlos V... A miragem das riquezas da América arrebata da terra a gente válida que as guerras pouparam. A gente que fica vive ansiando e penando, num pesadelo. Nos campos, a lavoura morreu. A alegria desertou as cidades. Ainda os poetas cantam; mas o pensamento desapareceu da poesia, exilado pelo despotismo; a literatura é apenas a palavra vazia e retumbante; Gôngora é um semideus; tudo é inversão, tudo é metáfora, tudo é futilidade; e o poeta, para não morrer de fome, ou para não ser assado vivo, tem de comprimir e sufocar o seu talento, e há de implorar para os seus versos, em dedicatórias que rastejam e lambem o pó do chão, o apoio

[100]

compadecido de um Grande, O Escorial, levantado há pouco, em cumprimento de um voto do Rei, tem, para relembrar o martírio de São Lourenço, a forma de uma grelha imensa: os pés são as quatro torres; o cabo é o torreão da fachada oriental; e, sobre os jardins, alinham-se os dezessete claustros, como as barras da grade candente sobre renques de brasas. Essa arquitetura simbólica é a representação fiel do colossal assador, em que, há duzentos anos, se está estorcendo e chiando o corpo da miseranda Espanha, consumido a fogo lento...

 

Ora, em Argamasilla, num escuro ergastulo da casa de Medrano, há um homem, um prisioneiro, que veio acabar na prisão uma vida errante, de aventuras, de perigos, de combates e de aflições. O cárcere é imundo, sem ar e sem luz. O encarcerado é fraco, desprotegido, prematuramente envelhecido pelos trabalhos, física e moralmente arruinado pelo desespero.

 

Este homem, que foi outrora um brioso e galante mancebo, temido de homens e amado de mulheres, de ágil corpo afeito às caminhadas e às pelejas, barbas de ouro fulgido, olhos chispantes de alegria e coragem, risonha boca espirrando o sangue da saúde, robusto de braço e leve de pés, - é hoje um quase ancião, enfermo e estropiado. Na batalha de Lepanto, um arcabuzaço lhe mutilou a mão direita; enterrou-lhe outro golpe duas costelas na arca do peito; no hospital de Messina, curtiu longamente a dor das feridas e a dor do isolamento; em Corfu, em Navarino, em Túnis, devoraram-lhe o estômago as fomes, abrasara-lhe as sedes a garganta, aguaram-lhe e envenenaram-lhe o sangue as febres malignas. Muitas vezes, do navio em que afrontava a morte, viu outros navios, incendiados pelos brulotes ou estripados pelos esporões, ansiarem e desaparecerem nas águas, com uma palpitação de agonia nas velas ofegantes, como grandes aves fulminadas no voo; assistiu muitas vezes as abordagens ferozes, em que o convés de cada barco ficava alcatifado de corpos humanos, retalhados e esmigalhados pelo tropel dos combates, entre gritos de cólera e uivos de dor; viu muitas vezes o mar tingir-se, num largo raio, da púrpura do sangue vivo; viu vitórias e derrotas, naufrágios e apoteoses… Depois, quando a nostalgia, o cansaço, a miséria, o nojo da matança o traziam de novo à Espanha bem-amada, viu-se apresado por um troço de piratas, carregado de ferros, e foi remar como cativo nas galés da Argélia: e teve, então, cinco anos de cativeiro e desespero, com intervalos fugazes de vida e esperança - vida para reagir contra a morte, esperança de resgate ou evasão, vida e esperança bem cedo desfeitas sempre pela desilusão, aniquiladas pelo duro trabalho ao sol candente, sob o peso das grilhetas, sob o suplicio das tagantadas, na vergonha e na amargura...

 

Vede-o agora, aqui, na sua prisão de Argamasilla. Já não são mouros os seus carcereiros. São espanhóis, são cristãos, são irmãos. Não o quis a Morte, para presa sua, no redemoinho de fumo e sangue de Lepanto, nem na podridão do hospital de Messina, nem na infâmia das galés de Argel. A Miséria e a Glória, irmãs gêmeas no amor e no desamor, marcaram este homem para outro des- [101] tino. Aqui o tendes, encarcerado por dívidas, pagando o crime de ser pobre… Argamasilla é uma aldeia esquecida; a Corte está longe, em Valladolid; Felipe I mal acha tempo para acudir ao desmantelo do vasto império: ninguém pensa no pobre guerreiro mutilado, que aqui está com a barba de ouro mudada em barba de neve, mísero inválido, sem dinheiro, sem amigos, sem proteção…

 

Notai, porém: da antiga beleza varonil, alguma coisa lhe ficou, o lume do olhar, em que o sonho acende fagulhas divinas, e a malícia da boca desdentada, devastada pelo escorbuto, onde ainda se fixa um sorriso de superior ironia e de infinito orgulho. O encarcerado escreve... Ao tímido fulgor do raio de sol, que entra a custo pela seteira do cárcere, ou à luz mortiça da lâmpada, a sua mão vai traçando no papel linhas febris. As vezes os seus olhos choram; mas sempre a sua boca sorri: e sorrisos e lágrimas vão ficando gravados nas folhas que juncam o solo. Nelas, como num seio inerte e vazio repentinamente animado por um sopro criador, vão caindo e vivendo os mundos infinitos de revoltas, de angústias, de sarcasmos, de motejos, e ao mesmo tempo de piedade, que este homem tem dentro de si. É a criação de um universo moral que palpita, ganha corpo, fulgura, rumoreja, troveja, entre as quatro paredes da masmorra estreita!

 

Tudo quanto formou e agitou até aqui a alma espanhola toda a graça da terra; toda a pureza do céu; a fusão das raças, a serenidade romana, a brutalidade dos visigodos e dos suevos, a bravura dos árabes, o fanatismo dos conquistadores católicos; o amálgama dos dialetos, formando uma língua sensual e fogosa, que tem arrulhos de pomba para o beijo e ululos de fera para a blasfemia; a epopeia brilhante do Cid; o encanto da Renascença importada da Itália; a glória de outrora e as humilhações de agora tudo se funde, tudo se ilumina, tudo arde, passando através do gênio deste homem, que amassa em lágrimas o coração e o cérebro, para criar a Epopeia do Riso. Dias do cárcere, escuros como noites! Noites da masmorra, compridas como séculos, podeis correr uniformes e imutáveis! Podeis doer, velhas feridas do soldado! Podeis pesar, anos de desconsolo e isolamento! Podes pedir pão, estômago nunca bem alimentado! Podes pedir descanso, corpo nunca repousado! Podes pedir amor, alma nunca entendida! - o Criador não vos sente nem vos escuta: Cervantes está escrevendo o D. Quixote!

 

Quando este livro se tornou conhecido, na sua primeira parte (que é a sua verdadeira alma, porque é filha legítima da miséria de Cervantes), um riso formidável, mais espalhado e farto do que aquele que, quase um século antes, saudara o aparecimento do Gargantua, de Rabelais, sacudiu, num frenesi de alegria toda a Europa do século xvii, cansada das guerras, das depredações, das fogueiras e do luto. Foi o desafogo da alma humana! E há três séculos que esse riso está dando, como um ciclone, a volta do planeta. Não se pode dizer com segurança quantas edições já teve o romance imortal. Em todas as línguas, em quase todos os dialetos que se falam na superfície da terra, os homens têm podido ler, com entusiasmo, as aventuras do engenhoso fidalgo e do seu gracioso escudeiro. Para desmascarar um impostor, que tentara completar o D. Quixote, [102] Cervantes publicou, em 1615, a segunda parte da novela, que, assim acabada, continuou a ser traduzida e imitada, fazendo a conquista de todas as raças.

 

Não sei quem disse que todos os homens, ainda os menos melancólicos, os mais acessíveis à alegria, têm em si uma grossa caudal de lágrimas, ao lado de um fio escasso de risos... A verdade é que, em cem escritores, há noventa e nove que sabem comover e fazer chorar, e apenas um capaz de divertir e fazer rir. E ninguém jamais divertiu a humanidade como Cervantes! Milagre do gênio: extrair da própria miséria a alegria universal!

