Ideologia.
V. Gordon Childe
PREFÁCIO
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V. GORDON CHILDE
Edimburgo, outubro de 1941. / Brasil 1977, p. 4
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Arqueologia e História
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A HISTÓRIA escrita constitui um registro irregular e incompleto do que a humanidade realizou, em certas partes do mundo, nos últimos cinco mil anos. O período por ela compreendido representa, na melhor das hipóteses, cerca da centésima parte do tempo de existência do homem em nosso planeta.
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Nossa espécie, o homem no sentido mais amplo, conseguiu sobreviver e multiplicar-se principalmente pelo aperfeiçoamento de seu equipamento, como demonstrei minuciosamente em A Evolução Cultural do Homem. Tal como ocorre com outros animais, é sobretudo por meio de seu equipamento que o homem atua sobre o mundo exterior e reage em função dele, obtém seu sustento e escapa aos perigos em linguagem técnica, adapta-se ao meio ou mesmo ajusta o meio às suas necessidades. O equipamento do homem, porém, difere significativamente dos recursos utilizados pelos outros animais, que os transportam em si mesmo, como parte do corpo. O coelho tem patas adequadas para cavar, o leão tem garras e dentes para estraçalhar sua caça, o castor tem presas agudas, a maioria dos animais tem pelos ou cabelos que os mantêm aquecidos tartaruga carrega até mesmo a casa às costas. O homem não dispõe de quase nenhum equipamento desse gênero e perdeu mesmo alguns de tais recursos, que lhe eram naturais nas épocas pré-históricas. Foram substituídos por instrumentos, órgãos não-corporais que fabrica, utiliza e despreza, segundo suas conveniências…
Tal como nos outros animais, há decerto uma base fisiológica corporal para o equipamento do homem, e que pode ser [10] resumida em duas palavras, mãos e cérebro. Dispensadas do trabalho de transportar o corpo, nossas patas dianteiras transformaram-se em instrumentos delicados, capazes de uma surpreendente variedade de movimentos sutis e precisos. Para controlá-los e colocá-los em relação com as impressões recebidas de fora pelos olhos e outros órgãos dos sentidos, tornamo-nos possuidores de um sistema nervoso complicado e de um cérebro excepcionalmente grande e complexo.
... O homem tanto pode fazer as ferramentas como as armas. Em resumo, o equipamento hereditário do animal é adequado à execução de um número limitado de operações, num determinado meio. O equipamento não-corpóreo do homem poder ser ajustado a um número quase infinito de operações – “pode ser”, note-se, e não "é”.
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Até a mais simples ferramenta feita de um galho partido ou uma pedra pontuda é fruto de uma longa experiência de tentativas e erros, impressões recebidas, lembradas e comparadas. A habilidade de fazer uma ferramenta foi conquista-[11] da pela observação, recordação e experiência. Pode parecer um exagero, mas é bem certo dizer que qualquer instrumento é uma materialização da ciência, pois representa a aplicação prática de experiências lembradas, comparadas e reunidas, tais como as sistematizadas e sumariadas nas fórmulas, descrições e prescrições científicas.
Felizmente, a criança não precisa acumular experiência ou fazer por si mesma todas as tentativas e erros. Na verdade, a criança não herda, ao nascer, um mecanismo de nervos que tenha sido moldado no plasma germinativo da raça e que a predisponha, automática e instintivamente, aos movimentos corporais apropriados. Herda, entretanto, uma tradição social. Seus pais e as pessoas mais velhas lhe ensinarão como fabricar e utilizar o equipamento, segundo a experiência acumulada por numerosas gerações anteriores, e que constitui em si mesmo uma expressão concreta dessa tradição social. Qualquer instrumento é um produto social, e o homem é um animal social.
