A morte como piada
Jornalista e professor da ECA-USP, Eugênio Bucci escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto
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Um ser humano, sobretudo na hora da morte, merece de nós a nossa melhor expressão de respeito
Eugênio Bucci, O Estado de S.Paulo
27 de janeiro de 2022.
O falecimento do escritor Olavo de Carvalho, na terça-feira, repercutiu nas redes sociais de um modo carnavalesco, brincalhão, satírico e apavorante. Uma avalanche de festejos virtuais fez da notícia fúnebre uma festa popular, como quando as torcidas comemoram a vitória do seu time num desses certames futebolísticos. Anedotas floresciam em toda parte, das mais chulas às mais elaboradas. Uns se divertiam com a boutade de que a onda de calor destes dias se deve à porta do inferno, escancarada para receber o novo inquilino. Outros preferiram replicar o post segundo o qual o morto, ao se instalar no endereço escaldante, havia declarado que o inferno é plano. Os mais líricos recuperaram um poema famoso do uruguaio Mario Benedetti, escrito em 1963, chamado Obituário com hurras: “Murió el cretino / vamos a festejarlo”. Por muitas horas, o escárnio divertido, espirituoso e ácido manteve seu ânimo. E foi isso, apenas isso, que me soou apavorante (esta é a palavra). Se a morte de alguém, seja esse alguém quem for, é motivo para o nosso regozijo mais ostensivo, a que teremos nos reduzido?
É claro que a minha percepção individual não pode ser generalizada. Aliás, nada aqui se pretende generalizante. Quando falo em redes sociais, estou me referindo apenas ao que delas posso ver ou saber, ou seja, falo de recortes exíguos e franjas infinitesimais de uma superindústria inapreensível. Olho as redes mais ou menos como os mendigos que viam televisão em frente às vitrines do Mappin. Eu as observo pelo lado de fora. Mesmo assim, mesmo vendo tão pouco, não gostei de ver a bolha que orbito exultando copiosamente porque alguém morreu.
Em outras bolhas, com as quais me identifico menos ainda, proliferaram homenagens hagiográficas ao falecido. Não primaram pela sobriedade. Em nota conjunta, a Secretaria Especial da Cultura e a Secretaria Especial de Comunicação Social afirmaram que ele deixa um legado de “contribuição inestimável ao pensamento filosófico e ao conhecimento universal”. Haja grandiloquência governamental. Procurando inflar com artifícios rasteiros a magnitude da obra alegadamente filosófica do escritor, o texto constrange, como se também tivesse a estrutura de uma piada, desta vez involuntária. O chefe de Estado decretou luto oficial de um dia.
Entre uns e outros, Olavo de Carvalho morreu como signo em disputa. O que se pode dizer, objetivamente, é que ele contribuiu para conferir amálgama discursivo para aglutinações (coagulações) de forças contrárias à democracia no Brasil, tecendo um fio de amarração ideológica que se estende dos estertores da ditadura militar (especialmente da banda mais fascista do regime, aquela que se opôs agressivamente contra a abertura política liderada por Ernesto Geisel) até as entranhas do credo bolsonarista atual. Os textos de Carvalho, bem como seu intenso proselitismo na internet, contribuíram para sintetizar uma unidade que poderíamos chamar de protoconceitual para a verbosidade violenta das milícias digitais. São elas que agora o cultuam como um totem inexpugnável e oco. Para outras bolhas, as que debocham de seu funeral, o morto terá sido uma fraude intelectual a ser desbaratada e esquecida. Pode ser que exista razão no diagnóstico, mas a atitude de tripudiar sobre o caixão ainda insepulto passa da conta.
A essa altura, não há sentido em cobrar boas maneiras de quem quer que seja – e, de minha parte, seria um embuste eu presumir que possa ter comigo a baliza da urbanidade. Não tenho essa pretensão. Meu ponto é um só: registrar o fato, terrivelmente incômodo, de que as expressões de ódio (como essa que caçoa do sepultamento do adversário) se alastraram horizontalmente, a ponto de se tornar um denominador comum da linguagem política. Tenho a impressão de que o ódio, ou alguma parte dele, parte essencial, já nos subjugou a todos. O pior é não haver o que fazer, não há como reverter o quadro, e isso é o que mais apavora.
A gente sabe que os tiranos, quando morrem, viram objeto do nojo popular. O cadáver de Mussolini ficou exposto à fúria dos populares em Milão, em 1945. Foi chutado e levou cusparadas. Depois disso, no entanto, a civilização, pelos trilhos da democracia, ergue barreiras que sublimam a fúria legítima em justiça e, depois, assenta a justiça em paz. Na Normandia, os soldados alemães que combatiam pelo nazismo jazem no Cemitério de La Cambe, sem que seus túmulos sejam profanados. Tem de ser assim. Se não sabemos nos deter diante do limite da morte, não somos civilizados.