 

O segredo da vis cômica que reside no D. Quixote é conhecido. Nunca a inteligência humana criou uma representação tão clara e verdadeira do eterno contraste que rege a vida: a aproximação da asa, que quer o céu, e da pata, que se aferra ao chão. Sozinho, D. Quixote seria apenas um desequilibrado, possuído da mania da bravura; sozinho, Sancho seria apenas um camponês bocal e velhaco; juntos, porém - como, por um caso de teratologia, dois frutos dispares na mesma árvore -, D. Quixote e Sancho são a Vida... Cervantes amalgamou, nessas duas figuras, que são gêmeas apesar da sua contenda de origem e essência, os símbolos da dualidade moral. É a águia e o bácoro, a alma e a besta, o cérebro e o estômago, o sonho e o apetite...

 

O contraste é exagerado, no livro, até o delírio do cômico e do abstruso.

 

O herói é alto, esguio, espectral, como um desfolhado pinheiro no inverno; o escudeiro é baixo e roliço, como um suculento repolho no outono.

 

As duas alimárias, que atravessam a novela, reproduzem a antítese: Rocinante, pele e ossos, tem o desprezo das pancadas, a fome orgulhosa, o padecimento taciturno, como quem sabe que a vida, para ser nobre, tem de ser trabalhada e sofredora; a outra, o asno de Sancho, cerdas e ádipo, empaca no perigo, orneja com convicção diante dos campos verdes, como quem considera que todos os animais só vivem para amar a vida e as coisas boas da vida… [Osório diz: Repetem seus donos!]

 

D. Quixote ama uma sombra, uma visão, uma deusa gerada no seu cérebro, uma entidade intangível, em quem concorrem todas as perfeições da majestade e da graça. Sancho tem em casa uma mulher, que fulmina um boi com um soco, e uma filha que, para arrotear os campos, vale por dois homens. Dulcineia, que não existe, é para D. Quixote a suprema beleza, digna das homenagens de todos os reis da terra: "Dize-me, Sancho amigo, que estava fazendo, quando a viste, aquela rainha da Formosura? Estava ensartando pérolas, ou bordando em seda com canutilho de ouro alguma prenda para o seu cavaleiro? - Não, meu amo, estava joeirando duas fangas de trigo num pátio! - Mas, assim que a encontraste, Sancho amigo, não sentiste um divino odor, uma suave fragrância? Em verdade lhe digo, meu senhor, que senti um cheiro de... suor! - Era o teu próprio cheiro, desalmado! Que eu bem sei o perfume que deve ter aquela rosa entre espinhos, aquele lírio do campo... "Tal é, para D. Quixote, a Dulcineia irreal. Para Sancho, a anafada Mari Gutiérrez, bem real e bem rude, é o que vale e vale o que é: "Saiba vossa mercê, meu amo, que ain- [103] da que Deus chovesse reinos e reinos sobre a terra, nenhum deles assentaria bem sobre a cabeça de Mari Gutiérrez!..."2 21

 

D. Quixote é leal e inocente como uma criança que não conhece a maldade: todos o enganam, porque ele é o primeiro a enganar-se. Sancho é matreiro e velhaco: tem a esperteza do símio, a voracidade do rato, a astúcia da raposa; se acredita na missão do amo, é porque espera da sua liberalidade o governo de uma ilha, um condado, ou, ao menos, um saco de dobrões para o dote de Sanchica, ou uma albarda nova para o seu jumento, ou três frangos para o seu quintalejo. D. Quixote é a cigarra, Sancho é a formiga. Um adora o aço das espadas, que, ainda quando se enferruja, concentra em si o fulgor da glória; o outro adora o ouro das moedas, que não se enferruja nunca, e concentra em si todos os gozos da vida. O herói passa a existência a ler, e come pouco; quando jejua, jejua com o calado orgulho de Rocinante; o escudeiro não sabe ler, e devora: quando não come, protesta e orneja como o asno. Um quer salvar das refregas a honra e a espada; o outro, os alforjes em que traz o queijo e a cebola. Sonhar e batalhar é a ansia de D. Quixote; comer e dormir é o ideal de Sancho.