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Tanto nas sociedades humanas como nas animais, as gerações mais velhas transmitem às novas, pelo exemplo, a experi- [12] ência coletiva acumulada pelo grupo que, por sua vez, aprenderam com os pais. A educação animal pode ser feita totalmente pelo exemplo: o pinto aprende como bicar e o que bicar, imitando a galinha. Para as crianças, que tanto têm a aprender, o método imitativo seria fatalmente lento. Nas sociedades humanas, a instrução é dada tanto pela explicação como pelo exemplo; aperfeiçoaram elas, gradualmente, instrumentos de comunicação entre seus membros. Com isso, produziram uma nova espécie de equipamento que pode, adequadamente, ser chamado de espiritual.
Devido à estrutura da laringe, dos músculos da língua e outros órgãos, os seres humanos, bem como alguns outros animais, são capazes de emitir uma escala muito variada de ruídos, tecnicamente chamados de sons articulados. Vivendo em sociedade e dispondo de um cérebro comunicativo, o homem pôde dotar esses sons de significados convencionais [Osório diz: Era isso o que defendia o sofista Protágoras! A convenção é o que sustenta a linguagem]. Eles se transformaram em palavras, sinais de ação e símbolos para objetos e acontecimentos familiares aos demais membros do grupo. (Note-se, incidentalmente, que os gestos também podem ter, pelo mesmo processo, um significado, embora menos adequado.) Os gritos dos pássaros e o balido das ovelhas têm, sob esse ponto de vista, um sentido. Ao ouvir tal sinal, os membros do rebanho reagem de modo adequado. Significa para eles pelo menos um sinal de ação e provoca uma reação correspondente no seu procedimento. Entre os homens, as palavras faladas (e também os gestos) têm a mesma função,numa escala tremendamente mais rica.
As primeiras palavras do homem talvez tivessem um sentido evidente em si mesmas. A palavra “bem-te-vi” reproduz o grito do pássaro do mesmo nome. Paget [Osório diz: “James Paget, foi um cirurgião e fisiologista britânico que juntamente com Rudolf Virchow fundou a ciência da patologia. Seu nome é comumente pronunciado de maneira incorreta no Brasil. A pronúncia correta é “pædʒət”. Existem três doenças nomeadas em sua homenagem.”, retirado da internet] lembra que a forma dos lábios ao pronunciarem uma palavra pode constituir a representação mímica da coisa indicada. De qualquer modo, tais sons auto-indicadores não nos levariam muito longe. A maioria das palavras, mesmo as utilizadas pelos mais selvagens povos, não têm nenhuma semelhança com aquilo que significam. São puramente convencionais [Osório diz: Mais Protágoras!], isto é, seu significado lhes foi atribuído artificialmente por um acordo tácito entre os membros da sociedade onde são usadas. O processo torna-se explícito quando uma reunião de químicos concorda em atribuir determinado nome a um elemento novo. Normalmente, [13] porém, o processo de aparecimento de palavras é muito mais sutil.
É exatamente por que o sentido das palavras é assim convencional que as crianças têm de aprender a falar, ou seja, aprender os sentidos atribuídos pela sociedade, da qual participa, aos ruídos que pode fazer. Trata-se de uma contribuição substancial à formidável lista de coisas que uma pobre criança tem de aprender. Há para tal aprendizado uma correlação física nos traços do cérebro. (Quando tais traços são atingidos, a vítima não pode compreender o que lhe dizer, isto é, não pode recordar os significados atribuídos aos sons que ouve.) Até mesmo os mais antigos crânios mostram uma protuberância do cérebro nas regiões da fala, de modo que a linguagem parece ser uma característica humana tão antiga e universal como a confecção de instrumentos.
A linguagem transforma o processo da tradição social. A explicação acelera o processo de educação. Pelo exemplo, a mãe pode mostrar aos rebentos o que fazer quando surgir um animal selvagem. Para muitos filhotes, porém, essa lição prática é fatal. Pela explicação, ela pode ensinar antecipadamente como agir frente ao animal selvagem - método de instrução que poupa muitas vidas. De modo geral, imitando os companheiros podemos aprender como agir num caso concreto e presente. Com o auxílio da linguagem, podemos aprender a enfrentar uma emergência antes que ela surja. A linguagem é o veículo para a transmissão da herança social da experiência resultado de tentativas e erros, do que pode acontecer e o que fazer - e é através daquela que esta se acumula e é transmitida. Pela herança social a criança não só participa da experiência adquirida pelos seus ancestrais – que bem pode ser transmitida "pelo sangue", pela herança biológica também da experiência do grupo. Não só os pais podem descrever para seus descendentes as crises de sua vida e como puderam atravessá-las, mas todos os membros da sociedade, utilizando-se das mesmas convenções de linguagem, podem contar a seus companheiros o que viram, ouviram, sofreram e fizeram. A experiência humana pode ser participada. Ao aprender a fazer e usar o equipamento, a criança está sendo iniciada nessa experiência.
