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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

49.3 – Lei, por Crítias.

 

Nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

A antropologia de Hípias está no prolongamento direto da sua teoria da natureza. Instaura uma oposição categórica entre a natureza (physis) e a lei (nomos), em benefício da primeira, sendo a lei positiva duramente posta em questão.

Constatar que o nomos é incapaz de instaurar uma verdadeira justiça é, antes de mais, para Hípias, exprimir no plano do conceito a violenta crise que abala a sociedade grega no fim do séc. V e no princípio do IV. Edmond Lévy analisou minuciosamente esta “crise ideológica” ateniense, ligada à derrocada de 404. A guerra demonstrou que os deuses não defendem os justos, já que são atingidos tanto e muitas vezes até mais do que os outros [Osório diz: como é que homens que pensavam assim e diziam isso poderiam ser aceitos? Daí o ódio nutrido, até hoje, contra eles, pois questionavam o divino]; levantam-se dúvidas, então, quanto à idéia da providência divina, claramente expressas por alguns heróis de Eurípedes. A decadência da crença na providência arrasta a da crença nos valores tradicionais de que a principal era a justiça [Osório diz: aqui a mesma coisa, apenas a crítica é dirigida contra a justiça, outro “pilar” da ordem que eles questionavam]: estas, escreve E. Lévy, “reduzem-se a onómata kelá[Osório diz: “belas palavras”]. Por outro lado, as discórdias políticas, o confronto interno na cidade entre democratas e oligarcas e a sua transição sucessiva para poder fazer ver claramente que as leis que promovem são a expressão disfarçada dos seus interesses de partido. A lei é desacralisada; perdeu a neutralidade do direito; é um disfarce para o poder, e a obediência à lei não poderá já definir a justiça [Osório diz: como os sofistas viam o direito e a justiça e as leis]. Enfim, sabemos que Hípias é um dos criadores da etnologia [A etnologia é o "estudo ou ciência que estuda os fatos e documentos levantados pela etnografia no âmbito da antropologia cultural e social, buscando uma apreciação analítica e comparativa das culturas."]; como embaixador e professor itinerante, contactou com múltiplas legislações positivas, e verificou os desacordos e as contradições. Ninguém melhor do que ele poderia ter a sensação da relatividade daquilo que as diferentes culturas chamam “justo” e “bom”.

Mas é a propósito do problema da justiça que melhor aparece o papel normativo da natureza. Nos Memoráveis de Xenofonte, Sócrates ocupa-se com Hípias deste problema; importa ver, como prova Dupréel, que o fundo da discussão é extraído da doutrina de Hípias, embora seja Sócrates a expô-la. Parte-se da definição das leis positivas: são, diz Hípias, “as que os cidadãos decretaram, tendo-se posto de acordo sobre o que há a fazer e a evitar” [Osório diz: o que são as leis positivas]. É por isso que as leis são flexíveis a todas as interpretações; falta-lhes a estabilidade e universalidade; perante a sua versatilidade, quem pode pensar que as leis “são um assunto sério”? E é esta reação que é catastrófica [Osório diz: por que as interpretações das leis são tão instáveis e variáveis]. Com efeito, sem obediência às leis, não há concórdia (homonoia) nem nas cidades, nem nas famílias; os assuntos políticos como os privados estão em perigo. Ora, as leis positivas não são, felizmente, as únicas manifestações da legalidade. Também há o que os Gregos chamavam “as leis não escritas”, que Antígona invoca contra (p. 87) Creonte e que, atualmente, chamaríamos o direito natural. (p. 87) No diálogo de Xenofonte, é Sócrates que se lhes refere, mas Hípias vai defini-las muito bem e aprova calorosamente Sócrates; trata-se, portanto, aqui do que Hípias tinha a dizer de “novo” sobre a justiça. As leis não escritas são válidas em todos os países; o que lhes tira o particularismo e a relatividade é que elas não emanam dos homens. Mas de onde vêm elas? Dos deuses, diz o Sócrates de Xenofonte; mas há motivos de sobra para crer que Hípias teria antes respondido: da natureza [Osório diz: de onde vêm o direito natural?]. Com efeito, os exemplos dados para ilustrar o que são as leis não escritas são as proibições do incesto, devido à degenerescência daí resultante, a condenação da ingratidão, porque o ingrato não pode ter verdadeiros amigos e é detestado pelo seu benfeitor. O elemento comum destes exemplos é o da sanção natural; trata-se, portanto, de uma justiça imanente, que reconcilia norma e efetividade, já que “as leis por si mesmas incluem castigos para quem as transgride”. Nisto está a superioridade das leis não escritas relativamente aos códigos legislativos: não se podem infringir impunemente; são, portanto, unanimemente tidas como respeitáveis, sempre e em toda a parte.

A justiça é, por conseguinte, obra do direito natural; esta noção deve ser tomada aqui no sentido que Aristóteles dá, mais tarde ao seu physikon dikáion, e não no sentido de Hobbes ou de Espinosa. Hípias concilia natureza e ética; a sua rejeição do nomos político é feito em nome de uma lei maior e mais ampla, mais rigorosa também. A invocação da natureza – há ainda que insistir nisto – não tem como resultado, para Hípias, permitir a ilegalidade e de alguma maneira avalizá-la; o Anónimo de Jâmblico, atribuído por Untersteiner a Hípias, insiste na exigência da igualdade. Tomemos um dos exemplos que cita: a lei da natureza, que estabelece a interdependência econômica. A justiça consiste, pois, em obedecer à lei, mas não à lei escrita da natureza; o nomos é assim superado, ao mesmo tempo que o estreito quadro da cidade que lhe dava origem. A teoria hipiana do direito natural desemboca então no cosmopolitismo, que se adapta plenamente ao enciclopedismo sofista. Hípias chamava à Ásia e à Europa “filhas do Oceano”, estabelecendo assim uma identidade entre estes dois continentes, que era costume contrapor para demonstrar a clivagem entre Bárbaros e Gregos. Por este cosmopolitismo, Hípias opõe-se antecipadamente ao que Hípias chama o “nacionalismo inumano” de Platão; anuncia a filantropia estoica e, em certo sentido, a “catolicidade” cristã. Pensa-se, com efeito, na resposta de Eudoro a Cimodoceu em Chateaubriand, quando Eudoro cobre com o seu manto um escravo encontrado à beira do caminho; Cimodoceu diz-lhe: “Pensaste, sem dúvida, que este escravo era algum deus? – Não, respondeu Eudoro, pensei que era um homem”. [Osório diz: pqp! Que coisa linda!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 85-89).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

49.2 – O pensamento político de Crítias.

 

Nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Antífon opunha a fraqueza da lei à força da natureza. Crítias, que, como já vimos, exalta o esforço da formação voluntária em detrimento da espontaneidade natural, opõe a fragilidade da lei, que se pode tomar em todos os sentidos pela retórica, ao caráter que, quando presente em alguém, é inabalável. Um fragmento do Pirithoüs afirma-o claramente:

 

Um caráter nobre é mais sólido do que a lei;

A este, com efeito, nenhum orador o poderá jamais alterar,

Enquanto que a ela, a pode maltratar muitas vezes,

Subvertendo-a dos pés à cabeça pelos discursos”. [Osório diz: a interpretação da lei].

 

Importa ver que o nomos, de que aqui se trata, significa a lei democrática, a resultante dos debates da Assembleia e que é votada pelo povo. O presente fragmento possui, assim, uma dimensão política e um alcance polêmico; pense-se nos ataques de Sócrates – cujo ensino Crítias seguia – contra o governo pela fava: as incertezas da lei traduzem a falta de caráter da massa flexível em todos os sentidos.

O caráter (tropos), se não pode pertencer à multidão, é porque é próprio de um indivíduo, homem superior que está acima das leis e que, portanto, não recebe a lei senão de si próprio. A. Battegazzore chega a dizer que, “na boca de Crítias, estes versos representam o prenúncio claro do golpe de estado de 403”. Quererá dizer que Crítias julga que a humanidade regressará ao que se virá a chamar o estado da natureza? – Não: a lei é necessária à sociedade, mas esta lei é a lei imposta pelo aristocrata, cujo caráter inflexível lhe garante a estabilidade. [Osório diz: o sobrinho dele, Platão, pensa assim também].

Deve sublinhar-se, finalmente, uma dimensão anti-sofística deste fragmento de Pirithoüs; Crítias contesta, implicitamente, a idéia, tão ao gosto de Górgias, da onipotência da palavra; o seu feitiço encantatório não pode nada contra um verdadeiro caráter, isto é, nada contra o querer esclarecido do homem nobre; a marca da excelência do tropos está mesmo em saber resistir-lhe. A quinquilharia da retórica só é boa para o povo.

A crítica da lei continua na famosa passagem do Sísifo, onde Crítias analisa a astúcia da religião que inventa deuses para conseguir de cada homem a sua auto-repressão. Este fragmento surpreendente parece uma resposta à análise antifoniana do (p. 113) respectivo valor da natureza e da lei. Antífon proclamava sem rodeios a superioridade da natureza, cujos imperativos são necessários, em relação à lei, cujas normas são convencionais, Crítias demonstra sutilmente que, por esta razão, a vida social não seria possível, porque a lei não pode vigiar continuamente o cidadão, e os maus então “agem às escondidas”. Ora, é preciso domar a hygbris humana. Crítias descobre então que a lei é mais forte do que pensava Antífon e que ela pode domar a natureza; um dia, com efeito,

 

Um homem avisado e sábio de pensamento

Inventou para os mortais o temor dos deuses”.