 

Roto, faminto, pisado, lanceado, escalavrado, D. Quixote vai pelos campos e pelas azinhagas, por montes e vales, por aldeias e desertos, buscando viúvas e órfãos que careçam de amparo, donzelas que requeiram defesa, inocentes que padeçam fome e sede de justiça, e caminha dentro do seu sonho radiante, como dentro de um Halo fúlgido, através do qual vê tudo transformado e encantado. Os moinhos de vento são tribos de Briaréus, de cem braços e cinquenta ventres. As vendas miseráveis, cheias de arrieiros e vaganaus, são castelos; o moço de estrebaria, que vem abrir a porta, é o homem de armas, que alça a ponte levadiça; o estalajadeiro, oleoso e bronco, é o senhor feudal, que, de volta das guerras cruentas, repousa na administração do seu feudo; e, à hora da partida, se Maritornes aponta à janela, é a nobre donzela chorosa que se despede do cavaleiro ingrato. A bacia amolgada, que o barbeiro, acometido e assustado, deixa cair na pressa da fuga, é o elmo encantado, que Reinaldo de Montalvão conquistou ao rei Mambrino. Os odres de couro, estripados a pontaços de espada, espirrando vinho grosso, são os corpos dos gigantes vencidos, golfando sangue. No teatrinho de Maese Pedro, este títere pequenino e esfarrapado é o verdadeiro Carlos Magno em carne e osso; aquele outro, brandindo uma vareta de pau, é o glorioso Rolando, em cujo punho a invencível Durindana faísca e gira, despedindo raios... E, numa roda-viva de golpes, de quedas, D. Quixote não sente as pauladas e as pedradas que o contundem e racham. E notai que todo esse arrebatamento de alma é sincero, como real e sincera é a sua bravura; D. Quixote nunca mentiu; o que ele viu na cova de Montesinos, foi realmente visto pelos seus olhos alucinados; e, quando, no caminho de Saragoça, os seus olhos se fixam nos olhos do leão que o Governador de Orã envía ao Rei de Espanha, é a fera quem tem medo…

[Osório diz: Bilac traceja bem as diferenças entre Dom Quixote e Sancho Pança]

[104]

Enquanto isso, que faz Sancho Pança? Diz rifões e come... O seu nariz, empinado e ansioso, fareja longe o cheiro suave dos quartos de cabrito que se assam nos ranchos dos pastores, dos nacos de toucinho que se desfazem nas panelas das estalagens, e dos requeijões com que ele suja e profana o elmo de Mambrino. Quando o amo arremete em fúria contra o inimigo, o escudeiro vai contemplar a batalha do alto de uma árvore, e de la deixa cair, entre gemidos e conselhos, a voz da prudência. O dia mais negro da vida de D. Quixote foi aquele em que ele teve, ultrajado e vencido, com a viseira sob a ponta da lança do Cavaleiro da Lua Branca, de prometer que se retiraria da carreira das armas; e o dia, entre todos triste, na vida de Sancho, foi aquele em que ele teve de sair das bodas de Camacho sem haver provado o gosto do gordo novilho assado, em cujo ventre dormiam, À maneira de recheio, doze leitões cozidos…

 

Ah! quem não há de rir da loucura de um, da animalidade do outro, da graça dos dois?

 

Mas, decerto, já vos aconteceu algumas vezes o que a mim me tem acontecido muitas vezes, quando leio D. Quixote. Ides lendo, ides rindo, e, de repente, há uma singular e inesperada tristeza, que vos gela o riso nos lábios. Sacudis essa melancolia importuna, e, considerando de novo a esgalgada figura grotesca do combatedor de moinhos e a brejeirice do escudeiro balordo, ensaiais de novo um riso satisfeito... Em vão! A vontade de rir passou; qualquer coisa, vaga e imprecisa, veio quebrar o encantamento; foi um ríctus de dor, foi um abafado gemido de tortura, foi um sufocado ranger de dentes, que vieram revelar o fingimento da alegria que parece animar o livro. E sentis, então, suspendendo o riso sacrilego, que a novela graciosa tem, como todas as obras de arte que o Gênio marcou com o seu cunho inconfundível, um duplo sentido. E, aqui, o sentido oculto, aquele que não percebem as crianças e os adolescentes que leem D. Quixote, aquele que somente os homens maduros, trabalhados pela vida e pelas suas decepções, podem perceber, é amargo como o fel, frio como o gelo, e duro como o aço...