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A linguagem é mais do que um simples veículo da tradição. Ela afeta o que transmite. O sentido socialmente aceito de uma palavra (ou outro símbolo) é quase necessariamente algo abstrato. A palavra “banana” representa uma classe de objetos tendo em comum certas qualidades visíveis, tangíveis, aromáticas e sobretudo comestíveis. Ao usá-la, fazemos abstração de detalhes (ou seja, os ignoramos como irrelevantes) – o número de manchas em sua casca, a posição que tem na bananeira ou no cacho, e assim por diante- que são qualidades de qualquer banana real. Toda palavra, por maior e mais material que seja seu sentido, tem um caráter algo abstrato. Pela sua própria natureza, a linguagem implica uma classificação. Praticamente, por exemplo, aprendemos a imitar com precisão e em detalhe uma determinada série de movimentos de manipulação. Pela explicação, podemos aprender quais os movimentos a executar, mas teremos ainda uma certa margem de variação. Na engenharia, o contraste entre o aprendizado prático e a educação universitária se resume essencialmente nisso. A linguagem faz com que a tradição seja racional.
O raciocínio foi definido como “a capacidade de resolver problemas sem passar pelo processo material da tentativa e do erro". Ao invés de procurar fazer determinada coisa com nossas mãos e talvez queimando os dedos, executamos o processo mentalmente, com ideias - imagens ou símbolos das ações que seriam necessárias. Outros animais além do homem agem como se raciocinassem nesse sentido. Se dermos a um macaco uma banana colocada dentro de um tubo, aberto nas extremidades mas bastante comprido para que não possa atingi-la, ele logo descobrirá como empurrar a banana com uma vara e retirá-la por uma das extremidades, sem perder tempo numa série de movimentos inúteis. O macaco terá imaginado a banana em várias posições não-existentes, antes de descobrir como tirá-la. Não teve, porém, de afastar-se muito da situação concreta que enfrentava. O que distingue o raciocínio humano é o fato de poder ir muito além da situação prática, o que não acontece com nenhum outro animal. A linguagem constituiu sem dúvida um grande auxílio para isso.
O raciocínio e tudo o que chamamos de pensamento, inclusive o do macaco, representam operações mentais com [15] aquilo que os psicólogos chamam de imagens. Uma imagem visual, um quadro mental de uma banana, digamos, está sempre sujeita a ser o quadro de uma determinada banana num determinado ambiente. A palavra, como explicamos, é mais geral e abstrata, tendo eliminado as características acidentais que dão individualmente a qualquer banana real. As imagens mentais das palavras (representação do som ou dos movimentos musculares necessários para sua pronúncia) são instrumentos muito cômodos para o raciocínio. O pensamento realizado com sua ajuda possui necessariamente aquela qualidade de abstração e generalização que falta ao pensamento do animal. O homem pode pensar, bem como falar, sobre a classe de objetos chamados “bananas", ao passo que o macaco não vai além da "banana no tubo”. Dessa forma, o instrumento social denominado linguagem contribuiu para o que, com grandiloquência, se chamou de “a emancipação do homem da servidão do concreto”.