 

Para a onisciência divina, o homem está sempre nu: não é possível esconder-se; enquanto teme os deuses, o mau omite a má ação. É claro que ainda não se pode falar da introjeção, no sentido freudiano do termo; o discurso mítico situa o daimon divino, de alguma maneira, no exterior do homem, já que houve e vê, mas há já, mediante o sentimento do medo, uma interiorização da lei que confere à análise de Crítias um tom muito atual.

Esta tomada de posição, aparentemente clara, não deixa de levantar pelo menos dois problemas, o do estatuto da religião e o da identidade do inventor dos deuses.

O texto de Crítias é muitas vezes citado para ilustrar as manifestações de ateísmo na Antiguidade; traduz bem, evidentemente, um ceticismo completo quanto à existência real dos deuses. Apesar de tudo, não se pode dizer que condena inapelavelmente a religião, ao ver nela apenas, como fará Marx, o ópio do povo; sublinha, pelo contrário, a necessidade social da crença nos deuses e seus efeitos benéficos. Os deuses são uma ficção, mas uma ficção útil e por este tema da ficção útil Crítias antecipa diretamente Nietzsche [Osório diz: antecipação de Nietzsche]. A religião é, portanto, simultaneamente destronada e promovida; serva da política, e, ainda que esvaziada de todo o conteúdo propriamente religioso, ela é indispensável.

Mas quem é o inventor dos deuses? Um sofista, sem dúvida, já que proporciona “o mais doce dos ensinos” e assim persuade, sem nada impor, “escondendo a verdade com um discurso falso”; é por isso que comparamos, exatamente, esta passagem com a doutrina de Górgias. Mas os Sofistas históricos empregaram o seu talento a suscitar ou ressuscitar a crença nos deuses? Protágoras, ainda assim, professava o agnosticismo; Pródico, sem dúvida o mais religioso dos Sofistas, concebe deuses inventores mais do que inventados. O inventor dos deuses utiliza, portanto, a técnica sofística, mas ele próprio é mais um político, próximo do ideal de Crítias, já que possui a famosa gnôme.

Portanto, este texto não é totalmente contraditório; se parece argumentar pró e contra a religião é porque se coloca sucessivamente na perspectiva do povo e na do governante, já que o sofista deve persuadir o povo da existência do deus, e o político, não acreditar em nada. [Osório diz: Maquiavel?]

O pensamento de Crítias acaba por nos aparecer menos embebido de contradições do que se disse. O preconceito aristocrático do seu pensamento vai a par do compromisso pró-oligárquico da sua vida [Osório diz: como seu sobrinho, Platão, de quem ninguém diz nada sobre isso! Exceto Popper]. Certamente que Crítias parece professar uma visão antilógica do real, quando declara: “para os homens, o rosto mais belo é o rosto feminino; para as mulheres, pelo contrário, é o inverso.” Mas o fragmento não afirma explicitamente a duplicidade radical do ser; antes sugere, segundo o que sabemos de Crítias, a idéia de uma dominação: o que é belo é o homem dominando os traços femininos que estão nele, a mulher os traços masculinos, da mesma maneira que é belo o domínio das sensações pelo pensamento e o dos bons sobre os maus, isto é (segundo Crítias), dos oligarcas sobre o povo. Sem tensão não há beleza, mas é uma mistura sem graça. Pensamento da contradição, sem dúvida, mas de uma contradição estabilizada no mesmo sentido pela vitória de um dos contrários – vitória, como o demonstra o fragmento sobre os Espartanos e os Hilotas, sempre afirmada por uma vigilância sem falha.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 112-116).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

49 – Crítias e 49.1 – A visão de Crítias.

 

Sobre o tema nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey que Crítias:

 

A crítica da lei continua na famosa passagem do Sísifo, onde Crítias analisa a astúcia da religião que inventa deuses para conseguir de cada homem a sua auto-repressão. Este fragmento surpreendente parece uma resposta à análise antifoniana do respectivo valor da natureza e da lei. Antífon proclamava sem rodeios a superioridade da natureza, cujos imperativos são necessários, em relação à lei, cujas normas são convencionais, Crítias demonstra sutilmente que, por esta razão, a vida social não seria possível, porque a lei não pode vigiar continuamente o cidadão, e os maus então “agem às escondidas”. Ora, é preciso domar a hygbris humana. Crítias descobre então que a lei é mais forte do que pensava Antífon e que ela pode domar a natureza; um dia, com efeito,

 

Um homem avisado e sábio de pensamento

Inventou para os mortais o temor dos deuses”.

 

Para a onisciência divina, o homem está sempre nu: não é possível esconder-se; enquanto teme os deuses, o mau omite a má ação. É claro que ainda não se pode falar da introjeção, no sentido freudiano do termo; o discurso mítico situa o daimon divino, de alguma maneira, no exterior do homem, já que houve e vê, mas há já, mediante o sentimento do medo, uma interiorização da lei que confere à análise de Crítias um tom muito atual.

Esta tomada de posição, aparentemente clara, não deixa de levantar pelo menos dois problemas, o do estatuto da religião e o da identidade do inventor dos deuses.

O texto de Crítias é muitas vezes citado para ilustrar as manifestações de ateísmo na Antiguidade; traduz bem, evidentemente, um ceticismo completo quanto à existência real dos deuses. Apesar de tudo, não se pode dizer que condena inapelavelmente a religião, ao ver nela apenas, como fará Marx, o ópio do povo; sublinha, pelo contrário, a necessidade social da crença nos deuses e seus efeitos benéficos. Os deuses são uma ficção, mas uma ficção útil e por este tema da ficção útil Crítias antecipa diretamente Nietzsche[Osório diz: antecipação de Nietzsche]. A religião é, portanto, simultaneamente destronada e promovida; serva da política, e, ainda que esvaziada de todo o conteúdo propriamente religioso, ela é indispensável.

Mas quem é o inventor dos deuses? Um sofista, sem dúvida, já que proporciona “o mais doce dos ensinos” e assim persuade, sem nada impor, “escondendo a verdade com um discurso falso”; é por isso que comparamos, exatamente, esta passagem com a doutrina de Górgias. Mas os Sofistas históricos empregaram o seu talento a suscitar ou ressuscitar a crença nos deuses? Protágoras, ainda assim, professava o agnosticismo; Pródico, sem dúvida o mais religioso dos Sofistas, concebe deuses inventores mais do que inventados. O inventor dos deuses utiliza, portanto, a técnica sofística, mas ele próprio é mais um político, próximo do ideal de Crítias, já que possui a famosa gnôme.

Portanto, este texto não é totalmente contraditório; se parece argumentar pró e contra a religião é porque se coloca sucessivamente na perspectiva do povo e na do governante, já que o sofista deve persuadir o povo da existência do deus, e o político, não acreditar em nada.” [Osório diz: Maquiavel?]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 113-115).

 

O mesmo Gilbert Romeyer-Dherbey diz de Hípias:

 

A antropologia de Hípias está no prolongamento direto da sua teoria da natureza. Instaura uma oposição categórica entre a natureza (physis) e a lei (nomos), em benefício da primeira, sendo a lei positiva duramente posta em questão.

Constatar que o nomos é incapaz de instaurar uma verdadeira justiça é, antes de mais, para Hípias, exprimir no plano do conceito a violenta crise que abala a sociedade grega no fim do séc. V e no princípio do IV. Edmond Lévy analisou minuciosamente esta “crise ideológica” ateniense, ligada à derrocada de 404. A guerra demonstrou que os deuses não defendem os justos, já que são atingidos tanto e muitas vezes até mais do que os outros [Osório diz: como é que homens que pensavam assim e diziam isso poderiam ser aceitos? Daí o ódio nutrido, até hoje, contra eles, pois questionavam o divino]; levantam-se dúvidas, então, quanto à idéia da providência divina, claramente expressas por alguns heróis de Eurípedes. A decadência da crença na providência arrasta a da crença nos valores tradicionais de que a principal era a justiça [Osório diz: aqui a mesma coisa, apenas a crítica é dirigida contra a justiça, outro “pilar” da ordem que eles questionavam]: estas, escreve E. Lévy, “reduzem-se a onómata kelá[Osório diz: “belas palavras”]. Por outro lado, as discórdias políticas, o confronto interno na cidade entre democratas e oligarcas e a sua transição sucessiva para poder fazer ver claramente que as leis que promovem são a expressão disfarçada dos seus interesses de partido. A lei é desacralisada; perdeu a neutralidade do direito; é um disfarce para o poder, e a obediência à lei não poderá já definir a justiça [Osório diz: como os sofistas viam o direito e a justiça e as leis]. Enfim, sabemos que Hípias é um dos criadores da etnologia [A etnologia é o "estudo ou ciência que estuda os fatos e documentos levantados pela etnografia no âmbito da antropologia cultural e social, buscando uma apreciação analítica e comparativa das culturas."]; como embaixador e professor itinerante, contactou com múltiplas legislações positivas, e verificou os desacordos e as contradições. Ninguém melhor do que ele poderia ter a sensação da relatividade daquilo que as diferentes culturas chamam “justo” e “bom”.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 85).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

48.3 – Trasímaco era um raivoso irado?