 

Este livro é a sátira mais feroz e dolorosa com que jamais se amaldiçoou a baixeza da condição humana. Os seus 116 capítulos são as 116 estações da Via-Sacra do Ideal. O Sonhador caminha de desilusão em desilusão e de desastre em desastre. Tudo quanto de belo o seu sonho cria e anima fica logo desfeito em fealdade e em vulgaridade. Já não há, na terra, aventuras dignas de tal aventureiro! Nem ao menos as lutas em que ele se empenha têm um fim trágico e nobre; o herói não rola no sangue rola no pó; não é acutilado ou picado por montantes ou piques de heróis é amassado por asas de moinhos, moído às pauladas por arrieiros brutos, espezinhado por manadas de carneiros, apedrejado por tunantes e recoveiros...

 

Porque sofre tanto este homem? Porque é justo e porque é bom…

 

Na sua aldeia, antes da alucinação que o levou a sair pelo mundo a correr andurriais e a criar aventuras, todos o amavam. Depois de exaltado pela leitura [105] dos livros de cavalaria, houve nele uma hipertrofia da bondade; a sua misericórdia dilatou-se, generalizou-se, já não se contentando com dar alívio aos que sofriam perto da sua casa; considerou que o mal imperava em toda a terra, que toda a parte ardiam lágrimas, que não havia uma polegada da superfície do globo que não estivesse manchada pela iniquidade. Acicalou uma velha espada, desenferrujou um velho coto de lança, pôs uma viseira de papel sobre um morrião abolado, e saiu a endireitar as coisas tortas da vida...

 

Quereis ver, a um tempo, qual era o seu sentimento de justiça, e qual era o seu amor da bondade? Relede os seus conselhos a Sancho Pança, quando este balordo, inchado de ambição e de orgulho, vai governar a sua ilha da Barataria. Trezentos anos – três séculos! – passaram sobre a letra desses conselhos; mas a sabedoria que neles reside tem uma perpétua mocidade e uma inalterável frescura. Quem ainda hoje se arvorasse em conselheiro e mentor de um governante inexperiente poderia e deveria repetir-lhe, sem a menor alteração, estas profundas e sóbrias sentenças, que não ficariam mal se fossem gravadas, à maneira dos dísticos romanos, nas paredes de todas as casas de governo:

 

"Achem em ti mais compaixão, Sancho fiel, as lágrimas do pobre, porém não mais justiça que as alegações do rico. Procura descobrir a verdade entre os soluços e as importunações do primeiro, como entre as dádivas e as promessas do segundo. Onde houver lugar para a equidade, não carregues a mão no rigor da lei. Se houveres de dobrar a vara da Justiça, que seja com o peso da misericórdia, e não com o dos favores. Quando tiveres de julgar o pleito de um inimigo, aparta de ti a lembrança da injúria recebida e pensa apenas na verdade da causa alheia, porque os erros, que daí nascerem, as mais das vezes serão sem remédio. Se alguma linda mulher vier pedir-te justiça, afasta os teus olhos das suas lágrimas, afasta os teus ouvidos dos seus lamentos, se não quiseres que a tua razão se afogue no seu pranto, e a tua virtude nos seus suspiros. Se a alguém tiveres de castigar com atos, não o maltrates com palavras, pois já basta ao desditoso a pena do suplício, sem o suplemento das ofensas. Considera o culpado que cair debaixo da tua jurisdição como criatura miserável, sujeita às condições da nossa triste natureza; e, enquanto te couber, por tua parte, sem fazer agravo à parte contraria, mostra-te piedoso e clemente, porque, malgrado sejam iguais todos os atributos de Deus, mais resplandece, a meu ver, o da misericórdia que o da justiça!.." [Osório diz: Lula]

 

Tal é, assim pensa, assim discreteia o homem, para cujo suplício entram em ação todos os paus nodosos arrancados às arvores e todas as pedras apanhadas no chão da Mancha.…

 