Raciocinar é operar com símbolos mentais e não com coisas ou atos no mundo exterior. As palavras convencionais são símbolos, embora não sejam os únicos existentes. Podemos agrupá-los e combiná-los de todas as formas em nosso pensamento, sem mover um músculo. A palavra "ideia” é geralmente usada para aquilo que as palavras, e outros símbolos, denotam, querem dizer, ou referem. Num certo sentido, “banana” não se refere a nada do que vemos, tocamos, cheiramos ou mesmo comemos, mas apenas a uma ideia a “banana ideal”. Essa ideia é, felizmente, representada por bananas comíveis e bem substanciais, mesmo que nenhuma delas se equipare ao padrão da banana ideal. Mas, em sociedade, o homem dá nomes e fala de ideias que na realidade não podem ser vistas, cheiradas, tocadas ou comidas, como a banana - ideias como a águia de duas cabeças, o maná, a eletricidade, a causa [Osório diz: Isto é o que dizia Górgias!]. São, todas elas, produtos sociais como as palavras que as expressam. As sociedades comportam-se como se elas representassem coisas reais. Na verdade, o homem parece levado a ações muito mais difíceis e exaustivas pela ideia da águia de duas cabeças, imortalidade ou liberdade, do que pela mais suculenta das bananas[Osório diz: Isto demonstra que Platão combatia ideias com ideias, sendo que, para seus seguidores, apenas as ideias dele eram reais (podiam ser vistas, cheiradas, tocadas ou comidas, pois são as ‘verdadeiras’) as ideias dos demais “são falsas”). .
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Sem incorrer em qualquer sutileza metafísica [Osório diz: “Olha o Platão aqui gente”!], ideias socialmente aprovadas e mantidas, que inspiram tais ações, devem ser tratada pela História como tão reais quanto os fatos arqueológicos mais substanciais. Na prática, as ideias formam um elemento tão ponderável ao ambiente de qualquer sociedade humana quanto as montanhas, árvores, animais, clima e o resto da natureza exterior. Isso quer dizer que as sociedades se comportam como se estivessem reagindo a um meio espiritual, da mesma forma pela qual reagem ao meio material. Para tratar esse meio espiritual procedem como se necessitassem de um equipamento espiritual, da mesma maneira que necessitam de ferramentas. [Osório diz: O discurso de um político pode levar à guerra! Rios, montanhas, ouro, por si sós, não!]
O equipamento espiritual não está limitado às ideias que se traduzem em instrumentos e armas que podem, com êxito, controlar e transformar a natureza exterior, nem à linguagem, que é o veículo das ideias. Inclui também aquilo que frequentemente se denomina ideologia da sociedade – suas superstições, crenças religiosas, fidelidades e ideais artísticos. Para a defesa de ideologias e inspirado pelas ideias, o homem toma atitudes nunca observadas entre outros animais. Há pelo menos cem mil anos aquelas estranhas criaturas conhecidas como homens de Neandertal enterravam cerimoniosamente os filhos e parentes mortos, fornecendo-lhes alimentos e instrumentos. Todas as sociedades humanas de hoje, por mais selvagens que sejam, executam certos ritos por vezes extremamente dolorosos e se abstêm de prazeres ao seu alcance. Os motivos - e estímulos - a tais ações e abstenções hoje, e presumidamente no passado também, são ideias socialmente aprovadas, de gênero idêntico ao denotado pelas nossas palavras “imortalidade”, “mágica”, “deus”. Elas são estranhas ao resto do mundo animal, presumivelmente porque os brutos não usam um simbolismo linguístico, e portanto são incapazes de formar ideias abstratas. [Osório diz: Muito bom este parágrafo sobre ideologia]
As pederneiras de há mais de cem mil anos parecem ter sido feitas com um cuidado e uma delicadeza que não eram necessários à simples eficiência utilitária. Parece que seu autor desejava um instrumento que não só fosse útil como belo [Osório diz: Pederneira - Sílex (pedra) que, atritada, é capaz de produzir faíscas, logo, o fogo]. Há mais de 25.000 anos o homem começou a pintar o corpo e pendurar no pescoço conchas e contas, feitas com grande tra- [17] balho. Hoje, em todo o mundo, as pessoas arrancam os dentes, atam os pés, deformam os corpos com cintas ou se submetem a outras mutilações em obediência à espécie da moda. Esse comportamento parece peculiar a espécie humana. Resulta de uma ideologia, à qual dá expressão.