 

Gilbert Romeyer-Dherbey leciona:

 

Grote foi, sem dúvida, o primeiro a suspeitar que o Trasímaco do Livro I de A República não se coadunava com o Trasímaco histórico. Apoia-se no fato de que a exaltação da violência que Trasímaco opõe exaltadamente às teses de Sócrates não teria sido aceite por um auditório ateniense; também o elogio da tirania que pronuncia teria fortemente chocado a opinião pública da democrática Atenas e não teria sido tolerado.

 

A Sofística consiste, na verdade, em viver dominando os outros em vez de os servir, como queria a lei”. (Leis, 890a). Encontramos, portanto, nas análises de Platão uma sistematicidade que fazem dos textos do Górgias e de República I uma demonstração anti-sofística e não um testemunho histórico [Osório diz: excelente observação].

 

O testemunho de República I não deve, no entanto, rejeitar-se em bloco; o que é necessário tentar determinar é o momento em que intervém exatamente a distorção platônica. Temos, felizmente, um fragmento de Trasímaco sobre a justiça que não é tirado de A República, mas de um discurso do sofista, em que diz isto: “os deuses não olham para as coisas humanas; com efeito, não deixariam de se preocupar pelo maior dos bens entre os homens – a justiça. Ora, vemos que os homens não a praticam[Osório diz: esse fragmento é um milagre!]. Trasímaco verifica, não sem profunda amargura, que o mundo, como vai, está abandonado por Deus e que a justiça não reina como soberana na realidade de todos os dias. Já antes de Sade, verificou as infelicidades da virtude e as prosperidades do vício e sente-se o eco do seu próprio desânimo numa passagem de A República: “Ó ingênuo Sócrates, não tens mais do que ver que o homem justo fica em todo o lado em desvantagem relativamente ao injusto”. Mas Trasímaco vai mais longe ainda, e é isto que provoca o sobressalto de Platão. Dedica-se, como Antífon, como Lícofron, como Alcidamas, a uma acerba crítica do nomos, a uma verdadeira desmitificação da lei que, longe de servir de muralha contra a injustiça, como se julga, se encontra contaminada por ela e pervertida; a lei é instrumento do poder e não o enunciado racional que pretende ser. É por isso que é sempre, de fato, partidária e não respeita a neutralidade que a justiça exigiria no sentido não político do termo, que se opõe à justiça legalista [Osório diz: para que serve e a quem serve a lei] que Trasímaco define assim:

Todo o governo estabelece sempre as leis no seu próprio interesse, a democracia, as leis democráticas; a monarquia, leis monárquicas e os outros regimes a mesma coisa; depois, feitas estas leis, proclamam como justo para os governados o que é o seu próprio interesse e, se alguém as transgride, castigam-no como violador da lei e da justiça. Eis, meu excelente amigo, o que pretendo dizer sobre a justiça uniforme em todos os estados: é o interesse do governo constituído. Ora, é este poder que tem a força; donde se segue para todo o homem que sabe raciocinar que por todo o lado é a mesma coisa que é justa, quero dizer, o interesse do mais forte.” [Osório diz: para que serve e a quem serve a lei].

A lei tornou-se a expressão da própria injustiça porque é violência feita ao indivíduo e instrumento da vontade de poder dos homens no poder; ela já não pode ser o que era outrora, a garante da moralidade. A consciência atormentada de Trasímaco ataca a boa consciência que sempre legitima os regimes em presença; o sofista dá a sua palavra ao espírito do tempo num período de crise profunda e de desânimo. Trasímaco procura a justiça e não depara senão com a justificação, isto é, o esforço por legitimar, já tarde, um poder de fato, em síntese, para transformar uma força em direito [Osório diz: o esforço por legitimar!]. Os poderes estabelecidos produzem não normas, mas normalizações, o aparelho dos códigos e leis encobre interesses particulares camuflados com o interesse geral. A forma da justiça que o pensamento crítico de Trasímaco quer atingir é a justificação.

Estamos já em condições de dizer onde intervém exatamente a distorção platônica ou, como escreve E. L. Harrison a “manipulação” de Trasímaco na República I. Trasímaco denuncia um estado de fato, de que a amargura dos seus juízos prova bem que ele não se alegra, e Platão finge acreditar que transforma este fato em direito, e se faz campeão do direito do mais forte, até fazer a apologia da tirania. Ora, não possuímos o menor fragmento de Trasímaco em que este justifique a força; temos, pelo contrário, um fragmento em que este trata com um grande desprezo o tirano da Macedônia, Arquelau: “Nós, Gregos, serviremos de escravos a Arquelau um bárbaro?” Platão acaba por fazer de Trasímaco o justificador da justificação, quando este foi precisamente o denunciador apaixonado. Trasímaco desespera da política; a oposição de Platão não tem talvez outra fonte, já que toda a sua obra é um credo a favor de uma solução política da crítica ateniense, solução de que A República precisamente constitui a carta. Para ele, a justiça pode triunfar mesmo ao nível do fato e mostrar-se mais forte do que a injustiça; ela é uma necessidade do mundo, e a sua eficácia prática deve ser reconhecida pelo próprio homem injusto, como o demonstra Sócrates com um argumento célebre: “Julgas que um Estado, um exército, um grupo de salteadores, de ladrões, ou qualquer mau intento poderiam ter um mínimo de êxito, se violassem entre si as regras da Justiça?” [Osório diz: o que essa afirmativa prova é que o ladrão também é justo, já que obedece as regras de justiça do seu grupo ou entre o seu grupo, como demonstra a “justiça entre si”! Ademais, se todos, inclusive os ladrões, obedecem a justiça (mesmo entre si), por que lutar pela obediência de todos à justiça? Contradição total!] Não há que desesperar do nomos que pode ser bom, já que é obra da razão [Osório diz: como se a razão somente produzisse o bem! O que desmente, também, a afirmativa socrática de que o homem somente faz o mal pensando que faz o bem! O homem é mais safado que a própria safadeza]. Platão identifica ética e política [Osório diz: como Parmênides identificava dizer e ser. (Parmênides não pode servir à tese de Protágoras/Antístenes? Nunca há contradição)]; quer fazer política ética e uma ética política. Pelo contrário, Trasímaco foi, sem dúvida, um dos primeiros a opor tão nitidamente a ética à política e a dissociá-las; aqui está a origem do seu descontentamento e também da sua atualidade. Trasímaco terá encontrado, como Antífon e Hípias, na natureza a norma universal capaz de ultrapassar as leis partidárias das inumeráveis e minúsculas Cidades-Estados da Grécia antiga? Não possuímos nenhum fragmento seu que vá neste sentido. Trasímaco descobriu o lugar em que a ética se poderá conservar quando desertar da cidade? Quando o campo do político se encontra inteiramente dominado pela imoralidade, a justiça conserva efetivamente um refúgio: a consciência do indivíduo; esta consciência deve poder definir-se como interioridade ética e constituir o abrigo do valor injuriado. Se os Sofistas são os descobridores do indivíduo e dos seus direitos, chegaram – com Trasímaco – a defini-lo como interioridade ética? Sem dúvida que não, porque se o lado negativo do pensamento de Trasímaco, a crítica da lei política, estivesse aliado a um lado positivo, a interpretação platônica do seu pensamento não teria sido possível. Trasímaco ficou sem dúvida no momento do divórcio entre a ética e a política; o pensamento da interioridade não estava maduro, daí o seu pessimismo, o seu desespero.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 72-75).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

48.2 – O debate constitucional, por Trasímaco.

 

Gilbert Romeyer-Dherbey doutrina:

 

Untersteiner lê o fragmento “Da Constituição” à luz da Constituição dos Atenienses do Velho Oligarca. Vê nele uma denúncia do sistema maioritário da democracia; esta gasta-se em discursos contraditórios e em lutas intestinas, quando o perigo se tornava iminente. Conclui: “a solução que Trasímaco propõe coincide com a palavra de ordem do partido oligárquico, isto é, com o regresso à Constituição dos pais”.

Não vemos, da nossa parte, neste texto a marca de um espírito partidário, mas, pelo contrário, um esforço do sofista por se elevar acima da confusão. O orador começa por se desculpar de intervir, apesar da sua juventude, nos assuntos públicos, mas as desgraças que hoje afligem a Cidade têm uma causa política, e “há que tomar a palavra”. Estas desgraças são de duas ordens: conflito no exterior (guerra do Peloponeso), discórdia no interior (luta entre oligarcas e democratas). O remédio que Trasímaco propõe resume-se numa palavra: Homonoia, a concórdia. Este acordo pode realizar-se a um duplo nível, no pensamento e na ação; e é tanto mais fácil de conseguir quanto já existe. Com efeito, os adversários julgam apenas opor-se e não sentem que, no domínio prático, eles querem fazer as mesmas coisas, e que, no domínio teórico, “a afirmação dos outros está contida nas suas afirmações que aqueles dirigem”. Esta última fórmula é notável pela dialeticidade que deixa entrever; bem longe de se armar em profissional da erística, o sofista lança aqui as bases de um verdadeiro logos de reconciliação. Trasímaco opõe-se, por isto, a Protágoras e à sua tese de antilogia: as contradições resolvem-se pela implicação mútua dos discursos, que só são contrárias na aparência. Este tema da homonoia já é muito atuante em Antífon e, em menor grau, em Hípias: notamos, uma vez mais, como é falso ver, nos sofistas, os mestres intelectuais da violência.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 70-71).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

48Trasímaco e 48.1 – Justiça e justificação, por Trasímaco.