É tão bárbaro, tão contínuo, tão constante o sofrimento deste homem bom, na sua louca jornada através da maldade humana, que às vezes uma revolta levanta o espírito do leitor contra a crueldade com que o seu criador o criou para a tortura e para o ridículo. Já um crítico alemão escreveu que, imaginando e compondo o D. Quixote, Cervantes revelou quase possuir a fria maldade de um inquisidor... Sim! naqueles tristes dias e naquelas tristes noi- [106] tes da sua prisão de Argamasilla, Cervantes sabia que estava escrevendo um livro cruel. Houve e há quem, para em si mesmo se vingar dos seus erros e dos seus pecados, se suplicia com cilícios e disciplinas, em penitências terríveis: era isso o que Cervantes fazia, quando, com um gozo satânico, inventava e multiplicava os padecimentos do seu herói. D. Quixote era uma exteriorização da personalidade de Cervantes; aquele trabalho de criação era um suplicio voluntário. E era a si mesmo que o poeta falava, quando falava à sua ficção: "Ah! tu queres ser bom, bravo, generoso, misericordioso, sonhador, numa época em que a vida e a felicidade somente são compatíveis com a maldade, a hipocrisia e a baixeza? Pois sucumbe às pedradas e aos golpes do ridículo, Cavaleiro da Triste Figura! Erra pela vida, exposto ao riso e ao sarcasmo! E, quando sentires que a morte se aproxima, confessa o teu erro, e morre, como deverias ter vivido, sem coração e sem cérebro, equiparado pela animalidade aos teus contemporâneos!" [Osório diz: PQP]

 

Lúgubre, trágica, desesperadora filosofia, a que se encerra nesta Epopeia do Riso!.. Vede como a bravura de D. Quixote é humilhada, e a sua abnegação ultrajada; cada benefício seu é pago com uma ingratidão, cada beijo com uma dentada, cada esmola com um insulto. O exaltado amor da Verdade e da Justiça, que o leva a arriscar a vida em mil lances, para castigar o crime, restabelecer a equidade e premiar a virtude, é monstruoso, extra-humano, ridículo. O mal é eterno, a injustiça é eterna... Sempre há de haver viúvas e órfãos roubados, inocentes perseguidos, humildes oprimidos!... O que é natural, sensato e humano é a submissão de Sancho, a sua prudência feita de egoísmo e de medo, o seu desejo de gozar a vida em paz, comendo, bebendo, dormindo, juntando dinheiro e gordura, deixando que as viúvas e os órfãos morram à míngua, que os inocentes sofram, que os humildes sucumbam sob a tirania dos grandes... O heroísmo é loucura, a abnegação é loucura, o amor do Belo, do Perfeito e do Justo absoluto é loucura!... O bom senso é a indiferença, é a acomodação perfeita às condições inalteráveis da vida, é a resignação ante o mal inevitável… [Osório diz: PQP de novo! Lula e Luiz Francisco Fernandes de Souza!]

 

Lede o episódio do ovelheiro André, esbordoado pelo amo. Era vão, a voz da cautela, pela boca medrosa e rude de Sancho, adverte o Justiceiro: "Senhor! não se meta em pendência de amo e criado!..".322 O Justiceiro impede que o malvado esbordoe o rapaz, ordena-lhe que lhe pague o salário devido e dali se vai com o ânimo tranquilo e a consciência satisfeita. Dias depois, reaparece o criado: “Ai, senhor cavaleiro! Não somente o bárbaro não me pagou o que me devia, mas, assim que vossa mercê se apartou, tantos açoites me deu que me deixou como um São Bartolomeu aspado! Por amor de Deus, quando outra vez me encontrar, não me socorra nem me ajude; deixe-me com a minha desgraça, que desgraça maior será a proteção de vossa mercê, a quem o céu amaldiçoe, assim como a quantos cavaleiros andantes andam pelo mundo!..

[107]

Assim, todo o esforço em prol do Bem é vão! Quem se mete a Redentor sacrifica os que quer redimir e sai crucificado... É a acerba filosofia deste livro, que, há trezentos anos, faz a humanidade rir!