Com o auxílio de ideias abstratas, portanto, o homem evoluiu e passou a necessitar de novos estímulos à ação, além das imposições universais da fome, do sexo, do ódio e do medo [Osório diz: Os quais são cultivados pelas ideologias]. E todos esses novos motivos ideais passaram a ser necessários à própria vida. Uma ideologia, por mais distanciada que esteja das necessidades biológicas mais prementes, é na prática biologicamente útil – ou seja, favorável à sobrevivência da espécie. Sem esse equipamento espiritual, as sociedades não só tendem a desintegrar-se, mas também os indivíduos que a formam podem deixar de interessar-se pela vida. A “destruição da religião” entre os povos primitivos é sempre lembrada como uma das principais causas de sua extinção em contato com a civilização branca. Rivers escreveu a respeito dos habitantes das ilhas Eddystone: "Impedindo a prática das caçadas de cabeças, os novos governantes (ou seja, os britânicos) aboliram uma instituição que tinha suas raízes na vida religiosa do povo. Os nativos reagiram a essa medida tornando-se apáticos. Deixaram de reproduzir-se na proporção suficiente para evitar a diminuição da população da ilha.
Evidentemente as sociedades humanas “nem só de pão podem viver”. Mas se “as palavras saídas da boca de Deus” [Osório diz: As aspas] não promovem direta ou indiretamente o crescimento e a prosperidade biológica e econômica da sociedade que as santifica, essa sociedade, e com ela o seu deus, acabará desaparecendo. É essa seleção natural que garante que, com o tempo, os ideais de uma sociedade serão “apenas traduções e inversões, feitas é na mente humana, do que é material". A religião dos habitantes das ilhas Eddystone dava-lhes um motivo para viver e mantinha em funcionamento um sistema econômico. Na prática, porém, a caçada de cabeças mantinha sempre reduzido o número de habitantes da ilha. Tornava, portanto, desnecessárias as melhorias no equipamento material, e acabou deixando os ilhéus à mercê dos conquistadores britânicos. É do ponto [18] de vista do grupo social que a ideologia é julgada pela seleção histórica. O veredicto, entretanto, pode tardar muito.
A ideologia é, evidentemente, um produto social, As palavras em que se baseiam suas ideias foram criadas pela vida em sociedade e não teriam existido fora dela. Além disso, as ideias devem sua realidade, sua capacidade de influir na ação, à aceitação que tiveram na sociedade. Crenças aparentemente absurdas podem surgir e manter-se desde que todos os membros do grupo as aceitem e aprendam, desde a infância, a acreditar nelas. Não ocorrerá a ninguém pôr em dúvida uma crença universalmente aceita [Osório diz: Ou ocorrerá a poucos!]. Poucos de nós temos mais razões para acreditar nos germes do que nas feiticeiras. Nossa sociedade inculca a primeira dessas crenças e ridiculariza a segunda, mas outras invertem os julgamentos. É certo que alguns especialistas conhecidos viram os germes no microscópio. Mas um número maior de especialistas, na Europa medieval e na África negra, viu feiticeiras em atividade. A superioridade da nossa crença se evidenciará se, com o tempo, os antissépticos e vacinas [Osório diz: O livro é de 1941! E pensar no Brasil de 2021...] conseguirem evitar melhor a morte do que as encantações e a queima de feiticeiras, permitindo com isso o crescimento social.
Manter a sociedade unida e em plena atividade não é a menos importante das funções de uma ideologia. E pelo menos nesse aspecto ela age sobre a tecnologia e o equipamento material. Pois como o equipamento espiritual, o equipamento material não é um produto social apenas pelo fato de surgir de uma tradição social. Na prática, a confecção e utilização de instrumentos também demandam a cooperação entre os membros da sociedade. Hoje, é evidente que o europeu e o americano modernos só conseguem alimentação, abrigo, indumentária e satisfação de outras necessidades como resultado da cooperação de uma vasta e extremamente complicada organização, ou economia. Se nos desligássemos dela, viveríamos mal e provavelmente morreríamos de fome. Teoricamente, o "homem primitivo", com suas necessidades mais simples e equipamento mais rudimentar, podia prover a si mesmo. Na prática, porém, até os mais rudes selvagens vivem em grupos organizados para cooperar na procura de alimentos e no preparo de equipamento, bem como na realização de cerimônias. Entre [19] os aborígines australianos, por exemplo, encontramos uma divisão do trabalho entre os sexos, na caça e na provisão, bem como na confecção de implementos e vasos. Há também uma divisão do produto dessa atividade cooperativa.