 

Gilbert Romeyer-Dherbey nos diz:

 

Grote foi, sem dúvida, o primeiro a suspeitar que o Trasímaco do Livro I de A República não se coadunava com o Trasímaco histórico. Apoia-se no fato de que a exaltação da violência que Trasímaco opõe exaltadamente às teses de Sócrates não teria sido aceite por um auditório ateniense; também o elogio da tirania que pronuncia teria fortemente chocado a opinião pública da democrática Atenas e não teria sido tolerado.

A Sofística consiste, na verdade, em viver dominando os outros em vez de os servir, como queria a lei”. (Leis, 890a). Encontramos, portanto, nas análises de Platão uma sistematicidade que fazem dos textos do Górgias e de República I uma demonstração anti-sofística e não um testemunho histórico [Osório diz: excelente observação].

O testemunho de República I não deve, no entanto, rejeitar-se em bloco; o que é necessário tentar determinar é o momento em que intervém exatamente a distorção platônica. Temos, felizmente, um fragmento de Trasímaco sobre a justiça que não é tirado de A República, mas de um discurso do sofista, em que diz isto: “os deuses não olham para as coisas humanas; com efeito, não deixariam de se preocupar pelo maior dos bens entre os homens – a justiça. Ora, vemos que os homens não a praticam[Osório diz: esse fragmento é um milagre!]. Trasímaco verifica, não sem profunda amargura, que o mundo, como vai, está abandonado por Deus e que a justiça não reina como soberana na realidade de todos os dias. Já antes de Sade, verificou as infelicidades da virtude e as prosperidades do vício e sente-se o eco do seu próprio desânimo numa passagem de A República: “Ó ingênuo Sócrates, não tens mais do que ver que o homem justo fica em todo o lado em desvantagem relativamente ao injusto”. Mas Trasímaco vai mais longe ainda, e é isto que provoca o sobressalto de Platão. Dedica-se, como Antífon, como Lícofron, como Alcidamas, a uma acerba crítica do nomos, a uma verdadeira desmitificação da lei que, longe de servir de muralha contra a injustiça, como se julga, se encontra contaminada por ela e pervertida; a lei é instrumento do poder e não o enunciado racional que pretende ser. É por isso que é sempre, de fato, partidária e não respeita a neutralidade que a justiça exigiria no sentido não político do termo, que se opõe à justiça legalista [Osório diz: para que serve e a quem serve a lei] que Trasímaco define assim:

 

Todo o governo estabelece sempre as leis no seu próprio interesse, a democracia, as leis democráticas; a monarquia, leis monárquicas e os outros regimes a mesma coisa; depois, feitas estas leis, proclamam como justo para os governados o que é o seu próprio interesse e, se alguém as transgride, castigam-no como violador da lei e da justiça. Eis, meu excelente amigo, o que pretendo dizer sobre a justiça uniforme em todos os estados: é o interesse do governo constituído. Ora, é este poder que tem a força; donde se segue para todo o homem que sabe raciocinar que por todo o lado é a mesma coisa que é justa, quero dizer, o interesse do mais forte.” [Osório diz: para que serve e a quem serve a lei].

 

A lei tornou-se a expressão da própria injustiça porque é violência feita ao indivíduo e instrumento da vontade de poder dos homens no poder; ela já não pode ser o que era outrora, a garante da moralidade. A consciência atormentada de Trasímaco ataca a boa consciência que sempre legitima os regimes em presença; o sofista dá a sua palavra ao espírito do tempo num período de crise profunda e de desânimo. Trasímaco procura a justiça e não depara senão com a justificação, isto é, o esforço por legitimar, já tarde, um poder de fato, em síntese, para transformar uma força em direito [Osório diz: o esforço por legitimar!]. Os poderes estabelecidos produzem não normas, mas normalizações, o aparelho dos códigos e leis encobre interesses particulares camuflados com o interesse geral. A forma da justiça que o pensamento crítico de Trasímaco quer atingir é a justificação.

Estamos já em condições de dizer onde intervém exatamente a distorção platônica ou, como escreve E. L. Harrison a “manipulação” de Trasímaco na República I. Trasímaco denuncia um estado de fato, de que a amargura dos seus juízos prova bem que ele não se alegra, e Platão finge acreditar que transforma este fato em direito, e se faz campeão do direito do mais forte, até fazer a apologia da tirania. Ora, não possuímos o menor fragmento de Trasímaco em que este justifique a força; temos, pelo contrário, um fragmento em que este trata com um grande desprezo o tirano da Macedônia, Arquelau: “Nós, Gregos, serviremos de escravos a Arquelau um bárbaro?” Platão acaba por fazer de Trasímaco o justificador da justificação, quando este foi precisamente o denunciador apaixonado. Trasímaco desespera da política; a oposição de Platão não tem talvez outra fonte, já que toda a sua obra é um credo a favor de uma solução política da crítica ateniense, solução de que A República precisamente constitui a carta. Para ele, a justiça pode triunfar mesmo ao nível do fato e mostrar-se mais forte do que a injustiça; ela é uma necessidade do mundo, e a sua eficácia prática deve ser reconhecida pelo próprio homem injusto, como o demonstra Sócrates com um argumento célebre: “Julgas que um Estado, um exército, um grupo de salteadores, de ladrões, ou qualquer mau intento poderiam ter um mínimo de êxito, se violassem entre si as regras da Justiça?” [Osório diz: o que essa afirmativa prova é que o ladrão também é justo, já que obedece as regras de justiça do seu grupo ou entre o seu grupo, como demonstra a “justiça entre si”! Ademais, se todos, inclusive os ladrões, obedecem a justiça (mesmo entre si), por que lutar pela obediência de todos à justiça? Contradição total!] Não há que desesperar do nomos que pode ser bom, já que é obra da razão [Osório diz: como se a razão somente produzisse o bem! O que desmente, também, a afirmativa socrática de que o homem somente faz o mal pensando que faz o bem! O homem é mais safado que a própria safadeza]. Platão identifica ética e política [Osório diz: como Parmênides identificava dizer e ser. (Parmênides não pode servir à tese de Protágoras/Antístenes? Nunca há contradição)]; quer fazer política ética e uma ética política. Pelo contrário, Trasímaco foi, sem dúvida, um dos primeiros a opor tão nitidamente a ética à política e a dissociá-las; aqui está a origem do seu descontentamento e também da sua atualidade. Trasímaco terá encontrado, como Antífon e Hípias, na natureza a norma universal capaz de ultrapassar as leis partidárias das inumeráveis e minúsculas Cidades-Estados da Grécia antiga? Não possuímos nenhum fragmento seu que vá neste sentido. Trasímaco descobriu o lugar em que a ética se poderá conservar quando desertar da cidade? Quando o campo do político se encontra inteiramente dominado pela imoralidade, a justiça conserva efetivamente um refúgio: a consciência do indivíduo; esta consciência deve poder definir-se como interioridade ética e constituir o abrigo do valor injuriado. Se os Sofistas são os descobridores do indivíduo e dos seus direitos, chegaram – com Trasímaco – a defini-lo como interioridade ética? Sem dúvida que não, porque se o lado negativo do pensamento de Trasímaco, a crítica da lei política, estivesse aliado a um lado positivo, a interpretação platônica do seu pensamento não teria sido possível. Trasímaco ficou sem dúvida no momento do divórcio entre a ética e a política; o pensamento da interioridade não estava maduro, daí o seu pessimismo, o seu desespero.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 72-25).

 

5

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

47.7 – Arrythmiston, por Antifonte.

 

Nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Antífon não emprega, como Aristóteles, o termo matéria, mas um conceito que parece ser-lhe exclusivo, isto é, o de arrythmiston: é o arrythmiston que constitui a natureza profunda dos seres, a sua verdadeira realidade. O primeiro problema que temos a resolver é, antes de mais, como compreender e traduzir este conceito. Arrythmiston significa o que é privado, ou antes, livre, de todo o rythmos, de todo o “ritmo”. Se não somos esclarecidos por esta nota é porque damos atualmente ao termo de “ritmo” um sentido completamente diferente do que possui o rythmos dos pensadores socráticos. Se o nosso “ritmo” nos remete antes para o domínio da música, portanto, da experiência auditiva, o rythmos, pelo contrário, refere-se à experiência visual das formas. O regresso ao primitivo sentido do “ritmo” passa por uma investigação sobre a etimologia da palavra. Influenciados pela sua conotação musical, os gramáticos fizeram-no derivar do verbo rhein, que significa “correr”. Jaeger foi um dos primeiros a por em questão a etimologia clássica analisando uma série de aparições de rythmos (ou rhysmos) em que o contexto prova que esta palavra não tem qualquer relação com “correr”, mas significa antes o contrário, a saber, a paragem entre limites que fecham um traçado. Aristóteles informa-nos que os atomistas empregavam o rythmos para designar o perfil dos átomos e usa “contorno” (schêma) como termo equivalente. E. Benveniste dedicou um artigo à “noção de ritmo na sua expressão linguística” em que aponta as vezes que aparece rythmos e os termos aparentados “desde a origem até o período ático”, concluindo que “o sentido permanente é: forma distintiva, figura proporcionada, disposição”. Benveniste acrescenta que Aristóteles, baseando-se em rythmos “forja arrythmistos, não reduzindo a uma forma, inorganizada. Julgamos que não foi Aristóteles que inventou arrythmiston, mas Antífon, como o demonstra o texto da Física onde o mesmo problema do ser da natureza é abordado. O rythmos é, portanto, o que poderíamos expressar por modelo, o contorno ou ainda a estrutura, a organização; aproxima-se muito de outro conceito de Antífon, o de diáthesis, disposição, ordem. O arrythmiston é, para retomar uma tradução heideggeriana, o “livre de estrutura”, ou talvez ainda o “fundo”, no sentido de Schelling (Grund).” [Osório diz: rythmos (ritmo) em seu sentido antifoniano ou primitivo]

Assim como na cosmologia de Antífon o arrythmiston representava o real e o profundo, o rhythmos o superficial, o aparente. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 92-93).