 

E a página mais dolorosa é a última... O exaltamento caiu, a febre cessou, o sonho expirou: D. Quixote morre, entre os seus, na sua cama, sem viseira e montante, sem armadura e broquel, arrependido do engano em que viveu, envergonhado do bem que quis fazer, reconciliado com o bom senso e com a estúpida vulgaridade da vida. A pata, que se aferra ao chão, venceu a asa, que buscava o céu…

 

E é porque compreendeis e medis bem a amargura da filosofia encerrada neste livro, que uma súbita melancolia vos acomete quando o ledes. Já se disse que há duas idades para ler D. Quixote: há a primeira, em que o poema apenas faz rir, e a segunda, em que ele obriga a pensar. Que as crianças e os adolescentes continuem a rir, vendo as desastradas quedas em que o herói baqueia do alto do cavalo esquelético, e vendo o tormento em que se remexe a gordura de Sancho no tumulto das batalhas, e ouvindo as saborosas práticas em que o exaltamento do amo visionário e fidalgo contende com a chocarrice do escudeiro pacato e vilão! Riamos, nós também, mas pensemos, no intervalo de duas risadas.

 

Há três séculos se diz e escreve que Cervantes, compondo o D. Quixote, quis matar e matou a cavalaria andante, e o amor dos seus poemas e romances, remanescentes ridículos da idade média. É bem verdade que, às vezes, o nosso maior prazer é magoar e matar aquilo que mais amamos…

 

Cervantes era uma alma da Idade Média. Essa grande época da História, tão mal estudada, tem sido atrozmente caluniada. Quem diz "Idade Média” quer dizer: uma síncope da civilização, um túnel de treva entre duas paisagens luminosas, uma parada do progresso humano. Foi, entretanto, essa época que assistiu ao desabrochar da Indústria e da Caridade, as duas fontes de que fluem o trabalho para os validos e o amparo para os inválidos. Todo o conforto material, que fruímos hoje é um resultado das invenções dessa era tão injustamente malsinada. O papel a bússola, o relógio, a pólvora, o calçamento é a iluminação das ruas, os espelhos, as rendas, a gravura, a imprensa, nasceram nesses séculos que chamamos bárbaros; e foi a Idade Média que criou os primeiros hospitais, e os primeiros asilos para crianças e velhos. [Osório diz: Defesa da Idade Média]

 

Mas o que Cervantes mais amou, no ciclo medieval, foi o culto da bravúra, do amor, do cavalheirismo e da poesia. Naqueles longos discursos, que D. Quixote, sempre cego e alheado das coisas da vida comum, dirige aos pastores, aos lavradores, às gentes incultas e espantadas, que o ouvem com desassossego e receio, está palpitando o entusiasmo do batalhador de Lepanto que escrevia uma novela entre dois combates e rimava um soneto ao rebramar dos tiros de canhão. Esse espírito ousado e brilhante, tecido de energia e de ternura, de coragem e de lirismo, não podia amar a escura época de terror, de fanatismo e de dissimulação em que viveu; a época, que ele amava, era a outra, a que se [108] extinguira, a da apoteose do amor e do perigo.... E, como era absurdo esse amor, como essa paixão por uma era morta era monstruosa, o medieval, transviado no começo da idade moderna, vingou-se, ou pensou vingar-se da sua desgraça, ferindo, mordendo, despedaçando o próprio objeto do seu amor.

 

Cervantes, porém, não matou a Idade Média, que já estava morta, até porque não há homem capaz de matar o Tempo que nos mata, e porque as revoluções, as crises, as transformações históricas se fazem independentemente da vontade humana. E não matou também a Cavalaria, a alma ardente e apaixonada da idade média, porque o "quixotismo" é imortal.

 

Épocas há em que o sonho, o ideal, o amor das coisas e das ideias nobre a ânsia de realizar proezas materiais e morais, a ambição de nobilitar a vida, desaparecem e morrem, deixando-se sufocar, aqui pela ignorância, ali pelo fanatismo religioso, além pelo despotismo político. Então D. Quixote, torturado e desiludido, faz penitência, transige, submete-se, arrepende-se, nivela-se com os homens que só nominalmente ocupam o degrau superior da escala animal, e morre, reconciliado com as torpezas do interesse mesquinho. Mas, daí a pouco, o Cavaleiro desperta no fundo da sua cova escura, levanta a lápide do túmulo, empunha o montante, embraça o escudo, e sai a batalhar a sua eterna batalha, de novo exposto às pedradas, às quedas, às decepções e aos infortúnios. Eu não creio que a imbecilidade e a injustiça possam um dia ter um termo: mas não creio, tampouco, que possa morrer o ideal, que eternamente protesta contra a eterna imbecilidade e a injustiça eterna!…