Até mesmo o estudante da cultura material terá de ocupar-se da sociedade como uma organização cooperativa para produção de meios de satisfazer suas necessidades, de reproduzir-se - e de produzir novas necessidades. Ele deseja ver sua economia em funcionamento. Mas ela é afetada pela sua ideologia, à qual também afeta. O “conceito materialista da História” afirma que a economia determina a ideologia. É mais seguro e mais certo repetir com outras palavras o que já dissemos: uma ideologia só pode sobreviver ao tempo se contribuir para o funcionamento regular e eficiente da economia. Se o dificultar, a sociedade e com ela a ideologia – perecerá [Osório diz: Não é isso que diz Marx, segundo José Paulo Netto! “Isso é uma caricatura grosseira do pensamento de Marx. Em Marx não existe determinismo econômico e nem determinismo de espécie alguma.” Vejam em: https://www.youtube.com/watch?v=ReJm17GZoHw]. Mas o reconhecimento pode ser adiado por muito tempo. Uma ideologia obsoleta pode dificultar a economia e impedir sua transformação por um tempo muito mais prolongado do que os marxistas admitem [Osório diz: Não é isso que diz Marx, segundo José Paulo Netto! Leiam o 5º parágrafo do “Manifesto Comunista”! “Dessa luta ou sai uma nova sociedade ou desaparecem as classes em luta.” “Tem duas saídas: a primeira é a vitória do proletariado, a segunda é a destruição das classes em luta.”].
Idealmente, a tradição social é uma única: o homem de hoje é o herdeiro teórico de todas as idades, e recebe a experiência acumulada por todos os seus antecessores. Esse ideal, porém, está longe da realização prática. A humanidade não forma uma sociedade única, hoje, estando pelo contrário dividida em muitas sociedades diferentes. Todas as provas disponíveis são de que essa divisão é ainda maior do que no passado, pelo menos no que a Arqueologia pode verificar. Cada sociedade pode ter não só convenções linguísticas diferentes, mas convenções também diferentes sobre o equipamento espiritual, e até mesmo sobre o material, pois cada uma delas preservou, transmitiu e estabeleceu e estabeleceu tradições peculiares próprias.
A babel das línguas é hoje uma evidência penosa. Basta lembrar aqui que cada língua é produto de uma tradição social, e age sobre outras formas tradicionais de comportamento e pensamento. Menos familiar é o processo pelo qual as divergências de tradição atingem até a cultura material. Os norte-americanos utilizam-se dos garfos e facas de modo [20] diferente dos ingleses, e essa diferença encontra uma expressão concreta nos detalhes insignificantes dos próprios garfos e facas. Na Irlanda e no País de Gales os trabalhadores rurais usam pás de cabos longos, ao passo que na Inglaterra e na Escócia os cabos são muito mais curtos. O trabalho realizado é, em cada caso, o mesmo, embora o manuseio do instrumento seja, evidentemente, diverso. As diferenças são puramente convencionais. Refletem divergências na tradição social, que sendo expressas concretamente nas formas da ferramenta empregada, pertencem aos limites da Arqueologia e podem ser seguidas até o passado remoto, no qual não encontramos registros escritos que permitam o reconhecimento de diferenças linguísticas.
(Fonte: O que aconteceu na história, V. Gordon Childe. Tradução de Waltensir Dutra. Zahar. Rio de Janeiro. 1977, p. xx)
(Fonte da imagem: https://www.metropoles.com/mundo/ciencia-e-tecnologia-int/sinal-desconhecido-e-descoberto-no-cerebro-humano.)