 

 

 

2

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

47.6 – A lei (nomos), justiça e vida, por Antifonte.

 

Diz-nos Guthrie:

 

Alternativamente, sustentou-se que não há nenhuma contradição, porque as passagens que estamos a ponto de considerar não revelam o seu autor “como o inimigo imoral de nomos e controle social, mas como seu crítico, utilitarista realista, mas socialmente intencionada”. A primeira questão pode-se omitir porque para a presente discussão basta que representem idéias correntes no séc. V. Se soa ou não imorais e hostis ao nomos deve emergir à medida que as vamos considerando. Pode antes ser que a hostilidade ao nomos seja um de seus traços constantes, que na prática pode levar, quer a preceito egoísta (“ignora o nomos em teu comportamento pessoal se podes evitar de ser descoberto”), quer a uma humanidade abrangente (“a distinção entre gregos e bárbaros é só questão de nomos”). [Osório diz: o intérprete usa a vontade!]

(Antífon fr. 44A DK): a justiça consiste em não transgredir as leis e usos (nomina) do próprio Estado. Por isso o mais vantajoso meio de manipular a justiça [Osório diz: ou seria a lei?] é respeitar as leis quando testemunhas estão presentes, mas em caso contrário seguir os preceitos da natureza. Leis são contratos artificiais, falta-lhes a inevitabilidade do crescimento natural. Daí, transgredir as leis sem ser descoberto não faz nenhum mal, ao passo que toda a tentativa de violar os ditames inatos da natureza é danoso sem considerar a descoberta dos outros, pois o dano não é apenas, como no caso do transgressor da lei, uma questão de aparecer ou reputação, mas realidade. A justiça no sentido legal está em geral em disparidade com a natureza. As leis prescrevem o que devemos ver, ouvir ou fazer, aonde devemos ir, e até o que devemos desejar [pode-se pensar nos dez mandamentos], mas, no que diz respeito à conformidade à natureza, o que proíbem é tão bom como o que mandam. [Osório diz: aqui o autor identifica justiça = lei. Para Antifonte, isso é diferente! Mas aí entram os adversários dos sofistas e dizem que eles pregavam a injustiça e não o descumprimento das leis que eles reputavam injustas].

Vida e morte são ambas naturais, uma benéfica ao homem, e a outra desvantajosa. Mas “beneficio” tal como a lei o entende é uma resistência à natureza; em seu sentido natural significa liberdade. Dores não estão presentes na natureza mais do que prazeres, e o que é verdadeiramente beneficente deve ajudar, e não prejudicar. Não se pode dizer que o que causa dor seja mais benéfico do que traz prazer... [lacuna de sete linhas no papiro]... aqueles que, embora se defendam a si mesmos, nunca tomam a ofensiva, aqueles que estimam pais que os tratam mal, e aqueles que dão a seus oponentes a oportunidade de se ligar por juramento recusando a fazê-lo eles mesmos. Muitas destas ações são contra a natureza, pois implicam mais dor do que prazer, e mau tanto quando o reverso é possível. Se as leis protegessem tal comportamento e infligissem perda aos que agem de outra maneira, poderia ser vantajoso obedecer-lhes; mas assim como é, a justiça legal não é suficientemente forte para isso. Ela não impede o ataque nem o sofrimento da vítima, e quando se busca reparação ela favorece tanto o opressor como o oprimido. A vítima deve persuadir o tribunal de que foi injustiçada, e seus atacantes têm facilidades iguais de negá-lo. [Osório diz: vítima e réu no tribunal se igualam! A vítima sofre duas vezes: a violência primeira e a prova de que a sofreu. O réu leva vantagem, pois pode até provar que a vítima é a culpada]

 

[Tomando apo em sentido partitivo (V. Lw, s. v. I 6). Manifestamente se costuma entendê-lo como causativo Cresulta das coisas benéfico..."r. Kerferd nota (loc. cit. 31) que evidentemente nem tudo que é physei é vantajoso, e a norma de Antífon deve ser restringida a ta physei tzympheronta. (C£ também Heinimann, N. u, Ph. 137). Isso parece mais razoável do que a afirmação de Stenzel (RE Suppl. IV, 36) para quem toda a ênfase está na vida, e a morte só se introduz como "expressão polar" e por antítese retórica. O argumento parece ser que tanto a natureza como a lei produzem dano ou bem (até um defensor da natureza como Antífon poderia dificilmente negar a ocorrência de desastres naturais como terremotos e inundações), e que têm critérios diferentes do que sejam bem e mal, e os da natureza se devem preferir.]

 

[Doutrina hedonística semelhante é criticada em Xen. Mem. 1.6 como de Antifon. Como diz Croiser, pode-se imaginar que destruição Sócrates faria com uma linguagem imprecisa deste tipo! [Osório diz: Sócrates seria um masoquista?] ].

 

[Kerferd (loc. cit. 29) diz, referindo-se especialmente a esta cláusula, que o que aí se menciona vai além do que exige a lei, e representa, portanto, terceiro padrão de ação distinto tanto da natureza como das leis. Mas não haveria nenhum terceiro padrão na mente de Antífon, pois um dever socialmente reconhecido como o de filhos e filhas adultas de dar apoio aos pais (um dos mais profundamente enraizados de qualquer sociedade grega) era nomos tanto quanto qualquer lei positivamente decretada. Cf. p. 58 acima).

Bignone, em sua tentativa de demonstrar que há estreita afinidade entre as doutrinas das duas obras Sobre a verdade e Sobre a concórdia, ambas representando "utilitarismo filantrópico", ignora completamente esta passagem. Em todo o seu ensaio em Studi sul pensiero antico não se menciona esta afirmação de que um comportamento, como recusar atacar a outros a não ser em autodefesa e tratar mal aos pais, é hostil à "natureza" que é o ideal de Antífon.].

Acredita-se que a justiça é algo bom, e dar testemunho verdadeiro mútuo considera-se em geral justo, da mesma foram que ser úteis nas relações humanas. Mas não será justo, se o critério da justiça é que um não deve infligir nenhuma injúria ao outro a não ser que este tenha primeiro injuriado. A testemunha, mesmo se confiável, inflige injúria ao homem contra o qual atesta, embora aquele homem não a tenha injuriado, e pode injúria sofrer em retorno. Pelo menos ele deve ter cuidado com o ódio dos outros que fez seus inimigos[Osório diz: a delicada posição da testemunha]. Assim injúria está implicada em ambos os lados, e chamar tais atos justos não se pode reconciliar com o princípio de que não é justo nem infligir nem sofrer injúria. Deve-se concluir que inquérito judicial, julgamento e arbitração não são justos, qualquer que seja seu resultado, pois uma decisão que beneficia um lado injuria o outro. [Osório diz: A “justiça legal” sempre injuria alguém!]

Basta pensar que impressão teríamos de Platão se nosso conhecimento da República se limitasse a alguns fragmentos do discurso de Gláucon (por exemplo, a sentença em 359c: "É natural a todo homem buscar a ambição egoísta como um bem, mas o nomos nos seduz para o respeito da igualdade") sem a explicação de que agia provisoriamente como advogado do diabo para que o caso fosse demolido por Sócrates. [Osório diz: Sócrates foi um personagem construído para ganhar! Era o “mocinho” de Platão!] [Osório diz: o que diz o autor serve para todos os que deixaram apenas fragmentos ou apenas para Sócrates?] Deparamo-nos aí com três noções de justiça, que às vezes se têm ensinado como irreconciliáveis e, sendo assim, necessariamente de origens diversas. [Osório diz: Qual é a de Antifonte? E se ele tivesse somente expondo uma tese para depois contestá-la? Se ele estivesse fazendo o papel de “advogado do diabo”, tal Gláucon?]

Conformidade a leis e costumes do próprio Estado. Estes, como na avaliação de Gláucon, se depreciam como questões de acordo humano. O auto-interesse exige que o homem se conforme apenas quando de outra forma fosse observado e punido. Lei e natureza têm idéias diferentes. Na natureza, vida, liberdade e prazeres são benéficos, e a morte não o é, mas a lei manda coisas que são dolorosas e impõe restrições artificiais à natureza. Estas não são verdadeiramente benéficas. Na visão esboçada por Gláucon, as virtudes aceitas devem ser praticadas por medo do pior, embora, se fosse dado o anel de Giges, ninguém seria ou deveria ser virtuoso, mas aí se crê obviamente que oportunidades não-observadas de desafiar o nomos ocorrem e se devem aproveitar. Apóia-se isso por outro argumento, o de que a lei não pode se proteger a si mesma. Ela só age depois do evento, e a chegada do pede Poena claudo [Osório diz: “o castigo claudica”, diz Horácio ao afirmar que o crime, nem sempre é imediatamente castigado.] é de pouco uso para homem assassinado. Pior do que isso, os tribunais de fato oferecerem oportunidade igual ao ofensor e à vítima [Osório diz: a lei não protege sequer a si mesma!].

