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41.24 – Poesia, seu uso pela Sofística, em especial, por Górgias.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

41.24 – Poesia, seu uso pela Sofística, em especial, por Górgias.

 

Nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Qual é a natureza profunda desta persuasão, que é a única a dar ao discurso a sua convicção? É poética a palavra ritmada, dizia Górgias; pensa-se então na relação desta palavra com a música. As figuras do estilo inventadas por Górgias mostram-no atento a tudo o que marca o ritmo, martela a expressão, e há que lembrar que a poesia antiga era cantada. [Osório diz: bem como, o sucesso, que até hoje fazem os cantores ditos “pops”! As multidões que levam aos seus espetáculos].

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Magia, que, aliás, já o seu mestre Empédocles exercia (“Górgias e le pouvoir de la poésie”).

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Jacqueline de Romilly insistiu, com muita razão, no aspecto mágico constitutivo, segundo Górgias, do poder da poesia. A persuasão do discurso age por feitiço; o seu dizer aparenta-o com as fórmulas encantatórias dos ritos e das evocações mágicas; o sofista é o feiticeiro, possui a palavra exata que outrora fazia mover as pedras e agora abre os corações, os fascina e cura. O discurso de Górgias age, portanto, como a magia que também se serve da linguagem; “com efeito, os encantamentos sagrados que utilizam palavras dão prazer e afastam a dor. Porque, misturado com a opinião da alma, o poder do encantamento fascinou-a, metamorfoseou-a por enfeitiçamento.” A medicina estava na época de Górgias muito próxima da magia; também esta magia linguística não tem para ele algo de perverso: a persuasão é para o discurso o que o remédio é para o médico. Pela sua arte, o sofista é o médico das almas. [Osório diz: a poesia para o Sofista!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 46 e 47).

 

Diz mais Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

III – A poesia da ilusão

 

Destas ruínas da ontologia, Górgias não vai deduzir um niismo nem um ceptismo, mas um pensamento não ontológico ou antimetafísico que, sob certos aspectos, não pode deixar de ser anterior ao de Nietzsche. [Osório diz: ao contrário, tudo será trazido para o humano e racional quando conjugado com o ensinamento de Protágoras no Mito de Prometeu]

A primeira consequência da crítica de Parmênides é a reabilitação das aparências e a afirmação da identidade entre o real e a manifestação. Uma condenação do mundo anterior platônico aparece já na letra do fragmento 26: “o ser eclipa-se se não lhe outorgarmos a aparência, a aparência extingue-se se não lhe outorgarmos o ser”. Se a aparência é modificável, o ser também o será: isto nada tem de escandaloso já que a realidade é contraditória, e o princípio de identidade origina apenas uma ontologia que depressa se contradiz a si própria...

(...)

As contradições nunca fazem as pazes.

 

A doxa é o estado de espírito dilacerado pelos contrários; a saber, o estado de espírito limitado pelo aspecto do real, de que o discurso consagra a legitimidade. O discurso é, de facto, o mestre das aparências e é ele que cria as que constituem a realidade humana escolhendo o aspecto do real que deve sobressair. [Osório diz: “os problemas filosóficos são todos problemas de linguagem”, já o disse quem?

Górgias não tem um tom demasiado elogioso para cantar este poder demiúrgico da palavra: “a linguagem é um grande potentado, que com um corpo minúsculo e imperceptível leva a cabo as obras mais divinas. Porque tem o poder de acalmar o medo, de eliminar o desgosto, de produzir a alegria, de aumentar a piedade.” [Osório diz: o discurso, para Górgias] Górgias tem o sentimento penetrante de que a linguagem não evoca senão uma aparência, mas que esta aparência é legítima [Osório diz: a linguagem de o fenômeno, e este “é” do modo que o vê o locutor]. Tomemos como exemplo o Elogio de Helena. Helena, culpada ou não culpada? O caso de Helena é ambíguo, é o mínimo que se pode dizer, e o seu próprio nome simboliza o seu caso [“encantadora” e “encantada”, ao mesmo tempo.]. Mas a escolha de Górgias levanta a ambiguidade e acaba com a questão... A linguagem é, então, o médico das almas divididas. … “Idêntica é a relação entre o poder da linguagem sobre a disposição da alma e a prescrição dos remédios sobre a natureza dos corpos.” A linguagem médica é, portanto, curadora e salvadora. Não suprime a contradição, porque é real, por conseguinte inexcedível, mas pacifica-a ao nível linguístico que é o seu, realizando o desvio de um dos contrários e mantendo-o de fora. Porque o real está dilacerado pelas contradições, o mundo humano exige uma tomada de posição e este mundo humano está por fazer, e é, de acordo com a etimologia, à poesia que Górgias se dirige para o fazer. A tomada de posição a favor de um dos contrários não é atitude de força, mas uma pacificação pela poesia no sentido amplo do termo, diríamos hoje, pela arte. Com efeito, Górgias refere o exemplo do pintor que é também capaz de apaziguar o conflito dos contrários pela redução da pluralidade. “E os pintores saciam a vista quando, a partir de múltiplas cores e corpos, completam com perfeição, um corpo inteiro, uma figura inteira.” [Osório diz: o real é dilacerado pelas contradições!]