 

Ó alma triste e incompreendida, sobre-humanamente boa e infinitamente desgraçada de D. Quixote! Tenho para mim que, quando um poeta como Cervantes consegue arrancar do cérebro uma figura animada, viva, palpitante, humana como a tua, a ficção se transmuda em realidade, e fica vivendo sobre os homens e entre eles. Não há apenas um mundo físico, acessível aos nossos sentidos: há também um mundo moral, tão verdadeiro como o outro, povoado de criaturas cuja existência só nos é revelada por este singular e misterioso sentido poético, que cada homem possui, mais ou menos apurado, e cuja análise escapa à fisiologia. Tu vives, D. Quixote!

 

Tu vives, e estás aqui, nesta casa em que residem, perpétuas, a recordação, a glória, a vida moral de poetas e guerreiros, que fundaram e imortalizaram uma raça, e tiveram, como tu, a inflamar-lhes o ânimo, esse amor do ideal, essa fé na bravura e na bondade, que te valeram tantos desastres! Vives, e ouves-me, que não estamos aqui para rir do Cavaleiro da Triste Figura, mas para amar a sua alma ardente e generosa!

 

Louco sublime! Eu sou filho de uma pátria moça e cálida, continuamente aquecida pelo sol que cria miragens. Ainda não formada de todo, ainda hesitante e incompleta, a minha raça não será o que é: cada dia que passa, traz um novo elemento para a sua formação. Mas nós já temos, do passado, uma herança feliz.. Os nossos avós saíram pelos mares, a descobrir mundos, a afrontar perigos, [109] a fundar civilizações; os nossos pais, já nascidos aqui, internaram-se pelo sertão cerrado, sem bússolas e sem guias, combatendo as feras, e assentando entre as brenhas selvagens as primeiras cidades. A tua alma estava com eles, D. Quixote! Não os animavam a prudência, a bufonaria, o decantado bom senso de Sancho Pança; animava-os o teu Impeto heroico, impelia-os a tua loucura divina! Sejam quais forem as transformações que hajam de mudar a nossa constituição orgânica de povo, conserva-nos este anseio de glória, esta ambição de subir, esta vontade de brilhar, este "quixotismo" que está na massa do nosso sangue! Não queremos ser uma raça de Sanchos, adoradora do Estômago! Queremos realizar grandes feitos, queremos ser, como tu, vingadores de iniquidades, protetores de órfãos, defensores de oprimidos, justiceiros sem maldade, e misericordiosos sem fraqueza! Não queremos ter a existência quieta e ignominiosa de um pântano de águas mortas: queremos ter, como tu, a existência agitada dos rios e dos mares, correndo, vibrando, fulgindo, cantando, sofrendo – vivendo! E, se formos apedrejados e vilipendiados como tu, não nos queixaremos: nem só os vencedores merecem respeito e carinho; e às vezes um vencido, tal seja a causa que defende, é, na sua humilhação, mais glorioso do que todos os triunfadores…

Inspira-nos e protege-nos, louco sublime!

[110]

 

Fonte: “Miguel de Cervantes Saavedra. D. Quixote de La Mancha. Nova Aguillar. Rio de Janeiro. 2016.

 

Obs.:

1 20 Conferência proferida no Gabinete Português de Leitura em 12 de junho de 1905. Conferências Literárias, Rio de Janeiro: Kosmos, 1906. Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (Rio de Janeiro, 1865-1918) foi o maior expoente do parnasianismo brasileiro, tendo deixado também uma obra relevante como cronista e contista. Foi um dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras.

2 21 Respeitam-se neste texto as citações originais de D. Quixote (N. O.)

3 22 Há aqui um equívoco e uma citação apócrifa, pois o episódio do castigo de Andrés ocorre na primeira saída de D. Quixote, quando ele ainda não conta com a companhia de Sancho. (N. O.)

18