A definição de justiça aí criticada soa, à primeira vista, exatamente como a citada com forte aprovação por Sócrates nos Memorabilia de Xenofonte (4.412-13), a saber, que “legal e justo são a mesma coisa”. [Osório diz: caso legal e justo fossem a mesma coisa, Sócrates poderia ter se defendido no tribunal? Não é ele que defende a obediência absoluta à lei? Logo ao que é justo!] Também se admite aí que as leis são meras criações dos cidadãos que concordam sobre o que se deve ou não se deve fazer, argumentando-se, porém, com certa amplidão em prol dos méritos deste conceito de justiça. [Osório diz: cidadãos para quem é democrata, para Sócrates/Platão bastam os ditadores!] Corporativamente, a obediência às leis produz unidade, força e felicidade, e para o indivíduo ela ganha amizade e confiança e (em direta contradição a Antífon) fornece a melhor oportunidade de vitória nos tribunais. Tudo isto se aplica às leis positivamente decretadas, mas, contrariando a Antífon, Sócrates continua inserindo as “leis não-escritas” que são de aplicação universal e aceitas por ele e por Hípias como divinamente ordenadas. Estas não são certamente os “ditames da natureza” de Antífon, pois abrangem o (p. 106) dever de honrar os próprios pais [Osório diz: mesmo que os país não honrem os filhos?] e a retribuição de benefícios, e Sócrates afirma que a obediência a eles é vantajosa e compensadora para o indivíduo, e (como Antífon com seus desconsiderar impunemente (p. 113 abaixo).

 

[Cf. também Lísias, 2.19 anthropois prosekei nomo horisai to dikaion. A equiparação de nomima e dikaia por Protágoras (em Platão, Theaet. 172a) é bastante diferente: as leis de uma cidade são dikaia para esta cidade enquanto estão em vigor, mas não são necessariamente sympheronta. Cf. 167c, e pp. 125, 162s abaixo. Bignone (Studi 74s) pensou que era Protágoras o alvo da crítica de Antífon.].

 

Nem fazer nem sofrer injúria [Osório diz: e revidar a uma injúria é injuriar?]. Sustentou-se que estas duas definições de justiça conflitam e, portanto, não podem receber adesão da parte das mesmas pessoas. Mas pode ter parecido assim para Antífon, pois o modo de ele introduzi-las no começo e no fim de sua argumentação de que testemunhar contra um homem “não é justo” implica que são idênticas ou muito semelhantes. Completa liberdade de injustiça [Osório diz: penso que o autor, Guthrie inverte e perverte! Veja-se que logo acima Antifonte diz que o ideal é “nem fazer nem sofrer injúria”, como, então, pois, a liberdade para a injustiça? / O que ele também não diz, é que Antifonte poderia estar combatendo as leis injustas! Lembremos que estávamos no início da história das leis escritas, pelo menos no Ocidente!], tanto de fazê-lo como sofrê-la, é o ideal, mas não está no poder de quem quer que seja assegurar-se de que nenhum outro homem lhe faça injustiça, de sorte que a melhor expressão prática da justiça é nunca tomar a iniciativa de fazer a injúria [Osório diz: por isso a lei não garante nada! A pena, posterior a injúria, não faz o tempo retroagir para apagar a injúria por parte de quem a sofreu]; e obviamente, se isto se observasse universalmente, seguiria a outra: se ninguém agisse a não ser em autodefesa, não haveria nenhum ataque para tornara necessária a autodefesa [Osório diz: sim, mas aí o mundo não seria mundo e o ser humano não seria humano!]. Muito provavelmente a terceira descrição de justiça era equivalente na mente de Antífon à primeira, uma vez que Platão faz Gláucon dizer que na opinião geral a lei era “acordo mútuo a não infligir nem sofrer injúria”.

Uma moralidade inculcada pela lei e pelo costume é contrária à natureza, e se deve preferir o caminho da natureza. Em OP 1364, ele alega que reprimir-se para não sofrer injustiça, exceto em autodefesa, é contra a natureza [Osório diz: e não é?], mas isto não o impede de frisar em 1797 que, se, como muitas pessoas, o aceitares como princípio de ação correta, encontrar-te-ás imediatamente em conflito com outro princípio geralmente aceito, o princípio de que quem quer que tenha informação que possa fazer um criminoso ser levado às barras da justiça tem o dever de apresentá-la. [Osório diz: as regras e as exceções. Isso não é ser moralista?]

Isso nos leva ao nível de Sócrates ou Jesus [Osório diz: as duas figuras da perniciosa religião à razão. Aliás, a religião somente é boa para os celerados dispostos a cometer injúria!], e Sócrates argumenta em seu favor mais uma vez, por exemplo, na República (335d, "Pois não é o papel do homem justo, Polemarco, prejudicar o seu amigo ou qualquer outro que seja") e Crito (49b, "Pois devemos não infligir injúria por injúria, como muitas pessoas crêem", e c, "Pois uma pessoa não deve tratar nenhum homem injustamente em revide, ou prejudicá-lo, qualquer coisa que soframos de suas mãos"). [Osório diz: e o cretino do Sócrates foi para a guerra! Isso seria Platão tirando sarro! Ou ele foi para guerra para que?] Os presentes fragmentos não oferecem nenhuma prova de que Antífon era moralista deste calibre [Osório diz: calibre vagabundo, diga-se de passagem, pois a pregação nega a prática]. Obviamente era pensador sério, e muito do que diz aqui se pode interpretar altruisticamente: a alegação de que o prazer é mais benéfico do que a dor poderia representar um utilitarismo hedonista de espécie universal, advogando uma conduta que assegurará o máximo de prazer no mundo em geral. De outra parte, porém, como quando ele deprecia o reprimir-se de agressão não-provocada como contrário àquela "natureza" que é seu ideal, parece que o hedonismo é egoísta e individualista. [Osório diz: E isto não pode ser? Onde um contraria o outro?].

 

[Para avaliar o caráter revolucionário da ética socrática, deve-se lembrar como estava profundamente enraizada na moralidade grega a doutrina de que "o autor sofrerá", que tornou a exação de revide ou vingança não só direito, mas também dever religioso. Cf. Ésqu. Ag. 1563s, Cho. 144,306- 14, Eur. H. E 727s. Outras passagens são citadas por Thompson, Oresteia, II, 185. [Osório diz: Então, todo o legal, que é justo (vide p. 119) não debe existir! Existe para quê? Se existe é por que o homem não presta!]

[Osório diz: pregunta a Sócrates: para que saber o que é o justo, se basta a edição de uma lei dizendo o que ele é?].].

 

[Na medida que Antífon está correto, esses comentários são feitos com certeza com base na suposição de que as idéias em questão são dele mesmo. Apesar dos argumentos de Bignone e Kerferd, esta ainda é minha impressão. Naturalmente, lidando com extratos assim fragmentários, preservados acidentalmente, só se podem tirar conclusões com precaução, e o propósito do presente capítulo é apenas mostrar que tais ideias eram correntes no séc. V.].

 

O “discurso”, disse Górgias (Hel. 14), “tem a mesma relação com a mente que as drogas têm para o corpo. Assim como as drogas eliminam diversos humores do corpo e algumas põem termo à doença e outras à vida, assim também as palavras podem induzir alegria ou tristeza, temor ou confiança, ou através de má persuasão, drogar e se apoderar da mente”. Esta teoria foi levada, de fato, à prática por Antífon em sua “clínica psiquiátrica” tal como se narra na Vida dos dez oradores: alugando uma sala apropriada em Corinto, ele “desenvolveu ‘uma arte de consolar’ paralela à terapia do corpo pelos médicos”.

 

[[Plut.] Vitae 833c, Antifon A 6. Sobre isto e a identidade de Antifon v. abaixo, pp. 114s. Sugere-se intuição psicológica também por seu dito (fr. 57) de que doença é férias para os preguiçosos, pois não precisam sair para o trabalho. Supus aqui o fato de que a narrativa em Vitae e verdadeira, mas v. pp. 268s, com notas.].

 

Retórica e Filosofia: outros modos de ver – ceticismo externo e moderado.

Certo Xeníades de Corinto, que só conhecemos por uma referência em Sexto, também adotou ceticismo extremo por esta época. De acordo com Sexto, “ele disse que tudo era falso, que toda impressão e opinião é falsa, e que tudo o que vem a ser vem a ser do que não é e tudo o que é destruído é destruído no que não é”. Que argumentos usou, se é que usou, para sustentar sua tese nós não sabemos, e sua afirmação vale citar simplesmente como outro exemplo de má reputação em que as teorias rivais dos filósofos naturais e especialmente a lógica de Parmênides tinham levado todo o tema da natureza da realidade e da possibilidade de mudança [Osório diz: Parmênides é outro adotado por Platão, o advogado das causas impossíveis]. Foi Parmênides que atacou expressamente a idéia de que alguma coisa podia vir ao ser do que não é (fr. 8.6ss), mas toda a filosofia pré-socrática e na verdade todo pensamento grego até hoje baseou-se na suposição não-questionada de que ex nihilo nihil fit. [Osório diz: tradução: “nada surge do nada”]

(...)