O prazer que a arte nos proporciona é, pois, o de um acesso à consonância que cria um mundo habitável pelo homem: neste sentido o raciocínio lógico, que Górgias atua com maestria, não exprime a realidade, não tem significado ontológico, mas faz parte da poesia; cimenta a visão unilateral em que o espírito encontra seu repouso. [Osório diz: poesia]

O papel da poesia é, portanto, criar a ilusão, ilusão porque esta obra não está em conformidade com o real, mas ilusão desejável e boa, porque cria uma coerência mental que Górgias chama justiça e sabedoria. A tragédia de Ésquilo é uma obra de arte e neste sentido é uma ilusão, mas é esta ilusão, esta poetização – que é a tragédia – que nos permite suportar o trágico vivido, isto é, justificá-lo e compreendê-lo [Osório diz: poesia]. Com efeito, a tragédia cria

 

uma tal ilusão que, por um lado, o que cria a ilusão é mais justo que aquele que não a cria e, por outro lado, aquele que se deixa encantar é mais sábio que aquele que não se deixa levar. De fato, um é mais justo porque aquilo que prometeu fê-lo; o outro, o que cede ao encanto, é mais sábio; com efeito, deixa-se levar pelo prazer das palavras, o que não deixa de ter um sentido.[Osório diz: quem é mais honesto o que engana ou o enganado?].

 

A arte do sofista, isto é, do homem sábio, é, portanto, para Górgias, o que era a poesia trágica para Ésquilo, uma “ilusão justificada.” [Osório diz: a arte do sofista].

O discurso sofístico, ainda que expresso em prosa, faz, apesar de tudo, parte da poesia, já que – declara Górgias – a poesia, no seu conjunto, a considero e chamo uma palavra habitada pelo ritmo. [Osório diz: o que é a poesia]

A ilusão justificada, criada pela poesia do discurso, é tanto mais justificada quanto é partilhada por um maior número de ouvintes: acaba por elaborar o mundo cultural humano [Osório diz: a “ilusão justificada”, seria o que em Direito se diz “decisão fundamentada”! Já aqui está o encontro entre Górgias e Protágoras: as rais da impossibilidade e a adesão]. Mas – dir-se-á – Górgias não demonstrava a incomunicabilidade do cognosvícel? Certamente, mas esta incomunicabilidade não entra em ação enquanto a linguagem se gabar de por as coisas em palavras; ora, o que a poesia transmite não é precisamente as coisas, já que é criadora de ilusão, mas a emoção que as coisas produzem ou o sofista quer produzir [Osório diz: por que Górgias não se contradiz com a sua incomunicabilidade. Perfeito!]:

 

Os que o ouvem recebem em si o arrepio do medo, a compaixão das lágrimas e o remorso que gela. Face às prosperidades e aos reveses de causas e pessoas, que lhe são estranhos, a alma experimenta uma paixão muito sua, graças ao discurso.”

A intersubjetividade é, portanto, completamente possível para Górgias: se a linguagem não transmite um conhecimento adequado das coisas, veicula, pelo contrário, perfeitamente, a emoção. O que assegura a comunicação entre os homens é a emoção partilhada por meio da linguagem. [Osório diz: como Górgias explica a intersubjetividade/a comunicação entre as pessoas. Texto magnífico e explicativo].

A linguagem não tem que designar o real apagando-se perante ele, mas tocar a alma. [Osório diz: finalidade da linguagem]

Por conseguinte, se se lida só com as palavras, é impossível parar, e o sofista gaba-se que “o discurso nunca o fez faltar ao prometido.”

Portanto, a ilusão justificada é, essencialmente, o fruto da linguagem poética, que age no ouvinte de modo a sugestioná-lo. O problema central dos poderes da linguagem vai, pois, desembocar no estudo da receptividade da alma, numa psicologia do homem cativado pela musicazinha das palavras. A este estudo, os Antigos chamaram-lhe “psicagogia”, arte de levar a alma, pela persuasão, até onde se quiser levar. [Osório diz: Psicagogia – conceito – dicionário]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 41-44).

 

Diz ainda Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Jacqueline de Romilly insistiu, com muita razão, no aspecto mágico constitutivo, segundo Górgias, do poder da poesia. A persuasão do discurso age por feitiço; o seu dizer aparenta-o com as fórmulas encantatórias dos ritos e das evocações mágicas; o sofista é o feiticeiro, possui a palavra exata que outrora fazia mover as pedras e agora abre os corações, os fascina e cura. O discurso de Górgias age, portanto, como a magia que também se serve da linguagem; “com efeito, os encantamentos sagrados que utilizam palavras dão prazer e afastam a dor. Porque, misturado com a opinião da alma, o poder do encantamento fascinou-a, metamorfoseou-a por enfeitiçamento.” A medicina estava na época de Górgias muito próxima da magia; também esta magia linguística não tem para ele algo de perverso: a persuasão é para o discurso o que o remédio é para o médico. Pela sua arte, o sofista é o médico das almas. [Osório diz: a poesia para o Sofista!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 47).

 

 

 

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