Sofística
(uma biografia do conhecimento)
49.2 – O pensamento político de Crítias.
Nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey:
“Antífon opunha a fraqueza da lei à força da natureza. Crítias, que, como já vimos, exalta o esforço da formação voluntária em detrimento da espontaneidade natural, opõe a fragilidade da lei, que se pode tomar em todos os sentidos pela retórica, ao caráter que, quando presente em alguém, é inabalável. Um fragmento do Pirithoüs afirma-o claramente:
“Um caráter nobre é mais sólido do que a lei;
A este, com efeito, nenhum orador o poderá jamais alterar,
Enquanto que a ela, a pode maltratar muitas vezes,
Subvertendo-a dos pés à cabeça pelos discursos”. [Osório diz: a interpretação da lei].
Importa ver que o nomos, de que aqui se trata, significa a lei democrática, a resultante dos debates da Assembleia e que é votada pelo povo. O presente fragmento possui, assim, uma dimensão política e um alcance polêmico; pense-se nos ataques de Sócrates – cujo ensino Crítias seguia – contra o governo pela fava: as incertezas da lei traduzem a falta de caráter da massa flexível em todos os sentidos.
O caráter (tropos), se não pode pertencer à multidão, é porque é próprio de um indivíduo, homem superior que está acima das leis e que, portanto, não recebe a lei senão de si próprio. A. Battegazzore chega a dizer que, “na boca de Crítias, estes versos representam o prenúncio claro do golpe de estado de 403”. Quererá dizer que Crítias julga que a humanidade regressará ao que se virá a chamar o estado da natureza? – Não: a lei é necessária à sociedade, mas esta lei é a lei imposta pelo aristocrata, cujo caráter inflexível lhe garante a estabilidade. [Osório diz: o sobrinho dele, Platão, pensa assim também].
Deve sublinhar-se, finalmente, uma dimensão anti-sofística deste fragmento de Pirithoüs; Crítias contesta, implicitamente, a idéia, tão ao gosto de Górgias, da onipotência da palavra; o seu feitiço encantatório não pode nada contra um verdadeiro caráter, isto é, nada contra o querer esclarecido do homem nobre; a marca da excelência do tropos está mesmo em saber resistir-lhe. A quinquilharia da retórica só é boa para o povo.
A crítica da lei continua na famosa passagem do Sísifo, onde Crítias analisa a astúcia da religião que inventa deuses para conseguir de cada homem a sua auto-repressão. Este fragmento surpreendente parece uma resposta à análise antifoniana do (p. 113) respectivo valor da natureza e da lei. Antífon proclamava sem rodeios a superioridade da natureza, cujos imperativos são necessários, em relação à lei, cujas normas são convencionais, Crítias demonstra sutilmente que, por esta razão, a vida social não seria possível, porque a lei não pode vigiar continuamente o cidadão, e os maus então “agem às escondidas”. Ora, é preciso domar a hygbris humana. Crítias descobre então que a lei é mais forte do que pensava Antífon e que ela pode domar a natureza; um dia, com efeito,
“Um homem avisado e sábio de pensamento
Inventou para os mortais o temor dos deuses”.
Para a onisciência divina, o homem está sempre nu: não é possível esconder-se; enquanto teme os deuses, o mau omite a má ação. É claro que ainda não se pode falar da introjeção, no sentido freudiano do termo; o discurso mítico situa o daimon divino, de alguma maneira, no exterior do homem, já que houve e vê, mas há já, mediante o sentimento do medo, uma interiorização da lei que confere à análise de Crítias um tom muito atual.
Esta tomada de posição, aparentemente clara, não deixa de levantar pelo menos dois problemas, o do estatuto da religião e o da identidade do inventor dos deuses.
O texto de Crítias é muitas vezes citado para ilustrar as manifestações de ateísmo na Antiguidade; traduz bem, evidentemente, um ceticismo completo quanto à existência real dos deuses. Apesar de tudo, não se pode dizer que condena inapelavelmente a religião, ao ver nela apenas, como fará Marx, o ópio do povo; sublinha, pelo contrário, a necessidade social da crença nos deuses e seus efeitos benéficos. Os deuses são uma ficção, mas uma ficção útil e por este tema da ficção útil Crítias antecipa diretamente Nietzsche [Osório diz: antecipação de Nietzsche]. A religião é, portanto, simultaneamente destronada e promovida; serva da política, e, ainda que esvaziada de todo o conteúdo propriamente religioso, ela é indispensável.
Mas quem é o inventor dos deuses? Um sofista, sem dúvida, já que proporciona “o mais doce dos ensinos” e assim persuade, sem nada impor, “escondendo a verdade com um discurso falso”; é por isso que comparamos, exatamente, esta passagem com a doutrina de Górgias. Mas os Sofistas históricos empregaram o seu talento a suscitar ou ressuscitar a crença nos deuses? Protágoras, ainda assim, professava o agnosticismo; Pródico, sem dúvida o mais religioso dos Sofistas, concebe deuses inventores mais do que inventados. O inventor dos deuses utiliza, portanto, a técnica sofística, mas ele próprio é mais um político, próximo do ideal de Crítias, já que possui a famosa gnôme.
Portanto, este texto não é totalmente contraditório; se parece argumentar pró e contra a religião é porque se coloca sucessivamente na perspectiva do povo e na do governante, já que o sofista deve persuadir o povo da existência do deus, e o político, não acreditar em nada. [Osório diz: Maquiavel?]
O pensamento de Crítias acaba por nos aparecer menos embebido de contradições do que se disse. O preconceito aristocrático do seu pensamento vai a par do compromisso pró-oligárquico da sua vida [Osório diz: como seu sobrinho, Platão, de quem ninguém diz nada sobre isso! Exceto Popper]. Certamente que Crítias parece professar uma visão antilógica do real, quando declara: “para os homens, o rosto mais belo é o rosto feminino; para as mulheres, pelo contrário, é o inverso.” Mas o fragmento não afirma explicitamente a duplicidade radical do ser; antes sugere, segundo o que sabemos de Crítias, a idéia de uma dominação: o que é belo é o homem dominando os traços femininos que estão nele, a mulher os traços masculinos, da mesma maneira que é belo o domínio das sensações pelo pensamento e o dos bons sobre os maus, isto é (segundo Crítias), dos oligarcas sobre o povo. Sem tensão não há beleza, mas é uma mistura sem graça. Pensamento da contradição, sem dúvida, mas de uma contradição estabilizada no mesmo sentido pela vitória de um dos contrários – vitória, como o demonstra o fragmento sobre os Espartanos e os Hilotas, sempre afirmada por uma vigilância sem falha.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 112-116).