Crátilo, contemporâneo mais jovem de Sócrates (Platão, Crát. 429d, 440d-), levou aos extremos a doutrina de Heráclito do fluxo ou não permanência de tudo no mundo sensível. Aristóteles, discutindo em sua Metafísica a doutrina cética de que toda afirmação é tanto verdadeira como falsa, ou alternativamente de que não se pode fazer nenhuma afirmação verdadeira, atribui-as a uma crença de que não há nenhuma existência fora do mundo sensível, em que (i) contrários emergem da mesma coisa, e (ii) tudo está constantemente se movendo e mudando. A última observação, continua ele (10 10a 10), se desenvolveu na mais extrema destas doutrinas, a dos "heraclitizantes" e de Crátilo, que finalmente decidiu que ele não devia dizer nada em absoluto, mas apenas movia o dedo, e criticou Heráclito por dizer que não se pode pisar duas vezes no mesmo rio pelo fato de não se poder sequer pisar uma vez. Ele evidentemente pensou (como se esperaria do que se põe em seus lábios no Crátilo de Platão) que pronunciar qualquer afirmação é entregar-se à afirmação de que algo é. [Osório diz: ver Barbara Cassin sobre Crátilo]

 

[Melisso, fr. 8.3: “Parece a nós que o quente se torna frio e o frio quente, o duro se torna macio, o vivo morre, e nasce do não-vivo; que todas estas coisas mudam, e que o que era e o que é agora não são de nenhum modo iguais: o ferro que é duro é desgastado pelo contato com o dedo, como o são o ouro e a pedra e toda outra substância que parece dura, ao passo que da água vêm a terra e a pedra. Segue que nós não vemos nem reconhecemos o que é real (ta onta)”. …[Osório diz: isso sempre me leva ao dito de Lavoisier: “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.]].

 

[Crat. 429d. (Presumivelmente ele não foi lógico a ponto de se negar discurso ao fazer a crítica de Heráclito). Esta argumentação é atribuída explicitamente a Antístenes. [Osório diz: que lógico nunca se contradisse ou qual deles encontrou a tal “verdade”?]].

(…)

 

Na controvérsia do séc. V sobre nomos e physis, agora ficou claro que se devem distinguir duas posições entre os que eram filósofos suficientemente sérios para se preocuparem com implicações ontológicas e epistemológicas de suas ideias. (Isto não incluía todos os controversistas, pois o próprio argumento surgiu no contexto da ação humana prática e foi usado primariamente para advogar certa atitude para coma lei e a moralidade). Era possível pensar que lei e costume, e com eles a totalidade das impressões dos sentidos, deviam ser contrapostos enquanto mutáveis e relativos com uma natureza que era estável, permanente e conhecível, opondo como Demócrito o que era "por nomos" ao que era "na realidade". Pode ser que "realmente não conheçamos nada, pois a verdade está nas profundezas" (Democr. fr. 117), mas aí está a verdade, se pudermos cavar fundo e achá-la [Osório diz: o problema é que o buraco parece não ter fim!]. Alternativamente, sustentou-se que não havia nenhuma realidade objetiva e permanente atrás das aparências, e, " portanto, visto que estas eram puramente subjetivas, não havia nenhuma possibilidade de conhecimento científico. Nenhum filósofo natural acreditava nisto, mas os sofistas aproveitaram-se das inconsistências de suas [Osório diz: dos filósofos naturais] exposições como prova de que não se podia confiar neles. (Cf. Górgias, Hel, 13, p. 52 acima). Foi a estes céticos que Aristóteles criticou por fazer toda afirmação verdadeira e falsa, ou verdadeiras afirmações impossíveis, estando em seu número Protágoras e Górgias. Afirmou-se também que Antífon estava entre eles.

 

[Assim Schmid, Gesch. 1.3.1,160: "Antífon adere ao ceticismo epistemológico de Protágoras e Górgias pelo fato de contestar a possibilidade do conhecimento real e se restringir dentro dos limites da doxa. Dentro desta moldura, ele distingue dois níveis de conhecimento: um mais elevado através da mente (gnome) e um mais baixo através dos sentidos, que a seu ver e ao ver dos eleatas e dos atomistas não pode comunicar nenhum conhecimento válido". Todavia todos os outros pensadores contemporâneos, que distinguiam entre percepção mental e sensorial, associavam uma ao conhecimento real e a outra à doxa, e, na medida que posso ver, Schmid não produz nenhuma prova, absolutamente, para a surpreendente idéia de que Antífon, embora aceitasse ambos os modos de conhecimento, viu as funções de ambos igualmente confinadas dentro dos limites da doxa.].

(…)

 

O contraste entre pensamento e sentido. Na tradução de Morrison, reza: "Quando o homem diz uma coisa não há nenhum sentido (nous) correspondente, e também o tema de seu discurso não é nenhuma coisa, quer das coisas que o mais vigoroso observador vê com os olhos, quer das coisas que o mais vigoroso conhecedor sabe com sua mente." [Osório diz: mas isso não é o que quiseram os sofistas? Eles apenas provaram os erros dos outros (caminho que era também trilhado por Sócrates) sem expor os seus! Embora seja isso o que ocorre na vida, Protágoras, no seu mito, deu a única saída possível para a vida em sociedade]

Nenhuma leitura ou interpretação pode extrair o sentido sem nenhuma sombra de dúvida, mas parece que Antífon critica a ambigüidade de linguagem e o sentido mutante das palavras, que as torna incapazes de expressar a realidade, com a implicação de que tal realidade constante exista. [Osório diz: o autor concorda para discordar?]

Ele [Osório diz: Antifonte] ilustrou o contraste entre natural e artificial, em passagem criticada por Aristóteles, dizendo que se alguém enterrasse uma cama de madeira e a madeira apodrecida lançasse um rebento, o que surgiria seria simples madeira, e não outra cama.

[Osório diz: Finalmente o autor, Guthrie, jogou a toalha para Górgias! E, ainda por cima, abandonou os estudos contestatórios do homem de Leontinos]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 103-108 e 188-189 e 189-190).

 

Kerferd arremata:

 

Nos fragmentos conhecidos antes da descoberta dos papiros, especialmente os citados de Sobre a Concórdia, por exemplo fr. 61: "Não há nada pior para os homens do que a falta de regra. Tendo isso em mente, os homens de antigamente acostumavam seus filhos a serem governados e a fazerem o que lhes era ordenado de modo que quando se tornassem homens não ficassem confusos com a grande mudança", parecia que tínhamos um Antífon que falava como um conservador de direita. Contudo, nos fragmentos de papiro parece que vemos um pensador que rejeita as leis em favor da natureza e que está pregando um verdadeiro igualitarismo de esquerda. Isso levou a pensar que o Antífon com estas opiniões não poderia ser o mesmo oligarca radical que era particularmente forte na sua oposição à democracia. [Osório diz: duas frases fora do contexto ou transcritas de um pensamento usado para refutá-lo podem não ser um grande guia!].

Finalmente, deve-se dizer que, um ou dois, ambos viveram na mesma época — nascidos talvez por volta de 470 e falecidos em 411, num caso com certeza, no outro, não muito depois, uma vez que o sofista era considerado contemporâneo de Sócrates e Protágoras. Além de Sobre a Verdade, em dois volumes, e Sobre a Concórdia, ainda atribuídos a ele, havia um Político e uma obra Sobre a interpretação dos sonhos. Vários fragmentos mostram que ele estava interessado no problema da quadratura do círculo pelo método da exaustão (DK87B13) e também em problemas físicos e astronômicos B8, 26, 28,32).

A Antífon de Ramnonte eram atribuídos manuais de retórica, talvez em três volumes, uma Invectiva contra Alcibíades, a composição de tragédias e uma curiosa Arte de evitar sofrimento (Technê Alupias). Consta que, paralelo ao tratamento dado pelos médicos aos doentes, ele teria estabelecido um tipo de consultório ou serviço de atendimento do estilo samaritano moderno, numa sala perto da praça do mercado em Corinto, anunciando-se capaz de tratar os que estavam sofrendo, fazendo-lhes perguntas e descobrindo as causas e, desta forma, encorajando com suas palavras os que estavam aflitos. Não sabemos que palavras eram usadas. Mas no Corpus Hipocrático a ansiedade é reconhecida como um estado patológico (De Morbis 2.72). Eurípides, num fragmento (964N2), faz um personagem dizer que aprendera com um sábio a contemplar de antemão as desgraças, tais como mortes extemporâneas, a fim de que não cheguem inesperadamente quando chegarem. A mesma coisa é citada como um preceito pitagórico, muito mais tarde, por Jâmblico (DK 58D6) e pode bem ter feito parte da terapia psicológica oferecida por Antífon. O interesse por problemas psicológicos é sugerido por sua obra sobre a interpretação de sonhos. Contrário à opinião segundo a qual os sonhos têm origem na percepção direta, como sustentavam os atomistas, ou têm um valor de predição direto e natural, ele seguiu a via mais tarde rotulada de divinatio artificiosa (DK 87B79). Nessa visão, os sonhos eram sinais que requeriam interpretação, não uma aplicação literal, e de fato muitas vezes poderiam significar o oposto do que pareciam dizer. Essa racionalização dos sonhos era, sem dúvida, parte do movimento contra a superstição que, vimos, estava associado ao círculo de Péricles [Osório diz: o círculo de Péricles era contra a superstição: o caso do carneiro unicórnio!]. [Osório diz: a antecipação de Freud ou onde Freud se abeberou?]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 89-90).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

47.5 – O cálculo do melhor e do mais útil, por Antifonte.

 

Barbara Cassin doutrina:

 

Diante do cálculo do melhor, do mais útil, "a fronteira entre bem e mal se apaga: aí está o sofista" (Nietzsche, Fragments postumes, 87-88, 343ss.,11 [375]), É assim que podemos explicar o paradoxo de uma sofística ora tirânica e ora democrata, ora cínica, sadísta, revolucionária, e ora conformista e conservadora [Osório diz: isso explicaria Protágoras democrata e Antifonte junto aos aristocratas]. O personagem de Ântifon pode servir com razão de paradigma, a ponto de ter sido fragmentado pela tradição em vários indivíduos distintos: a obediência à natureza, cuja necessidade ele demonstra, deve teoricamente conduzir à liberação dos instintos e à anarquia social; ora, ele não cessa de propor como exemplo as condutas gnômicas [sentenciosas] convencionais e esteriotipadas. Mas é de forma correta que no Sobre a Verdade, natureza e lei são distinguidas somente por seu "uso" ou sua "utilidade": pelas conseqüências que sua transgressão ocasiona. A transgressão da necessidade natural produz um dano segundo a "verdade", independente das circunstâncias, enquanto a transgressão de uma regra convencional só produz efeito na "opinião”, logo radicalmente diferente segundo se trate de uma conduta privada ou de uma conduta pública; no secreto do privado se opera assim um retorno ao natural, mas a natureza então não é mais do que uma escapada ao imperialismo dessa legalidade que pretende coagir até a sensibilidade e prescrever aos olhos "o que eles devem e o que não devem ver" (B 44A, col. 2 e...3 D.K.). [Osório diz: doutrina de Antifonte].

Encontrando-se assim difratada a identidade dos indivíduos e das condutas, concebe-se que o mesmo Ântifon possa propor como modelo de retórica judiciária Tetralogias, quer dizer, séries de quatro discursos: uma acusação, uma defesa, uma nova acusação que leva em consideração a primeira defesa, depois uma última defesa, cada uma propondo sua narrativa e sua versão de uma mesma ação, segundo as exigências instantâneas da tática.” [Osório diz: é o que ocorre no Júri!]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990,p. 12-13).

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

47.4 – A interpretação dos sonhos e a terapêutica dos desgostos, por Antifonte.

 

Gilbert Romeyer-Dherbey leciona:

 

Vimos, nas análises políticas, Antífon afirmar que o espírito é desejo; vimos então aparecer a noção de desgosto (lupé) produzido pelas leis repressivas. Ora, esta noção intervinha na indicação de um empreendimento original de Antífon, a “arte de eliminar o desgosto” (téchnê alupías), que, por sua vez, se prende com o tema da concórdia, já que a homonoia designa também “a unidade de espírito de cada indivíduo consigo próprio”. O pouco que sabemos desta arte permite-nos, apesar de tudo, pensar que se tratava de uma terapêutica já científica, que nos faz lembrar o freudismo [Osório diz: antecipação de Freud]. Pode relacionar-se com a atividade de onirocrítica de Antífon, isto é, de interpretar sonhos. Vamos, antes de mais, referir os fragmentos que nos parecem justificar uma inspiração psicanalítica da interpretação antifoniana dos sonhos e da arte de eliminar os desgostos, que a seguir referiremos. [Osório diz: acho que Guthrie caçoa disso].

Antífon viu toda a importância das causas psíquicas da doença; enuncia claramente o princípio do que hoje chamaríamos a medicina psicossomática: “para todos os homens, com efeito, o pensamento governa o corpo no que diz respeito à saúde e à doença”. Sabe-se que os sintomas fisiológicos têm um significado e que, por exemplo, a doença pode constituir um refúgio: “a doença é uma festa para os preguiçosos”. A psicologia de Antífon devia ser uma psicologia dinâmica, que concebe o homem como dividido entre forças internas que se confrontam e que ele deve equilibrar: a sabedoria não é um estado de calma repousante, mas uma luta contra um princípio oposto: “quem não desejou ou tocou o que é vergonhoso e mau, não é um sábio: nada (ostenta) daquilo contra o qual se pode obter vitória e apresentar-se em ordem” [Osório diz: é fácil dizer/condenar sem ter sido tentado]. Enfim, uma observação sobre os perigos da satisfação imediata dos desejos deixa antever a distinção freudiana entre o princípio do prazer e o princípio da realidade.

Mas a relação com Freud torna-se mais estreita quando se aborda o método antifoniano de interpretação dos sonhos. Na Antiguidade, a mântica [Osório diz: “Arte de adivinhar ou fazer profecias”] dividia-se em uma divinatio naturalis e uma divinatio artificiosa. A interpretação praticada por Antífon classifica-se na segunda categoria. A adivinhação natural consiste em pensar que, se sonhamos com um acontecimento feliz, é um presságio de felicidade enviado pelo deus, e inversamente. A adivinhação que deriva de uma arte, “científica” diz Untersteiner, julga-se com o direito, por uma interpretação mais sutil, de interpretar como presságio favorável um sonho de catástrofe, e inversamente. Lembremos alguns exemplos citados por Cícero. Um corredor prepara-se para a corrida dos carros dos Jogos Olímpicos; sonha que conduz uma quadriga. Vai visitar um adivinho que pratica a interpretação natural e lhe promete a vitória; dirige-se a seguir para a casa de Antífon, que pratica a interpretação científica, e vê no sonho um presságio de desistência: “não compreendes que quatro correm à tua frente?” Outro corredor viu-se num sonho transformado em águia; o primeiro adivinho dá-o como vencedor: Antífon como vencido: “ó meu pacóvio, [Osório diz: “Que ou quem é considerado ingênuo ou aparvalhado”] diz ele, não vês que estás vencido? Com efeito, esta ave, já que persegue e afasta as outras aves, é sempre a última”. Vemos, por estes exemplos, que Antífon parece conhecer a existência do que Freud chamaria a distorção e o trabalho do sonho; em cada caso está nitidamente estabelecida a diferença entre o conteúdo manifesto e conteúdo latente do sonho. O que chama a atenção nesta prática antifoniana de interpretação é a ótica racionalista que o distingue da mântica da sua época. Não justifica a adivinhação pela inspiração divina ou pelo êxtase, mas define-a como “a conjetura do homem sábio”.

Mas Antífon não é apenas onirocrítico; foi também, sem dúvida, o que hoje chamaríamos psiquiatra e procura aperfeiçoar uma “arte de eliminar o desgosto” (téchnê alupías) [Osório diz: psiquiatria]. Só temos algumas informações sobre esta arte, que parece ter sido uma psicoterapia: Antífon dizia-se capaz de “curar por meio da palavra” as pessoas que sofriam de desgostos; tranquilizava, assim, os doentes, “uma vez informado das causas” (ibid) desses desgostos. O texto do testemunho permanece ambíguo: não se sabe se a palavra cuja virtude terapêutica aqui se utiliza é a palavra do doente ou a do médico, portanto, se se trata de uma análise ou de uma consolação: não se sabe nada se as causas indicam as razões conscientes adiantadas pelo doente ou as que são descobertas por uma hipótese do médico. Dado que Antífon, como vimos, era capaz de distinguir entre o conteúdo latente e conteúdo manifesto do sonho, pode pensar-se que a “informação” a que se refere o testemunho era o resultado de uma investigação ativa do médico procurando seguir a pista das causas latentes da perturbação [Osório diz: como poderia ser diferente?]. No que diz respeito à “palavra”, somos levados a relacionar a catarsis antifoniana com a tragédia e principalmente com a Electra de Sófocles, em que Clitemnestra, “assustado por um sonho, o conta ao sol nascente; era, diz o escoliasta, o costume dos Antigos, para escapar ao cumprimento dos maus sonhos”. A palavra indicaria, portanto, o discurso do doente. Apesar de tudo, o que sabemos da confiança sofística no poder encantatório do discurso e sobretudo das investigações antifonianas sobre a linguagem poderia legitimar uma interpretação inversa. Um dos traços originais de Antífon é, com efeito, o seu projeto de refundição da linguagem; exprime a maior parte dos seus contextos mais importantes por palavras que inventa, geralmente pela via da contraposição: assim alupia é um termo elaborado por Antífon, assim como arrythmiston. Ou então, Antífon serve-se destas palavras alterando-lhes o sentido: estas particularidades de vocabulário chamaram a atenção dos Antigos, que catalogaram várias; os seus contemporâneos tê-lo-iam até cognominado, por este motivo, “cozinheiro dos discursos”. Porquê esta prática dos neologismos, esta reestruturação da linguagem? Antífon insiste muito no aspecto convencional dos nomes, que devem esconder-se face às realidades ou, pelo menos, decalcá-las o mais estreitamente possível:

 

É absurdo, com efeito, pensar que as coisas visíveis nascem dos nomes; Além disso, é impossível. De fato, os nomes são os resultados da convenção, ao passo que as coisas visíveis não são resultados da convenção, mas produtos do impulso natural”. [Osório diz: isso mata a discussão do Crátilo?]

 

Ora, vimos atrás, a propósito do seu pensamento político, que Antífon quer destruir a convenção para dar lugar à natureza; quer igualmente desfazer a linguagem convencional e, dando um sentido mais puro às palavras da tribo, dar assim passagem ao que há para dizer. A nova linguagem deve poder dizer a natureza, exprimir a pulsão, desprendendo-se dos estereótipos, dos “clichês”, das expressões já feitas. A linguagem convencional é a de toda a gente; não pode formular o drama essencialmente individual da inquietação e da doença. A catarsis juntou-se, então, à poesia, a única capaz de exprimir a natureza na sua profundidade. [Osório diz: “a poesia”!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 104-108).

 

 

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