O bolsonarismo já deu todos os sinais de que despreza a vida, os direitos e as liberdades. Seu líder máximo zombou muitas vezes dos que morreram de covid. Isso é deplorável e indigno. Mas os que se opõem a essa escola odiosa nunca deveriam ceder ao mesmo padrão de ódio. Deveríamos ser os primeiros a saber que, no fundo de cada crápula, ainda tenta respirar um ser humano. Deveríamos saber que esse ser humano, sobretudo na hora da morte, merece de nós a nossa melhor expressão de respeito.
JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP
[Osório diz: Concordo com tudo que foi dito no texto acima! Só pondero o seguinte: o falecido só colheu o que plantou como diz “o legislador popular, conhecido como vulgo”! Os jogadores somente deram sequência às regras do jogo que o próprio finado ajudou a implantar e a manter em circulação!]
e
O imbecil privado
Sérgio Augusto, O Estado de S. Paulo
Com panca de caubói, ele transfigurou-se numa usina de mentiras e insultos
29 de janeiro de 2022.
Os anticomunistas mais fanáticos e perigosos costumam ser aqueles que já militaram do outro lado, não porque íntimos das entranhas da baleia mas porque raramente se conformam com ter sido “enganados” pelos prosélitos da antiga crença [Osório diz: kkkkk. Verdade!]. Passionais e agressivos, apelidei-os, faz tempo, de “cornos ideológicos”, tendo em mente cornudos antológicos como Carlos Lacerda, que foi um inflamado integrante da Juventude Comunista antes de se transformar no mais incendiário anticomunista do País.
Tudo no Brasil se deteriorou tanto nos últimos anos que o Lacerda que nos coube ter neste início de milênio foi o dublê de professor, “filósofo” e astrólogo Olavo de Carvalho. Se acreditasse em bruxarias, juraria que o guru do bolsonarismo acabou vítima de um canjerê coletivo. Sua morte, no início da semana, foi saudada nas redes sociais até por quem considera a empatia um dever de todos para com todos, sem exceção daqueles que a desqualificam e hostilizam.
Só o vi uma vez, de longe, na missa de sétimo dia de Paulo Francis, em fevereiro de 1997, mesmo ano em que, com outros escribas, partilhamos a seção de ensaios da revista Bravo!. Ainda nos tangenciamos como prefaciadores da reedição dos romances de Aldous Huxley.
As duas vezes em que nos falamos, por telefone, foi para colher impressões e lembranças de minha convivência com Otto Maria Carpeaux. Ele preparava uma coletânea de ensaios de Carpeaux para a Topbooks, que resultou, aliás, num belo trabalho editorial. Aí veio o novo século e nunca mais nos cruzamos.
Ainda bem. Pois seria constrangedor ter de lidar com o monstro ressentido que Olavo pôs na praça e foi lapidando. Olavo não era “polêmico”, era picareta. Sua magnum opus O Imbecil Coletivo, é um subproduto do Manual do Perfeito Idiota Latino-americano, do jornalista Carlos Alberto Montaner, guzano conspirador exilado na Espanha, que por algum tempo teve livre trânsito na imprensa daqui.
Para Gregório Duvivier, o escatológico panfletário da nossa extrema direita “não conseguiu ter razão um dia sequer”. Olavão foi “o catalisador do que de pior já se pensou e projetou para o Brasil”, lascou Paulo Roberto Pires no site da revista 451.
Tabagista militante, negacionista com ascendente em terraplanismo e fixação anal, o embusteiro com pança de caubói e caçador transfigurou-se numa usina de mentiras, insultos e idiotices (a pandemia não existe, vacinas matam, a Pepsi é fabricada com fetos abortados etc), o que explica por que o governo, rompendo seu macabro silêncio sobre milhares de outras mortes por covid, decretou luto oficial em sua homenagem. Prevaleceu a gratidão.
[Osório diz: Olavo morreu: agora alguns já podem se vacinar!
Ele não vai mais “chupar o c*" de quem não se vacinar, como havia prometido ao Caetano!
Parece que é mais uma conta que o velhaco não pagou.
Talvez a fixação anal ajude a compreender a recusa da vacina: os chupados não poderiam se vacinar, sob pena do astrólogo colocar a boca chupadora no trombone, como fez com aquele seu ex-aluno português!
Inté,]
Obs.: